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Psicologia da Educação
versão impressa ISSN 1414-6975
Psicol. educ. no.34 São Paulo jun. 2012
A violência psicológica na relação entre professor e aluno com dificuldades de aprendizagem
The psychological violence in the relationship between teacher and student with learning difficulties
La violencia psicológica en la relación entre profesor y estudiantes con dificultades de aprendizaje
Rita de Cássia Souza Nascimento FerrazI; Marilena RistumII
IProfessora do Departamento de Estudos Básicos e Instrumentais da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB ritaksouza@hotmail.com
IIProfessora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia - UFBA
RESUMO
Neste trabalho, buscou-se investigar as ações do professor que se caracterizam por violência psicológica no cotidiano escolar. A pesquisa, pautada nas diretrizes epistemológicas da investigação qualitativa, foi realizada em uma escola pública que atende crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Os participantes foram quatro crianças e sua professora. Para a coleta dos dados, foram utilizados os seguintes instrumentos: observação com recurso do diário de campo, videogravação e entrevista semiestruturada. As ações identificadas como violência psicológica foram: rejeição, humilhação e indiferença. Observou-se que a escola passou a ser objeto de um temor proveniente de vivências marcadas por ações de segregação, punição e desrespeito à condição dos alunos com dificuldades de aprendizagem e, consequentemente, ao saber dessas crianças que fracassavam nesse importante cenário de seu desenvolvimento.
Palavras-chave: dificuldades de aprendizagem; violência psicológica; relação professor-aluno.
ABSTRACT
This research aims to investigate the teacher actions that are characterized psychological violence in school routine. The research, based on epistemological guidelines of qualitative investigation, was realized in a public school that serves children in the early years of the Elementary School. The participants were four children and their teacher. In order to collect data, the following instruments were applied: observation with the use of field notes, video recording and a semi-structured interview. The actions identified as psychological violence were: rejection, humiliation and indifference. In this study, it was possible to notice that school became an object of fear coming from experiences marked by segregation, punishment and non-respect actions towards their conditions, and consequently, by knowing these children failed in so important scenery of their development.
Keywords: learning difficulties; psychological violence; subjectivity.
RESUMEN
En este trabajo trato investigar las acciones de la profesora que se caracterizan por violencia psicológica en el cotidiano escolar. La pesquisa, pautada en las directrices epistemológicas de la investigación cualitativa, fue realizada en una escuela pública que atiende niños de los años iniciales de la Escuela Primaria. Los participantes fueron cuatro niños y su profesora. Para la coleta de los dados, fueron utilizados los siguientes instrumentos: observación con recurso del diario de campo, videograbación y entrevista semi-estructurada. Las acciones identificadas como violencia psicológica fueron: rechazo, humillación e indiferencia. Observado que la escuela paso a ser objeto de un temor proveniente de vivencias marcadas por acciones de segregación, punición y falta de respeto a la condición de los estudiantes con dificultades de aprendizaje y, consecuentemente al saber de esos niños que fracasaban en ese importante escenario de su desenvolvimiento.
Palabras clave: problemas de aprendizaje; violencia psicológica; relación profesor-estudiante.
Introdução
Ao vivenciar o drama do não aprender os conteúdos escolares, as crianças assumem papéis e posições estabelecidas nas e pelas relações, e isso confirma, a cada ano escolar, a condição de aluno que não consegue aprender. As histórias das crianças são construídas, ao mesmo tempo, por elas mesmas e pelo outro a partir das relações que se processam no contexto escolar, por meio de suas interações, suas vivências, suas experiências singularizadas. Nesse sentido, as dificuldades de aprendizagem também devem ser pensadas como constituídas nas e pelas relações vivenciadas nos contextos em que a criança está inserida e que são consolidadas na forma como ela se vê e se percebe ao longo de seu desenvolvimento.
Essa compreensão mobiliza para uma reflexão de que, nas práticas escolares, as crianças rotuladas como tendo dificuldades de aprendizagem podem ser vitimizadas pelos professores, por meio de atos que podem ser caracterizados como violência psicológica. A violência psicológica tem sua manutenção favorecida por não deixar marcas físicas e, muitas vezes, constituir-se de ações toleradas ou aceitas pela sociedade. É caracterizada por situações que imprimem medo, ansiedade, terror, pânico, coerção, e que promovem um grande sofrimento psicológico à criança. Nesse caso, o adulto pode utilizar-se de diversos procedimentos como depreciar a criança, bloquear seus esforços de autoaceitação, ameaçar abandoná-la ou fazer outros tipos de ameaça, provocando, pelo medo e pela ansiedade, o sofrimento psicológico (Azevedo & Guerra, 1989).
A violência psicológica contra a criança é geralmente estudada como uma das formas de violência doméstica e/ou familiar (McGuigan & Pratt, 2001; Madu, Idemudia & Jegede, 2003; Windham et al., 2004). Embora possa ocorrer em outros âmbitos, como a creche ou a escola, é no lar e no contato com a família que a criança mais se vê envolvida em relações de violência (Abranches & Assis, 2011).
A partir das décadas de 80e 90, alguns estudos apresentaram grande interesse sobre a violência no aspecto conceitual. A existência de várias definições problematiza a identificação da violência psicológica (Garbarino, Guttmann & Sleeley, 1986; Azevedo & Guerra, 2001, Gagné & Bouchard, 2004; Malo et al., 2004; Gagné, Drapeau, Melançon, Saint-Jacques & Lépine, 2007; Crawford & Wright, 2007; Abranches & Assis, 2011). De acordo com Avanci, Assis, Santos e Oliveira (2005), a falta de consistência teórico-metodológico-conceitual sobre o tema representa um dos fatores que impedem o diagnóstico adequado de violência psicológica na sociedade, especialmente a cometida contra crianças e adolescentes.
