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Psicologia da Educação
versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520
Psicol. educ. no.50 São Paulo jan./jun. 2020
https://doi.org/10.5935/2175-3520.20200002
ARTIGOS
Psicologia, eugenia e o cotidiano da educação infantil na imprensa (1893-1917)
Psychology, eugenics and day-to-day childhood education on brazilian newspapers (1893-1917)
Psicología, eugenesia en el cotidiano de la educación de niños en la prensa brasileña (1893-1917)
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB - Bahia - BA - Brasil; apereira.uesb@gmail.com
RESUMO
Os ideais eugenistas estabeleceram uma relação estreita e também de condução da Psicologia científica no Brasil, entre meados do século XIX e início do século XX. Neste artigo, demonstramos de que modo a circulação desses ideais no cotidiano consolidou um tipo de cuidado com a maternidade e com a Educação Infantil. Para isto, foram analisados dois jornais de grande circulação do período entre 1893 e 1917. Por meio do conceito de arquivo e conforme paradigma indiciário de Ginzburg foram analisadas partes de uma materialidade do cotidiano composta por esses jornais que permitiram analisar um discurso sobre infância e educação infantil, com destaque para o papel de uma Psicologia do cotidiano na difusão destes ideais eugenistas.
Palavras-chave: Psicologia do Desenvolvimento; Psicologia Educacional; Eugenia; Educação infantil; Racismo.
ABSTRACT
Eugenic ideas established a close relationship and were responsible for the scientific psychology arrival to Brazil, between mid 19th century and the beginning of the 20th century. In this article, we demonstrate how the circulation of these ideals in day-to-day life consolidates a type of care with motherhood and early childhood education. For this purpose, two newspapers of great circulation from the period between 1893 and 1917 were analyzed. Through the concept of archive and according to the evidentiary paradigm of Ginzburg, parts of a materiality of daily life composed by these newspapers were analyzed, which allowed to analyze a discourse about childhood and childhood education, with emphasis on the role of a day-to-day psychology in the dissemination of these eugenic ideals.
Keywords: Developmental Psychology; Educational Psychology; Eugenics; Childhood Education; Racism.
RESUMEN
Los ideales eugenésicos fijaran una relación estrecha e también de conducción de la Psicología científica hasta Brasil, entre el medio siglo XIX y inicio del siglo XX. En este articulo, mostramos de que manera el modo de circulación de esos ideales en el cotidiano mantuve un tipo de cuidado con la maternidad y con la educación infantil. Para eso, fueran analizados dos jornales de gran circulación da época (1893-1917). Por medio del concepto de archivo y de lo paradigma indiciario de Ginzburg fueran analizadas partes de una materialidad de el cotidiano composta por estos jornales. Fue posible analizar un discurso sobre infancia y educación infantil con destaque para el papel de la Psicología del cotidiano en la difusion de esos ideales eugenésicos.
Palabras clave: Psicología del desarrollo; Psicología educacional Eugenesia; Educación de niños; Racismo.
INTRODUÇÃO
A disseminação dos ideais eugenistas por meio das hipóteses sobre cruzamento de raças entre animais e a aplicação às diferenças humanas aparece no cotidiano dos séculos XIX e XX e na contemporaneidade. No romance "O Mulo", Darcy Ribeiro (1981), para falar do apelido recebido pelo protagonista, escreve: "Mulo até que não é nome ruim demais, ou não seria se não fosse por essa qualidade de bicho estéril que também é minha" (p. 258). Mais adiante, completa: "Burro pra mim, aqui entre nós, é preto. Essa gente é de cabeça miúda mesmo. Índio também [...]" (p.259).
Mais recentemente, estarrecemos no mundo atual diante da quantidade de menções feitas no cotidiano à suposta inferioridade ligada ao pertencimento étnico ancoradas em posturas políticas na linha do que se tornou um retorno dos ideais eugenistas1 na atualidade. Basta um rápido aceno na internet para notarmos comentários de ataques às minorias que passam por cenários como o racismo no futebol, o repúdio de alguns à vinda de médicos estrangeiros (Fontana & Cestari, 2014) e a divulgação pública de processos envolvendo políticos acusados de racismo.
