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Psicologia da Educação
versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520
Psicol. educ. no.50 São Paulo jan./jun. 2020
https://doi.org/10.5935/2175-3520.20200007
ARTIGOS
De que social somos feitos: discurso educativo e seus efeitos de verdade
From which social we are made of: educational discourse and its truth effects
De cual social somos hechos: discurso educativo y sus efectos de verdad
Ana Beatriz Coutinho LernerI; Paula Fontana FonsecaII
IUniversidade de São Paulo - USP - São Paulo - SP - Brasil; anabcoutinho@yahoo.com.br
IIUniversidade de São Paulo - USP - São Paulo - SP - Brasil; pff@usp.br
RESUMO
Este artigo apresenta alguns fundamentos teóricos acerca da relação dialética entre indivíduo e sociedade para discutir os efeitos de verdade das operações discursivas da escola na produção da subjetividade e na formação dos sintomas que têm expressão no campo escolar. Partimos de conceitos oriundos do campo da Sociologia - mais especificamente dos trabalhos de Pierre Bourdieu - estabelecendo um diálogo com a teoria psicanalítica acerca da constituição do sujeito e do laço com o outro pela via do discurso. A partir de nossa experiência, observamos uma relação não necessariamente linear entre os determinantes sociais, a saber: classe social, condições socioeconômicas e estrutura familiar, o lugar que a criança ocupa no discurso dos educadores e os efeitos subjetivos da experiência escolar para cada aluno. Para ilustrar esta hipótese, apresentamos fragmentos de duas situações de intervenção a partir do arcabouço teórico-técnico da Psicanálise com crianças de escolas públicas que apresentaram impasses em seu processo de escolarização.
Palavras-chave: Educação; Psicanálise; Discurso; Social; Sujeito.
ABSTRACT
This article presents some theoretical foundations about the dialectic relationship between individual and society to discuss the truth effects of the school discursive operations on the subjectivity production and the formation of scholar symptoms that has expression in the scholar field. We start by concepts from the sociology field - more specifically from the works of Pierre Bourdieu - establishing a dialogue with the psychoanalytic theory about the constitution of the subject and the bond with the other through the discourse. From our experience, we observed a non-linear relationship between social determinants (namely: social class, socioeconomic conditions and family structure) the child's place in educator's discourse and the subjective effects of the school experience for each student. To illustrate this hypothesis, we present two fragments of intervention situations from the psychoanalysis theoretical and technical framework with public school children who live impasses in their schooling process
Keywords: Education; Psychoanalysis; Discourse; Social; Subject.
RESUMEN
Este artículo presenta algunos fundamentos teóricos sobre la relación dialéctica entre el individuo y sociedad para discutir los efectos de verdad de las operaciones discursivas de la escola en la producción de la subjetividad y en la formación de los síntomas que se expresan en el campo escolar. Partimos de conceptos oriundos del campo de la sociología - más específicamente de los trabajos de Pierre Bourdieu - estableciendo un diálogo con la teoría psicoanalítica acerca de la constitución del sujeto y del lazo con el otro por la vía del discurso. A partir de nuestra experiencia, se observó una relación no necesariamente lineal entre los determinantes sociales (clase social, el nivel socioeconómico y la estructura familiar), el lugar que ocupa el niño en el discurso de los educadores y los efectos subjetivos de la experiencia escolar para cada estudiante. Para ilustrar esta hipótesis, presentamos fragmentos de dos situaciones de intervención, a partir del marco teórico y técnico de la psicoanálisis con niños de escuelas publicas que presentaron impasses en su proceso de escolarización.
Palabras clave: Educación; Psicoanálisis; Discurso; Social; Sujeto.
INTRODUÇÃO
A uns trezentos ou quatrocentos metros da Pirâmide me inclinei, peguei um punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente um pouco mais adiante e disse em voz baixa: estou modificando o Saara.
O ato era insignificante, mas as palavras nada engenhosas eram justas e pensei que fora necessária toda minha vida para que eu pudesse pronunciá-las.
