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Psicologia: ciência e profissão
versão impressa ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.14 n.1-3 Brasília 1994
O processo de criação na produção literária: um depoimento
Ana Cecília Carvalho
Professora no Depto do Psicologia da UFMG, psicanalista, escritora
" a verdade seja lá qual for, só é acessível pela mentira, pela trapaça, pela invenção e pela imaginação da arte ..."
Ítalo Calvino, " Para ler os clássicos"
"a linguagem literária perde o mundo para recriá-lo melhor"
Leyla Perrone-Moisés, "Flores da escrivaniha"
A complexidade do tema que nos reúne aqui hoje para esta discussão sobre o processo de criação na produção literária, tem sido para mim objeto de constante reflexão. Descobrir a natureza da criação literária, compreender aquilo que a movimenta e sustenta, conhecer as razões do processo criativo, tudo isso tem sido fonte de uma indagação que frequentemente me provoca uma curiosidade e uma inquietação. A necessidade de proceder a um tal exame justifica-se sempre que, diante desse questionamento, um dilema se coloca: devo falar sobre a criação literária como escritora ou como psicanalista? De qualquer forma, prefiro limitar-me nesta oportunidade, em trocar com vocês algumas idéias sobre a criação literária -a título de um depoimento - sem pretender dar a esta exposição um alcance geral ou genérico a partir apenas de uma experiência pessoal.
Poderia começar esta reflexão escolhendo me colocar como escritora, de onde eu lhes falaria de dentro do poço secreto de onde brotam os textos desse "caldeirão fervilhante", onde paixões e silêncios misturam-se para deixar escapar a criação literária. Mas, se assim o fizesse, o resultado talvez fosse a produção da história de uma escritora, ocupada em escrever sobre uma psicanalista que reflete sobre uma escritora, que escreve sobre o processo de escrever... Ou seria o contrário? Ficção interessante, mas mater-nos-ia ignorantes a respeito da química dos ingredientes do caldeirão.
Certamente deve haver uma saída para esse labirinto borgeano - e esta talvez seja encontrada se nos valêssemos do aparelho conceitual da psicanálise - esse "método que nos permite vislumbrar processos dificilmente acessíveis de outro modo". O risco aqui infelizmente, é reduzir todo o processo de criação literária dentro da série de produções psíquicas originadas na vida inconsciente, que vão desde os lapsos de língua mais banais, passando pelos sonhos de toda noite, e pelas fantasias, até chegar aos sintomas mais aborrecidos da clínica cotidiana. Sabemos que, vista pela ótica psicanalista, não seria incorreto afirmar que toda criação artística não difere, quanto à origem, de nenhuma dessas produções ou atos psíquicos que enumerei. Já nos acostumamos a incluir irrefletidamente a criação artística, como sublimação, na mesma série psíquica dos "sintomas"1, ao lado dos esquecimentos comuns e dos sintomas psicopatológicos mais tenazes.
Poderíamos ingenuamente argumentar que a criação artística, como sublimação, é um sintoma "melhor" que os outros, condenados à solidão individual pela vergonha e pela censura do neurótico - uma vez que a sublimação expressa de uma maneira mais "feliz", ou seja, fora da repressão (reconhecemos aqui o curioso parentesco entre a sublimação e a perversão, duas das várias formas de destino da pulsão), os mesmos conflitos que os sintomas patológicos tentam expressar com um dispêndio enorme de energia e quase sempre voltados ao fracasso. No entanto, como analistas, não recomendamos que nossos clientes escolham o caminho da sublimação, em vez de escolherem o caminho da formação de sintomas e das doenças. E, mesmo se o fizéssemos, não faríamos deles artistas criadores.
Vejam vocês onde o dilema vai nos levando. Nesse ponto não seria descabido pensar, como simples cacoete de psicanalista, qual o significado de abordar assim o tema dessa exposição, colocando-o sob a forma de um dilema, isto é, de um conflito, de uma oposição entre duas partes, cada uma procurando manifestar-se de um jeito, sendo que a solução final teria de ser inevitavelmente uma barganha - cada uma ganhando, mas também perdendo um pouco.
Como há muito tempo esse conflito me persegue, sempre que sou indagada sobre questões como as de hoje, não nos surpreenderemos ao constatar que ele provém de uma divisão interna, resultando em faces que, se não são divergentes ou opostas, são muito diferentes.