Uma das premissas dos ideais eugenistas, a da hereditariedade de caracteres favoráveis e desfavoráveis ao suposto melhoramento racial e de sua transmissão geracional, preocupou os adeptos desta crença tão arraigada no Brasil desde meados do século XIX (Masiero, 2002, 2003, 2005). Como parte de sua vinda e consolidação, notamos também a presença desses ideais na construção da intimidade e do feminino no espaço público como possível figura garantidora das duas premissas acima elencadas (Maluf & Mott, 1998), que como aqui mostramos aparece na imprensa cotidiana de fins do século XIX e início do século XX.
Nosso objetivo é mostrar em publicações capturadas do acervo Mindlim2 cuidados com a maternidade e a Educação Infantil condizentes com os ideais eugenistas. Trata-se especificamente do jornal "A semana" e de uma revista, à época denominada "Semanário Ilustrado Futuro das moças".
Para isto, partimos da hipótese de que parte da construção do imaginário sobre o feminino, a maternidade e a educação infantil se estabeleceram em função de demonstrações do fundamento científico dos ideais eugenistas conforme a conjuntura daquela época. Temos aqui o primeiro ponto relevante de nossa análise. Na referida época, as mulheres divulgariam no espaço público uma "verdade" construída por homens no espaço discreto da produção científica; junto disso um modelo de Educação Infantil.
Essa divulgação deu-se por meio de semanários, almanaques, jornais do cotidiano que, entre meados do século XIX e início do século XX, propagaram o papel das mulheres no estabelecimento de garantias para a transmissão geracional de uma plataforma hereditária supostamente mais avançada; por meio de uma divulgação do conhecimento científico que projetou àquela época um ideal de Educação Infantil.
A Eugenia e parte de seu percurso histórico na interface com a Psicologia e a Educação Infantil
O modus operandi de entrada da Psicologia científica no Brasil deu-se pela aliança com o poder imperial (Massimi, 1990), cuja repercussão foi a chegada da eugenia pelas mãos do embaixador francês Gobineau (Masiero, 2002 & Patto, 1992) e de cujas concepções sobre a suposta inferioridade dos brasileiros originaram-se a desqualificação da camada popular (Patto, 1992) e o aprimoramento do aparato policial repressivo seguindo a perspectiva do uso opressor da maquinaria estatal no lugar do cuidado do interesse público (Patto, 1999).
Um dos braços mais eficazes e longevos da Psicologia daquele período foi a influência das concepções de Gobineau e de tantos outros, estrangeiros (como Agassiz, La Mettrie, Cuvier, Spencer e Galton) e brasileiros (como Artur Ramos e Nina Rodrigues), para articular a legitimidade dos ideais eugenistas que, sobretudo em Galton, apostaram no aprimoramento da teoria da herança adquirida e na possibilidade de metamorfoses de melhoramento e enfraquecimento racial (Masiero, 2002).
O bojo desse mosaico conceitual, bem como o papel decisivo da ciência psicológica, passou do período mais inicial, focado em aspectos físicos, para um momento de análise de predicados mentais e morais; ao ponto de Galton defender a manutenção de garantias de bens materiais para os "melhores" indivíduos, para que a riqueza reproduzida não degenerasse entre os menos aptos (Masiero, 2002, 2005).
Como se pode notar, a perspectiva de tornar o brasileiro "civilizável" seguiu um script de perseguição à herança africana e ameríndia de nossa identidade cultural, bem como se espraiou na consolidação de uma taxonomia que atingiu também o campo político e a vida sexual.
O uso da lobotomia, por exemplo, como uma das técnicas médicas voltadas a extirpar os comportamentos indesejáveis dos "menos aptos" ao convívio social chegou ao ponto em que "[...] Os americanos insistiram na prática até os anos 1950 e são suspeitos de realizarem lobotomias em pessoas acusadas de comunistas e de terem condutas sexuais inadequadas" (Masiero, 2003, p. 557).
As práticas de higienização mental aprofundaram o viés político em que já se assentavam. A crença na suposta degeneração do povo do interior baiano e a menção a Antonio Conselheiro, na obra "Os Sertões", por Euclides da Cunha, indicando para este escritor a insuficiência para detectar a doença mental ali suposta deslindou na manutenção da crença no atraso das mentalidades, na degenerescência moral e social, crenças estas muito ainda arraigadas no imaginário comum (Masiero, 2002).