Luis Jorge Borges
A escola configura-se como uma rede discursiva que historicamente concorreu para a produção do que se consagrou chamar de fracasso escolar, definindo lugares e, muitas vezes, selando destinos dos que dela participam. Diversos autores apontam os efeitos de verdade das operações discursivas da escola na produção da subjetividade e na formação dos sintomas que tem expressão no campo escolar. Como efeitos de verdade, consideramos os processos psíquicos mediante os quais a criança toma como verdade algo que é dito a respeito dela, sofrendo influência dos processos de nomeação impostos pelo ordenamento da trama social e escolar (Duchatsky, 2008; Santiago & Assis, 2015; Charlot, 2013).
Uma rápida aproximação da escola permite recolhermos uma série de dizeres e saberes dos educadores acerca dos alunos que, frequentemente, influenciam deveras suas trajetórias escolares. Muitas formas como as crianças são nomeadas pelo discurso escolar fazem referência às já conhecidas justificativas atribuídas ao fracasso escolar - famílias desestruturadas, carência cultural, pobreza e violência simbólica - dando mostras de uma atualidade incômoda dos estudos de Maria Helena Patto publicados no final da década de 80. Os significantes pelos quais as crianças são nomeadas no discurso escolar acabam por constranger seus percursos de escolarização na direção da repetição das histórias familiares pregressas e dos destinos de seus pares da comunidade e classe social à qual pertencem.
Alguns desses dizeres apontam para o desinteresse, agressividade, desrespeito, passividade, entre outras queixas que recaem em cima dos alunos e que, frequentemente, vem acompanhadas de um sentimento de impotência do educador frente a um futuro marcado pela marginalidade: "esse é FEBEM", "vai sair no Datena", "são uns loucos de mochila", "está indo pelo mesmo caminho do pai".
Em meio a esse cenário, vemos crianças mais ou menos coladas aos significantes por meio dos quais são nomeadas. Algumas acabam por reproduzir comportamentos esperados pelo corpo de educadores, ao passo que outras produzem inflexões e escapam às predestinações, construindo outra relação com o saber e outro dizer a respeito de si e da escola.
De acordo com Carvalho (2015, p. 407), o discurso escolar pretende descrever um estado prévio e constitutivo do sujeito e revela uma concepção de aluno e das práticas escolares ancoradas na visão do fracasso escolar "como resultante de 'distúrbios de personalidade' ou de obstáculos - sejam eles orgânicos, afetivos, familiares ou culturais - que afetam o indivíduo isoladamente considerado". Alguns efeitos deletérios dessa concepção são a individualização na figura do aluno de fenômenos sociais e, portanto, coletivos e institucionais, e a desimplicação dos educadores da busca de fatores internos às práticas escolares que influenciam na não aprendizagem.
Ao analisar as raízes históricas das concepções a respeito do fracasso escolar, Patto (1987/2015) recupera textos e documentos do início do século XX, que dão mostras da influência das teorias raciais e do discurso médico-higienista na construção do modelo de escola que vemos até os dias de hoje.
Foi, portanto, na convergência de concepções racistas e biológicas sobre o comportamento humano e as desigualdades sociais e de um ideário político liberal que a educação brasileira foi pensada e planejada nos anos que antecedem a existência de uma genuína política educacional no país. (Patto, 1987/2015, p.108)
Dessa forma, a escolarização brasileira acabaria por operar mais como instrumento de dominação do que de transformação social na direção da emancipação do sujeito. Patto faz referência aos trabalhos de Bourdieu, um dos principais nomes no campo da sociologia da educação, que demonstrou uma correlação entre a origem familiar e social dos alunos e seu êxito ou fracasso escolar. Em "Categorias do juízo professoral", Bourdieu (1998) afirma que a avaliação escolar, invariavelmente, carrega marcas de um julgamento cultural e moral dos alunos de acordo com suas condições familiares e sociais, por exemplo, a região onde moram e a profissão de seus pais.
Deste autor, depreendemos uma relação dialética entre indivíduo e sociedade na qual há uma prevalência dos elementos objetivos da estrutura social na determinação dos comportamentos dos indivíduos. Suas críticas situam a escola como uma instituição reprodutora das desigualdades sociais, na medida em que impõe a todos uma cultura arbitrária forjada a partir da experiência de uma classe dominante. Nas palavras de Bourdieu (1988):
a instituição escolar tende a ser considerada cada vez mais, tanto pelas famílias quanto pelos próprios alunos, como um engodo, fonte de uma imensa decepção coletiva: essa espécie de terra prometida, semelhante ao horizonte, que recua na medida em que se avança em sua direção. (Bourdieu, 1998, p.221)
De fato, o discurso escolar configura-se como um importante veículo de disseminação de representações a respeito do aluno calcadas em determinantes sociais, mas, como bem destaca Charlot (2013), essa correlação não pode ser tratada em termos de causa e efeito. Há êxitos que são paradoxais, na medida em que ocorrem às crianças que não deveriam ser bem-sucedidas de acordo com essa lógica. Com isso, Charlot (2013) enfatiza que, para além da posição social objetiva, devemos considerar a posição social subjetiva, isto é, a forma singular como cada um interpreta ou ocupa sua posição social objetiva.
