SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15 número1-3Mulher - mãeA imagem da mulher em revistas femininas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.15 n.1-3 Brasília  1995

 

Mulher artista: cidadã do universo?

 

 

Berenice Sica Lamas

Psicóloga, escritora e educadora na PURSC. Mestre em Psicologia Social e da Personalidade PUCRS

 

 

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obscenas.

Chico Buarque/Augusto Boal

 

A música/poema de Chico Buarque e Augusto Boal (1989) ilustra idéias referentes à condição submissa da mulher na sociedade grega. Transpostas para o nosso tempo, reflete-se na produção das mulheres no mundo do trabalho e das artes. A fina ironia das entrelinhas de Chico e Boal mostra que as mulheres de Atenas são universais no tempo e na Geografia. Nos versos dos poetas, as mulheres na área das artes apenas tecem longos bordados (e não profissionalmente).

Em texto de 1932, Freud (1976) também diz que as mulheres contribuíram muito pouco nas descobertas e inventos da história da civilização. Mas descobriram ao menos uma técnica: tecer e trançar, tendo dado a natureza à mulher, o modelo para tal imitação, no crescimento dos pêlos pubianos que ocultam seus genitais.

A história mostra que a criação na esfera cultural sempre foi privilégio dos homens, e à mulher restava a esfera doméstica. Debruçando-nos sobre a realidade das artistas, revela-se que o papel pressuposto da mulher restrito à esfera biológica, reposto continuamente pelos principais agentes socializadores -família e escola - tem que ser rompido por elas, construindo-se na condição de autoras/atrizes no social. Apesar desta ruptura constituir-se como uma história coletiva de lutas, dificuldades e enfrentamentos, refere-se à singularidade de cada trajetória.

Para tornar-se artista profissional, a mulher necessita superar uma condição cultural adversa, adquirindo espaços para seu processo criativo além do destino biológico, através de aprendizagem, trabalho e aperfeiçoamento, e conquista do saber-fazer, reapropriando-se de sua condição de sujeito. Fazer existir o que não existe, é arte (Lamas, 1993).

As mulheres estão construindo e conquistando seus projetos profissionais no mundo das artes. A atividade poética, que produz o poema antes que ele seja escrito, é também concebida como um processo de fabricação, como também qualquer outra obra de arte. Escultoras, escritoras, pintoras, desenhistas, bailarinas, atrizes, cineastas, poetisas, fotógrafas contribuem hoje ativa e efetivamente no mundo do trabalho com suas produções artísticas, publicações, livros, vernissages, fotos, pinturas, esculturas, filmes, espetáculos de dança e teatro.

O tecido e a trança da opinião freudiana hoje se transformam em metáfora texto, etimologicamente assemelhado a tecido: de idéias, de palavras e frases, de tintas e cores, de películas, de argilas, de papéis teatrais, de passos de balé... Nos bastidores destas carreiras, às vezes fluidas, às vezes cerceadas, até a eclosão do talento trabalhado temos lutas, barreiras, sofrimento de preconceito, rompimento de casamentos, brigas com familiares e amigos. Quando o ser humano adota uma perspectiva criativa em sua vida, abre-se para novas possibilidades e para a mudança.

A arte não nasce pronta, não se constitui uma dádiva dos deuses aos humanos, sendo produto da mão, da mente, da imaginação, do trabalho. Mesmo no mito de Prometeu, como criador da cultura, houve o fogo como elemento de mediação entre deuses e humanos. As mulheres trazem todo o seu passado de viver subalternidade e exclusão em suas obras, produção do novo mas também reprodução - crítica e dialética - do passado.

Para Lamas (1994), a história da criatividade e da arte da mulher sempre foi marcada pelo desdém ou pelo rótulo de diletantismo, pois consideradas de carências criativas naturais. Este natural é advindo dos imperativos biológicos de menstruar, gestar e parir, que a exilaram durante séculos de sua capacidade de criar além do biológico.

A identidade de gênero é construída e situada social e historicamente no tempo e no espaço. As funções pré-conscientes oscilantes entre o consciente - ancoração na realidade - e o inconsciente - simbolismo - é que permitem a fluidez dos processos na atividade inventiva. As fantasias inconscientes são a matéria-prima da mente criadora, sendo a criatividade o exercício fluido e espontâneo das funções pré-conscientes.