Pertencem a essa crença atribuições de fracasso, de desonestidade habitual, de "desvios" de conduta. Fortalecem-se crenças sobre os "desviantes" e os "potencialmente depravados" ou "degenerados", "aqueles que não têm mais jeito" (expressões muito comuns no cotidiano) em um linha de abertura dos sentidos dominantes, já dispostos em um campo da memória sócio-histórica, que é parte desse eixo dos ideais eugenistas e que não se fecham por completo; reabrem-se, estabelecendo novas fronteiras, novos limites e novos rumos para os sentidos; rumos estes que podem ser recuperados por gestos de leitura (interpretação) como o que propomos com este artigo ao analisarmos a relação entre a disseminação desses ideais no jornal "A Semana" e na revista "O futuro das moças" com uma concepção de Educação Infantil da época.
Castañeda (2003) e Masiero (2005) explicam que os ideais eugenistas também circularam em concursos organizados por sociedades especializadas no início do século XX no Brasil e que contribuíram para fortalecer uma crença no "melhoramento da raça", fundamentados em estudos sobre hereditariedade e com preocupação sobre as gerações futuras, junto à resistência a fluxos migratórios e o ataque às minorias. Essa projeção de um futuro comum incide no modelo de Educação Infantil a ser transmitido geração a geração.
Muitos dos ideais fundamentados em alegações supostamente científicas, mas que ignoravam o fato de que atributos supostos do funcionamento mental e da inteligência se fundamentam na mensuração de estados mentais de curtíssima duração e alcance (Masiero, 2005), ganharam respaldo do avanço da Psicometria e da Psicologia diferencial (Patto, 1992).
Os estudos de Masiero (2002, 2003, 2005) asseguram que o conhecimento do campo da história desses saberes de pretensão científica, apelando para o estatuto de saberes da Psicologia, possa desvelar sua suposta neutralidade e denunciar a motivação político-ideológica no ataque às minorias.
Masiero (2005) também indica a relevância da análise não apenas das grandes obras de autores conhecidos do campo da eugenia, mas também da circulação desses ideais no cotidiano acadêmico, como os anais da Sociedade Eugênica de São Paulo (1919) e os trabalhos divulgados pelo 1º. Congresso Brasileiro de Eugenia (1929).
Poderíamos afirmar que essa circulação investigada pelo autor é fundamental e valiosíssima, uma vez que toca o valor de verdade galgado e em parte conquistado por esse arquivo. E deixa como possibilidade nossa contribuição com esta pesquisa, por apontar que também houve uma circulação desses ideais no cotidiano voltado à Educação Infantil.
Essa propagação cotidiana passa pela assepsia, controle, higiene e cuidado com o corpo da mulher pelos processos de identificação com o corpo feminino jovem, forte e de vigor (Maluf & Mott, 1998), agregados aos cuidados com o asseio da casa e das roupas, somadas às grandes temporadas em estações termais nos fins do século XIX, que incluíram um reformismo de corpos e mentes propagados pela profilaxia, higiene e eugenia (Schapochnik, 1998).
Nessa conjuntura, em que se insere o material de imprensa aqui analisado, Castañeda (2003) analisa o controle dos matrimônios influenciado por uma postura eugênica na elaboração do primeiro código civil brasileiro. A aposta que as características físicas, mentais e morais eram herdadas obrigaria, conforme Galton, a analisar como se daria sua transmissão para as próximas gerações. A autora explica que no Brasil houve duas correntes, a lamarckista, de Renato Kehl, e a mendeliana, de Octávio Domingues. A crença dominante no lamarckismo de Galton era de que se nasceria brilhante ou estúpido, o que comportava ações para se tentar reverter a degeneração de raça.
Castañeda (2003) alerta que a questão da transmissão via matrimonial firmava-se em questões polêmicas (genes, cromossomos, ambiente), mas apareciam bem definidas e revelavam fluidez em sua tentativa de aplicação. Estas foram influenciadas pelas propostas de Malthus, que devem ser entendidas no contexto da Inglaterra dos séculos XVII e XIX, uma nação com pretensões de engrandecimento material, o que refletia sobre o crescimento urbano por meio das ponderações, a saber: avaliação do casamento e da solteirice, no que se refere aos custos materiais e sociais de cada um. A respeito da concepção de casamento de Galton (citado por Castañeda, 2003): "[...] estava convencido de que o estudo da hereditariedade proporcionaria técnicas para a melhoria da humanidade: homens e mulheres deveriam se cruzar conforme suas características e inteligência, do mesmo modo que os animais eram cruzados conforme seus tamanhos e agilidade" (p. 910).