As contribuições de Charlot forjam-se a partir da interlocução da Sociologia com a Psicanálise e resultam em uma sociologia do sujeito, que considera a dimensão do inconsciente na apropriação simbólica dos determinantes sociais e da estrutura objetiva da sociedade. Em que pese a importância da desigualdade social objetiva e a necessidade de enfrentamento dessas condições, especialmente em um país marcadamente desigual como o Brasil, a perspectiva singular tem grande relevância para o entendimento e a atuação do psicólogo frente à história escolar de um aluno.
A noção de social para a Psicanálise não nega o social que é objeto da Sociologia, mas inclui nele a dimensão da singularidade. Freud (1921/2011, p. 10) já anuncia em 1921 a indissociabilidade entre sujeito e cultura, afirmando que o outro está sempre integrado à vida psíquica do sujeito, seja como modelo, objeto ou como adversário, de onde o autor depreende que "a psicologia individual é, também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado".
Freud dá ênfase ao lugar do outro na dinâmica inconsciente das identificações que concorrem para a formação do eu. Alguns autores pós-freudianos, entre eles Lacan, radicalizam o lugar do outro na própria constituição do sujeito do inconsciente. Lacan apoia-se em uma distinção entre outro, grafado com letra minúscula e entendido como o semelhante, e Outro, grafado com letra maiúscula e definido como o próprio campo de linguagem, o tesouro dos significantes, para afirmar que o inconsciente do sujeito é o discurso do Outro (1953/1998). Essa formulação comparece no ensino de Lacan como uma retomada da articulação freudiana que coloca no coração da psicanálise a indissociabilidade entre sujeito e social.
Ao nos constituirmos como sujeito, habitamos um mundo de linguagem que nos antecede e nos fornece chaves de significação que nos orientarão na construção de nossa subjetividade. Desse campo de linguagem, recolhemos significantes que nos nomeiam, nos indicam um lugar a ocupar, nos oferecem elementos aos quais, em alguma medida, sempre nos sujeitamos. Dito de outro modo, "a linguagem é condição do inconsciente, assim como é condição da Ciência, assim como é condição, fundamento, de toda construção cultural. Condição, portanto, da construção das instituições humanas e, entre elas, a escola" (Kupfer, 1997, p. 59).
A constituição subjetiva não se reduz, porém, à simples assunção das insígnias do Outro. O sujeito não está totalmente alienado ao discurso do Outro ou recoberto por um significante que o determine; mas, também não está totalmente livre das significações que advém deste campo. O processo de constituição do sujeito se articula na báscula entre eu-outro, alienação-separação, criação e recriação. Faria (2003/2014) afirma que
[...] para Freud, como para Lacan, não é possível atribuir à história vivida um determinismo linear pelo qual o passado produz efeitos sobre o presente. (...) A história interessa à psicanálise não como um pretenso dado objetivo, mas porque ela é sempre o recorte subjetivo de uma história vivida, porque ela é, antes de mais nada, a construção de um sujeito. (Faria, 2003/2014, p.211)
O conceito de sujeito do inconsciente, ao lado da noção de significante1, permite entrelaçar indivíduo e cultura de forma a sustentar a abertura para construções singulares a partir do lugar em que o sujeito está situado na rede discursiva que o constitui.
A partir de nossa experiência, observamos uma relação não necessariamente linear entre os determinantes sociais (classe social, condições socioeconômicas e estrutura familiar), o lugar que a criança ocupa no discurso dos educadores e os efeitos simbólicos da experiência escolar. Tal observação vai ao encontro dos pressupostos apontados por Kupfer (2007). Para ela, o sujeito é engendrado a partir do social, mas vai um pouco além. O sujeito do inconsciente é o que emerge como uma versão singular dos discursos que o determinam, ou seja, "é efeito dos discursos, mas ao irromper, cria e recria, refaz e transforma aquilo mesmo que o fez emergir. Incide sobre os discursos de que se valeu para dizer-se" (p. 220).