Segundo Stevens (1999), os danos da violência psicológica no desenvolvimento da criança têm consequências no plano psicológico. A American Academy of Pediatrics (2002) apresenta, como consequências da violência psicológica para o desenvolvimento infantil, prejuízos nas seguintes áreas: pensamentos intrapessoais (medo, baixa estima, sintomas de ansiedade, depressão, pensamentos suicidas, etc.); saúde emocional (instabilidade emocional, problemas em controlar impulso e raiva, transtorno alimentar e abuso de substâncias); habilidades sociais (comportamentos antissociais, problemas de apego, baixa competência social, baixa simpatia e empatia pelos outros, delinquência e criminalidade); aprendizado (baixa realização acadêmica, prejuízo moral) e saúde física (queixa somática, falha no desenvolvimento, alta mortalidade). A severidade das consequências da violência psicológica está relacionada à intensidade, gravidade e frequência de sua ocorrência em relação à criança (American Academy of Pediatrics, 2002).
Os atos de violência psicológica, como produto das relações sociais, prejudicam o desenvolvimento de uma criança, uma vez que envolve um processo de constituição eu-outro. Assim, como a própria criança internaliza as formas sociais da conduta, essas formas de abuso, agressão ou maus-tratos do adulto com a criança podem constituir um importante fator de risco para seu desenvolvimento. Segundo Gagné (2001), o impacto da violência psicológica no desenvolvimento provavelmente leva a criança sofrer grande dificuldade no aspecto social e de escolarização durante seu desenvolvimento, uma vez que esses atos infligem dor emocional (medo, humilhação, angústia).
Ao procurar descrever o conceito de violência de professoras do ensino fundamental de escolas públicas e particulares, Ristum (2001) observou que as professoras, ao se referirem às consequências da violência, incluíram rótulos como violência psicológica, violência emocional e violência moral. Além disso, ainda quanto às consequências da violência, fizeram "descrição de sentimentos da vítima, após a violência, nos seguintes termos: sentiu-se amedrontada, impotente, com a autoestima baixa, violentada, em pânico, com a dignidade ferida" (Ristum, 2001, p. 164). Tais resultados indicam, mais uma vez, a dificuldade de identificação da violência psicológica, a qual pareceu ser mais facilmente identificada pelos danos que produz do que pela forma como é praticada. Assim, no estudo de Ristum (2001), as professoras pareciam não ter clareza sobre quais seriam as ações que poderiam ser classificadas como violência psicológica, já que faziam uso do termo para qualificar não a violência (ação violenta), mas o tipo de dano dela decorrente.
Ao estudar a autoestima da criança que sofre violência física pela família, Bonavides (2005) constatou que a violência física e psicológica, presente na vida das crianças, compromete o desenvolvimento positivo de seu autoconceito e, consequentemente, de sua autoestima. Para a autora, o ambiente escolar, considerado espaço privilegiado para a socialização das crianças, também se revelou como um meio importante para o desenvolvimento da autoestima das crianças. A violência, seja física ou psicológica, praticada contra a criança traz danos consideráveis a uma dimensão subjetiva importante que é a autoestima. Ao abordar o discurso das crianças em relação ao cumprimento das atividades escolares, observou-se que o ir para a escola configura-se como ocasião de tristeza, quando são obrigados pelos pais, com violência, uma vez que se encontram numa posição de "cumpridores do dever". A autora identificou também a escassez de estudos que versam sobre ações de violência psicológica nas situações educativas.
Dentre esses escassos estudos, encontra-se o de Cruz (1997) sobre o desempenho escolar de crianças moradoras de favelas e cortiços no Ceará relacionado aos mecanismos de violência psicológica, praticados pela escola contra o aluno pobre. Os sentimentos e representações positivas manifestadas pelas crianças, no seu primeiro ano de escolarização, quando da ida à escola, apresentam a ideia de que nesse espaço poderão aprender coisas importantes e, portanto, não serão consideradas "burras". Posteriormente, esses sentimentos e representações são confrontados com a realidade da escola, que faz com que esses alunos se sintam incapazes de aprender o que a escola deveria lhes ensinar, já que são vistos como sujos ou mal comportados. Segundo a autora, isso revelaria o quadro no qual a escola produziria constantes ataques à autoestima das crianças, que tendem a se ver em um ambiente hostil e de difícil convivência. Essas afirmações demonstram de que modo a violência psicológica, capaz de deixar marcas profundas, pode ter origem na forma como a escola concebe a pobreza e o aluno pobre.
Zaluar e Leal (2001) consideram, por exemplo, que o recurso da escola a situações de castigo e humilhação de crianças precisa ser "repensado, sob pena de o sujeito ter a sua estrutura afetiva abalada, o que pode ter como resultado a perda da autoestima, a timidez, a revolta ou a falta de vergonha" (p. 44). Para as autoras, a violência psicológica, suposta em algumas atividades pedagógicas, precisa ser delimitada para que não se confunda a socialização necessária ao grupo com o esmagamento e o silenciamento daqueles que deveriam estar sendo formados para se tornarem sujeitos. Afirmam, ainda, que crianças e adolescentes pobres, além da violência física, também estão sujeitos à violência psicológica que se manifesta nos processos de avaliação e nas formas de interação estabelecidas entre eles, os professores e a escola. Referem-se, ainda, à violência que se exerce pelo "poder das palavras que negam, oprimem ou destroem psicologicamente o outro" (p. 148) e afirmam que essa seria a violência simbólica legítima, que inclui o professor no exercício do poder simbólico.