Kuhlmann Jr. & Magalhães (2010) demonstraram que para o alcance desse ideal, almanaques de farmácia também se preocuparam com uma infância "bem-cuidada e disciplinada" (expressão dos autores), envolvendo argumentos da eugenia e da puericultura no campo da alimentação artificial valorizada para uma sociedade que se pretendia moderna. No caso aqui analisado, veremos a circulação desses ideais eugenistas nos denominados semanários ilustrados e em um jornal.
A contribuição desses autores sobre a relação entre hereditariedade, casamento e maternidade e os ideais eugenistas é fundamental para adiante compreendermos a circulação desses ideais especificamente na imprensa de fins do século XIX e início do século XX.
MÉTODO
Nossa busca partiu do encontro da seção "Interessa às senhoras", publicado em "Futuro das moças Semanario Ilustrado - Homenagem ao bello sexo" em visita online ao acervo da Biblioteca Mindlim. Notamos que a referida seção trazia conselhos às mulheres que evocavam os preceitos do cuidado com a hereditariedade, presente nos ideais eugenistas. Outro indício do ideário eugenista também foi encontrado no jornal carioca "A semana".
Ressaltamos que o aprofundamento da investigação desde seu início respeita um princípio fundamental de análise de dados sob influência da tradição psicanalítica. É o que Fontenele (2002) resgata da discussão sobre o lugar do analista (pesquisador). Por isso, a disposição da Psicanálise ao lado das ciências tradicionais e também na sua contracorrente, pois "[...] O psicanalista - e ele, Lacan, se coloca como tal - só pode se reconhecer em sua direção à verdade a partir do dito de Picasso:' Eu não procuro, acho!'" (Fontenele, 2002, p. 53).
O psicanalista, tal como decorre de nossa análise inicial, primeiro encontra um fragmento relevante, significante, para a posteriori interpretar. Esta interpretação obriga a remeter ao já vivido, ao passado; no caso de nossa análise, a um terreno sobre eugenia já conhecido e que comporta um lugar de interpretação.
Esta postura também se alinha ao enquadre que Ginzburg (1989) fez da Psicanálise como disciplina do paradigma indiciário. No paradigma indiciário, a relação entre parte e todo estabelece uma preocupação com a partícula, o indício, a micro instância, a partir da qual a interpretação ganha movimento retroativo, posto que direcionada ao passado, ao que ficou oculto, calado, na memória e na História.
Sem nos atermos a priori com uma postura dedutiva ou indutiva exclusivamente, o pesquisador indiciário também herdeiro da serendipidade3 (Shepherd, 1987) na medicina, volta-se para a relação entre universal e particular sem caminho definido, tal como um arqueólogo ou um psicanalista; em uma postura de indagação sobre a linguagem tal que o "dado" já é indício (Tfouni, 1992).
Esse encontro "fortuito" prova o que Castañeda (2003, p. 925) apontou como a divulgação da eugenia "através de folhetos, livros, palestras e entrevistas em rádio e jornal, estavam realizando uma campanha nacional, que contemplava a necessidade de esclarecimento do movimento", na linha de ações de saneamento e higienização também encontradas por Silva & Fonseca (2013) ao analisarem o periódico "O Brasil médico" (1928-1945).
A partir deste ponto, passamos a buscar ideais eugenistas em outros semanários, almanaques, revistas e jornais que circularam entre fins do século XIX e início do século XX, dentro dos limites de disponibilidade do referido acervo.
A análise que segue se fundamenta-se no paradigma indiciário e principalmente nas questões sobre eugenia trazidas por Masiero (idem) e por autores que discutem o cotidiano, como Ginzburg (1989) e Certeau (2001) e na noção de arquivo em Coracini (2007), Pêcheux (1997) e Foucault (1969/2012).
RESULTADOS
Na linha desta busca detetivesca, filiada aos pressupostos do paradigma indiciário de Ginzburg (1989), formou-se, assim, uma possibilidade de interpretação de um arquivo mais amplo e complexo do cotidiano sobre eugenia.
