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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.25 São Paulo dez. 2007

 

De observador a participante: considerações sobre a identidade do pesquisador

 

From observer to participant: considerations on the researcher's identity

 

Desde observador hacia participante: consideraciones acerca de la identidad del investigador

 

 

Carla Regina da Rocha TrindadeI; Maria Fernanda Alves Eustachio dos SantosII; Marisa Todescan Dias da Silva BaptistaIII

IMestre em Psicologia pela Universidade São Marcos, Psicóloga, Jornalista e membro do Grupo de Pesquisa em Identidade e Educação da Universidade São Marcos
IIPsicóloga e membro do Grupo de Pesquisa em Identidade e Educação da Universidade São Marcos
IIIDoutora em Psicologia Social pela PUC/SP, professora no curso de Mestrado em Psicologia da Universidade São Marcos, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Identidade e Educação da Universidade São Marcos - E-mail: marisatdsb@terra.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo é produto de reflexões sobre uma pesquisa interventiva que foi realizada com grupos de professores em duas escolas públicas na cidade de São Paulo. Seu objetivo é demonstrar como o processo de interação estabelecido entre pesquisadoras e pesquisados contribui também para a constituição da identidade das pesquisadoras. Tomamos como referência Ciampa (1996), que contribui com a idéia de identidade-metamorfose-emancipação, compreendida aqui como algo dinâmico, em permanente metamorfose. Observamos que o discurso dos professores nos faz oscilar entre diferentes sentimentos, o que inicialmente poderia dificultar a condução da pesquisa e resultar numa participação tendenciosa. Analisando as vivências conjuntas, os silêncios e as associações feitas pelos professores, avaliamos que a interlocução existente entre os pesquisadores e os pesquisados não representava apenas um obstáculo, mas também um instrumento que permitia que tanto pesquisadores como pesquisados, através da reflexão, pudessem se perceber como seres humanos inacabados, em processo de construção.

Palavras-chave: pesquisa interventiva; identidade do pesquisador, sentimento.


ABSTRACT

This article is a product of observations based on an interventional-research, which has been taking place for two years with a group of teachers from public schools in São Paulo. Its objective is to demonstrate how the interaction process between researchers and researchees also contributes building the researcher's identity. We've taken Ciampa (1996) as reference, which contributed with the idea of identity-metamorphosis-emancipation, understood here as something dynamic, in permanent metamorphosis. We've observed that the teacher's speech makes us go back and forth between different feelings, which at first could make it harder to conduct the research, resulting in a biased participation. Analyzing the combined experiences, the quiet moments and the links made by the teachers, we assessed that the existing interlocution between the researchers and the researchees did not represent an obstacle, but also an instrument that allowed the researchers as well as the researchees, through reflection, to perceive themselves as unfinished human beings, in the process of construction.

Keywords: interventional research; researcher's identity; feeling.


RESUMEN

Este artículo es el resultado de reflexiones sobre una investigación-interventiva que fue realizada con grupos de profesores en dos escuelas públicas en la ciudad de São Paulo. Su objetivo es demostrar cómo el proceso de interacción establecido entre investigadores e investigados contribuye también para la constitución de la identidad del investigador. Tomamos como referencia Ciampa (1996), que contribuye con la idea de identidad-metamorfosis-emancipación, entendida aquí como algo dinámico, en permanente metamorfosis. Observamos que el discurso de los profesores nos hace oscilar entre distintos sentimientos, lo que inicialmente podría dificultar la conducción de la investigación y resultar en una participación tendenciosa. Al analisar las vivencias conjuntas, los silencios y las asociaciones hechas por los profesores, evaluamos que la interlocución existente entre los investigadores y los investigados no solo representaba un obstáculo, sino también un instrumento que permitia que a través de la reflexión, tanto investigadores como investigados, pudiesen percibirse como seres humanos inacabados, en proceso de construcción.

Palabras clave: Investigation- interventiva; investigation en identidad; sentimiento.


 

 

Este trabalho é fruto da reflexão suscitada por nossas vivências como pesquisadoras do Grupo de Pesquisa em Identidade e Educação, que realizou uma pesquisa interventiva com professores do ensino fundamental em duas escolas da rede pública da cidade de São Paulo - uma municipal e outra estadual. Esse tipo de pesquisa pressupõe dois processos que ocorrem concomitantemente: o de prestação de serviços e o de pesquisa. No caso em pauta, a atuação com grupos de professores no sentido de eles terem clareza sobre a constituição de sua identidade profissional, de tal forma que possam elaborar transformações na mesma, é o que denominamos processo de prestação de serviços. Essa atuação, por outro lado, se constitui como um campo no qual temos produzido várias pesquisas sobre diferentes temas: as relações entre identidades dos professores e alunos; as diferentes formas de atuar no grupo; as relações entre pesquisadores e professores; as dificuldades encontradas no contexto de ensino; a questão da arte e da cultura em uma pesquisa interventiva; condições que possibilitam a realização da pesquisa interventiva, etc.

Convém esclarecer, inicialmente, que o grupo de pesquisa foi constituído por diferentes participantes ao longo desses anos. Hoje é composto por oito pesquisadoras, sendo sete Mestres em Psicologia Social pela Universidade São Marcos e uma psicóloga, sob a coordenação da Profa. Dra. Marisa Todescan Dias da Silva Baptista. Os encontros para discussão e elaboração dos procedimentos a serem utilizados para o andamento da pesquisa (técnicas de relaxamento/aquecimento, dinâmicas de grupo, levantamento de necessidades, materiais a serem utilizados, avaliações dos resultados, etc.), assim como avaliação das intervenções já realizadas, eram realizados semanalmente na Universidade São Marcos.