Segundo Bourdieu (1989), os sistemas simbólicos tenderiam a ratificar as relações de poder e dominação social. A violência simbólica é o poder de impor e mesmo de inculcar instrumentos de conhecimento e expressão arbitrários, ignorados, portanto, pela realidade social. Torna-se importante esclarecer que é nessa configuração que a violência psicológica torna-se simbólica, ou seja, quando a criança legitima o que o outro pensa ou sente sobre ela e, especialmente, legitima as ações do outro em relação a ela, já que o professor representa a autoridade na instituição escolar (idem, ibidem). Nessa relação com o professor, a criança passa a constituir-se como incompetente, fracassada, aumentando, assim, o sentimento de desvalorização de si. Mas, quando a criança percebe essa forma de agir do professor como violência, então deixa de ser violência simbólica.
Com base na perspectiva histórico-cultural, compreende-se que o sujeito vive num meio impregnado de sentido, e esse aspecto é determinante para a construção de uma personalidade e uma consciência de si (Vigotski, 1935/2010); o que se constata é que os atos de violência psicológica influenciam no processo de constituição. Sendo a criança "uma parte da situação social, sua relação com o entorno e a relação desse com ela se realiza através da vivência e da atividade da própria criança; as forças do meio adquirem significado orientador graças às vivências das crianças" (Vigotski, 1933/1996, p. 383, tradução nossa).
A vivência é entendida como uma
unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado - a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa - e, por outro, está representado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades da personalidade e todas as particularidades do meio são apresentadas na vivência, tanto aquilo que é retirado do meio, todos os elementos que possuem relação com dada personalidade, como aquilo que é retirado da personalidade, todos os traços de seu caráter, traços constitucionais que possuem relação com dado acontecimento. Desta forma, na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na vivência. (Vigotski, 1935/2010, p. 686)
Um aspecto importante é que os professores são pessoas significativas para a criança e influenciam a forma como ela se vê ou se percebe, pois eles constantemente lhes fornecem informações sobre suas habilidades, valores, destrezas ou ausência deles. Assim, as avaliações que a própria criança faz, a partir dessas experiências de sua vivência escolar, podem interferir, positiva ou negativamente, em seu desenvolvimento. Nesse sentido, a qualidade do relacionamento professor-aluno influencia no desenvolvimento do conhecimento de si, elaborado pela criança. Em outras palavras, a forma como os adultos expressam seus afetos por uma criança, o modo como exercem a disciplina e o controle, o clima democrático ou autoritário do meio, o uso de elogios ou reprovações em tarefas realizadas com êxito ou não são fatores que contribuem para a formação de uma imagem positiva ou negativa sobre a percepção que a criança tem de si própria.
Este artigo foi organizado a partir de alguns resultados de uma pesquisa de doutorado1. Com base nessas considerações, buscou-se investigar as ações do professor na relação com as crianças que se caracterizam por violência psicológica no cotidiano escolar. Partindo do pressuposto de que o sujeito se constitui nas e pelas relações que mantém com o outro durante seu desenvolvimento, o ponto a ser considerado é que, se a violência psicológica está instaurada nas relações sociais, então ela terá um papel importante na constituição da criança que participa dessas relações.
Percurso metodológico
A pesquisa, pautada nas diretrizes epistemológicas da investigação qualitativa, na forma de estudo de caso, foi realizada em uma escola pública que atende crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Para a escolha das crianças, foram adotados os seguintes critérios: 1) alunos encaminhados pelas escolas para atendimento psicológico e que foram diagnosticados, pelo psicólogo, como crianças com dificuldades de aprendizagem; 2) alunos que fizessem parte de escola pública da rede municipal de ensino e que estivessem cursando o 2º ou o 3º ano do Ensino Fundamental; 3) a participação autorizada através do consentimento dos pais ou responsáveis, bem como das próprias crianças.
Após conversa com a psicóloga do Serviço de Atendimento Psicológico oferecido pelo município, e com base nos critérios de seleção da amostra, foram identificadas sete crianças que apresentavam o diagnóstico de dificuldades de aprendizagem, todas oriundas de uma mesma escola. Como o número de participantes foi delimitado em quatro, diante da densidade dos dados para esse estudo, houve a necessidade da realização de um sorteio. A partir da seleção das crianças, foi identificada a professora Luíza, já que as crianças eram todas da mesma turma. Luíza atuava há doze anos como docente dos anos iniciais do ensino fundamental. As informações sobre as crianças foram obtidas mediante conversa com a psicóloga e entrevistas realizadas com a professora no serviço de atendimento psicológico e na escola, respectivamente.
As crianças
Mateus - nove anos, repetente do 2º ano. Foi encaminhado para o serviço de atendimento psicológico em 2007, mas não teve atendimento. Em 2008, foi novamente encaminhado pela escola. Não se apropriou da leitura e da escrita, mas sabe escrever o nome.
Felipe - dez anos, repetente do 2º ano. Foi encaminhado ao Serviço de Atendimento Psicológico pela escola, em 2007, devido a problemas na fala e dificuldade de leitura e escrita.
Gustavo - nove anos, repetente do 2º ano. Foi encaminhado para o serviço de atendimento psicológico pela escola, em 2008, com queixa de dificuldades de aprendizagem na leitura e na escrita.
Fernanda - dez anos, repetente do 2º ano. Foi encaminhada para o serviço de atendimento psicológico, pela escola, por causa da dificuldade de aprendizagem na leitura.
A professora
Luíza tem trinta e sete anos e é casada. Tem duas filhas. Ensina há doze anos no primeiro segmento do ensino fundamental. Fez o curso de formação técnica do magistério e concluiu o curso de Pedagogia há quatro anos.
Instrumentos e procedimentos
Para a coleta dos dados, foram utilizados os seguintes instrumentos: observação com registro no diário de campo, videogravação e entrevista. A observação em sala de aula ocorreu entre 8h00 e 11h00, diariamente, durante o mês de março. Nas duas primeiras semanas, realizou-se a observação para familiarização com o contexto e com os participantes; a partir da terceira semana, foram realizadas as videogravações. O registro no diário de campo ocorreu durante toda a coleta de dados. Sempre que necessário (quando da existência de informações prestadas pela professora, mães ou crianças) faziam-se anotações nos momentos de videogravações, complementando as informações que estavam sendo registradas.