O arquivo não é um dispositivo neutro, tampouco um centro aglutinador de textos e de sentidos, mas que considera o próprio gesto da interpretação ao interferir nos mecanismos sintáticos e enunciativos de produção dos sentidos; também "não é um simples documento no qual repousam referências; ele se oferece a uma leitura que descobre os dispositivos, as configurações significantes" (Guilhaumou, Maldidier & Robin, 1994, p. 92).
Coracini (2007, p.16), por sua vez, afirma que: "arquivo é, pois, aquilo que justifica, sem que se saiba a sua razão imediata, o que pode ser dito num dado sistema de discursividades", na linha do que Foucault (1969/2012, p.157) argumenta sobre a instalação de enunciados como acontecimentos, ou seja, como condições de surgimento, aparecimento e possibilidades de utilização; citando-o: "São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo" (p.157).
Não está em jogo, portanto, o que está protegido e/ou revelado de maneira deliberada, fortuita, consciente, mas o que se enraíza em "enunciado-acontecimento" em um sistema de "enunciabilidade" (expressões do autor). É o que define um "enunciado-coisa" sem estar tão definido e marcado por uma tradição, nem por acervos, mas esquecido e oculto ao mesmo tempo em que permitindo aos enunciados permanecerem na sub-existência que lhes confere uma potencialidade de alcançar a transformação mais ampla das redes de enunciados.
Pêcheux (1997) chama a atenção para o fato de que existe uma divisão e um desnível no trabalho de interpretação dos arquivos, que afetam as posições possíveis de serem ocupadas pelos intérpretes dos discursos no cotidiano; cotidiano conforme Heller (1992, p. 18), como "[...] atividade social sistematizada [...]" que inclui a "significação da vida cotidiana" em sua heterogeneidade e hierarquização. E no sentido de "[...] trivialidades não mais designando o objeto do discurso, mas o seu lugar" (Certeau, 2001, p. 63).
No caso aqui analisado, mobilizar esses autores é crucial para fazer notar que a possibilidade de evocar a herança da eugenia e estabelecer diálogos com alguns pontos de enunciabilidade que marcaram o percurso histórico da Psicologia e da Educação infantil requer considerar que o cotidiano também é arquivo. E que mesmo ocultos, os arquivos provocam redes de enunciados sobre educação infantil e sobre o papel da mulher e da maternidade. É o conselho que vemos dados às mulheres no Semanário Ilustrado "Futuro das moças" publicado em abril de 1917. Em destaque aparece na seção "interessa às senhoras"; vejamos:
Interessa às senhoras
Procurae ter filhos fortes e robustos.Palavras de um medico notável, que devem ser conhecidas e nunca esquecidas.
Diz o Dr. Ardisson Ferreria, D.D. Prof. Do Gyn. Club Portuguez: "A syphilis é uma affecção sempre grave, que, despresada ou mal medicada, muitas vezes mata a creança antes de nascer, quer dizer infecta o embrião humano, oppondo-se ao completo desenvolvimento e creando-lhe condições incompatíveis com a vida.
Na maioria das vezes se esquecem de que não estão livres da symphilis hereditária (a symphilis legada pelos Paes, pelos avós, que acompanha o sangue pela geração inteira). Si os vossos filhos são fracos, anêmicos e rachiticos, deveis, sem perda de tempo, usar um medicamento em cuja composição se encontre o iodo e o arsenico associados ao principio ativo do inhame. (seção "Interessa ás Senhoras", Futuro das moças Semanario Ilustrado - Homenagem ao bello sexo, 1917, p. 546)
Cont (2008) explica que as características examinadas por Galton admitiam uma natureza latente e patente, que tanto poderiam ser eliminadas em certa medida nas próximas gerações caso consideradas nocivas, quanto aprimoradas caso consideradas potentes. Todavia, sabemos que não é viável creditar a uma suposta neutralidade a atribuição do valor do que seria nocivo ou potente, posto que essa definição inevitavelmente está afetada por um valor enunciativo que define uma posição e uma "verdade". Castañeda (2003), por sua vez, explica que, para Galton, o aprimoramento da humanidade dependeria de casamentos selecionados.
No recorte acima, a distinção entre "syphilis" para se referir à dimensão orgânica e a "symphilis" hereditária marcada pela diferença na grafia e explicada às senhoras leitoras marca um sistema de enunciabilidade (a maneira pela qual um acontecimento é enunciado) conforme Foucault (1969/2012) e conforme o que Coracini (2007) denomina razão que justifica o que pode ser dito.
