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Psicologia: ciência e profissão
versão impressa ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.7 n.1 Brasília 1987
EM DEBATE
A diferença não é déficit
"Nos anos 60 e 70, a teoria piagetiana desenvolveu-se no Brasil, primordialmente, como aplicação nas escolas pré-primárias. Por outro lado, a pesquisa visando verificar as condições cognitivas das crianças de classe social baixa, com vistas a entender a evasão escolar, apenas recentemente tem recebido atenção dos estudiosos. Na sua opinião, por que isso aconteceu?"
David William Carraher e Analúcia Dias Schliemann* Não sabemos se se pode afirmar que a teoria piagetiana desenvolveu-se no Brasil como aplicação nas escolas pré-primárias.
É verdade que a expressão "escola piagetiana" foi muito usada a partir dos anos sessenta por muitas escolas no Brasil, sobretudo as particulares. Na maioria dos casos, esse uso representava uma mudança cosmética, equivalente à aplicação de uma nova pintura no prédio da escola. Mesmo nas exceções que tentaram propor atividades ditas piagetianas para a escola primária, parece haver equívocos sérios: Piaget estava muito mais interessado em observar como as crianças aprendem e raciocinam do que em intervir nesses processos.
As aplicações e estudos piagetianos
A teoria de Piaget permite pensar em diferentes tipos de aplicações e as que primeiro proliferaram, no Exterior e depois no Brasil, foram as propostas de atividades para a escola pré-primária, que pretendiam acelerar ou preparar a criança para atingir os estágios de desenvolvimento mais avançados. Esta tentativa de aplicar Piaget à Educação parece-nos inadequada por vários motivos. Em primeiro lugar, como os próprios estudos de Piaget mostram, a criança demonstra avanços na compreensão das tarefas piagetianas sem que precisem, para isso, aprender a responder a essas tarefas na escola. Em segundo lugar, os estudos de Inhelder, Sinclair e Bovet, em Genebra, mostram como a aceleração dos estágios de desenvolvimento é limitada. Em terceiro lugar, apesar de encontrarmos correlações entre o rendimento escolar e desempenho nas tarefas piagetianas, não é por ter aprendido as tarefas piagetianas que a criança vai entender melhor matemática, por exemplo.
Na área de pesquisa e das tentativas de análise das características das crianças de camada de baixa renda, principalmente aquelas que fracassam na escola, a teoria de Piaget apresentou-se mais recentemente como alternativa bastante atraente para os testes de inteligência que classificam as crianças em termos de Q.I. No entanto, as tarefas piagetianas continuaram a ser utilizadas dentro de uma perspectiva de carência cultural e, da mesma forma que os testes de inteligência, passaram a ser utilizadas para classificar as crianças de baixa renda, que não tinham acesso à escola, ou às melhores escolas, como sendo deficientes em seu desenvolvimento cognitivo. Também neste caso, os estudos desenvolvidos no Brasil refletem, com atraso, as tendências encontradas no Exterior.
Esperamos que a tendência agora seja para o desenvolvimento de estudos que levem em consideração as especificidades da criança brasileira.
"Qual é a contribuição, para a Educação, dos estudos sobre cognição nas crianças de classe social baixa?"
David e Analúcia- A principal contribuição é de ordem social. Durante muito tempo, não houve uma preocupação séria, demonstrada por psicólogos e educadores, com relação a esse problema. Os estudos desde aqueles realizados por Ana Maria Poppovic têm chamado atenção para o fracasso escolar e para a aprendizagem da criança de classe social baixa. Os primeiros estudos enfatizaram as falhas no desempenho das crianças de baixa renda e tiveram como conseqüência a criação de programas que visavam suprir as supostas deficiências do ambiente ao qual a criança pertencia.
Atualmente, os estudos realizados com crianças de camadas de baixa renda, como os que realizamos no mestrado em Psicologia Cognitiva da Universidade Federal de Pernambuco, permitem apontar para outros aspectos dessas crianças que, se não mostram desempenho idêntico ao das crianças de classe média ou alta em tarefas do tipo piagetiano, apresentam ótimos resultados em tarefas que fazem parte de seu dia-a-dia e que exigem conhecimento lógico matemático equivalente. Esperamos que as conseqüências destes estudos levem ao desenvolvimento de uma educação que investigue o conhecimento e que procure transmitir o ensino escolar com base no que a criança já sabe. Essa atitude se refletirá certamente na melhor compreensão da criança quanto aos conteúdos escolares e, conseqüentemente, no seu redimento. A segunda contribuição é mais teórica, porém tem implicações importantes. Os estudos têm demonstrado que é necessário considerar a cultura como tendo um importante papel no desenvolvimento do conhecimento da criança. A dicotomia, tradicional na epistemologia, entre o sujeito e o objeto tem se mostrado incompleta para compreendermos o conhecimento das pessoas. Entretanto, ainda não compreendemos com precisão esse papel da cultura.