Acontece que sendo uma psicanalista, posso fazer uma coisa de que gosto muito: ficar quieta e escutar histórias. Na clínica, não sabemos no início que história resultará dali. Mas a autoria é do cliente, embora se possa sempre pensar em uma espécie de co-autoria nessa situação. Talvez, tomando emprestado a definição de um jornalista em análise, o trabalho do analista é como o de um "copy-desk". Modificações num texto escrito por outro autor, só com a permissão expressa deste.
Escrevendo ficção, também faço algo que me agrada muito, que é fantasiar, inventar situações, pessoas, realidades. Como muitos escritores, escrevo estórias desde que comecei a ler, embora o mito familiar deixe escapar de vez em quando a imagem de uma menina que inventava histórias mesmo antes de aprender a ler. Sabemos com Freud2 que há uma continuidade entre a brincadeira infantil, a fantasia e a criação literária e artística.
Como se tudo isso não bastasse, também sou professora de psicanálise, atividade onde não fico nem um pouco quieta, mas pelo contrário, falo bastante.
Não fica difícil ver que nessas três áreas, estamos trabalhando com a palavra, embora resultando na produção de discursos muito diferentes e com efeitos diversos. Não entrarei neste terreno que nos levaria a buscar as nuances dessas diferenças e nos afastaria do tema em debate. Mas, seria interessante refletir numa outra ocasião sobre a produção da palavra distintamente nesse vários campos discursivos.
Assim, a melhor maneira de resolver o dilema para mim neste depoimento, considerando suas limitações, será não privilegiar nem uma dessas faces, e sim colocá-las trabalhando juntas, aceitando-as todas como fazendo parte de uma mesma estrutura incessantemente dividida, ou tri-partida, mas que não funcionaria se uma dessas partes não pudesse se manifestar.
Penso que a capacidade para criar consiste, inicialmente, em organizar partes díspares não só fora de si, mas também dentro de si. A criação literária busca, em primeiro lugar, recriar a partir do caos, dando forma ao que não tem forma. E o que é um texto literário senão uma organização, uma espécie de nomeação muito pessoal de uma realidade muitas vezes caótica e sem sentido? O sem-sentido é freqüentemente a sensação do vazio que se segue a uma perda, ou a uma experiência de ausência, de algo que se calou e se foi, ou que faltou.
Escrever para mim inicia-se como uma tentativa de restauração, de recomposição de uma falta, assim como construir "uma pele imaginária, uma pele simbólica de palavras"3. Lembremo-nos: texto significa tecido. Algo faltou ou foi perdido, apagado, mergulhado numa escuridão que equivale bem a um abismo sobre o qual o escritor sente que precisa estabelecer um elo, levantar uma ponte simbólica que ele acredita, o levará a recuperar algo ou alguém. A necessidade de escrever tanto pode se seguir a uma vivência de luto - e convém ressaltar que não se trata necessariamente de uma perda concreta, mas da captação de um vazio qualquer - como ela é principalmente a tentativa de desvelamento de um não-dito, do deciframento de um enigma, de um segredo, ou de um mito, que pela sua própria natureza, comporta espaço para inúmeras e incessantes versões. A produção literária serve bem a esta necessidade de "nomear o inominável", de dar sentido ao que não tem sentido4, de representar uma ausência, de substituir aquilo que se foi, recuperando-o em outro registro.
Ali onde o mistério do outro nos aparece como enigma, será necessário, a partir desse movimento sedutor da ausência e da presença, produzir uma palavra - isto é, uma tradução, uma significação, ou uma interpretação, a fim de que seja possível sobreviver, retomando esse outro "de dentro"5.
Se a perda é inaugural - e sabemos o quanto a psicanálise acentua esse ingrediente na própria construção de um aparelho psíquico, dela dependendo inclusive todo o acesso à linguagem - é certo também que precisamos superar essa ferida constituinte que a ausência do outro criou dentro de nós. Vê-se, assim, como a sedução do enigma do outro sobre o sujeito tem uma dupla face, "traumática e estruturante"6. Se o vulto dessa coisa perdida nos ocupa inteiros, não podemos respirar, ficamos asfixiados, não há lugar para a palavra: tudo está ocupado. Só o outro fala e a sensação de angústia é insuportável. Para criar, é preciso que se instale uma distância. Curioso paradoxo, porque é como se o escritor estivesse procurando restabelecer a mesma situação de falta e de vazio que gerou toda a necessidade de criar... Não é à toa que muitos escritores se recolhem a um exílio7, a um isolamento físico e mesmo geográfico, para poderem escrever. Mas, é verdade que se trata aqui da busca de um distanciamento interno, onde pode-se reencontrar o silêncio produzido pela distância necessária entre eu e o outro. Esse "espaço" físico ou psíquico, que pode muito bem ser "o quarto para si mesmo" de que nos fala Virginia Woolf 8, deve servir a um propósito lúdico, transicional, pois possibilita, na solidão e na privacidade, a elaboração das rupturas e das perdas9. Nele, o escritor pode, por sua própria conta, explorar com o mínimo de culpa, seus fantasmas, seus próprios segredos e os de outras pessoas; cometer assassinatos; provocar desastres; inventar possibilidades; "contar sua própria versão".