Masiero (2005) aponta o papel da detecção da sífilis na proposta de controle eugênico da hereditariedade. A sífilis e o álcool trariam seres degradados com mais chances de deixar filhos criminosos ou doentes mentais.
Incluía-se nessa preocupação decisiva, a do matrimônio, uma ação considerada preventiva, incluindo na América Latina exames pré-nupciais e várias regras básicas difundidas no início do século XX, a partir do livro Como escolher um marido, de Renato Kehl (citado por Castañeda, 2003). Citando esta autora:
Nesse sentido, o livro discute 15 regras básicas para a seleção conjugal, entre elas: escolher sempre um par da mesma condição social; tenha sempre em vista o ascendente familiar do par que vai escolher; evite casar-se com pessoa de raça diversa; escolha um par em perfeito gozo de saúde física, psíquica e mental; escolha um par de idade conveniente; evite casamento consangüíneo. Além dessas regras, o autor fornece conselhos às candidatas advertindo sobres doenças venéreas ou contagiosas, sobre o uso de drogas e sobre o estado mental do candidato. (p.917)
Outra das preocupações foi com a degeneração pela mistura da raça branca com outras consideradas inferiores, o que seria controlado pelo casamento e a migração (Masiero, 2005). Ou seja, a tentativa de aperfeiçoar um indivíduo ou a raça como um todo exigia "otimizar a herança que uma pessoa recebeu, colocando-a em um ambiente mais favorável e desenvolvendo suas capacidades através da boa educação" (Newman, 1921, citado por Castañeda, 2003, p. 903).
A este respeito, vemos em uma propaganda sobre a chegada da proposta de Froebel e seu uso e importância para a construção dos jardins de infância no Rio de Janeiro uma advertência às mães, quanto a como cada item da educação aparece na abordagem froebeliana. No item que pergunta sobre a implantação do modelo de Froebel no Brasil, intitulado "Será necessário no Brazil?" vemos:
JARDINS DA INFÂNCIA
PROPAGANDA FROEBEL
Na alta sociedade, os espetáculos lyricos, os passeios à rua do Ouvidor, as estações em Petrópolis e Friburgo não permittem que as crianças recebam todo o desvello de que carecem. Se não vagueam pelas ruas, vivem com os fâmulos e com os escravos, companhia ainda mais pervertedora. (Jornal "A semana", Rio de Janeiro, Anno II, vol. II-N, n.53, p.235)
Manacorda (1997) explica que Froebel conseguiu muitas seguidoras após o fechamento de escolas de sua inspiração na Prússia, pela expectativa de sua contribuição para uma cientificidade da ação pedagógica. Vale lembrar que a Froebel é atribuída uma inspiração idealista de amor à natureza e às crianças para educar na primeira infância, substituindo o nome "instituição para os pequeninos" para kindergarten (difundido com o nome de "jardim da infância") e que foi proibido na Alemanha de meados do século XIX por difundir ideias socialistas e ateias, embora sua ênfase tenha sido no desenvolvimento de potencialidades latentes decisivas nos primeiros anos de vida (Luzuriaga, 1972).
Nota-se na citação acima a menção implícita à crença eugenista na superioridade inata da raça branca, cujo patamar de desenvolvimento não seria atingido pelos negros; mais do que isso, o convívio poderia afetar o desenvolvimento. Cabe perguntar: qual seria o papel do jardim da infância, pela via dessa releitura eugenista feita da proposta de Froebel?
Capacidade cerebral, física, moral e vigor clamariam para seguir a eugenia com o rigor de uma religião. A prosperidade ou fracasso das famílias dependeria de procedimentos artificiais análogos ao dos criadores de animais, considerando-se as circunstâncias (Castañeda, 2003). Por isso, vemos o jornal "A Semana" fazer notar a experiência da criança que brinca com a criança negra, na linha de uma influência indireta do empirismo nos ideais eugenistas, notada por Masiero (2002, 2005).
O cunho racista desse alerta vem da crença na superioridade da raça branca preconizada por muitos eugenistas (cf. Masiero, 2002, 2005) e a preocupação com sua deterioração pela possível mistura com outras raças (Castañeda, 2003). A degeneração, por outro lado, seria o desvio das prósperas características desejáveis por razões de natureza involuntária, congênitas ou hereditárias. Castañeda (2003) explica que as preocupações com a deterioração da raça branca passavam pela esterilização e até pela eliminação do indivíduo considerado não desejável.