Os grupos de professores, tanto da escola estadual, quanto municipal também variaram ao longo dos anos: houve sempre um núcleo permante (cerca de 70% a 80% do total de professores) sendo os outros substituídos. Na escola estadual, eles se distribuíam nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, sendo a grande maioria formada em Curso de Magistério ou curso superior de Pedagogia. Os professores de artes e educação física freqüentaram cursos superiores específicos. Na escola municipal, como os professores lecionavam no término do ensino fundamental (5ª a 8ª séries), a grande maioria terminou o curso superior na disciplina que lecionava. Nas duas escolas, nossa atuação se deu durante os horários de permanência obrigatória dos professores denominados, respectivamente, Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPc), na escola estadual, e Jornada Especial Integrada (JEI), na municipal.

Em função de nossa prática em pesquisa, avaliamos que a fala dos professores evocava em nós, pesquisadores, a recordação de inúmeras situações e sentimentos referentes não apenas a fatos ocorridos em nossa vida profissional, mas também pessoal. Num primeiro momento, questionamos se isso poderia configurar-se como obstáculo à condução da pesquisa, haja vista que o que observávamos e interpretávamos nunca era independente de nossa formação, de experiências anteriores e do próprio mergulho que realizavámos na situação investigada. Tudo isso, imaginávamos, poderia resultar numa participação tendenciosa do pesquisador, que subordinaria os pesquisados às suas idéias e desejos. Porém, o que avaliamos, desde o momento em que nos propusemos a pensar sobre o assunto, foi justamente o contrário. Mais que um processo de construção e reconstrução na maneira de conduzir nossos trabalhos, também nos reconstruímos, num caminho muitas vezes pedregoso e repleto de contradições, aprisionados por alguns momentos em teorias e conceitos de aprendizagem.

Com o passar do tempo, com o vínculo estabelecido entre o grupo de pesquisadores e o de professores, percebemos que o conhecimento vinha e ia de forma gradual, resultando numa troca de experiências, idéias e, por que não dizer, frustrações, sobressaltos, mas que inevitavelmente nos conduziram a novas reflexões. As vivências realizadas e discussões posteriores nos levaram a buscar alguns autores que ajudaram a estabelecer confrontos e estudar minuciosamente nosso foco: a influência e a repercussão da pesquisa interventiva na nossa identidade de pesquisador.

Maturana e Verden-Zöller (1993, p. 9) são autores que nos ajudaram a entender esse processo. Dizem eles que a experiência humana que acontece no espaço relacional do conversar culmina num entrelaçamento do linguajar e do emocionar. Sendo assim, a interlocução existente entre nós, pesquisadores, e os participantes da pesquisa, que poderia ser considerada como um obstáculo, passou a ser um instrumento que nos aproximava das inquietações e dos desejos dos professores e fez com que nos aproximássemos também de nossas inquietações e de nossos próprios desejos. Berger e Luckmann (2002) nos mostram que na história construída com o grupo o indivíduo estabelece a sua visão de mundo, o seu sistema de valores, as possibilidades que abre perante a vida, a relação entre o ser e o fazer, o que permite que a identidade seja objetivamente definida dentro desse mundo, e subjetivamente apropriada.

Essa dimensão na ação investigativa tem um conteúdo ético e crítico, construído sob condições de possibilidade da ação humana projetada no espaço-tempo local, pois orienta o pensamento reflexivo do pesquisador e dos pesquisados para propósitos práticos e emancipatórios (Facci, 2004). Como trabalhamos com um projeto coletivo, o professor assumiu um papel ativo na construção de seu próprio conhecimento, enquanto o pesquisador se tornou também agente pela reflexão crítica.

Descobrimo-nos então - professores e pesquisadores - como seres humanos inacabados, indivíduos cuja identidade está em constante construção, buscando compreender o processo de interação existente nas relações estabelecidas com o outro. Cremos que esse movimento conduz a uma visão mais ampla de aprendizado para ambos, possibilitada pelos processos de intervenção, planejados e iniciados no contexto de pesquisa e estendidos a contextos pedagógicos. Sendo assim, cada ação, tanto dos pesquisadores quanto dos professores, parece tender para um objetivo comum: a produção de saberes que possibilitem a satisfação de necessidades criadas no conjunto das relações sociais. A produção de conhecimento e a tomada de consciência aparecem de forma simultânea, já que, muitas vezes, no grupo, as idéias discutidas tornam-se não apenas estímulo para que todos ou a grande maioria manifeste suas opiniões, que podem se transformar em valiosa ajuda tanto para pesquisadores como para os professores, mas também permitem sistematizar as reflexões sobre o tema abordado.

A complementaridade de idéias nesse processo pode também estimular contribuições que envolvam a procura de alternativas, apreensão de processos de produção do conhecimento em áreas diferentes daquela em que o grupo atua, numa busca que pode permitir que a ação reflexiva ultrapasse a prática e a técnica, atendendo seu comprometimento com a mudança.

Partimos do pressuposto de que o pesquisador, desde o início de seu trabalho, assume uma postura questionadora, vigilante, desenvolvendo uma reflexão dialogada, tornando-se criador não só de seu próprio conhecimento através de sua postura investigativa e ética, mas também um mediador e intérprete das decisões coletivas do grupo envolvido, como nos sugere Borba (2001). A transparência de informações entre o grupo pesquisado e os pesquisadores passa a ser de suma importância, já que ambos partilham do mesmo ambiente social.

Acreditamos que as atividades desenvolvidas em conjunto - as vivências, os silêncios, as memórias e as associações feitas pelos professores como participantes ativos - contribuem para a nossa própria reflexão. Se a identidade é vista como um processo (Ciampa, 1996), representando e relacionando noções que o indivíduo desenvolve a respeito de si mesmo, levando em conta as mudanças ocorridas em sua história pessoal, bem como as relações que ele vai construindo, sua visão de homem e de mundo, podemos entender que a linguagem e o pensamento estão profundamente ligados a esse processo. É através da linguagem, por palavras, gestos ou manifestações psíquicas, que encontramos o sentido que o indivíduo dá a seu próprio mundo interno e ao que o rodeia. É o homem tornando-se agente da história, tanto a pessoal quanto a social, com a escolha de manter ou transformar essa realidade.