Utilizou-se, para a videogravação, uma câmera fixada em um tripé para a filmagem das situações do cotidiano escolar envolvendo as crianças e as respectivas professoras. A câmera localizou-se na parte de trás da sala de aula, em um ângulo capaz de focalizar as crianças e a professora. Na escola, foram realizadas filmagens com duração de uma hora e trinta minutos a duas horas, sempre no período inicial da aula (8h00), pois, após o horário do recreio, ocorria a cópia das tarefas escolares que os alunos produziriam em casa, atividades essas pouco propícias para evidenciar as relações que se pretendia focalizar. O equipamento foi instalado antes dos alunos e da professora entrarem na sala de aula. O número de sessões de videogravação foi determinado pela saturação, ou seja, repetição de tipos de relação.
Das filmagens, foram identificadas cenas de situações que, de acordo com três julgadores em concordância (duas psicólogas e uma pedagoga), apresentavam atos de violência psicológica, utilizando a definição do Ministério da Saúde: "constitui toda forma de rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito, cobranças exageradas, punições humilhantes e utilização da criança ou do adolescente para atender às necessidades psíquicas dos adultos" (Brasil, 2002, p. 13).
As transcrições das fitas com as cenas filmadas nas situações de sala de aula das crianças e os comentários registrados no diário de campo constituíram todo o material que foi analisado. Na sequência, procedeu-se à leitura do material, repetidas vezes, procurando familiarizar-se e se apropriar do mesmo com o objetivo de identificar e organizar os eixos temáticos e as categorias de análise. Esses se referiram às situações mais recorrentes surgidas no material analisado e foram estruturados de forma a possibilitar uma organização do material que conduzisse à compreensão dos objetivos da pesquisa. Esse procedimento se constituiu em um processo minucioso de análise das transcrições das cenas videogravadas e dos comentários registrados no diário de campo.
O projeto dessa pesquisa foi submetido à apreciação de um Comitê de Ética em Pesquisa. Para esclarecimento e informações sobre a pesquisa e o uso do material, os participantes receberam e assinaram uma cópia do termo de consentimento livre e esclarecido no primeiro contato, após a apresentação dos objetivos do trabalho e a garantia do uso dos dados restrito à pesquisa. No caso das crianças, além do consentimento dos pais ou responsáveis, foi indispensável o consentimento verbal e escrito das crianças.
Resultados e discussão
Os dados a serem apresentados foram construídos através das observações registradas no diário de campo, das entrevistas e das videogravações das ações da professora que se caracterizaram por atos de violência psicológica no cotidiano escolar.
Ações de violência psicológica
Nos registros das observações e das videogravações no contexto escolar, foram identificadas ações de violência psicológica da professora em relação às crianças. Essas ações foram, então, organizadas em função do tipo de violência psicológica identificada: rejeição, humilhação e indiferença. Nessa última categoria, foi incluída a negligência, por julgá-la presente nas ações de indiferença.
Rejeição
A não aceitação do comportamento das crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem foi bastante evidente nas ações da professora Luíza. Essa não aceitação pode implicar em dano para o desenvolvimento da criança, pois se torna uma não aceitação da própria pessoa, violando, dessa forma, uma das necessidades básicas para o sujeito: a de ser aceito pelo outro (Bonavides, 2005). Em muitas vivências em sala de aula, foram visíveis as ações de rejeição em relação aos alunos que apresentavam dificuldades de aprendizagem, evidenciadas pela forma rude e impaciente como eram tratados pela professora.
(...) A professora caminha até a carteira de Gustavo e afasta Mateus que está junto a Gustavo. Gustavo é repreendido pela professora Luíza que também começa a pegar as coisas dele e, em tom agressivo, pede para ele guardar o material e pede que a deixe em paz. Gustavo, com a cabeça baixa, guarda o material e balbucia algumas palavras não identificadas. Após guardar o material, Gustavo senta e observa a sala. Ele volta a escrever algo no caderno e fica com a cabeça baixa. (4ª filmagem/2008, 51':50" a 53':55")
A ação da professora em não conversar com a criança e não apresentar possibilidades de reflexão sobre o comportamento que ela julgava inadequado para a situação de sala de aula pode ser vista como uma forma de rejeição ao próprio aluno. Percebeu-se que a professora se dirigia às crianças de maneira imperativa. Tal característica marcou, de maneira particular, a interação delas com a professora. Como afirma Mello (2010), a forma de falar interfere na dinâmica interativa da sala de aula e, quando traz certo constrangimento para o aluno, pode intervir negativamente na ação educativa.
Na situação vivenciada por Gustavo, percebeu-se que a professora se mostrou insatisfeita em interagir com ele: pediu que a deixasse em paz. Isso pode ser internalizado pela criança com um significado de que ela não é benquista pela professora. Assim, essa ação demonstrou, além de um autoritarismo, a dificuldade da professora para dialogar e buscar uma solução menos perturbadora.
As ameaças foram observadas com frequência no cotidiano da sala da professora Luíza, quando os alunos não se comportavam de acordo com o que ela julgava adequado: "você não virá amanhã"," será levado para a diretoria"," ficarão sem recreio". No segundo dia de observação dessa turma, um fato foi bastante significativo quando, ao repreender Mateus, ela disse: "se você não se comportar será levado por R. (a pesquisadora)".