Duchatsky (2008) parte de igual princípio para designar a perspectiva simbólica dos jovens e crianças a respeito da escola. Para ela, a escola como significante não está submetida por completo às condições sociais e históricas que concorrem para sua produção. A construção de significados para a experiência escolar, longe de congelar-se em um sentido homogêneo, admite a entrada de uma pluralidade de sentidos.
De uma perspectiva simbólica, a escola não será a mesma em todas as épocas, nem para todos os sujeitos, nem para os mesmos sujeitos em distintos períodos. A possibilidade de constituir-se como um núcleo de sentido, radicará na sua capacidade de interpelação, em sua capacidade de nomear seus interlocutores de tal maneira que esses se percebam reconhecidos como sujeitos de enunciação. A escola, então, poderá erigir-se no horizonte do possível a partir da articulação de um campo de desejos, aspirações e interesses. (Duchatsky, 2008, p. 22)
Portanto, o que desejamos enfatizar é o índice de indeterminação subjetiva na apropriação simbólica da experiência escolar e as modalidades particulares de enlaçamento que unem cada um ao social, por intermédio do discurso. Como simbólico, consideramos os processos culturais e linguageiros mediante os quais certos significantes são associados a determinados significados particulares.
Social e singular são dimensões que não se recobrem ainda que se sobredeterminem. Afirmar esse ponto, é marcar a força do discurso social na construção da subjetividade e, simultaneamente, vislumbrar a brecha que permite a um sujeito engendrar seu lugar singular no mundo.
Apresentaremos, adiante, fragmentos de intervenções realizadas junto às crianças e suas respectivas escolas, que dão mostras dos efeitos de verdade das operações discursivas na produção da subjetividade e a possibilidade de o sujeito vir a dizer-se, diferenciando-se do lugar e das determinações que lhe são atribuídas pelo discurso social.
O primeiro fragmento é fruto de um projeto de intervenção em uma escola pública da cidade de São Paulo que contou com a participação de estudantes do curso de Psicologia da Universidade de São Paulo. O projeto desdobrou-se em dois tempos: um primeiro momento de conhecer a escola, escutar os educadores e suas demandas e, um segundo momento, em que os estagiários realizavam intervenções na escola, especialmente, em duas salas de aula consideradas difíceis pela rotatividade de professores e pela presença de "alunos-problema". A segunda situação faz referência ao processo de escolarização de uma criança em tratamento no Núcleo de Educação Terapêutica do Instituto de Psicologia da USP2.
Arrebenta na lição!
Sebastião é um menino de nove anos de idade que frequenta o quarto ano do ensino fundamental de uma escola municipal da cidade de São Paulo. Ele chegou à escola atual provindo de um bairro distante, por conta de uma reorganização familiar necessária para que a avó assumisse seus cuidados. Estava afastado de seus pais por uma medida judicial e retirado da região à qual pertencia e na qual circulava com alguma desenvoltura.
De acordo com a escola, Sebastião chegou ao terceiro ano, praticamente não alfabetizado. Sua relação com a leitura e a escrita se dava de forma truncada: identificava a maioria das letras, mas não conseguia juntá-las para formar as palavras e, assim, aceder ao sentido do texto. Empenhava esforços nessas tentativas, mas acabava por desinteressar-se diante do tamanho da dificuldade e do pouco que recolhia de prazer nessa hercúlea tarefa. Além disso, apresentava um comportamento considerado inadequado pela escola: gritava, xingava, proferia uma série de palavrões e ofensas a adultos e crianças, as agredia fisicamente e, em algumas situações, parecia estar totalmente fora de controle. Trazia em seu repertório de saberes, expressões e temas que incomodavam os educadores e atiçavam a curiosidade das crianças: sexo, drogas e histórias de violência das mais diversas ordens.
Nessa escola, Sebastião passou a compor uma sala de aula considerada difícil, com um histórico de muitas trocas de professores e afastamentos de saúde atribuídos, em parte, ao mau comportamento dos alunos. Ao longo do terceiro ano, a sala teve quatro professores regentes e no quarto ano, quem assumiu o grupo foi uma professora recém-chegada. Os alunos se perguntavam até quando essa professora "iria durar". Alguns com pesar, outros com uma expressão de êxito ou de triunfo. Ao saber que o estagiário de Psicologia permaneceria em sua sala de aula, Sebastião ficou exultante: "Aê, tio! Legal, einh, tiozão!".