O corpo da mulher talvez esteja aprisionado e sufocado pelo trabalho repetitivo e monótono da domesticidade, porém sua criatividade não se consome neste labor, e sim, pode alcançar vôos de imaginação através do fluxo de associações livres. O brilho de uma panela bem areada não pode originar a cintilação de uma estrela? O cheirinho de uma roupa enxaguada com amaciante, gerar o aroma jardim de frases delícia de um conto? Ou o gosto de um molho bem preparado, o paladar de uma tela de Frida Kahlo?

A mulher artista ultrapassa a dimensão de cidadã do mundo, pois além de colocar os interesses da humanidade acima dos da pátria, alcança ser cidadã do universo, comete(a)ndo -como Halley - ações heróicas e revolucionárias, nascendo de novo, apesar de aparições rápidas no céu da vida artística e política. Cometa do grego kométes, astro de órbitas elípticas, parabólicas e hiperbólicas. Mulheres artistas cometas viajoras viajantes amantes.

Suas longas caudas luminosas são como o rastro de mulheres pioneiras, representantes de outras milhares: Camille Claudel, escultora; Anais Nin, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles e Virgínia Woolf, escritoras; Clara Schumann, pianista e compositora; Safo, Cecília Meireles e Soror Juana Ines de la Cruz, poetisas; Tizuka Yamazaki, cineasta; Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Frida Kahlo, pintoras; Ângela Maria e Elis Regina, cantoras; Isadora Duncan, dançarina; Leila Diniz e Sarah Bernhardt, atrizes. Reconhecidas artisticamente, entretanto foram rotuladas preconceituosamente por determinadas condições pessoais.

A arte se define como ofício em seu aspecto de domínio da técnica e do saber-fazer, constituindo-se em alternativa para assegurar auto-reflexão e crítica. O produto da arte tem o objetivo de transcender a consciência e a experiência humanas, visando ao gozo estético, cumprindo uma função dialógica, representando a possibilidade de ampliar o horizonte da subjetividade e dos potenciais de comunicação dos seres humanos. Através da arte, a mulher devolve ao mundo, sua insatisfação e frustração, em forma de cultura. Além de criar filhos, ela cria cultura, valores e símbolos: o ato político gerado em seu ambiente privado e em seu íntimo, no sentido de singular, expressão de subjetividade, construção individual. Apresentado e comunicado ao público com generosidade. Trata-se de uma fração da população excluída fora do modelo de homem, branco, ocidental que através da arte, resgata a si própria, na luta por uma mudança sócio-histórica-cultural.

A cultura e a obra de arte apresentam um caráter ambíguo: têm uma dimensão conservadora e emancipatórica ao mesmo tempo. Conformismo e resignação passam como mensagens subliminares na obra de arte, bem como transformação e mudança.

A arte como forma de trabalho para a mulher constitui-se de todos os elementos da subjetividade feminina: alegrias, prazeres, gratificações, medos, preocupações, angústias, tristezas, condição feminina, agonias, desgostos, visão de mundo, experiências típicas femininas. A obra de arte assume, portanto, um duplo caráter: o de representar e consolidar a ordem existente e ao mesmo tempo o de criticá-la, denunciá-la como imperfeita e contraditória. Para a psicanálise a sublimação das pulsões pré-genitais é responsável pela invenção e criação havendo uma restauração narcísica com o objeto da arte.

Na criação artística, a mulher se depara com os conflitos causados por seus diversos personagens internos, frutos de seus papéis sociais e sexuais. Não se deve esquecer também, que embutida na obra de arte está a ruptura, a transgressão do pressuposto, lembrada no mito de Lilith, separação e degredo, fragmentação da própria identidade: a primeira mulher de Adão, autônoma, sensual e insubmissa, recusou-se ao jugo masculino no paraíso, não aceitando o papel de inferioridade e passividade - assumido por Eva.

A mulher que trabalha com arte tem tripla tarefa: a doméstica, a de trabalhadora fora do lar e a de criadora. A arte universal é repleta de imagens de amamentação: função nutridora, mas não da menstruação nem do parto: que significa criação do ser, portanto, poder.

As barreiras enfrentadas na família por mulheres desejosas em ser artistas referem-se ao fato de serem mulheres. A literatura feminista questiona a posição de que o pertencimento a uma determinada classe social é mais relevante do que o pertencimento à categoria de gênero.