Outro episódio mostra, mais uma vez, a forma rude e impaciente que a professora Luíza usava no relacionamento com Mateus:
(...) Mateus está sentado numa cadeira que não é a sua. Ele fala algo com um colega que bate com o caderno em sua cabeça. Mateus permanece sentado. Mateus fala para a professora Luíza, apontando com o dedo o colega que o agrediu. A professora puxa Mateus pelo braço, vira-o e coloca-o sentado em sua carteira dizendo com severidade e em tom alto: "Eu disse aqui. Não saia daí não". A professora se afasta e Mateus permanece sentado. (7ª filmagem/2008 - 21':00" a 21':31")
Afirmam Hart e Brassard (1991) que tratamento desdenhoso ou com desprezo (insultos, humilhação pública, recusa em ajudar), tratamento terrorista (ameaças que provocam medo e ansiedade na criança) e mesmo indiferença às solicitações de afeto são prejudiciais ao desenvolvimento da criança. Com base nessa afirmação, pode-se supor que a forma como a professora Luíza se comporta com os alunos, especialmente com os rotulados como tendo dificuldades de aprendizagem, coloca sérias barreiras ao seu processo de desenvolvimento, aumentando sua defasagem em relação ao que a escola espera que sejam capazes de fazer.
As situações que evidenciaram a falta de paciência da professora Luíza em lidar com as crianças, não explicando os conteúdos ou não questionando se eles compreenderam a tarefa a ser feita, ocorreram com frequência na sua prática educativa. Somente quando as crianças questionavam, ocorria uma explicação dada pela professora. Durante todo o período de observação na sala de aula da turma de 2008, notou-se a insatisfação da professora Luíza em promover a mediação do processo ensino-aprendizagem; sempre aparentava estar nervosa e agitada, sem paciência para lidar com as crianças e raramente as auxiliava na execução das atividades.
Os deveres são passados como única forma de eles aprenderem. Não constatei um esforço da professora Luíza em relação à aprendizagem das crianças, principalmente as que apresentam dificuldades de aprendizagem (Mateus, Felipe, Gustavo e Fernanda). Não houve uma explicação dos conteúdos; os alunos não foram questionados se compreenderam ou não o conteúdo. Só quando eles apresentaram alguma dúvida e questionaram, houve uma explicação "forçada" sobre o que não foi entendido. (Diário de campo, 29/05/2008)
A professora Luíza mostrou-se muito nervosa e impaciente hoje. Ela escreveu a tarefa na lousa sem explicá-la para os alunos. Os que sabiam copiavam. Os que não sabiam ler e escrever: alguns tentavam copiar outros abriam os cadernos e faziam desenhos, copiavam do livro texto, perambulavam pela sala, etc. (Diário de campo, 01/09/2008)
Hoje, a professora Luíza parece não estar bem. Mostrou-se insatisfeita e com má vontade na sala de aula. Não explicou as atividades, foi ríspida com as crianças. Não ocorreu uma interação dela com os alunos em relação às explicações e procedimentos de como eles deveriam realizar a atividade. As únicas intervenções foram para reclamar ou chamar a atenção dos alunos quando apresentaram um comportamento, considerado por ela, como inadequado. (Diário de campo, 08/09/2008)
O que se percebeu é que as crianças somente foram notadas quando precisavam, segundo o julgamento da professora, ser advertidas. E, em muitos momentos, o que chamava a atenção era que a forma adotada pela professora Luíza, para advertir os alunos, provocava constrangimento e/ou desconforto (Diário de campo, 28/05/2008). Para Vigotski (1933/1996), o ambiente tem qualidades e características que marcam o desenvolvimento da criança. Para o autor, são essas vivências decorrentes de qualquer situação que determinam o tipo de influência que esse ambiente terá sobre a criança. Essas vivências resultantes das relações com a professora Luíza sugerem uma influência negativa no desenvolvimento das crianças, além de sentimentos de desprazer para com a escola.
Enquanto realiza o trabalho docente, o professor precisa questionar-se quanto ao significado de suas ações, acerca de suas metas, cultivando o desejo de construir algo novo. No decorrer do processo de investigação, à tentativa frustrada de controle, a professora Luíza tendia a responder de forma ríspida e mostrando desprezo pelos alunos.
O clima instaurado na sala de aula, segundo Oliveira (2001), pode fazer com que o aluno se sinta fracassado, limitado ou inadaptado se as experiências forem sempre desagradáveis. O clima evidenciado na sala da professora Luíza leva a supor a continuidade da história de fracasso escolar para essas crianças já rotuladas como tendo dificuldades de aprendizagem.
Humilhação
Dentre os atos de violência psicológica, a humilhação torna-se mais grave quando ocorre em situações públicas, como a sala de aula. Foram considerados humilhantes os comportamentos da professora de gritar com a criança, ameaçá-la, empurrá-la e constrangê-la perante outros.
Em uma das aulas observadas na sala da professora Luíza, uma situação que chamou a atenção aconteceu quando Fernanda questionou se amanhã haveria aula. A professora se irritou com a pergunta e respondeu em tom agressivo: "Eu disse o quê? Amanhã não tem aula, idiota! Limpe os ouvidos!". Fernanda olhou com uma expressão "sem graça" para os colegas e depois para a pesquisadora. Em seguida desviou os olhos e abaixou a cabeça, pegou o lápis e começou a copiar no caderno (Diário de campo, 29/05/2008). Essa experiência, vivenciada por Fernanda, possibilitou pensar sobre o que significa para a criança ser chamada de "idiota", principalmente em situação pública (diante dos colegas e da pesquisadora). Nesse caso, complementa-se, ainda, que a significação coloca em foco a constituição social e histórica da forma de interpretação das palavras da professora por Fernanda.
Essa atitude da professora Luíza, segundo Finkelhor et al. (2005), pode ser considerada como uma rotulação extremamente negativa numa situação de ensino-aprendizagem, ao fazer a criança sentir-se mal quando confrontada com verbalizações que uma professora, nem qualquer outra pessoa, deveria fazer: chamá-la de idiota na sala de aula.
O episódio posterior mostra que, depois de ter sido advertido por sair do lugar estabelecido pela professora, Gustavo saiu novamente da carteira, o que provocou uma reação drástica por parte da professora.