Desde o início do trabalho, Sebastião procurava bastante o estagiário para pedir ajuda nas tarefas. As outras crianças diziam que ele era burro, folgado e que queria que os outros fizessem a atividade por ele. A professora buscava formas de se aproximar de Sebastião e de envolvê-lo com as tarefas propostas. Algumas vezes, justificava sua dificuldade em aprender ou comportar-se adequadamente por alguma característica intrínseca ao seu modo de ser: "ele não gosta da escola", "não quer aprender", "parece que machuca os outros de propósito". Outras vezes, ele próprio justificava suas dificuldades dizendo: "eu sou burro! Eu não sei fazer nada!".
Frequentemente, fazia desenhos e os entregava como um presente ao estagiário. Não era bem aceito pelos colegas de classe, que o excluíam das atividades em grupo e não o escolhiam como parte do time de futebol nas aulas de Educação Física. Muitas vezes, ele fazia dupla com a professora ou com o estagiário e, na Educação Física, não era raro que brigasse, agredisse os colegas ou fugisse com a bola para estragar o jogo de futebol.
De fato, algumas produções escritas não faziam o menor sentido para Sebastião, mesmo quando ele funcionava como um bom copista, na intenção de corresponder ao que era esperado pela professora. Interrogava-se a respeito do sentido das tarefas: "porque copiar o cabeçalho todas as vezes?" "Porque eu preciso fazer conta assim? Na minha casa eu faço de outra forma".
Nessas situações, o estagiário investigava com ele suas hipóteses, suas formas de saber e apresentava, a partir de outra perspectiva, a forma escolarizada de fazer que estava sendo proposta pela professora. Com relação ao cabeçalho, por exemplo, o estagiário disse que, para ele, servia para indicar o dia em que aquela informação havia sido registrada no caderno. Isso facilitaria quando fosse necessário buscar novamente a informação, para relembrá-la. Sebastião compreendeu, disse que era realmente um aspecto importante, mas que continuava não entendendo por que precisava escrever sempre o nome da escola, já que o nome não mudava, uma vez que ele estudava todos os dias na mesma escola.
Do ponto de vista pedagógico, Sebastião foi avançando. Ele passou a levar poesias para a escola. Professora e coordenação se engajaram na valorização de seus escritos, seus desenhos, suas perguntas. O estagiário dava testemunho de suas produções, bem como intervia em relação à modalidade de laço que os colegas estabeleciam com ele. Nas vezes em que ele era desqualificado pelo discurso dos colegas (burro, faz tudo errado!), o estagiário convidava as crianças para chegarem mais perto, para ensiná-lo o que já sabiam. Solicitava aos outros alunos que lembrassem como haviam aprendido aquele conteúdo e que compartilhassem essas estratégias com o colega. Assim, era possível recuperar a dimensão de um processo de aprendizagem que se dá em diferentes tempos para diferentes crianças, mas que não cessa de apresentar-se como uma possibilidade de novas construções. Cada criança como possibilidade de "vir a ser" e não como constatação de algo que já sabemos que não vai bem.
Uma situação foi particularmente interessante para pensar os efeitos do discurso escolar a respeito do processo de escolarização de Sebastião, bem como para explicitar a direção do trabalho com a escola e com a criança.
Na aula de português, os alunos faziam exercícios de interpretação de texto. O estagiário ajudava Sebastião que estava em um dia inspirado: conseguiu ler o texto, entender as perguntas e registrar as respostas. Após concluir todos os exercícios com qualidade, disse em voz alta: "Vixi! Arrebentei!". A professora, que de lá não estava muito distante, ao ouvir a frase, perguntou, na sequência, quem ele havia arrebentado. Sebastião respondeu:
- Fala pra ela que eu estou arrebentando na lição!
Ele é autista?
Mathias é uma criança de sete anos de idade que buscou tratamento no Núcleo de Educação Terapêutica (NET) após ter passado por um processo diagnóstico que concluiu que ele possuía altas habilidades com comprometimento da interação social, o que sugeriria um transtorno do espectro autista.