Mas, algo nesse desvelamento nunca pode ser completamente atingido, pois talvez seja da própria natureza do enigma permanecer indecifrado em sua essência. Não é que "as obras mais tocantes são aquelas que apenas sugerem a existência de um tal segredo, que fazem com que o leitor participe dessa busca com sua dupla face de evidência e de incerteza e com um certo fracasso final em compreendê-lo completamente"?10. À semelhança do escritor que sentiu-se impelido a criar por causa do outro enigmático, assim também o leitor deve encontrar no texto uma brecha por onde ele entra e é fisgado para então ele mesmo escrever a história à sua maneira, para que ele possa "reconstruir o texto com a sua leitura"11. O escritor criativo é esse que nos permite compartilhar um prazer estético e que libera "um prazer superior que emana de forças psíquicas bem mais profundas... O verdadeiro prazer da obra literária deriva do fato de que nossa alma é, através dela, liberada de certas tensões"12.
Se da parte do leitor existe "liberação de tensões", fruição de um prazer estético, ou mesmo identificação com o personagem sem haver perda de si mesmo; se buscamos como leitores esse reconhecimento fascinante e mágico de algo profundamente nosso quando lemos uma boa obra literária; se existe essa espera quase erótica que nos prende na direção de um gozo cuja promessa é anunciada mas suspensa ao final do texto, aprisionando-nos na narrativa como o sultão de Sherazade (o adiamento do clímax o faria mais prazeroso! E também nos salvaria da condenação à morte...) -não importa. Disso tudo não tem consciência o autor, ou se o tem, não nos enganemos a respeito da facilidade com que se cria ou se escreve. Quantas vezes é bem na interdição de um prazer imediato que se instala a condição para escrever!13
A criação literária traz a marca do trabalho do luto, por ter de alguma forma "matado" alguém14, tendo o escritor, como vimos, rompido os laços com o outro dentro de si, o que não é fácil, já que a culpa ronda bem próximo. É comum vivermos momentos de "bloqueio", se de uma forma ou de outra não conseguimos calar esse outro dentro de nós, passando por ele na estrada e deixan-do-o para trás. Quantos escritores não vivem o drama que é ter de romper com essa imagem de um ideal dentro de si, seja esse ideal um escritor, um leitor, um pai? Derrubar esse ideal, no sentido preciso de desbancá-lo do alto de sua posição imaginária, enxergá-lo como falível, tudo isso é perigoso, já que acreditamos sermos feitos à imagem e semelhança desse ideal, e se ele cair, arrasta nossa própria imagem junto com ele. Às vezes o que nos salva nessa queda é justamente o anteparo da rede simbólica tecida pelo próprio texto, cuja função é a de "amortecer" o salto, o impacto *.
Não sem uma parcela de sofrimento, ou sem angústia, ou sem dor, pois sabemos como a dor faz parte de qualquer perda, e a perda está na base de toda reconstrução que a escrita busca refazer. No entanto, no trabalho literário e artístico, a dor já terá sido superada pelo prazer, pela sensação de júbilo reconstituinte da própria escrita15.
Além da transformação de uma realidade difícil ou sem sentido, e além da ultrapassagem do outro dentro de nós, a escrita criativa está relacionada com uma outra vertente, que é a de reparação16. Pois, sabe-se que para criar e dar por encerrada a obra, deve-se doála, entregá-la ao mundo, ao qual ela pertence daí em diante. Dar por encerrado um texto significa que devemos nos dispor dele. Mas a economia desse processo só se mantém porque se acreditávamos que causávamos algum dano àquele outro com o qual rompemos, o texto aí está para reparar nele o estrago provocado, e ao mesmo tempo garantir ao escritor outras recomposições das quais falarei a seguir.