(...) A professora Luíza, que está orientando um aluno, pára e vai até Gustavo, agarra-o pelo braço com força, retira uma aluna de uma carteira na frente da sala e o coloca sentado. Depois fala: "Se você voltar lá pra trás você vai embora. Estou te avisando". A professora volta a orientar o aluno. Gustavo fica sentado, olhando para trás. (...) A professora volta a escrever no quadro. Gustavo muda de carteira. A professora Luíza vê que Gustavo saiu do lugar em que ela o havia colocado, para a atividade, e vai até ele. Arrasta-o da cadeira pelo braço e empurra-o para fora da sala. Gustavo, que está com uma sandália na mão, resiste em sair. Nesse momento, a professora o pega com as duas mãos e empurra-o com força para fora da sala. A professora fecha a porta e sai da sala. (...) A professora retorna para a sala. Gustavo foi expulso da sala. (9ª filmagem/2008 - 43':20" a 45':00")
Ao ser agarrado à força, Gustavo resistiu e foi arrastado, com força, pela professora. Ele tinha uma expressão que pareceu ser de medo, de desespero; pareceu querer chorar. Olhava para os colegas que riam. Abaixou os olhos tentando firmar os pés no chão para que a professora não o arrastasse para fora da sala. Ao ser empurrado, ele apresentou resistência, mas seus esforços foram inúteis, pois a professora Luíza conseguiu tirá-lo da sala de aula. A postura da professora ao expulsá-lo foi muito marcante, pois também gritava aos berros que ele teria que sair (Diário de campo, 09/10/2008). Em momento posterior (entrevista com autoscopia), quando indagado sobre a cena, Gustavo afirmou sentir medo: ao ser suspenso da escola poderia apanhar da avó. A vergonha de ser exposto a uma situação tão humilhante pode promover um sentimento de não pertencimento àquele ambiente.
Ao estudar o conceito de violência de professoras e a forma como ele se encontra imbricado nas suas práticas sociais no âmbito da escola, Ristum (2001) analisou comentários feitos pelas professoras sobre os alunos em sala de aula, classificando-os em elogiosos, reprovadores e pejorativos. Foram poucos os comentários elogiosos, quando comparados aos reprovadores e depreciativos. Os comentários reprovadores faziam referência a: indisciplina, comportamento acadêmico, comportamento social, má postura, comportamento anti-higiênico, comportamento anticonvencional e atraso ou falta à aula. Entre os comentários pejorativos, destacaram-se as críticas depreciativas e a zombaria. Na crítica depreciativa foram classificadas as ações que colocavam o aluno criticado em uma situação ridicularizadora perante outros, causando-lhe constrangimento. A zombaria tinha um "tom mais leve e, mesmo fazendo com que as atenções se voltassem para o aluno, geralmente não causava o mesmo constrangimento que a crítica depreciativa" (Ristum, 2001, p. 306). De acordo com a categorização do presente trabalho, os comentários pejorativos das professoras observadas por Ristum (2001) poderiam ser classificados como violência psicológica, na modalidade de humilhação, em que há uma clara depreciação pública da criança.
Bonavides (2005) afirma que essas ações de depreciação agridem diretamente a constituição da subjetividade, da imagem e da personalidade da criança, por intermédio do processo de internalização, no qual os outros são significativos. Dessa forma, entende-se que a violência, qualquer que seja, traz danos consideráveis à dimensão subjetiva que é a autoestima. Com base em Vigotski (1933/1996), que discute a influência das vivências na determinação do modo como um ou outro aspecto do meio interfere sobre o desenvolvimento da criança, pode se afirmar que as vivências de violência na sala de aula podem trazer danos consideráveis à dimensão subjetiva, por exemplo, a autoestima.
Em relação às ações da professora Luíza, observou-se que ela sempre manifestava comportamentos reativos, e isso talvez a levasse a apresentar essas atitudes inadequadas com os alunos, em lugar de desenvolver ações planejadas que pudessem realmente ajudar os alunos na superação das dificuldades.
Protagonizada por Felipe e a professora Luíza, a cena que se segue mostra outra situação de humilhação:
(...) Felipe levanta-se da carteira e vai até a professora Luíza que está reclamando dos alunos que estão em pé e diz: "Me dá um lápis, tia". A professora cruza os braços e em tom bravo pergunta: "O quê?". Felipe responde: "Um lápis, tia". A professora responde: "Pedir o que menino?". Felipe responde: "Posso pedir um lápis pra tia R [a diretora]". A professora fala: "Pra que você quer lápis? Você não faz nada". Felipe abaixa a cabeça e caminha em direção à porta da sala. (9ª filmagem/ 2008 - 28':55" a 29':45")
A desqualificação quase sempre era explícita, incisiva e constrangedora. Ao responder para Felipe "Pra que você quer lápis? Você não faz nada", pareceu causar um constrangimento a Felipe, perante os colegas e a própria observadora, já que Felipe mostrou-se envergonhado e, em seguida, sentou-se na carteira com a cabeça baixa; permaneceu quieto durante uns dez minutos para, na sequência, abrir o caderno e pegar um lápis que o colega emprestou. A entonação da voz da professora era de deboche em relação à condição de Felipe (Diário de campo, 12/09/2008). Além disso, essa ação pode representar um desestímulo à realização da tarefa, uma vez que a professora, que seria a pessoa mais qualificada para ajudar Felipe na superação de suas dificuldades e que exerce um papel de autoridade na sala de aula, rotula-o como um aluno que "não faz nada". Essa desvalorização da criança pode despertar nela um sentimento de incompetência para a execução das atividades propostas (Amaral, 2001; Krepsky, 2004). Retoma-se aqui a afirmação de Ruiz e Martioli (2003) de que a violência psicológica se instala por meio das palavras que carregam sentidos variados, inclusive na entonação que se dá a elas.