Em meio ao contexto dos regimes totalitários na Europa e os usos que fizeram dessas concepções, bem como o fato de que a constituição brasileira de 1934 continuou a estimular a educação eugênica (cf. Castañeda, 2003), temos outra frente de pesquisas para essa época de meados do século XX.
Outro ponto a ser comentado é que o malthusianismo recebeu menção especial sobre essas questões (Masiero, 2002, 2005). É o que vemos na polêmica análise que Rodrigo Octavio realiza na seção "Chronica dos livros" publicada no jornal "A semana", em agosto de 1893, no Rio de Janeiro. Ao analisar um livro do Dr. Francisco de Castro, Octavio analisa fatos debatidos pela Sociologia da época e afirma que há fatos que "[...] destroem o axioma do abaixamento da mentalidade, da impotência productora" (p.3). Nesta resenha, publicada no jornal "A semana", revela não concordar com o autor Francisco Castro em relação ao malthusianismo e afirma que o Brasil necessitaria, pelo contrário, de uma política de crescimento populacional e povoamento do território. Trata-se de uma seção destinada à polêmica, no jornal. Todavia, neste espaço de tensão entre os enunciados afirma:
Não há duvida que nos casos especiaes em que a funcção geradora se houver de manifestar fatalmente, ou mesmo provavelmente, com perigo de vida para a creatura procreadora, ou com a expectativa de sofrimentos e desgraças, transmittidos pela herança, ou pelas condições da gestação ou do parto, para a creatura procreadora, será um benefício inestimável a eliminação dessa funcção. Mas, somente no caso particular, como remédio à exceção pathologica. Como regra geral, como solução commoda para a impertinência da filharada, como simples causa da cohabitação improlífica, não, nem mesmo que me queiram dourar a theoria com o aspecto econômico de que a única solução satisfactoria do problema da população está, não em confiar na mortandade, mas em reduzir os nascimentos (Octavio, 1893, p.3).
Em outras palavras, Rodrigo Octavio (1893) não deixa de se preocupar com "desgraças" possíveis de serem eliminadas. Porém, não se define o que seriam essas desgraças. Há um tom de obviedade, de clareza. É um mecanismo do enunciado dominante da conjuntura desse campo do arquivo. Embora não concorde com a esterilização em massa por aspectos econômicos, notamos que ao negar que se use o controle habitacional, nem mesmo em caso de "cohabitação improlífica", o autor indiretamente afirma que existem certos tipos de convivência que seriam danosas e que poderiam não produzir algum valor social. Ou seja, o autor embora duvide do "axioma do abaixamento da mentalidade", credita uma esterilidade à convivência, ao ambiente.
Esse enunciado, dominante à época, aparece na difusão da higienização presente nas escolas paranaenses das décadas de 1920 e 1930 do século passado, privilegiado pela escola em seu formato educacional de manual de conduta (Larocca & Marques, 2010). É o que vemos em:
JARDINS DA INFÂNCIA
PROPAGANDA FROEBEL
PROGRAMMA DO JARDIM DA INFÂNCIA - de 3 a 6 annos de edade.
[...]
EDUCAÇÃO MORAL - pelo exemplo - acquisição de bons hábitos, aproveitamento dos instinctos, extirpação dos defeitos e pequenos vícios. (Jornal "A semana", Rio de Janeiro, Anno II, vol. II-N, n.53, p.235)
Larocca e Marques (2010) explicam que a eugenia teve papel dominante à época ao educar a criança como "massa modelável" e alcançar civilidade e auto-regulação, numa regulação entre a coação externa e interna, entre a prescrição do medido e o atingido. O cumprimento moral fez parte dos preceitos higienistas, pois educação, moral e saúde formavam um tripé. Como também apontam Silva e Fonseca (2013), o biótipo era um conhecimento que se estendia à educação moral. Vale também ressaltar neste último destaque que novamente vemos parte da herança do referencial empirista apontado por Masiero (2002, 2005). Ao se referir aos hábitos, a um "Programma" de eliminação de "defeitos" o jornal difunde influências da concepção do registro mentalista da experiência, muito em voga na Psicologia daquele período e ao longo do vindouro século XX.