Acabamos de escrever um texto, colocamos ali nossa marca registrada, nosso estilo pessoal e absolutamente singular de revelar e ocultar os segredos mais inconfessáveis, e no entanto, já não mais nos pertence - o leitor fará de nosso relato o que bem quiser. Como os filhos, nosso texto um dia vai-se embora. O escritor, assim como a mãe, concebe, gesta seus filhos, trabalha-os para que possam aturar bem as agruras da vida, mas um dia finalmente os oferece ao mundo para que possam seguir seu próprio caminho. Caminho inesperado, de desfecho não antecipável. Livros, assim como os filhos, "edipianos e parricidas"17, doados ao mundo para que nele possam atuar. Essa aparente generosidade tem sua face dupla de narcisismo e de capacidade para suportar a castração, e dessa forma serve a quatro propósitos:
O primeiro, o de eternização, pois não existe pretensão mais narcísica do que a de se imortalizar num livro. Nos caminhos do intrincamento pulsional, Eros mostra aqui uma vitória. Não nos esqueçamos: plantar uma árvore, ter um filho, escrever um livro... Todas essas conquistas não visariam na verdade, a garantir ao narciso dentro de nós que de algum modo driblamos a morte? Cedemos diante dela, mas nossa existência torna-se perene no livro que nos substitui, marcando nossa ausência com a concretude da criação literária.
O segundo, também visando a restauração narcisista imposta pela castração, trata bem de reverter onipotentemente a impotência do escritor diante da realidade. Pois ao escrever, ele apaga a distância entre ele e o mundo, anulando as impossibilidades, tornando-se, como dirá Gilles Deleuze18, nesse eterno devir que é a produção literária, qualquer coisa que o escritor não é; um animal, uma folha, um mineral, um país, uma molécula, ou uma multidão. Disfarçado no texto literário, o escritor se desnudará para se transformar em inúmeras possibilidades dentro ou fora de seu tempo. Ou não, falará de si mesmo, de seu dia-a-dia banal e prosáico, não deixando ao leitor nenhuma alternativa a não ser megulhar nessa experiência tão alheia e estrangeira como familiar. Ao falar de todos, o escritor criativo fala de um, e ao falar de um, todos os outros se reconhecerão. Para isso, é preciso que o escritor se despoje, que por um momento ele não seja mesmo nada, para em seguida, se metamorfosear em qualquer coisa. Terá assim, ao estender os limites de sua pele, apagando toda a diferença, ao mesmo tempo em que, ou em primeiro lugar, a admitiu.
Existe ainda, a partir da noção de conflito psíquico inerente à nossa vida mental, uma outra função para a criação literária, que é a de escoamento de uma certa tensão agressiva, provavelmente a partir daquela mesma vivência de perda ou de falta de que falava há pouco. Vemos essa tensão agressiva se expressar em especial no conto, gênero literário de que mais gosto. O conto tem a característica de fazer com que o leitor sinta, no final, que foi pego de surpresa, deixando em suspense, e que o "perigo" pode saltar a qualquer instante, tornando-se necessário ler de um só golpe, até o final. Esse "elemento surpresa", típico do conto, nos revela que além da reparação e da restauração narcisista que o trabalho literário busca realizar para o escritor, encontra-se esta vertente da agressividade. Sublimada, convém dizê-lo, isto é, tão modificada quanto à sua natureza e seu objetivo, que o leitor nunca poderia dizer que o texto o "atacou", mas certamente sentirá que a leitura de um conto o fascina justamente por tê-lo pêgo desprevenido ali mesmo onde ele imaginava (e já se preparava para) um outro desfecho. Não é à toa que ao terminarmos de ler um bom conto, nós nos sentimos como se tivéssemos "levado um soco".
