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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.9 n.2 Brasília  1989

 

O diálogo em quadrinhos - (como recurso para psicodiagnóstico e para psicoterapia)*

 

 

Marina Tschiptschin Francisco

 

 

A análise de crianças através do brinquedo, desenvolvida e explicitada por Melanie Klein (de uma forma mais elaborada em 1953), propõe uma técnica de interação terapeuta-paciente em que os movimentos lúdicos do paciente com brinquedos, jogos, objetos e desenhos são interpretados pelo terapeuta, havendo da parte deste último o mínimo envolvimento possível na atividade lúdica e o máximo empenho em atuar apenas no papel neutro de observador e intérprete.

Já em D.W. Winnicott (1971) encontramos a explicitação de uma proposta mais participante, da parte do terapeuta: "A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar — a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em conseqüência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar, para um estado em que é." Em outro trecho, Winnicott dá mais uma amostra de sua crença na participação mais ativa do terapeuta na eliciação da vitalidade no comportamento lúdico de seus pacientes: "Um psicoterapeuta talvez se abstivesse de brincar ativamente com Diana, tal como fiz, quando lhe disse ter ouvido o ursinho falar algo, e também quando falei sobre os sonhos dos brinquedos espalhados pelo chão. Mas essa disciplina auto-imposta poderia ter eliminado um pouco do aspecto criativo da experiência clínica de Diana".

Na mesma linha de uma proposta mais participante da parte do terapeuta, encontramos H. Racker (1981), que assim se expressa: "O processo analítico de transformação depende, pois, em bom grau, da quantidade e qualidade de eros que o analista pode mobilizar por seu paciente. É uma forma específica de eros, é o eros que se chama compreensão, e é, além disso, uma forma específica de compreensão. É, antes de mais nada, a compreensão do rejeitado, do temido e odiado no ser humano, e isso graças a uma maior força de luta — uma maior agressão — contra tudo que encobre a verdade, contra a ilusão e a negação, em uma palavra: contra o temor e o ódio do homem para consigo mesmo e suas conseqüências patológicas. Mas valem também para o analista as palavras daquele homem, cujo nome é o mesmo da cidade em que nos encontramos reunidos, São Paulo, que dizem: — Ainda que eu fale todas as línguas dos homens, e a linguagem dos anjos, porém sem amor, será como um metal que soa ou sino que toca".

É neste clima de maior participação que se insere minha experiência de diálogo diagnóstico e terapêutico em quadrinhos.

 

Condições e procedimento

Trata-se de uma experiência que venho desenvolvendo há alguns anos, esporadicamente, com alguns pacientes que apresentam características bem peculiares: são pacientes que têm facilidade para a expressão através do desenho, e, paralelamente, têm dificuldade para a expressão verbal; ou então, são pacientes que, em certos momentos, podem estar verbalmente bloqueados, e, através do desenho, conseguem um grau maior de liberarração do inconsciente; ou, ainda, são momentos do processo terapêutico em que a interação verbal fica pobre e reclama uma intervenção mais motivadadora.

O recurso da quadrinização depende, é claro, de uma facilidade na expressão gráfica por parte do terapeuta. Uma disciplina básica tem-se revelado útil na minha experiência com quadrinhos: o respeito ao traçado e ao estilo do paciente, de modo que a minha atuação seja apenas uma conseqüência natural do movimento do paciente, minimizando-se o risco do meu traçado vir a ser inibidor.

Aqui vai um exemplo:

 

 

Em seu quadrinho, a paciente mostra sua sensação de abandono na situação transferencial, acreditando que o Sol (a terapeuta) brilha apenas para alguém outro. Isso foi interpretado verbalmente, e, em seguida, foi desenhado o quadrinho da terapeuta, que atuou interpretativamente — foi quando o Sol se aproximou da paciente, deixando sua competidora esfriar. Como podemos ver, o modelo de relacionamento da tríade oferecido pela terapeuta segue o modelo existente na paciente, por ela evidenciado no quadrinho anterior — um modelo em que há sempre um favorecedor, um favorecido e um rejeitado.