"Existe ou não diferença no desenvolvimento lingüístico e cognitivo entre as crianças de classe alta e baixa? Qual é o papel do meio sócio-cultural nesse desenvolvimento?"
David e Analúcia- Ao avaliarmos crianças de diferentes classes sociais através das tarefas piagetianas, temos encontrado um desempenho inferior entre as mais pobres. Isto tem levado alguns educadores ou pesquisadores à conclusão de que o fracasso escolar é causado pelo atraso no desenvolvimento cognitivo. Mas os atrasos encontrados não são preocupantes e certamente não explicam os índices altos de fracasso escolar da primeira série. Portanto, seria incorreto inferirmos que o fracasso escolar das crianças pobres explica-se em termos de deficiências cognitivas. Nem os estudos e nem o bom senso sugerem a possiblidade de que quase a metade das crianças brasileiras são intelectualmente deficientes.
O fracasso escolar
Vale lembrar aqui o estudo realizado em Recife, cujos resultados foram publicados no artigo "Fracasso Escolar : uma questão social" (Cadernos de Pesquisa, n° 45, maio 1983). Neste estudo, os autores compararam crianças de classe baixa com crianças de classe média que tinham recebido instrução escolar equivalente em matemática. Tanto o desempenho nas tarefas piagetianas quanto a compreensão de matemática nos dois grupos, para quase todas as tarefas, não diferiam significativamente. No entanto, o índice de reprovação escolar quase inexistente no grupo de classe média atingiu cerca de um terço das crianças de classe baixa. Neste estudo, as crianças de classe baixa eram, em média, dois anos mais velhas do que as de classe média e podem ter atingido a compreensão das tarefas piagetinas com algum atraso. Mas, ao entrarem na escola e ao serem avaliadas, já haviam alcançado o mesmo nível das outras de classe média. Assim, o fracasso delas nos exames escolares não pode ser atribuído nem a atrasos em seu desenvolvimento cognitivo e nem à sua incapacidade para compreender matemática.
O atraso não é deficiência
É igualmente importante distinguirmos entre atraso e deficiência. Uma criança pode estar atrasada no desenvolvimento motor, social ou intelecutal sem ser deficiente. Na verdade, os estudos realizados por nosso grupo sobre as bases cognitivas da alfabetização, mostram que um semestre de aulas é suficiente para equiparar as crianças, que pareciam atrasadas, em relação àquelas que apresentavam desenvolvimento mais rápido ao chegar à escola.
Um outro aspecto a ser discutido é que os testes piagetianos ressaltam um certo tipo de competência que parece desenvolver-se em situação escolar. Para uma criança que entra mais tarde na escola, a forma de responder às tarefas piagetianas pode não ser evidente e a resposta errada pode refletir não uma incapacidade para compreender a lógica da tarefa, mas uma incompreensão quanto às intenções do examinador.
"Como vocês vêem, hoje, o debate de suas idéias desenvolvido por Maria Helena Patto e Bárbara Freitag?"
David e Analúcia O debate vem sendo importante para divulgar e analisar dados de estudos recentes, assim como para esclarecer posições. Por exemplo, no nosso caso, o debate permitiu deixar claro que não somos piagetianos. Como Piaget, estamos preocupados em esclarecer problemas sobre como o conhecimento se desenvolve e, como ele, adotamos uma perspectiva construtivista. Do ponto de vista metodológico, também adotamos o método clínico ou método crítico piagetinao. Mas não nos limitamos, em nossa análise, à teoria piagetiana ou às tarefas desenvolvidas pela escola de Genebra. Outras perspectivas são utilizadas, as quais podem contradizer mesmo a posição de Piaget, e outros conteúdos, principalmente os conteúdos escolares, que fazem parte dos nossos estudos. Os dados estão aí e nem sempre se enquadram na perspectiva piagetiana.
"Como os estudos piagetianos brasileiros podem orientar políticas educacionais ?"
David e Analúcia Preferimos mudar um pouco a pergunta, nos seguintes termos: "Como os estudos sobre a maneira pela qual a criança aprende podem orientar políticas educacionais?" . Os estudos piagetinos ou não - piagetianos são necessários para o planejamento educacional. Mas, para aproveitar estes estudos, não é suficiente apenas adotar recomendações gerais ou adotar uma ou outra posição. É preciso discutir detalhes técnicos sobre a aquisição de conhecimentos específicos e propor mudanças e atividades específicas nos currículos e na sala de aula.
Por exemplo, os estudos que temos realizado sobre o conhecimento matemático, com crianças que têm dificuldade de aprender a Matemática ensinada na escola, mostram como essas mesmas crianças, na prática, desenvolvem e utilizam conhecimento matemático de complexidade equivalente à da matemática escolar. A análise das dificuldades específicas que as crianças encontram ao lidar com as convenções escritas do sistema decimal e dos algoritmos têm possibilitado propor atividades para a sala de aula, as quais levam em conta o que a criança já sabe e que foi aprendido fora da escola.
* Terezinha Nunes Carraher não pôde participar desta entrevista, por motivo de viagem.