O quarto propósito, a que já aludi, é o de transformação de realidades externas e internas quase sempre penosas ou decepcionantes. O escritor criativo poderá fazer um sintoma como qualquer um19, diante de possibilidades existenciais limitadoras e difíceis. No entanto, sua característica como escritor criativo, consiste justamente em obter júbilo ao compor as várias partes de uma realidade inexorável e transformá-las em uma forma original, singular, mas universalmente compartilhável por todos no registro do prazer. Esses são aspectos que no sintoma são visivelmente diferentes. O sintoma, movido pela repartição e pela mesmice - feito para enganar - embora carregue em si uma marca pessoal, singular, expressa-se de modo não compreensível, e seu sentido só será decifrável pela interpretação no trabalho analítico. Podemos até nos identificar com a estrutura clínica de um histérico ou de um obsessivo, mas dificilmente nos reconheceremos nas maneiras muito peculiares e estranhas desses indivíduos expressarem seus conflitos por meio de uma anestesia sexual, ou quando expressam seus pensamentos culposos olhando duzentas vezes debaixo da cama antes de dormir. Se é verdade que qualquer sintoma busca alguma forma de prazer, é certo que para aquele que se defronta com ele, nenhuma obtenção de prazer - pelo menos estético... - está garantida. A não ser, é claro, para o psicanalista, cujo trabalho bem-sucedido ao final de uma análise lhe garantirá, quem sabe, o prazer de tentar descobrir o sentido do enigma de um sintoma e o de ver alguém livre de um sofrimento desgastante...
A criação literária, como vimos, parece ser movida não pela repetição, mas pela transformação, já que é pela escritura que o autor se reinventa ou inventa o mundo, aproximando as vizinhanças e elimiando os limites.
Não é novidade ouvirmos que os escritores na verdade estão sempre escrevendo a mesma história. Lembrarmos no início que a criação artística e o sintoma são parentes nas séries psíquicas, e trarão, como nos sonhos, a marca da realidade psíquica e histórica sobre a qual se constrói a subjetividade do autor. No entanto, ali onde o sintoma quer expressar - ou mentir - a mesma coisa, da mesma maneira, a criação artística e literária pode até contar o mesmo tema, mas sempre de outro modo. A criação literária é um processo, um devir. A doença, pelo contrário parece ser a interrupção, a parada no processo20.
Sabemos que os textos são todos palimpsestos, re-escrituras sobre um texto anterior, cujo original pode-se apenas advinhar, já que se perdeu. É verdade que ao escrever, assim como aos fazermos um sintoma, não queremos saber daquilo que, sem querer, nos recordamos. No entanto, muito além da memória, ao escrever, nós queremos saber tudo, até o que não é possível dizer. Mesmo que para isso seja necessário "re-inventar a linguagem" ou descontruí-la. Assim não nos importamos com a realidade, apenas fazemos o que "nos agrada", até mesmo criar um texto onde o mundo pareça terrivelmente pior do que é. Escrever é tornar possível a impossibilidade. O bebê que alucina o seio, investindo um traço de memória, não estaria, na verdade, inventando sua primeira história21, tentanto recuperar o seio dentro de si, em sua impotência onipotente, e assim como o escritor, apagando a distância entre ele e o que não é ele?
Aquele que se "a-rrisca" a inventar sobre o que poderia ter estado lá onde não é possível mais resgatar a letra original, estará criando. Se, contudo, tiver a pretensão de escrever um texto idêntico à experiência perdida, estará fazendo um sintoma. Assim, a criação literária, como toda arte, provém do reconhecimento de que nada mais preencherá o espaço vazio deixado pelo enigma. Esse espaço pode apenas ser bordejado, bordado, recoberto pela trama dos fios do texto-tecido, o qual deixará sempre uma fresta, o que provocará o leitor com a seguinte sensação: "está quase tudo dito, mais é como se o outro (o autor), estivesse guardando uma carta na manga". Arte, ilusão e mágica. O que seduziu o escritor na incompletude imperfeita do mundo, acabará seduzindo também o leitor na miragem do texto literário, que aponta sempre para uma outra verdade, aludida, prometida, mas nunca inteiramente revelada pela própria trama encobridora da linguagem.
Para concluir, gostaria de lhes contar uma história. Contam que há muito tempo, no início do século XIX, vivia em Yedenitz, aldeia no noroeste da Rússia, onde nasceu minha avó, um rabino hassídico. Era conhecido por sua longevidade, mas principalmente por sua sabedoria. Era sempre procurado por aqueles interessados em resolver dilemas e conflitos aparentemente insolúveis. O bom homem sempre tinha uma resposta para todos.
Em uma noite de inverno, já bem tarde, alguém bateu à porta do velho rabino. Pronto para fazer a caridade de acolher em sua casa o viajante cansado e faminto, o rabino abriu a porta e encontrou, mais morto do que vivo, um jovem homem muito angustiado. Ofereceu-lhe abrigo, alimento e calor junto ao fogo, mas o jovem recusou, obstinado.
- Em que posso lhe ser útil? -perguntou intrigado o ancião.