Como observamos, há uma alternância entre os desenhos do paciente e os do terapeuta, sendo estes últimos importantes elementos interpretativos e, muitas vezes, mobilizadores.

Cabe destacar que a atuação verbal do terapeuta, espelhando e interpretando verbalmente, está presente: é uma atuação verbal e gráfica.

 

MATERIAL CLÍNICO

Caso I

Este é um menino de 11 anos — F. , obsessivo em seus hábitos de higiene pessoal, extremamente "frio" e controlado em sua comunicação social (parecia um oficial da S.S. às primeiras consultas), assediado por terrores noturnos. Sua incomunicabilidade verbal, à época do diagnóstico, aliada a um talento gráfico acentuado, sugeriu o uso do desenho já então, sendo o recurso dos quadrinhos utilizado como coadjuvante à bateria de testes projetivos. Durante as sessões psicoterápicas, mais uma vez o recurso aos quadrinhos se fez necessário, para mobilizar e vivificar uma situação transferencial bloqueada.

 

 

No quadrinho à esquerda, encontramos o paciente aparentemente querendo soltar seus conteúdos internos. No quadrinho da direita, a terapeuta apenas segue o movimento por ele iniciado, liberando o balão dos limites do papel. Vamos imaginar que o terapeuta, ao invés de desenhar, observasse apenas: "Estou vendo que você quer soltar êsse balão", e deixasse que o próximo quadrinho fosse do próprio paciente. Provavelmente, pelo que conheço do caso, o desenrolar da história não seria tão esclarecedor como o foi:

 

 

Vemos, na seqüência acima, como a hipótese do "soltar" é ansiógena e ameaçadora, e como a autodestruição funciona como mecanismo de defesa, inibindo e bloqueando. Vemos, também, como a vida da terapeuta, na situação transferencial, é, da mesma forma, objeto de ataques. O que se confirmava no "gelo" freqüente aplicado à terapeuta.

A seguir, mais um exemplo, realizado em conjunto com F., de como a simples acentuação de um movimento, por parte do terapeuta, propicia a emergência e a compreensão do inconsciente. A seqüência abaixo foi iniciada quadrinhos antes. Naquele início verificou-se a gradativa transformação de um personagem adulto assertivo, onipotente e até destrutivo, numa criança indefesa e inofensiva, em clara defesa contra a culpa persecutória.

Trata-se, como podemos observar, de um movimento regressivo dentro do qual está implícito um projeto de entrega num nível bem primitivo. Trata-se também de um movimento reparador — com relação à destrutividade anteriormente expressa e aos danos causados à terapeuta, na situação transferencial.

 

 

Aqui vai mais um trecho, feito numa outra ocasião com F., ilustrativo desse movimento regressivo que é em parte defesa, em parte uma tentativa de reparação:

 

 

Caso II

Aqui temos D., um menino de 8 anos, extremamente ansioso, cujos sintomas mais preocupantes, à época em que foi trazido pelos pais, eram: dificuldade em fazer amigos, insatisfação constante e fobia noturna. Verifiquei, logo às primeiras sessões, sua necessidade compulsiva de me destruir, que se exprimia por um comportamento inexaustível de destruição simbólica, sem variação e sem alívio; ao contrário, com exacerbação dos sentimentos de culpa persecutória, e a derivada necessidade de responder na mesma moeda. Minhas interpretações tinham pouca ou nenhum penetração nesse círculo vicioso de ataque — culpa persecutória-novo ataque. Ao propor o desenho, verificou-se um alívio e uma brecha. O menino não desenhava, mas apenas propunha a seqüência dos quadrinhos, e, aparentemente, tinha grande prazer em ver seus sonhos "produzidos". Minha interferência interpretativa era agora melhor aceita, produzindo momentos como o seguinte:

 

 

 

 

Na seqüência acima, ficou registrado para a posteridade (isto é, para futuras referências, caso necessário) um raro momento dentro de sua agitada vida psíquica, marcada pela perseguição interna. Trata-se de um raro momento de trégua, em que as defesas se relaxam (as balas não chegam a perfurar a vítima) e o paciente reconhece suas carências, sua sede de amor e de proximidade com relação a um objeto que, de perseguidor, torna-se desejado.