Por meio das pesquisas de Larocca e Marques (2010) e Silva e Fonseca (2013), percebemos que esses ideais circularam até meados do século XX de forma mais explícita, sendo que houve um período de relativa crítica após os extermínios na Segunda Guerra, quando a eugenia passou a ser criticada abertamente como desvirtuamento científico e da moral, como apontam estas últimas autoras.
Mesmo assim, fazemos notar que há muitas enunciabilidades e jogos de sentidos em circulação e provocando interpretações as mais variadas e de complexo alcance em vários campos do conhecimento na tentativa de compreender a persistência desses discursos até a contemporaneidade; persistência esta de caráter misógino, racista, classista e que em certa medida é percebido pela população em geral quando aglutinado sob a denominação de discursos fascistas. Trata-se de um campo amplo de pesquisas a ser desbravado em suas reentrâncias, na sutileza dos discursos do cotidiano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do conhecimento das contribuições dos diversos autores aqui citados, em especial o trabalho de Masiero (2002, 2003, 2005) e sua importância no que se refere à demonstração da intersecção entre eugenia e História da Psicologia, acreditamos que a análise acima apresentada oferece à Psicologia outros tipos de interfaces no campo de sua própria história como disciplina. Além disso, quisemos mostrar a profundidade, a sutileza e a forma insidiosa pela qual a eugenia circulou no cotidiano da educação infantil.
É o cotidiano, na abordagem aqui utilizada, que deve ser analisado, pois sustenta modos de consolidação e de valoração dos arquivos na construção de verdades e de evidências pelas quais os sujeitos tornam-se intérpretes de enunciados dados como mais transparentes em relação aos outros possíveis.
A escavação da conjuntura histórica de quaisquer questões que envolvam a interface entre ciência, educação e saúde conduz o pesquisador a galerias, recônditos, lugares específicos do campo do conhecimento que provam que as ações técnicas e profissionais são conduzidas por formas de produção de poder no cotidiano. Remexer esses lugares requer estar atento às sutilezas, às formas insidiosas pelas quais se acredita ter havido "ganhos" e "avanços" em uma dada época acerca de uma determinada questão.
Implica também insistir em desvendar a fragilidade da crença na superação de algumas dessas questões. No caso da disseminação da eugenia no cotidiano e sua interferência na educação infantil em âmbito mais amplo requer constatar que, mesmo com as críticas realizadas, sobretudo a partir de meados do século XX, trata-se de um lugar da memória sócio-histórica que persiste no cotidiano e que deve ser investigado com cuidado e atenção, que não recaia na ingenuidade de se acreditar tratar-se de questão já superada.
Na esteira da ilusão de obviedade e clareza dos arquivos (cf. Pêcheux, 1997), acreditar que a eugenia sustentaria um projeto de Educação Infantil é postura que não se esgotou nos círculos acadêmico-científicos e circulou no cotidiano comum.
O alcance desta circulação nas diversas esferas do cotidiano contemporâneo clama por pesquisas que também possam apontar a construção de um arquivo sobre eugenia que funcionem no debate sobre a construção de gênero, sobre o racismo nos esportes, na educação física e em demais campos.
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Recebido: 07 de novembro de 2018
Aprovado: 04 de março de 2020
1 Utilizaremos os termos eugenistas e eugênicos, pois ambos são aceitos.
2 A biblioteca brasiliana Guita e Jose Mindlim é uma unidade de acervo bibliográfico e documental coordenado pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da Universidade de São Paulo, criada em 2005 para abrigar e facilitar acesso à coleção "brasiliana" (majoritariamente formada por material sobre o Brasil), compilada por mais de oitenta anos pelo bibliófilo José Mindlim e sua esposa Guita Mindlim. (Fonte: site da biblioteca brasiliana Guita e Jose Mindlim. https://www.bbm.usp.br/node/1. Acesso em 28/5/2018).
3 Shepherd (1987) se refere com este termo (extraído da saga "Os três contos de Serendip") às ciências conjeturais, às ciências que assumem a postura de remeter as pistas a um campo amplo de possíveis interpretações. Trata-se de uma discussão que também se encontra em Ginzburg (1989) sobre os rumos que a Semiologia médica teria tomado ao impor uma interpretação cada vez mais restrita, posto que categórica e dogmática sobre os sinais do corpo.