A criatividade não é dada, é construída na medida em que exige muitas condições satisfeitas - necessidades básicas, auto-estima, bem-estar - para manifestar-se. A obra de arte, idéias, valores espirituais foram transformados em mercadoria e assimilados à produção capitalista de bens, relacionando entre si, artistas, pensadores, moralistas através do valor de troca do produto.

A vivência da mulher artista em cada momento é repassada para a peça de arte, e a mulher transmite seu depoimento através da arte. Na obra pronta enxerga a realização pessoal, a visão de algo construído, criado, sendo um produto de um momento, tendo a luta embutida em si. A obra de arte se constitui em um instrumento de politização, de construção de sua cidadania, de luta por direitos. A mulher tem que recuperar a criatividade espontânea da infância, sufocada no processo de socialização a fim de adequá-las ao padrão de mulher pressuposto socialmente. A arte mexe com a interioridade das artistas, modificando sua percepção do mundo, num processo dialógico permanente com as demais pessoas.

Todo processo criativo é motivado pela busca do prazer. É no trabalho criador, realizando seu potencial criativo, que o ser humano tem seu mais alto ponto de apropriação de seu trabalho, enxergando-se a si mesmo e sua obra, na busca de uma conquista: a construção de si próprio.

Para a mulher adquire um caráter profano, no sentido de transgressão de seu papel social. A mulher artista promove seu próprio ato de liberdade, desvencilhando-se de seus espartilhos sociais, reabastecendo-se no próprio processo no qual se realiza.

As mulheres de sociedades passadas e atuais têm uma real desvantagem na vida social, pelo caráter historicamente masculino da civilização: estado, leis, moral, religião, literatura, ciência, normas e padrões, criação, tudo originando-se essencialmente do masculino. A criação artística contribui para a denúncia da opressão feminina, ajudando a transformação do papel da mulher ao longo da história. A maior fluidez do processo criativo é alcançado com a maturidade e domínio técnico. A mulher mais segura internamente enfrenta melhor as resistências da sociedade.

O objeto de arte detém a qualidade da permanência: supera no tempo o próprio trabalho, a própria arte ali objetivada. E além disto, a mulher conquista, pela criação de sua obra, o espaço público que historicamente não detinha, resgatando humanidade e cidadania como agente de construção do mundo. A arte, para a mulher, também significa uma dimensão de revelação e de sementeira para transformação de outras pessoas, por sua natureza transcendente.

Fica clara a existência de um desejo, de uma utopia, um anseio de realização para além dos signos do mundo doméstico (casamento, maternidade), embora as mulheres desejem também formar uma família, além da carreira profissional com ganhos financeiros. E que ambas se constituam de modo compensador e realizador.

As mulheres não se conformam com os limites sociais e culturais que lhes são impostos, desejam expressar o vir-a-ser, que implica intensificação de viver e transformação. Criatividade é um processo construtor aproximando sujeito e objeto, liberação de sensibilidade e movimentos de ruptura, processo de se arriscar e se jogar no desconhecido, de viagem interna em busca da essência, do devir (Ostrower, 1987).

A mulher artista foge ao olhar patriarcal, que não a aprisiona nem a domina, pois o fato de querer algemar seu imaginário é uma forma de tentar anulá-la e não permitir que expresse sua visão de mundo. Escancara através de sua obra desejos, lutas, mágoas, e denuncia o regime masculino. Com sua arte abre espaços políticos, um novo poder, um questionamento, uma dissonância nos papéis postos, desvelando um novo papel de plena cidadã, consciente e participativa. A arte é um ato político, pode metamorfosear o mundo. Passa a haver uma inserção consistente e consciente da mulher na sociedade, pois suas obras têm um significado sócio-histórico, que transmite para as pessoas uma recriação do real levando-as à reflexão/ação/mudança. Isto porque há uma ruptura das representações sociais.

A mulher constrói uma visão de mundo, constrói uma sensibilidade e uma intuição, que a faz lidar com idéias e fatos que encontra, de modo inovador e singular, enquanto recortada pelo olhar feminino. Assume uma identidade de sujeito feminino. A luta pelo espaço cultural necessita constituir-se de modo mais articulado, no sentido de organização da categoria, de inserção da classe, das ações cooperativas entre as artistas. Estas devem estar preparadas para um exercício integral da democracia e do novo poder conquistado com sua arte. Novos espaços de inserção no mundo, suas histórias expostas em sua arte. Emergir da invisibilidade histórica. Falação de mulher artista é cometa, solta fagulhas e poeiras luminosas em sua trajetória pelos espaços telúricos e siderais.