Apresentamos a seguir algumas situações que suscitaram muitas reflexões dos pesquisadores. As primeiras a serem mencionadas envolvem comportamentos dos professores que impediram que uma ação anteriormente planejada pudesse ser levada a efeito, provocando a perplexidade dos pesquisadores e a conseqüente reflexão sobre esse processo. Posteriormente, analisamos as transformações vividas pelos pesquisadores em função de algumas falas de professores.

Essas situações se referem a algumas atividades realizadas com os professores que possibilitaram o contato com diversas maneiras de sentir e, conseqüentemente, de agir, tanto da parte deles como da nossa. Propostas no decorrer da pesquisa, essas atividades tinham como objetivo principal facilitar o reconhecimento pelos professores da importância da comunicação, interação e do contato com o outro. Ao longo do tempo, outro objetivo se constituiu: reconhecer e elaborar as marcas que essas vivências provocavam em nós.

A primeira atividade que vamos relatar tinha como proposta que os professores, aos pares, amarrassem uma bexiga no tornozelo e se esquivassem dos outros. A tarefa foi encerrada sem que houvesse uma dupla vencedora, já que os docentes nem sequer escutaram a instrução que dizia que o par vencedor seria aquele que conseguisse manter os balões intactos e passaram a estourar todos os que conseguiram. Ficamos como que paralisados, assistindo estupefatos à algazarra feita pelos professores, sem conseguir interrompê-los e prosseguir com as instruções. A atividade era um convite aos professores para olharem para uma tarefa educativa envolvendo várias dimensões do humano, integrando o corpo, as relações com o outro e a própria consciência na realização da atividade. A partir do momento em que isso não ocorreu, instalou-se em nós a insegurança e a dúvida sobre o sentido da atividade. Posteriormente, o grupo de pesquisadores discutiu o sentimento de frustração por não ter conseguido se fazer entender, ou seja, não ter conseguido mencionar a instrução em sua totalidade. Ao tentarmos avaliar por que estávamos tão preocupados em seguir um roteiro, lembramo-nos de Zeichner (1993, p. 17), que responderia a esse questionamento com a seguinte frase: "Refletir sobre o próprio ensino exige espírito aberto, responsabilidade e sinceridade".

Ao longo da pesquisa, inúmeras vezes, nos deparamos com a dificuldade de não conseguir executar uma tarefa tal como fora planejada. Vários são os motivos que provocaram isso. Um deles ocorria regularmente quando eram instaladas interrupções inesperadas: alguém batendo à porta e solicitando a presença de um dos professores para resolver uma questão lá fora; o toque de um (ou mais) celular durante a vivência, embora fizéssemos o pedido para que todos os aparelhos fossem desligados nos primeiros minutos antes de iniciar a atividade. Outros motivos relacionavam-se com silêncio e concentração durante a execução da maioria das tarefas, que nem sempre eram observados pelos professores. Nos primeiros meses do desenvolvimento da pesquisa, apenas constatávamos que a atividade não se completaria e um sentimento de fracasso manifestava-se em muitas de nós. Para nós, nem sempre é fácil aceitar que não temos o controle de todas as situações e, mesmo que desejemos, não conseguimos eliminar fatores que interferem no encontro com o outro. Por isso, apesar de nosso empenho e comprometimento, inúmeras vezes saímos frustradas das reuniões. Muito recentemente, a experiência nos levou a concluir que o pesquisador deve compreender que o inesperado pode eclodir a partir de determinados depoimentos, determinadas frases ditas espontaneamente, de determinadas atitudes intempestivas, ou até mesmo do sinal de um celular que, por não ter sido desligado conforme pedido, toca durante uma atividade que exige recolhimento.

O sentimento de culpa pelo insucesso, que inicialmente atribuíamos ora aos pesquisadores, ora aos pesquisados, gradativamente, ao longo do processo, foi sendo abandonada e outros sentimentos tomaram seu lugar: a aceitação, a sutileza e sensibilidade para lidar com o inesperado. Essa concepção pode levar à idéia de que ficávamos satisfeitas com qualquer resultado. Porém, o que aconteceu é que passamos a nos preocupar em programar as atividades e avaliar que, apesar de elas, ao serem executadas, nem sempre saírem exatamente como planejado, isso não impediria o caminho em direção ao pleno cumprimento do objetivo principal de nossa intervenção.

Portanto, podemos afirmar que embora o desânimo e a frustração diante das dificuldades surgidas ao longo do percurso possam tomar conta do pesquisador em diferentes momentos, servem como mola propulsora para o exercício do pensamento crítico, que é uma possibilidade ou instrumento para o processo de transformação. A reflexão surge e é também alimentada pela vontade de fazer um trabalho significativo e ético. Temos claro que a reflexão não pode ser exercitada só para resolver crises. Nesse sentido, a prática reflexiva deve se estabelecer na instituição escolar com um funcionamento constante, como parte de uma rotina.

Cabe aqui ressaltar que acreditamos que tanto pesquisadores como professores devem ser autônomos para conceber sua própria prática e enfrentar a variabilidade e transformação das condições de trabalho. Sabemos que só alcançaremos êxito nessa tarefa à medida que tivermos consciência do papel da educação na construção da subjetividade humana, levando em conta sua historicidade. É preciso deixar que cada um viva e aprenda num exercício em que reflexão e prática possam ser coletivas e fundamentadas em vivências e suas articulações com a teoria, que são transformadoras e partes de um processo em construção. A teoria só passa a fazer sentido quando interligada com os saberes construídos ao longo das vivências dos indivíduos envolvidos com a pesquisa.