Durante a observação, a frustração diante das dificuldades de aprendizagem dos alunos era constantemente frisada pela professora Luíza (Diário de campo, 29/05/2008). O processo de exclusão que a criança passa a vivenciar, à medida que ela não responde às exigências da professora, provoca significações que, segundo Smolka (2004, p. 43) são "marcas ou efeitos que se produzem e impactam os sujeitos na relação".
Ao mesmo tempo, essas atitudes conduzem ao questionamento sobre por que a professora Luíza não investia na melhoria da atividade pedagógica, ao invés de promover situações de humilhação para essas crianças que já apresentam uma história de insucesso escolar.
Segundo Vigotski (1929/2000), é na relação com o outro que o professor torna-se professor. É, ainda, nas e pelas relações que o professor conhece e constrói o contexto, a prática docente e os aspectos das relações entre professor-aluno e suas particularidades. O que se percebeu, mediante a postura e as ações da professora Luíza é, talvez, uma falta de afinidade com sua profissão, pois nas observações foram presenciadas ausência de explicação sobre o conteúdo colocado na lousa, constantes reclamações em relação aos alunos, rispidez na interação com as crianças, o que favorecia uma relação negativa constituída por experiências marcadas por posturas e práticas que não condizem com um processo de escolarização favorecedor da aprendizagem e do desenvolvimento dos alunos.
A postura de um professor nas relações de ensino-aprendizagem, segundo Vigotski (1926/2005) é a de enfatizar a emoção na assimilação dos conteúdos pedagógicos, pois são as emoções que se devem constituir como base do processo educativo. O momento de emoção e interesse deve necessariamente servir de ponto de partida a qualquer trabalho educativo. Assim sendo, o professor deve "estruturar a atividade pedagógica de tal forma que oriente o conteúdo e os ritmos de desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores, ajudando a criança a guiar o seu comportamento" (Facci, 2007, p. 151). Dessa forma, cabe, portanto, ao professor encaminhar o ensino de maneira que leve o aluno ao desenvolvimento máximo de suas capacidades.
Considerando a perspectiva histórico-cultural, para Vigotski (1933/1996) essas vivências decorrentes de qualquer situação que determinam o tipo de influência que esse ambiente terá sobre a criança. Essas vivências resultantes das relações com a professora Luíza sugerem uma influência negativa no desenvolvimento das crianças, além de sentimentos de desprazer para com a escola. É a partir dessas relações que a criança se constitui; dentre essas, as vivenciadas com a professora assumem, nessa fase da vida da criança, especial importância para a sua constituição. Sendo assim, no processo de interiorização das relações e das práticas sociais vivenciadas pelas crianças, funções inicialmente distribuídas na relação entre o eu e o outro, tornaram-se parte de um mesmo sujeito. Os modos pelos quais o outro percebe e se relaciona com o sujeito transformam-se em modos de o sujeito relacionar-se consigo mesmo. Dessa forma, as crianças, segundo Vigotski (1933/1996), vivem em um meio impregnado de sentido, e esse aspecto é determinante para a construção de uma personalidade e uma consciência.
Indiferença
Das ações de violência psicológica de autoria das professoras, a indiferença foi a modalidade mais frequente. A indiferença se manifesta por um comportamento de omissão ou de negligência diante das necessidades acadêmicas, afetivas e de relacionamento da criança. As ações indicativas de indiferença foram visíveis nos dois episódios abaixo, em que a professora não verificou a tarefa do aluno:
(...) A professora Luíza está em pé junto à carteira de um aluno olhando a sua atividade. Mateus levanta-se do seu lugar, caminha em direção à professora e mostra-lhe o caderno. A professora Luíza não olha e caminha em direção a outro aluno. (4ª filmagem/2008 - 15':32" a 15':44")(...) A professora olha o caderno de um colega que está sentado junto a Mateus, mas não olha o dele. A professora Luíza se afasta. (...) A professora Luíza retorna e olha o caderno do colega que está junto a Mateus. Novamente não olha o de Mateus que permanece sentado. (4ª filmagem/2008 - 31':00" a 33':10")
Essa atitude era agravada quando essa indiferença vinha acompanhada de atitudes de rejeição. Durante toda a investigação, ações de aceitação e atenção foram dadas com maior frequência aos outros alunos em comparação com os alunos com dificuldades de aprendizagem.
(...) Após a correção, a professora Luíza disse aos alunos que eles fariam um ditado de frases. Iniciou-se a atividade. Percebi que alguns alunos não se interessaram em fazê-la, dentre eles estavam Gustavo e Mateus que perambulavam pela sala. A professora não interferiu em relação a eles. Impressionou-me o fato de Gustavo e Mateus não fazerem a atividade, perambularem pela sala e a professora nada fazer. A professora Luíza corrigiu as atividades dos alunos, mas não as de Gustavo e Mateus. (Diário de campo, 5/09/2008)
A professora Luíza corrigia as atividades dos alunos individualmente, sem uma explicação coletiva sobre as respostas certas ou erradas emitidas pelas crianças; escrevia as instruções ou conteúdos na lousa sem explicar para os alunos os procedimentos, o que parecia necessário, uma vez que a maior parte dos alunos não sabia ler; alguns alunos copiavam, outros se mostravam indiferentes, outros andavam pela sala; com frequência, alunos que apresentavam comportamentos considerados por ela como inadequados eram expulsos da sala. Quando isso acontecia, ela falava: "Não vou aturar vocês hoje não!" (Diário de campo, 13/10/2008). Mostrava-se insatisfeita e com má vontade em orientar as crianças que apresentavam dificuldades na aprendizagem.