Caso III

R., um rapaz atualmente com 23 anos, cuja história clínica remonta há 20 anos, quando era uma criança tipicamente autista: não se relacionava com pessoas, não controlava os esfíncteres, reagia à dor protestando contra o instrumento que a produzia-e não contra a pessoa que o havia ferido; tinha hábitos peculiares de alimentação e apresentava o típico "balanceio" de auto-estimulação. Paralelamente, já apresentava algumas capacidades superdesenvolvidas: estava aprendendo a ler sozinho, e apresentava grande aptidão para o desenho, concomitante à memória fotográfica característica dessa população.

R. foi tratado desde os 4 anos dentro de uma abordagem comportamentalista, por outra profissional, com muito sucesso no que se refere à aquisição de comportamentos desejáveis. Veio ter comigo há uns 4 anos, para um trabalho mais centrado em suas emoções e em seu inconsciente. Desde logo, o aproveitamento de seu pendor para o desenho revelou-se interessante para fins terapêuticos; desenhando, ele é muito mobilizado e seus conteúdos inernos afloram com vigor:

 

 

No quadrinho da esquerda, vemos R. se mirando em sua criação —a letra inicial de seu nome - e imprimindo-lhe vida própria, com grande satisfação narcisista. No quadrinho da direita, o terapeuta simplesmente acentua a "vida própria" de sua criação, uma "vida própria" servil, em que as criações servem aos propósios de auto-suficiência narcísica do paciente (na situação transferencial, eu sou, freqüentemente, uma criação sua).

 

 

A seqüência é então coroada pelo desfecho em que fica bem claro esse projeto nascísico:

Com essa clareza, fica fácil mostrar ao paciente sua incomunicabilidade básica, relacionando-a, por exemplo, à situação transferêncial.

 

Discussão

Ao compararmos este recurso com outros recursos projetivos gráficos (como, por exemplo, o Teste da Árvore, o Teste da Figura Humana, o H.T.P., o Desenho Livre e, já num outro extremo mais rico, o Wartegg e o Walter Trinca), verificamos que ele acrescenta algo novo aos demais: uma plasticidade ao longo do tempo. Enquanto os demais recursos tendem a pegar "flashes" do psiquismo, à maneira de uma máquina fotográfica, este recurso pega o psiquismo em movimento, à maneira de uma videofilmadora.

E, o que é mais importante, permite a criação de "trechos" novos, graças ao diálogo travado. Nos "trechos" novos surgem nova vida e novos ângulos do psiquismo, num enriquecimento diagnóstico a respeito de dificuldades e possibilidades.

Onde termina o diagnóstico e onde começa o diálogo terapêutico? Neste procedimento quadrinizado, os dois parecem indissolúveis, assim como num diálogo psicanalítico o diagnóstico e a ação terapêutica são indissolúveis e se processam concomitantemente, a cada passo. Portanto, vejo aqui um recurso útil para o psicodiagnóstico (como coadjuvante de uma bateria de testes projetivos) tanto quanto para a psicoterapia.

Tenho usado variantes desta técnia, segundo as condições oferecidas por diferentes pacientes, e segundo os diferentes momentos de um paciente.

Uma dessas variantes consiste na composição de apenas um desenho, em conjunto. Um dos dois, ou o terapeuta, ou o paciente, inicia o desenho com um elemento. Em seguida, o outro adiciona um detalhe. E assim, os dois vão se revezando, numa produção dialogada. Segue-se um exemplo que foi confeccionado por F. (Caso I) e por mim:

 

 

Nesse quadro dialogado, vemos a evidência da defesa onipotente de F. , diante da figura feminina ameaçadora, projetada sobre a terapeuta.

Outra variante consiste na confecção da história em quadrinhos apenas pelo paciente, sem a interferência gráfica do terapeuta. Este último é apenas a testemunha, o comentarista, o dialogador e intérprete.

Ainda outra variante é aquela que já vimos no caso D.- a história em quadrinhos é confeccionada exclusivamente pelo terapeuta — instruído pelo paciente. E quando o paciente pode assumir o papel de "produtor" de sua vida onírica — com todas as implicações desse papel.