Pensando nesse processo de construção ao longo do tempo, e a título de exemplo, mencionaremos uma atividade realizada por todos os participantes. Éramos quatro subgrupos de professores e pesquisadores que deveriam escrever uma história que retratasse o percurso do seu subgrupo desde o início da pesquisa até aquele momento. A composição dos grupos era a seguinte: um subgrupo de professores mais antigos e outro, de mais novos, um de pesquisadores mais antigos e outro, de mais novos. É importante lembrar que essa atividade proposta se baseava no seguinte pressuposto: "Relatar o vivido traz a incumbência de assumir que a memória traduz significados e condições socialmente determinadas que se imbricam e possibilitam delinear uma história que é pessoal e, dialeticamente, coletiva" (Batista, 2002, p. 239).

Depois de escritas, à medida que as histórias iam sendo lidas, notamos algo muito interessante. Havia um fio condutor que perpassava as quatro narrativas: todos os participantes se colocavam como observadores e atores no processo de transformação que as atividades desencadeavam em cada um. Como, evidentemente, esse processo perpassava também por nós, pesquisadoras, devemos confessar que os relatos nos deixaram um pouco perturbadas e desconcertadas. Ficamos divididas entre dois sentimentos opostos. Primeiro, o sentimento de felicidade. Foi gratificante perceber que nossa busca, nosso problema de pesquisa, havia se tornado também uma busca para os professores. O pesquisador foi considerado uma espécie de líder, um organizador de ações que possibilitavam a solução de um problema que seria de todos. No entanto, ao mesmo tempo surgiu certo receio; se nosso papel era o de auxiliar, mediar as ações, observando as metamorfoses, temíamos esquecer disso e adotarmos outras posturas que poderiam oscilar entre o autoritarismo e a arrogância. Para escapar dessa armadilha, avaliamos que o uso da reflexão seria o antídoto mais eficaz.

Partimos das idéias de Schon (2000) sobre reflexão. Para ele, há uma diferença entre a prática reflexiva espontânea do ser humano e a prática reflexiva metódica e coletiva. A primeira se estabelece pela tomada de decisão, situação na qual o profissional busca soluções para os problemas do dia-a-dia através de regras, princípios, procedimentos e técnicas executadas a partir do conhecimento profissional. A segunda se caracteriza pelo movimento do profissional para pensar os objetivos que não são atingidos, quando o problema pode não estar claramente definido e as características do contexto que não se amoldam às teorias e técnicas, conhecidas. Nesse sentido, é justificável dizer que, quando pesquisadores e professores se baseiam na própria experiência, acabam por promover o pensamento reflexivo.

Batista (2002) esclarece que as transformações sociais não se iniciam com facilidade nas instituições educacionais, mas estas podem ser importantes agentes de construção de um agir/intervir da realidade social interagindo com diferentes mecanismos teórico-metodológicos, transformando antigos modelos, tornando possível um caminhar na direção da transformação de idéias e atitudes, além de constituir a capacidade de provocar mudanças de metodologia e estratégias que favoreçam um ensino de qualidade.

Os fragmentos do discurso de alguns professores destacados a seguir foram considerados como significativos, por demonstrarem o tipo de repercussão que provocaram em nós e as reflexões, ações e transformações que desencadearam no grupo como um todo. Lembrando Paulo Freire (1996, p. 22): "A reflexão crítica sobre a prática é uma exigência para relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blablablá e a prática, ativismo".

O primeiro fragmento aborda nossa sensação de impotência ante o silêncio de alguns participantes; no segundo, exemplificaremos a auto-imagem negativa que alguns professores possuem de si mesmos e como ela repercute em nós, levando-nos a questionar nossa auto-imagem. O terceiro demonstra a importância de termos claro qual é o nosso lugar na relação pesquisador/pesquisado e, no último fragmento, evocamos a memória referente à nossa trajetória escolar e sua influência nos vínculos que estabelecíamos com os professores pesquisados.

Fragmento 1: Parece Auschwitz!!! A cena dos alunos entrando na escola acompanhados por música me lembra cenas de determinados filmes sobre campos de concentração, só que, no nosso caso, os alunos entram aqui e exterminam a gente [sic].

A partir desse fragmento é possível dizer que a idéia de um professor exercendo seu ofício "indiferente" é um mito. Assim como o pesquisador exercendo sua atividade de maneira "indiferente" também é um mito. Porém, no decurso da pesquisa surpreendemo-nos com a gama de sentimentos que essa relação pesquisador/pesquisado provocava: ora nos colocava diante de uma explosão de angústia, ora acabava por despertar em nós hostilidade; em outros momentos, sentíamos empatia e solidariedade diante das dificuldades encontradas pelos docentes dentro e fora da sala de aula.

A vigilância com que nos púnhamos a observar esses sentimentos não nos impedia de sermos acometidas por eles. Tanto assim que, tal como no fragmento citado, inúmeras vezes éramos tomadas por um sentimento de impotência que realmente nos lembrava Auschwitz. O massacre que nos esperava era o da repetição monótona do silêncio aparentemente inquebrantável de alguns participantes. Nada era mais angustiante do que o mutismo de alguns professores. A melhor imagem que podemos apresentar para traduzir essa sensação é a de uma tela em branco, em que é possível projetar absolutamente tudo.

Assim, tentamos levantar várias hipóteses para explicar o silêncio de alguns professores. A primeira é a de que seria uma resistência ante a possíveis mudanças, hipotetizando que o exercício do magistério os teria levado à crença de que mudanças não eram possíveis, logo, não adiantaria sequer tentar. Preferiam se conformar a romper o silêncio e construir, a partir das palavras, o esboço de uma nova realidade em sua prática educativa. Outra hipótese levantada seria a de um não-entendimento das atividades propostas por nós; o não dito poderia sinalizar que eles não estavam conseguindo atribuir nenhum sentido ao trabalho que estávamos realizando. Também consideramos que, para alguns professores, o silêncio podia representar um momento de reflexão, no qual era possível observar os outros e a si mesmo, ajudando-os a pensar e a repensar sobre posturas adotadas em seu cotidiano escolar. Assim, a um único silêncio era possível atribuir inúmeros significados: distância, fuga, não-participação na pesquisa, reflexão.