(...) A professora Luíza está sentada em uma cadeira no canto da sala. Gustavo se aproxima com o caderno e coloca-o em cima do braço da carteira para que a professora pudesse vê-lo. A professora Luíza cruza os braços, olha para Gustavo, olha para o caderno e fala: "Resolve". Gustavo retorna ao seu lugar. (6ª filmagem/2008, 01:15':44" a 01:15':56")
Nesse episódio, além de não auxiliar o aluno na execução da tarefa, a professora impunha a condição de que cabia a Gustavo resolver a atividade, sem o seu auxílio, configurando, assim uma indiferença adiante da dificuldade apresentada, como se não fosse função da professora auxiliá-lo.
No trecho abaixo, a indiferença e a impaciência da professora em relação à orientação da tarefa foi percebida nos vários momentos em que essa ação de auxiliar a aluna ocorreu. Não houve um efetivo envolvimento da professora no ato de orientar a criança na construção do conhecimento.
(...) A professora Luíza senta-se junto a Fernanda para orientá-la na realização da tarefa. Uma aluna solicita à professora para ir ao banheiro e ela diz em tom severo: "Não está na hora não. Não adianta D. Ainda são nove horas". A professora Luíza toca no braço de Fernanda, que está distraída e diz: "Vamos". Fernanda começa a ler a tarefa, mas é interrompida pela professora. (...) A professora Luíza soletra a palavra que Fernanda errou. A professora para e chama a atenção de uma aluna que está fazendo a ponta do lápis fora do balde de lixo. Ela volta a orientar Fernanda, corrigindo as palavras erradas. (...) A conversa paralela na sala e as perguntas constantes dos alunos interrompem a orientação de Fernanda várias vezes. Fernanda continua a leitura, mas a professora demonstra impaciência, balança constantemente as pernas, passa a mão sobre a testa e levanta-se pedindo a um aluno para retirar algo, mas em seguida senta-se novamente. (1ª filmagem/2008 - 01:19':00" a 01:26':00")
Foi evidente a falta de empenho e de envolvimento da professora no exercício de sua função de ensinar as crianças, principalmente aquelas que exigiam uma maior atenção. Essa postura da professora denunciava a inexistência de afetividade positiva na relação com os alunos:
(...) A professora Luíza orienta alguns alunos na realização da tarefa. Caminha até o fundo da sala em direção a Fernanda. Ao chegar junto a Fernanda, alguns alunos se aproximam mostrando-lhe o caderno e ela lhes dá atenção. Fernanda chama: "Oh, tia". Impaciente, Fernanda toca no braço da professora para chamar sua atenção. A professora continua olhando o caderno da colega. Fernanda vai apontando para o caderno enquanto aguarda. Quando a professora olha, Fernanda fala: "Tá certo? Tá certo?". A professora olha rapidamente de longe, sem tocar no seu caderno e diz: "É isso". Fernanda observa a professora orientar a colega e depois sorri. A professora anda em direção à frente da sala e Fernanda levanta-se para lhe falar algo. Fernanda toca no braço da professora, mas esta se desvencilha e não lhe dá atenção. Fernanda retorna ao seu lugar. A professora continua a passar pelas carteiras de outros alunos, chamando a atenção de alguns. (4ª filmagem/2008 - 29':00" a 30':08")
Nesse episódio, embora tivesse solicitado, por várias vezes, a atenção da professora, Fernanda foi ignorada. A indiferença e a rejeição à aluna tornaram-se mais evidentes quando a professora passou a orientar os colegas, deixando-a sem resposta.
Ao considerar as possíveis consequências desses atos de violência psicológica para o desenvolvimento da criança, retoma-se a afirmação da American Academy of Pediatrics (2002) a respeito dos vários danos que podem ocorrer como: medo, baixa autoestima, sintomas de ansiedade; comportamentos de instabilidade emocional, problemas em controlar impulso e raiva; problemas relativos a habilidades sociais tais como: comportamentos antissociais, problemas de apego, baixa competência social, baixa empatia e simpatia pelos outros; na área da aprendizagem, baixa realização acadêmica e prejuízo moral.
Considerações finais
Observou-se que a presença de ações de violência no cotidiano escolar em muito contribuíram para o desenvolvimento de sentimentos de inferioridade e de incapacidade para as tarefas escolares, evidenciadas nas manifestações de desvalorização das crianças. Conforme Vigotski (1933/1996), é justamente nesse período de escolarização que surge a própria valorização de si, e a criança passa a julgar seu desempenho e ter sua própria posição para si e para o outro.
Por isso, torna-se fundamental, no contexto escolar, o olhar atento do professor, sua escuta, suas intervenções permeadas por relações afetivas. O que se observou, na escola, foi que as crianças foram impedidas de expressar seus conhecimentos e sua subjetividade. Elas foram vistas como pessoas incapazes de superar suas dificuldades e, a partir do rótulo de crianças com dificuldades de aprendizagem, participaram de uma relação em que se fizeram presentes uma prática pedagógica deficiente e atos de violência psicológica. Essas considerações, portanto, mostram que, muitas vezes, as dificuldades enfrentadas no cotidiano escolar são estabelecidas por relações de violência que marcam o desenvolvimento da criança. As formas de relações sociais (escolares, ao menos), das quais tais crianças participam, influenciam a construção das significações sobre si e, ao invés de promover a superação das dificuldades, naturaliza-as e as cristaliza. Constata-se, portanto que o problema, então, estaria nas características das relações capazes de desqualificar ou desvalorizar a criança. Dessa forma, as ações das professoras sobre os resultados escolares das crianças assumem um papel fundamental, em especial no que diz respeito à sua atuação no espaço escolar.
Nesse sentido, este estudo apresenta como proposta a reflexão e a crítica sobre o efeito marcante que a violência psicológica pode ter no desenvolvimento da criança com o diagnóstico de dificuldade de aprendizagem, especialmente no seu processo de escolarização. Pensar a violência psicológica também enseja motivos para futuros estudos, já que os xingamentos e rejeições vivenciados no cotidiano escolar, principalmente na relação professor-aluno, estão a exigir maiores conhecimentos que possam contribuir para as transformações dessas relações.
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