- Rabino, - disse o jovem - tudo o que eu quero é que me responda: qual o sentido da vida? Essa pergunta me aflige, me faz sentir desamparado, e não estou certo se consigo respondê-la de maneira correta.
O rabino pensou e respondeu:
- Bem, diante da inquietação que o enigma sobre o sentido da vida lhe provoca, você tem três soluções. Na primeira, já que com a incerteza não é fácil de se conviver, você deve acreditar que o saber e a verdade sobre esse enigma estão em algum lugar, e um dia você os encontrará: basta que você descubra o método certo. Se assim o fizer, estará fazendo religião e também estará fazendo... ciência!
- Bem, isso é simples, mas trabalhoso - disse o rapaz. - E qual é a segunda solução? - Perguntou.
- Na segunda, já que é mesmo muito difícil conviver com o desamparo, você simplesmente não suporta a realidade desse enigma e seu mistério, e aí passa a não querer mais saber dele. Tudo que tem a fazer é esquecer-se disso tudo constantemente. Se assim o fizer, você se tornará... cliente de um psicanalista!
- O rapaz refletiu:
- É... não é muito complicado, mas parece tão pobre. E a terceira solução, qual é?
O rabino ficou calado algum tempo e finalmente disse:
- Na terceira, você aceita conviver com a incerteza sobre esse enigma. Não é difícil, pois você terá de tolerar a incerteza e a ambiguidade, o desamparo, o vazio, e a impossibilidade.
Muito espantado, o rapaz perguntou:
- Mas o que é que eu ganho com isso?
- Não se trata de ganhar ou perder - disse o rabino - mas este é o caminho para a arte e para a ficção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. LAPLANCHE, Jean. Para uma reflexão detida e minuciosa do concerto de sublimação, leia-se, p.ex., A Sublimação (Problemáticas III), Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1989. [ Links ]
2. FREUD, S. Escritores criativos e devaneios (1908). Edição Standard das obras completas, Ed. Imago, Vol. IX, p. 147-158. [ Links ]
3. ANZIEU, D. Le corps de l'oeuvre, in Denise Morel: Ter Um Talento, Ter Um Sintoma. SP; Ed. Escuta, 1990, p. 184. [ Links ]
4. MOREL, Denise, op. cit, p. 28.
5. LAPLANCHE, Jean. Teoria da Sedução Generalizada. P.A., Ed. Artes Médicas, 1988, p. 108-125. [ Links ]
6. MEZAN, Renato. A Sombra de Dom Juan. SP., Ed. Escuta, 1993, p. 34. [ Links ]
7. MOREL, Denise, op. cit., p. 169.
8. WOOLF, Virginia. Um Teto Todo Seu. RJ., Nova Fronteira. [ Links ]
9. MOREL, Denise, op. cit., p. 190.
10. ANZIEU, D. In Denise Morel, op. cit., p. 200.
11. LOPES, Ruth Silviano Brandão, O texto literário como possível do desejo. In Revista Cadernos de Psicologia da UFMG. Vol. 4, N.° 2, junho de 1987, p. 8. [ Links ]
12. FREUD, S. op. cit., p. 158.
13. MOREL, Denise, op. cit., p. 172.
14. ANZIEU, D. Psychanalyse du genie criateur, in D. Morel, op. cit., p. 26. [ Links ]
15. MOREL, Denise. op. cit., p. 172-173.
16. KLEIN, Melanie. O Sentimento de Solidão. RJ., Imago, 1975, p. 16-17. [ Links ]
17. LOPES, R. S. Brandão, op. cit., p. 9.
18. DELEUZE, Gilles. Critique et Clinique. Paris. Les Editions de Minuit, 1993, p. 11-17. [ Links ]
19. MOREL, Denise. op. cit., p. 133-135.
20. DELEUZE, Gilles. op. cit., p. 14.
21. JARREL, Randall. Stories. In Discussions of the Short Story. Boston, D. C. Heath and Co., 1963. p. 20-27. [ Links ]
(*) Salvação precária, já que há sempre o risco do mergulho mortífero do autor na autodestruição, o que aponta para os limites do escrita como sublimação.
NOTA - Este trabalho foi apresentado no Instituto de Estudos Psicanalíticos (IEPSI), em Belo Horizonte, no dia 10 de agosto de 1994 e em versão modificada, no IV Encontro de Literatura promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte e pela Editora Lê, no dia 27 de outubro de 1993. Agradeço especialmente à prof. Riva Satovschi Schwartzman pelos comentários e sugestões.