A questão que se colocou para nós a partir dessa conclusão era: estávamos experienciando a mesma sensação de alguns professores, com a diferença que conseguíamos nomear nossa emoção como angústia? O que fazer então? Na medida em que nos reuníamos para a discussão do tema, podíamos falar sobre ela e, entre nós, exercitávamos nossa capacidade de dialogar com outros sobre nossos sentimentos. Esse diálogo permanente nos fez ter abertura para interagir não apenas com aquilo que os professores nos diziam, mas, sobretudo, com o que eles não diziam.

Descobrimos que o silêncio de alguns professores também podia ser uma forma de interação: representava um instrumento de inserção no grupo. Se, num primeiro momento, a participação de alguns professores dava-se somente através da escuta, podemos afirmar que essa não foi uma postura inexoravelmente determinada. Conforme os encontros foram se sucedendo, notamos que alguns deles trocaram o silêncio pelo diálogo aberto: passaram a participar das reuniões emitindo opiniões e compartilhando experiências referentes à sua prática docente; as discussões seguiam através de falas: divergentes, complementares e contraditórias.

Nesse sentido, então, é possível falar que houve uma pequena mudança nessa participação de alguns professores, que repercutiu na participação do grupo: o silêncio foi rompido e do conformismo passamos à esperança. Esse processo de certa forma aponta para a possibilidade de metamorfose na identidade. Cabe aqui citar Paulo Freire, que dizia: "a história que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo" (1996, p. 53.)

O curioso é notar que nesse processo - ao descobrir que os sentimentos que os professores despertavam em nós não era uma cilada, que podíamos sentir e até nos deixar impregnar por essas emoções, desde que, depois, nos afastássemos para analisá-las, procurando elucidar o significado que cada uma delas tinha para nós - nossa identidade também se metamorfoseou. Recordando a violência de sentimentos que o silêncio e determinadas confissões proferidas por alguns professores suscitavam em nós, afirmamos que essa não foi uma tarefa fácil. Foi preciso aprender a tolerar o convívio com esses difíceis sentimentos; foi preciso aprender a construir com o outro uma nova realidade; foi preciso aprender, sobretudo, a lidar com as expectativas de cada um; só assim o mito do pesquisador neutro foi abandonado e outro personagem se delineou, o pesquisador humano, que oscila entre o tédio e o interesse, entre a antipatia e a empatia, que "participa" suas buscas e suas certezas com o outro, enfim, que descobre que ao lidar com gente e não com coisa, o território pelo qual se caminha nunca é um território estanque.

Fragmento 2: O título do meu desenho é "Sofrimento" e eu desenhei um homem carregando um cruz (...) eu desenhei primeiro o rosto deste palhaço (...) É que muitas vezes, no dia-a-dia da escola, eu me sinto assim, me identifico com esta figura (...) [sic].

Desde o começo da pesquisa a auto-imagem negativa que a maioria dos professores tem de si mesma ficou explícita para nós, principalmente considerando os depoimentos que eles nos davam, como o citado acima. E é precisamente sobre a sutileza dessa auto-imagem que queremos falar. Que tipo de sentimentos a auto-imagem depreciativa desses profissionais provocava em nós?

Nosso primeiro impulso era de nos solidarizarmos com eles, afinal, também somos professoras e sabemos o tratamento que o público, a mídia, e em especial a televisão, dispensam aos mestres, retratando-os de forma estereotipada, diversas vezes desvalorizando a figura do docente, o que se destacava sobremaneira no programa humorístico "Escolinha do Professor Raimundo" (veiculado na TV, há alguns anos). É importante relembrar que um dos objetivos da nossa intervenção é justamente possibilitar reflexões para que esses estereótipos sejam desconstruídos.

A questão a ser discutida aqui não tem seu foco nesse aspecto, mas nas conseqüências dele. Em virtude dessa auto-imagem negativa, a maioria dos professores apresentava-se para o trabalho que realizávamos bastante desmotivada. Se, por um lado, entendíamos o motivo do desânimo deles, o cansaço pelas longas jornadas de trabalho, as más condições da escola ou a falta de instrumentalização, dentre muitos, por outro, a postura daqueles que haviam introjetado a imagem caricata do professor, chegando a se auto-retratarem como professores que podemos metaforicamente denominar "professor-mártir" e "professor-palhaço", preocupava-nos. Cabe aqui lembrar Ciampa, quando nos diz: "interiorizamos aquilo que os outros nos atribuem de tal forma que se torna algo nosso. A tendência é nós nos predicarmos coisas que os outros nos atribuem" (1996, p. 131).

Freqüentemente, nos questionávamos para ver se não estaríamos olhando os docentes da mesma maneira, tratando-os como "coitados" e confirmando assim a sua identidade negativa. Diversas perguntas surgiam: O que poderíamos fazer para ajudá-los na desconstrução dessa identidade negativa? Por que parecia ser tão difícil mudar? Fracassaríamos no nosso intento?