Nos primeiros atendimentos, ficou evidente sua predileção por números, medidas e coordenadas geográficas. Interessava-se sobremaneira pela altura das pessoas e, muitas vezes, ficava intrigado com a não proporcionalidade entre altura e idade. Como alguém de mais idade podia ser mais baixo do que alguém mais jovem? Tempo e crescimento não andavam pari passu? Suas produções textuais eram descritivas e assemelhavam-se a uma narrativa em tempo real. Quando pretendia escrever uma história, sentia-se impelido a numerar todas as páginas do caderno e, só depois, preenchia as folhas com riscos, neologismos e algumas palavras. Ao desenrolar um rolo de barbante, também não conseguia parar até que este chegasse ao final. Angustiava-se quando esses rituais eram quebrados ou interrompidos pelo final da sessão. Chorava e, com o decorrer do tratamento, pode dizer que tinha medo de pausas.
Os pais se questionavam acerca do que se passava com o filho. As habilidades específicas que a criança demonstrava ter em certas áreas do conhecimento eram entendidas como índice de superdotação, hipótese que ficou fortalecida com a conclusão do processo diagnóstico.
A querela diagnóstica em torno do autismo ou das altas habilidades teve importante impacto na escola e passou a dividir as opiniões dos educadores quanto ao delineamento das estratégias pedagógicas. Parte da equipe escolar defendia a necessidade de um atendimento educacional especializado com enriquecimento curricular, ainda que isso significasse apartá-lo do grupo em certos momentos. Já a professora privilegiava seu pertencimento ao grupo e buscava alçar os conteúdos a aprendizagens significativas que lhe servissem para incrementar o laço com seus pares.
A questão que se apresentava nas reuniões entre equipe escolar e equipe de tratamento era: como dar lugar aos interesses e habilidades de Mathias sem ficar subsumido a eles? Como conjugar o estímulo ao conhecimento formal com o pertencimento social, uma vez que essas são dimensões não necessariamente excludentes no âmbito da educação? Como não perder de vista o próprio Mathias em meio às discussões a respeito dos procedimentos mais adequados para determinado diagnóstico?
Um dos pontos que se destacava nestes encontros era o debate acerca da orientação que constava de tal laudo e que propunha que o adulto antecipasse os acontecimentos para a criança, de modo a criar uma pauta de conduta que evitasse o surgimento de angústia. Era frequente que ao perder um jogo ou chegar por último para compor a fila do lanche, por exemplo, ele se angustiasse e se desorganizasse. No entanto, tomar como baliza da ação do educador a antecipação dos acontecimentos no terreno escolar era uma proposta questionada pela professora e por nossa equipe, justamente por propiciar o que entendíamos ser uma postura precavida, que, do lado dos profissionais, significava já saber de antemão e, no lugar da criança, o desenlace de determinado acontecimento.
Ao longo do tratamento, miramos o desdobramento de certos modos fixos de interação apresentados por Mathias. Ainda que números e medidas comparecessem com frequência, eles funcionavam como guias, como um refúgio psíquico nos momentos de angústia e não mais como o único objeto ou tema de seu interesse. Além disso, ele ampliou suas formas de participar das relações sociais, a maneira de compartilhar suas vivências e também de se deixar afetar pelas vivências dos outros.
Destacaremos uma situação em particular, a partir da qual foi possível apontar os efeitos do diagnóstico no campo social e o impacto dessa nomeação em relação à criança e a sua família.
Por ocasião das férias, a escola propôs um acampamento para as crianças de seu ano. Ocorre que o acampamento mostrou um desconforto em receber crianças autistas. A escola interroga, então, se a participação de Mathias seria possível e retoma a dúvida em torno do diagnóstico diferencial entre autismo e altas habilidades. Nesse caso, a incerteza quanto ao nome - o diagnóstico - apareceu como uma brecha que possibilitou que a família sustentasse o desejo de que ele participasse do passeio e usufruísse do acampamento ao seu modo, ou seja, com seus limites e possibilidades.
