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Psicologia: ciência e profissão
versão impressa ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.8 n.2 Brasília 1988
Uma análise psicológica dos acidentes
Os acidentes de trabalho têm sido objeto de ação profissional, sobretudo dos médicos. De fato, a atuação do psicólogo nessa área não existe ainda, porém poderá passar a existir se o psicólogo demonstrar qual é o seu âmbito de ação na melhoria do atendimento à saúde do trabalhador. Uma comprovação desta possibilidade é encontrada num trabalho da psicóloga Marina Soares Rodrigues, que defendeu uma tese de Mestrado no Instituto de Psicologia da USP, O acidente de trabalho: um enfoque psicológico, na qual explica os mecanismos e significados psicológicos subjacentes aos acidentes ocupacionais. A seguir, reproduzimos alguns trechos desta tese:
" O acidente pode ser entendido como uma tentativa de afirmação do sujeito. Por que esta afirmação ocorre através de uma mutilação?
O acidente é uma forma de alienação e a alienação é um acidente que mutila um processo. O acidente é um fato empírico e como tal indiscutível, mas é também um acontecimento humano e, portanto, um símbolo, uma mensagem que expressa em um nível diferente a alienação que o precedeu. O acidente é uma forma mutilada de expressar uma vocação inevitavelmente humana.
O acidente, entendido como um sintoma, é a afirmação pelo avesso de uma identidade que não encontra o seu direito, como o negativo de uma fotografia que revela um positivo vazio. O acidente constitui uma alternativa possível talvez, a única do ponto de vista da estrutura da organização social a que o trabalhador recorre, sem saber, como um projeto para sair do anonimato. O anonimato de si próprio. O trabalhador sente que existe, que é alguma coisa, através do que concretamente ele perde, pois o que ganha só faz aumentar o abismo existente entre ele e a consciência de si mesmo, ao perpetuar uma existência vazia de projetos. O trágico é uma resposta à monotonia do trabalho e da vida.
A ansiedade persecutória, que se relaciona com o medo de perder o emprego e com as exigências de quantidade e qualidade, próprias da atividade produtiva, funciona como uma defesa ao aparecimento da ansiedade confusional. Esta é mais central, mais desagregadora e está mais próxima da sensação de loucura que, de certa forma, passa a ser a morada onde reside a vida.
O trabalho torna-se o depositário da parte psicótica do trabalhador, dos aspectos mais regredidos e infantis de sua personalidade. Propomos o conceito de não-eu-profissional para designar o processo, através do qual a dependência e a agressividade do trabalhador ficam contidas no vínculo de trabalho e, portanto, administradas de fora para dentro. Trata-se dos aspectos conflitivos da realidade emocional do trabalhador que não podem ser metabolizados ao nível do ego e que, quando emergem, causam uma sensação de caos no equilíbrio psíquico pré-existente. O acidente de trabalho focalizado do ponto de vista da estrutura emocional do trabalhador está ligado à emergência deste núcleo psicótico, que nos acostumamos a denominar como o retorno do reprimido
A monotonia, a apatia e a dependência são a crosta ou a epiderme de um tumor que, quando vem a prumo, revela o caráter psicótico, oculto, presente nestas manifestações de submissão. A submissão psicótica é o avesso da agressividade, contida, reprimida e mantida sob controle a partir de fora. Aqui há um compromisso entre o empregador e o empregado que não está explícito no contrato de trabalho, mas nem por isso deixa de estar contido no vínculo de trabalho. Este acordo mudo parece ser uma questão importante a esclarecer, quando se pretende conhecer melhor o vínculo psíquico que une o trabalhador ao trabalho.
Poderíamos dizer que está em jogo o destino da agressividade do trabalhador: durante o tempo em que ele estiver empregado ele estará sob controle do empregador, que habilmente acrescenta à administração dos seus bens a posse da agressividade do trabalhador, consumando assim a sua castração. (...)
Não é possível pensar o acidente de trabalho sem considerar a relação entre empregador e empregado ou, num outro nível, entre Capital e Trabalho. O que se constata é a existência de uma relação parasitária, profundamente mutilante tanto para quem se deixa parasitar quanto para quem parasita. Esse é o modelo de relação simbiótica, necessária nos primórdios da vida, mas monstruosa quando persiste como única forma de existência ao longo da mesma".
Mais do que explicar os mecanismos e significados, psicológicos subjacentes aos acidentes de trabalho, a psicóloga Marina Soares Rodrigues sustenta que pode ser desenvolvida uma atuação preventiva. Esta prevenção é possível na medida em que se explicitam os mecanismos e significados psicológicos dos trabalhadores com maiores riscos de acidentes ocupacionais. Tal atuação do psicólogo não é adotada pelos órgãos "oficiais", mas estudos, como este de Marina Soares Rodrigues, demonstram (mais do que sua viabilidade) sua preemência em termos de relevância social, quando se considera o número elevadíssimo de trabalhadores brasileiros transformados acidentados ocupacionais.