Tendo em mente reflexões como estas, lembramo-nos de que a Unesco reuniu alguns dos maiores representantes do mundo na Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, que deu origem ao relatório "Educação: um tesouro a descobrir" (Delors et al., 1996). O relatório faz menção a quatro pilares considerados as bases da educação, ao longo de toda a vida, inclusive para esse século já iniciado. Refletir sobre esses pilares não nos deu todas as respostas, mas nos ajudou a lançar lume às indagações acima, em busca de recursos cada vez mais amplos para as transformações necessárias. O primeiro deles é conhecer. Antes, o professor era valorizado por sua técnica; hoje, os saberes codificados vão dando lugar ao desejo sincero de "aprender a aprender". Em nosso trabalho, pudemos perceber que, nos encontros voltados para o que chamamos de fechamento do semestre, tanto professores como pesquisadores participavam de modo ativo, falando abertamente das expectativas que nutriam em relação ao andamento do projeto. O diálogo gera esperança. A esperança mostra que o conflito está incorporado ao desenvolvimento, fazendo-nos perceber que, ao lado do desencontro que muitas vezes permeia a relação professor-aluno - e também aqui podemos dizer da relação pesquisador-pesquisado -, há também "descobertas", amizade e ética. Então, que a discussão se faça, para que possamos não apenas questionar determinadas situações estabelecidas, previamente ou não, mas também desafiá-las e modificá-las para uma melhoria na relação de ambos. Compreender o mundo que rodeia o aluno, observar o universo em que a pesquisa está inserida, trabalhar uma cultura vasta do mundo à sua volta e ao mesmo tempo não ter vergonha de olhar para si mesmo em profundidade, aplicando o que aprende, troca, experiencia, exercitando também a própria atenção, memória e concentração. Aprender sobre si mesmo e fazer disso um trampolim para o conhecimento hoje e sempre. Lembrar-se de que todas as ocasiões podem ser tempo de atualizar, aprofundar e enriquecer os primeiros conhecimentos, facilitando a adaptação a um mundo repleto de mudanças. Através da formação cultural vasta, podemos exercitar a comunicação em diferentes áreas do saber. Na educação dos primeiros anos, percebemos a grande importância de transmitir as bases que farão com que o indivíduo possa continuar seu aprendizado por toda a vida, já que o processo do conhecimento, o "aprender a aprender", nunca se dará por encerrado.

O segundo pilar é aprender a fazer. Conhecer e fazer, diz-nos o Relatório, são indissociáveis. Um não acontece sem o outro. Tornar as pessoas aptas a enfrentar as mais diversas situações, levando em conta inúmeras variáveis, possibilitando-lhes trabalhar em equipe, não tendo em conta apenas a qualificação profissional. Desde o princípio da pesquisa, pudemos observar e - o mais importante - experienciar que, dadas as motivações e os objetivos comuns do projeto, tanto professores quanto pesquisadores puderam, ao longo do tempo, ir minimizando as diferenças, já que rotinas individuais puderam ser ultrapassadas. A solidariedade e o esforço comum presentes nos dois grupos fizeram - e ainda fazem! - com que a técnica pudesse ser discutida, praticada, alavancando novas formas de aprendizagem, de troca, de cumplicidade, possibilitando que novas relações fossem ampliadas e antigas fossem enriquecidas, tanto na vida profissional como aquelas que, através deste aprendizado, levamos para nossa vida pessoal.

O terceiro pilar é aprender a viver juntos, desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das interdependências, no sentido de realizar projetos comuns e preparar-se para gerir conflitos. Nesse ponto, podemos refletir sobre a auto-imagem do professor. Qualquer sociedade humana retira a sua união de um conjunto de atividades e projetos comuns, coesos, com valores partilhados, ampliando aspectos de solidariedade, fortalecendo laços materiais e espirituais, fazendo com que o indivíduo tome como base o sentimento de pertencer àquela comunidade. Cabe à escola transmitir a diversidade da espécie humana e, simultaneamente, ampliar a consciência de suas semelhanças e suas recíprocas dependências. É na descoberta do outro que se descobre a si próprio. Tendo em vista seu papel, o indivíduo tenderá a trabalhar para objetivos comuns, nos quais a palavra de ordem seja cooperação. E cooperação, no sentido mais amplo e mais estrito da palavra, representa o elo mais importante da nossa intervenção. Isto porque, ao longo da pesquisa, à medida que procurávamos respostas para nossas dúvidas, subitamente percebemos que nossa inquietação e nosso receio diante das dificuldades a serem superadas e das possíveis mudanças simbolizavam as mesmas angústias dos professores.

Era como se todos, pesquisadores e pesquisados, estivéssemos em interação no mesmo barco, não importando as funções que cada tripulante da embarcação desempenhasse. Só atracaríamos no porto se todos se esforçassem para alcançar tal intento, do contrário, naufragaríamos. Reconhecer isso fez com que nos libertássemos de algumas redes imaginárias que nos aprisionavam, permitindo a cada um se expressar diante de si mesmo e perante o grupo de forma mais autêntica. Pessoalmente, achamos muito interessante e enriquecedor refletir que a todo momento podemos repensar nossa trajetória de vida, retraduzindo e redescobrindo aspectos de nossa identidade. Diante de situações que colocam a nossa auto-imagem em julgamento, como as que vivemos com esses professores e muitas vezes entre nós, cuja identidade depreciativa e negativa fazia despertar nossos próprios fantasmas, não nos atemorizamos e, a partir do diálogo travado, sobretudo nos "bastidores da pesquisa", pudemos desbloquear situações que, do contrário, poderiam afetar nosso desempenho. Toda essa nossa transformação só foi possível porque, desde o início do projeto, sabíamos que nossa identidade como pesquisadoras teria de ser também construída no decurso da pesquisa e isso pressupunha que a relação que estabelecêssemos com os pesquisados ao mesmo tempo em que esculpia a identidade deles esculpiria a nossa também.