As possibilidades que se oferecem ao diálogo quadrinizado para fins diagnósticos e terapêuticos são muitas. Fica evidente que a liberdade interior do terapeuta, bem como sua criatividade, são fundamentais para a abertura e exploração desses horizontes.

Posso visualizar, por exemplo, a utilização desse recurso por qualquer tipo de posição teórica, pois o fundamental é a proposta visual de captação dos movimentos internos, tanto do paciente quanto do terapeuta.

Como podemos observar, através dos exemplos dados, a interação se torna muito viva. A linguagem do desenho é uma linguagem que enseja a emergência do inconsciente, mais que a verbal — está última tão propícia à racionalização. E, o que é mais empolgante, emerge, como nunca, o inconsciente do terapeuta, trazendo consigo toda a força mobilizadora que lhe é inerente. E quando o terapeuta sonha com o paciente — entra no sonho do paciente e propicia uma co-produção em níveis profundos muito significativos. E é aqui que aparece mais uma peculiaridade desta forma de trabalho: o terapeuta aparece com seu mundo psíquico — o que é muito útil para sua auto-análise e auto-monitoração. Isso traz seus percalços: é quando, muitas vezes, dado o empuxo, vazam os desejos do terapeuta, numa contra-transferência atuada. O que, além de ser elucidativo para a auto-análise do terapeuta, pode também emprestar sua contribuição ao processo: o paciente tem então a oportunidade de ver aquilo que reprimiu "encarnado" no terapeuta — podendo, assim liberado, expressar-se mais facilmente no papel complementar por ele elegido. Vejamos um exemplo disso, no qual o desejo do paciente é assumido pelo terapeuta:

 

 

Na seqüência acima, vemos a terapeuta tendo recebido uma carga de hostilidade do paciente, sucumbindo a essa carga e, evidentemente, desejosa de clemência e proximidade. Ao que, no próximo quadrinho, o paciente responde assumindo hostilidade total, reproduzindo dramaticamente seu modelo interno das polaridades agressor-agredido (rejeitador-desejante),que tanto o paralisa na vida real. E a coisa vai num crescendo... ... até o ponto em que fica bem evidenciada a aniquilação interna em que vive o paciente, resultante de uma hostilidade que se reverte numa autodestruição. Quadro anterior.

 

 

Resumo e conclusões

Este trabalho consiste na apresentação de uma proposta de abordagem diagnóstica e terapêutica em quadrinhos, cuja seqüência é elaborada conjuntamente por paciente e terapeuta, e ao longo da qual vai se evidenciando e tomando forma o movimento interior do diálogo assim estabelecido. Esta forma de trabalho seria um coadjuvante a outras formas diagnosticas e terapêuticas inseridas dentro da linha teórica preferencial do terapeuta. Apresento material clínico ilustrativo deste procedimento.

O presente trabalho tem o objetivo de estimular um diálogo quadrinizado com estudantes e profissionais de psicologia, para que esse recurso seja eventualmente mais explorado.

E faço minhas as despedidas de R. (Caso III), que nega maniacamente suas rupturas, fazendo tudo desembocar num final feliz:

 

 

BIBLIOGRAFIA

KLEIN, Melanie — "A Técnica Pisicanalítica através do Brinquedo — Sua História e Significado" — baseado em uma comunicação lida a 12 de Fevereiro de 1953 no Royal Medico-Psychological Association; inserido em Novas Tendências na Psicanálise, 1955.        [ Links ]

WINNICOTT, D.W. — O Brincar e a Realidade Rio de Janeiro. Ed: Imago, 1975.        [ Links ]

WINNICOTT, D.W. — O Ambiente e os processos, de maturaçãoEstudos sobre a Teoria do Desenvolvimento Emocional. Londres, 1979.         [ Links ] ROCHER, Heirich — Estudos sobre a Técnica Psicanalítica Porto Alegre, Artes Médicas, 1981.        [ Links ]

 

 

* Trabalho apresentado em Novembro/1988 no CONPSIC