Os principais ingredientes nas trajetórias de mulheres constituem-se em: capacidade artística, construção de gosto estético na infância, muito estudo, aperfeiçoamento, muito trabalho, resistência e uma luta intensa contra os bloqueios familiares e sociais. Na sociedade patriarcal, criar arte e cultura, além de filhos, é provocativo e ameaça o status quo. Sair da cozinha e do cuidado dos filhos e competir com os homens, criando cultura, não é compatível com o pressuposto.

A vida cotidiana da mulher artista, enriquecida por suas atividades profissionais de criação, é libertária e revolucionária, pois remete a mulher a uma autonomia questionando suas vivências anteriores. Nesta metamorfose, os homens também ganham novos papéis e constroem juntos outras relações, sob pena de haver um descompasso com sua própria representação de ser masculino.

Ser artista para a mulher é resgatar o mito de Lilith, substantivando predicados de valor: ser disciplinada, criativa, inovadora, autônoma, ter o domínio da técnica. Ser artista é abrir possibilidades e atributos, construindo a si mesma como sujeito.

Uma nova emissora de rádio feminina AM em Londres, chamada VIVA, mostra o nível de cidadania das mulheres inglesas, que participam ativamente da vida política e económica do país. Concebida, elaborada e produzida só por mulheres; em sua pauta: política, economia, leis, música, alegria, otimismo, visão sensível do olhar feminino.

A arte transcende o psíquico, pois se instaura no coletivo e é canal de identificação, emoção e comunhão com os outros. A criação vem do espírito, da essência do ser.

Toda a arte tem uma função social e estética - algo existe para ser fruído pelos sentidos, sendo necessária também pela magia e sonho que lhe são inerentes.

Retornando às palavras iniciais dos poetas, nas quais suas mulheres de Atenas, Pandoras, Liliths, Evas, Penélopes, Ariadnes, Antígonas, Jocastas... tecem longos bordados como atividade artística, pode-se dizer que as mulheres hoje desabrocham através de suas artes, não se encolhem, nem se conformam ou se recolhem.

E têm sonhos, sim, partindo em busca de suas realizações como artesãs da sua arte. Substituíram presságios e medos por denúncias, afirmações, empreendimentos simbolizados por seus textos literários, contos, romances, pinturas, esculturas, músicas, shows, cantos, quadros, filmes, fotografias, poesias...A mulher artista rompe com a representatividade de procriadora da espécie, a condição humana da mulher é de reproduzir transformando. É capaz de vontade, empreendimento e ação. Ato volitivo e fazeção. Autora/atriz, inventora, buscando o ilimitado, burlando a finitude humana, cumprindo missão de sujeito e cidadã.

Ousar-se permitir o delírio, mexer com o imaginário, a fantasia inusitada, o prazer, a beleza, o interdito, o desejo do real e o desejo do impossível, trazer gozo e emoção estéticos, exprimindo o universal é o papel da mulher que cria além do biológico. Ser artista é ser criativa, inovadora, autónoma, consciente, audaz...

Findo lembrando um texto militante do qual participaram Yoko Ono, Anais Nin e outras mulheres, que fala da chegada efetiva das mulheres à História com seus valores de sensualidade, busca de intimidade, intuição, importância do percebido, sensibilidade, cidadania, valores ecológicos, a estética como ética do futuro.

Mulheres artistas. Cidadãs do universo. Exercendo o direito e o dever de cometer artes artimanhas arteirices faceirices femininas. Cometas Halleys de caudas caudalosas cachoeiras cataratas gotas mágicas, raios molhados de luz num revolucionário cosmos...                         I

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, Sigmund. 1932. Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Conferência XXXIII. Feminilidade. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XXII, p. 139-165.        [ Links ]

HOLLANDA, Chico Buarque. Chico Buarque-Letra e Música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.        [ Links ]

LAMAS, Berenice Sica. Mulher: Processo Criativo Para Além do Biológico. Porto Alegre, 1993. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade. Instituto de Psicologia, PUCRS.        [ Links ]

LAMAS, Berenice Sica. Processo Criativo Feminino. In: CARDOSO, Reolina S. (Org.) É uma Mulher... Petrópolis: Vozes, 1994, p.81-100.        [ Links ]

OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Vozes, 1987.        [ Links ]