O quarto pilar é aprender a ser. Denota que a educação tem como papel essencial "conferir a todos os seres humanos a liberdade de pensamento, discernimento, sentimentos e imaginação de que necessitam para desenvolver os seus talentos e permanecerem, tanto quanto possível, donos do seu próprio destino" (Delors et al., 1996). O relatório apontou também que a educação deve colaborar para o desenvolvimento total da pessoa, isto é, espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade. Este último pilar traz uma "conclusão" que poderia ser sua introdução. Qual o papel da educação? É difícil definir, pois a educação, assim como a vida, não tem um fim. Ela é transformação permanente. A única coisa que podemos dizer é o que temos aprendido: que o processo educativo, qualquer que seja, é algo que nos impulsiona a buscar transcender nossa condição e isso só acontece quando nos abrimos para nós mesmos e para o outro, num processo por vezes "doloroso" de revelações e de autoconhecimento. Mas o que fazer se não podemos "estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não podemos estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas" (Freire, 1996).

Fragmento 3: Não sabemos como agir, como fazer (...) A escola se apresenta com características à moda antiga, mas temos alunos à moda atual. Fomos formados para trabalhar há trinta anos atrás e agora??? [sic]

Comecemos por refletir sobre os sentimentos que estão presentes na frase acima: conflito, incerteza, dúvida, despreparo para lidar com situações novas. Essa frase exemplificava os professores imersos nesse redemoinho de sentimentos, desejando que levássemos a eles regras e prescrições de como deveriam agir na sala de aula diante dos alunos que apresentavam por vezes comportamento agressivo, desinteressado, desrespeitoso, e que outras vezes traziam para o espaço da aula temas como gravidez na adolescência, exclusão, racismo, entre outros. Em contrapartida, estávamos nós, com o objetivo claro de não prescrever receitas, mas desejando suscitar, através das vivências, reflexões que levassem os próprios professores a buscar novas formas de atuação e vínculo com os alunos.

Não somos ingênuas a ponto de não perceber que através dessa atitude os professores buscavam transferir para nós, pesquisadores, uma responsabilidade que era deles. Ao investir-nos de um poder que não possuíamos, isentavam-se de seus próprios deveres. Não podíamos prescrever receitas porque não as tínhamos. Mas se não ficássemos atentas poderíamos cair nessa cilada. No fundo, todos queremos apresentar soluções que prontamente diminuam o sofrimento do outro. Além disso, era frustrante perceber que para muitos professores nossas intervenções pouco adiantavam: tínhamos a impressão de que com estes caminhávamos como se o fizéssemos em areia movediça, eles não refletiam por si sós.

Por isto é que, a todo momento, tínhamos de resgatar o nosso lugar na relação pesquisador/pesquisado. Ocupávamos o lugar de quem auxilia, de quem instrumentaliza o outro na árdua tarefa que ele tem de tecer seu próprio perfil, de desenvolver sua própria arquitetura, de tornar-se um ser único, inconfundível. Reconhecer isso era ter de aprender a lidar com a frustração, porque, na maioria das vezes, não alcançávamos de imediato os objetivos que nos propúnhamos através das intervenções: ritmo dos encontros, intervalo entre os encontros, tempo interno de cada um para apreender/aprender/trocar eram fatores que impossibilitavam qualquer previsão de quando e se as metamorfoses ocorreriam.

Daí a importância de não nos termos tornado pesquisadoras que ditam regras. Só assim pudemos compartilhar com os professores a idéia de que as transformações não ocorrem através de imperativos verbais e que é preferível ter a vivência da impotência - "não sei o que fazer" -, a ter respostas prontas. O que não podíamos nem devíamos era "produzir receitas" referentes ao modo como o professor deveria proceder na sala de aula. Estávamos convencidas de que se conseguíssemos manter essa postura poderíamos, gradativamente, levar o docente a perceber que na relação professor/aluno ele ocupava lugar idêntico ao nosso.

Um dos papéis do professor é justamente despertar a consciência, resgatar o olhar crítico de seus alunos diante do mundo que o circunda; o professor ajuda na construção da identidade de seus alunos, ainda que não se dê conta disso. Berger e Luckman (2002) afirmam que a socialização ocorre a partir de processos de interação primário e secundário. No primeiro momento, o indivíduo internaliza os valores por meio da relação de dependência com as figuras parentais e devido ao grau de envolvimento afetivo, que faz com que esses valores sejam assimilados automaticamente. Já no segundo momento o indivíduo internaliza os valores através de outras relações institucionalizadas, como, por exemplo, na escola. A escola, portanto, personificada na figura do professor, tem a responsabilidade inerente de auxiliar o homem na interpretação que ele dá ao mundo; tarefa complexa e importante, tendo em vista que a leitura que eu tenho do mundo faz com que eu atribua determinado significado a todas as coisas que ocorrem no decurso de minha vida e o que realmente importa não são as coisas que nos acontecem, mas a interpretação que fazemos delas. Assim, nós também nos colocamos nessa posição de estimular o professor a constituir sua visão de mundo.

Fragmento 4: Por volta da sexta aula eu já estou cansada, então, quando um dos alunos decide subir o alambrado, na primeira e na segunda vez, eu falo para ele descer que é perigoso (...) Agora, se ele insistir, na terceira vez, eu empurro ele! Se cair no chão e se machucar (...) bem-feito!!! [sic]

Uma palavra pronunciada, um depoimento dado, um gesto feito podem nos remeter à nossa própria história de vida. Aflorar memórias que nos remetem, por exemplo, ao nosso tempo de escola, aos nossos professores. O tempo é capaz de unir dois instantes infinitamente separados. Afinal, quem de nós não traz em sua biografia a história de uma professora extremamente dedicada e afetuosa que nos acompanhou em algum período da nossa trajetória escolar; ou, pelo contrário, quem não se recorda de algum incidente traumatizante protagonizado por nós e por algum dos professores que tivemos?

A pergunta que fazíamos então era: será que os professores com quem estávamos atuando também guardariam lembranças dos professores que fizeram parte da história de vida deles? Essa questão era não só interessante, mas profundamente relevante. Isso porque, através da rememoração de determinadas experiências, esses docentes poderiam se dar conta do espaço testemunhal que a sala de aula representa: muito mais do que as palavras são os gestos dos professores que marcam os alunos (Freire, 1996).