Quando os pais nos trazem esse acontecimento, evidentemente, retomam a hipótese de o filho ser autista. A conversa que decorre é interessante, pois para além de problematizar se o autismo seria condizente com o que a criança apresentava, foi possível abordar os possíveis efeitos que um diagnóstico dessa magnitude poderia ter na vida dele. Os pais contam dos cuidados que tomaram ao propor a viagem para o filho. Eles haviam explicado o que era um acampamento, quem estaria lá, a duração do passeio. Enfim, anteciparam algo do que seria vivido, mas não recobriram todo o campo da experiência. Havia uma parte a ser vivida no acampamento pela própria criança e que nenhuma antecipação poderia subtrair.
DISCUSSÃO
Nos dois fragmentos trabalhados acima, vemos o modo como o discurso social produz "nomeações ou etiquetas diagnósticas que são, muitas vezes, impostas como oferta de identificação às crianças" (Santiago, 2013, p.31). Sebastião, era visto a partir do crivo do agressor, aquele que arrebenta pessoas e objetos na escola. Seus comportamentos e falas eram interpretados à luz dessa significação que, certamente, os educadores recortavam da experiência com ele, mas que não recobria a totalidade de sua presença na escola. Para Mathias, o diagnóstico - a dúvida com relação a se ele seria ou não autista - acabou por silenciar a pergunta a respeito das condições singulares de essa criança participar da atividade proposta. O laudo lançava luz com relação ao transtorno, deixando em segundo plano a pergunta a respeito das reais possibilidades dessa criança usufruir da viagem e da convivência com seus pares.
Carvalho (2015) ressalta a presença do diagnóstico na escola, tanto em sua versão científica como na modalidade de um ajuizamento escolar, operando "como poderoso meio de realização de suas próprias profecias" (p.408). Em ambos os casos, vemos o risco do diagnóstico ser tomado como algo que diz tudo em relação ao sujeito, passando a determinar o que está previsto ou prescrito para cada criança, de acordo com a forma como ela é nomeada no discurso social. Um exemplo disso pode ser recolhido da história de Nailton, uma das crianças acompanhadas pela pesquisa que culminou com a escrita do livro A Produção do Fracasso Escolar, de Maria Helena Patto e que, vinte e cinco anos depois de ser reprovado na escola, relembra as marcas deixadas pela estigmatização e pela experiência de marginalização ao dizer "ah, depois que tacha, já era. (...) Depois que você dá o nome, já era" (Souza e Amaral, 2015, p. 425). Santiago e Assis afirmam que certas nomeações:
[...] pesam nas costas de algumas crianças como tijolos colocados em suas mochilas e elas não têm chance de se desfazer, sozinhas, de tal peso. Tornam-se identificações que favorecem exclusão e geram mal-estar não apenas para os alunos e seus familiares, mas também para alguns docentes, que se veem às voltas com certa impotência na tarefa de ensinar (Santiago & Assis, 2015, p.34).
"São nomeações socializadas e socializadoras que inscrevem o ser identificado no laço social" (Soler, 2009, p.175). Se, de um lado, o discurso pode operar de forma a raptar a palavra pessoal da criança - para usarmos uma expressão de Mannoni (1973/1976) - por outro, é o próprio discurso que fornece as chaves para que a criança construa um lugar de enunciação no campo da palavra. O mesmo golpe que introduz o social na carne do sujeito, introduz o sujeito no corpo social e, é por meio da palavra e do ato que podemos mobilizar as identificações, dando lugar àquilo do ser que não é redutível aos significantes que prevalecem para nomeá-lo no contexto escolar.
A intervenção produzida na escola sustenta uma possibilidade de relação com a criança para além dos rótulos. Uma oferta que atinge tanto a criança, que pode experimentar outras posições no laço social e na relação com o saber, como os professores, que podem acessar a singularidade da criança subsumida pelo diagnóstico ou pelos ajuizamentos escolares.
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Recebido: 04 de agosto de 2017
Aprovado: 29 de fevereiro de 2020
1 O conceito de significante foi extraído da Linguística e utilizado por Lacan de forma original para afirmar a primazia do significante em relação ao significado na fundação do inconsciente. O autor destaca sua diferença com relação ao signo para propor que a significação sempre concerne ao sujeito e que o significante, isoladamente, não significa nada.
2 O Núcleo de Educação Terapêutica é um serviço ligado ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo que oferece atendimento clínico-institucional e acompanhamento da escolarização de crianças que apresentam questões no estabelecimento do laço social e, consequentemente, em seus processos de escolarização (Lerner, A. B. C.; Fonseca, P. F.; Oliveira, G. C. & Franco, J. C., 2016).