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Psicologia: ciência e profissão
versão impressa ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.9 n.3 Brasília 1989
Política social e publicização da Educação
Dermeval Saviani é professor na Faculdade de Educação da UNICAMP e prestou o seguinte depoimento:
Entendo que a elaboração de políticas educacionais hoje enfrenta várias ordens de desafios.
A primeira ordem é anterior à elaboração de políticas educacionais e está vinculada ao lugar que a política social (e dentro desta política educacional)ocupa na política global. Parece-me que o desafio que se põe aí poderia ser traduzido na seguinte expressão: a exigência da publicização do Estado.
Sabemos que, nas sociedades capitalistas, o Estado acaba sendo colocado a serviço de interesses privados das classes dominantes. No Brasil, essa questão assume vultos maiores dado que o Estado tem sido acionado freqüentemente para socorrer a iniciativa privada, como o ilustram os casos em que os recursos do Tesouro Nacional são usados para "cobrir rombos" de empresas privadas que são liquidadas extra-judicialmente.
Para reverter tal quadro, a proposta de publicização do Estado consiste em encaminhar a ação do Estado para as iniciativas que dizem respeito ao interesse público. Neste sentido, ainda anterior à elaboração de políticas educacionais, devemos tratar da justiça tributária que envolveria a correção da distorção atual em que o tipo de imposto predominante, no Brasil, é de caráter regressivo, ou seja, quem ganha menos paga mais imposto. A forma predominante de captação de imposto está ligada ao ICM e ao IPI que incidem sobre o produto final, fazendo com que, ao serem obtidos pela mesma alíquota, penalizem os que ganham menos. Além disso, o Estado precisaria manter um nível de arrecadação adequado e, portanto, um outro imperativo é a criação de mecanismos impedidores de sonegação.
Se o Estado arrecada recursos suficientes para cumprir com os seus deveres para com a sociedade e, assim, responde às demandas da sociedade em função dos interesses públicos, as chamadas políticas sociais se tornariam a ação dominante do Estado. No âmbito das políticas sociais, a Educação poderia assumir um lugar prioritário. Esse é o grande desafio que diz respeito às condições prévias à elaboração das políticas educacionais. No fundo, isso significa a necessidade de que a Educação seja definida no âmbito da política do Estado como uma prioridade não apenas de direito, mas também de fato. Atualmente sabemos que a Educação é definida como prioridade de direito, o que se evidencia nos discursos políticos onde ela aparece como uma das prioridades, mas de fato ela deixa de ser traduzida em prioridade. Pela distribuição dos recursos e pela composição dos orçamentos, é possível verificar como uma prioridade, nos discursos, deixa de ser prioridade, de fato, na prática política. Esse me parece ser o primeiro grande desafio a ser enfrentado na elaboração de políticas educacionais.
Uma segunda ordem de desafios é interna à elaboração de politicas educacionais e diz respeito à definição das prioridades no próprio campo da Educação. Nestes termos, o primeiro grande desafio é a universalização do ensino fundamental. Essa é uma questão que os principais países resolveram no século passado, mas no Brasil não se resolveu até hoje.
Ligado a esse desafio, podemos situar um outro que diz respeito à construção e consolidação de um sistema público de Educação, articulado em seus diferentes ramos, níveis e modalidades. Obviamente, esse nível relaciona-se com o anterior porque a universalização do ensino fundamental se efetivará na medida em que se consolidar o sistema público de Educação.
Decorrente destas duas grandes metas da política educacional, parece-me possível colocar uma terceira ordem de desafios que diz respeito à definição e implementação de mecanismos capazes de direcionar as ações educativas para as questões essenciais, libertando-se das questões secundárias. Em outras palavras, trata-se de criar mecanismos que permitam corrigir uma certa distorção predominante hoje na política educacional de nosso País, que envolve um cuidado com questões secundárias e o esquecimento de questõs essenciais. A atual política educacional tem enfatizado muito mais determinadas formas e ênfases na máquina burocrática do que nas finalidades que a Educação deve atingir. Nos últimos anos, a tendência da política educacional foi a de destinar recursos para a máquina burocrática, secundarizando os personagens centrais no processo educacional que são os professores e os alunos. Nesse âmbito, um desafio para a política educacional é o de priorizar a formação e o exercício do magistério. Por exemplo, canalizar recursos para possibilitar uma formação adequada de professores assim como propiciar condições adequadas de exercício do magistério, o que envolve uma política salarial e de regime de dedicação docente que permita aos professores realizar um trabalho satisfatório.
Atualmente, existe uma séria distorção de todo um conjunto de medidas de apoio que supostamente são necessárias para a Educação atingir os seus objetivos. No entanto, elas acabam ocupando um lugar central e diluem a consistência do trabalho pedagógico na Educação em geral e, em particular, nas escolas, conforme é posta em prática pelas Secretarias da Educação. Por exemplo, a merenda escolar é colocada como elemento importante para garantir o processo de aprendizagem e, então, ocupa-se um tempo do período escolar para a distribuição e o consumo da merenda escolar. Ocupam-se os professores, geralmente, para a distribuição da merenda e, às vezes, até para a confecção dela. Então me parece que a política educacional deveria envolver uma ampliação da jornada escolar, de modo que essas necessidades fossem atendidas sem prejuízo do tempo de trabalho pedagógico. De outro lado, também deveria envolver o pessoal de apoio para dar conta do serviço, sem que essas atividades fossem atribuídas ao próprio corpo docente. Além disso, estas exigências não especificamente pedagógicas deveriam envolver recursos próprios, eventualmente, até não-oriundos da Secretaria da Educação, mas oriundos da Secretaria do Bem-Estar Social, por exemplo.
O planejamento do calendário escolar também leva a esse tipo de inversão de prioridades. À medida que se dá importância para as comemorações, é freqüente haver a suspensão das aulas sob o argumento de que elas também têm um sentido pedagógico. Recentemente, numa palestra minha para Secretários da Educação, exemplifiquei esse problema das comemorações, mostrando como o ano escolar se inicia em fevereiro e se seguem comemorações após comemorações. Quando o ano escolar se encerra e se pergunta sobre as atividades de ensino da escola, aí se descobre que, na verdade, o tempo não foi suficiente. Então, as atividades secundárias acabaram ficando no lugar das atividades principais. Em suma, os pontos acima levantados constituem a terceira ordem de desafios que diz respeito aos meios que devem ser implementados para a realização das metas prioritárias.
Uma quarta ordem de desafios diz respeito aos agentes formuladores de política educacional. A quem cabe formular a política educacional? Cabe apenas aos representantes da sociedade política? Aos membros do aparelho governamental? Ou essa tarefa deve envolver também a sociedade civil através de suas entidades representativas?
Aqui o grande desafio é justamente o de encontrar mecanismos mais democráticos para a formulação de políticas educacionais que permitam a participação das entidades representativas da sociedade civil, de modo especial, aquelas que estejam diretamente envolvidas na realização das ações educativas. Aí eu daria destaque especial para as entidades representativas do magistério e dos profissionais ligados à educação, assim como para as entidades dos destinatários da educação. Nesta perspectiva, envolveriam os próprios Sindicatos dos Trabalhadores na medida em que detêm o contingente principal dos destinatários da Educação pública, os quais deveriam participar, de alguma maneira, do processo de elaboração das politicas educacionais.