Nas vivências que fizemos com os docentes, apareceram relatos emocionados sobre alguma atitude de determinado professor que representou muito na vida deles. Muitas vezes, os professores reais contrastam com os professores que habitam nossas lembranças. Será que isso nos faz incorrer no erro da comparação ou identificação? Que fazer, se não temos como abafar nossas memórias? Mas se há algo que queremos compartilhar é justamente o que fazemos com a memória que temos de nossos professores e como lidamos com ela diante dos depoimentos que ouvimos, como o citado acima.

Esses questionamentos apontam para a difícil situação em que nos encontrávamos. Entretanto, num dos encontros, o depoimento de uma professora comentando sobre sua relação com os alunos nos indicou um caminho. Disse ela: "a gente tem muita expectativa neles, isso gera muita angústia (...) eu me frustro em verificar que eles não estão no nível que eu gostaria" [sic]. E foi assim que compreendemos que o nosso grande desafio, mais do que evitar comparação, era evitar nutrir qualquer tipo de expectativas com relação aos professores, referente ao desempenho ou à conduta deles, dentro e fora da sala de aula. Uma vez aceito isso, ficou mais fácil lidar, por exemplo, com nossas lembranças e com a raiva que por vezes sentíamos deles por serem tão diferentes do que esperávamos ou desejávamos.

E é a partir dessa perspectiva que temos aprendido a ter respeito e afeto por esses novos professores, do mesmo jeito que no passado aprendemos a ter respeito e afeto pelos professores que fizeram parte da nossa formação. Com outras palavras, sabemos que a rememoração pessoal se localiza nas tramas e combinações de diversos elementos, podendo surgir na forma de lembranças, dentro de nossa atual existência social. O que temos feito é procurar descobrir um lugar onde professores de nossa memória e professores de nossa pesquisa, passado e presente, possam dialogar.

Essas tramas podem se transformar em linguagem, diálogo, interlocução entre pesquisador e pesquisado, o norte de todo o nosso trabalho. Este não se encerra por aqui. Poderíamos então pensar num final para ele ou, melhor dizendo, para esta parte do trabalho. Mas observamos que a escola não tem um espetáculo final. Num lugar de aprendizagem, nada melhor do que observar que a possibilidade de aprender pode ser sempre provisória. No recorte de várias tramas, vamos todos juntos produzindo um espetáculo geral. Às vezes, e na maioria delas, é nesse conjunto de projetos de pequenos grupos que a escola se faz e todos que se interessam por ela também. Os temas escolhidos para investigação dizem respeito à nossa própria história de vida, inscrevem-se em nossa subjetividade como desafio a que queremos responder. Não nos vemos simplesmente como pesquisadoras e ao outro como sujeito pesquisado. Partimos da mesma natureza, envolvendo relações de troca, não previsíveis e não determinadas na grande maioria das vezes. Aprendemos ao longo deste trabalho e, por que não dizer, que a lição é a mesma para nossas vidas, que acreditar ter o domínio das coisas, saber como os fatos são ou poderão ser, não tendo dúvidas, é uma armadilha. A pesquisa por si só vai mostrando que é errôneo acreditar ter tudo sob controle ou acreditar que sabemos tudo de que precisamos para que ela possa se realizar. Surge então o imprevisto, o detalhe nunca antes sequer imaginado e nos faz mudar o rumo, o olhar, acabando então por nos garantir, sempre, uma nova descoberta.

E o que dizer, mas, sobretudo, o que esperar de nós, se, como pesquisadoras, não temos a compreensão de que nossa identidade é construída ao longo da pesquisa e que construí-la, paradoxalmente, significa desconstruí-la? Nossa identidade ao longo do processo é metamorfoseada. A personagem pesquisadora-observadora transforma-se em pesquisadora-participante. Descobrimo-nos outras. Mas explicitar e descrever a mudança não é tão simples. A observadora começa a morrer quando, através das discussões sobre o que cada encontro desencadeia em nós, passamos, gradativamente, a ir delineando uma nova personagem, a participante. Falar abertamente sobre nossa impotência, angústia, raiva, expectativa, bem como sobre nossa felicidade e gratificação, é complicado. Mas nos permite duelar e vencer os monstros reais e não os irreais, frutos de nossas fantasias, abandonando assim a postura quixotesca que nos leva a guerrear com moinhos de ventos achando que estamos lutando contra guerreiros gigantes. E assim nos reinventamos, ao mesmo tempo em que ajudamos na reinvenção do outro - do professor, personagem principal desta pesquisa. O curioso é perceber que mudamos, mas que, enquanto mudamos, não paramos de caminhar. Portanto, o que acabamos de relatar pode ser comparado com uma fotografia: a imagem fotográfica detém um instante que no instante seguinte não é mais o mesmo. O que queremos dizer simplesmente é que outras metamorfoses estão por vir, afinal, as intervenções continuam e outros questionamentos ainda não resolvidos exigem de nós reflexão:

Eu ainda não consigo não transferir toda minha angústia para a sala de aula. Eu melhorei e com certeza logicamente melhorei em sala de aula. Enquanto pessoa é maravilhoso, mas aqui dentro continua a mesma angústia de sempre. O que fazer com aquelas crianças que não conseguem aprender e que lidamos no dia-a-dia? Talvez, se vocês estivessem fazendo isso com as crianças ao invés de trabalhar com nós, seria melhor (sic).

A escola que eu imaginei era linda, tinha muitos livros dentro da sala (...) não tinha alunos (sic).

Pai e mãe largam os filhos ao-deus-dará, a gente tem que ser mãe, pai deles (...) tem que ser tudo, fazer tudo (sic).

Uma certeza: o discurso do professor, ao lado das repercussões que provoca em nós, continuará sendo o barro que nos ajudará a modelar e remodelar futuras considerações.

 

Referências

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