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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.15 n.1-3 Brasília  1995

 

Psicologia/arte no pensamento filosófico de Nietzsche*

 

 

Gracia Mônica M. V. Vianna

Psicóloga. Professora de Filosofia na Faculdade Carioca, R.J.

 

 

Não há dúvidas de que Platão e Aristóteles representaram o antigo mundo das idéias a respeito do fenômeno estético. O novo mundo surge no século XVIII, quando a ortodoxia neoclássica sucumbe e o empirismo, o associacionismo e suas variantes o substituem. No começo do século XIX, o utilitarismo e o positivismo foram os herdeiros imediatos seguidos pelo pragmatismo, e o behaviorismo e o positivismo lógico que, por sua vez, não negaram sua ascendência.

Conquanto, a grande tradição da estética alemã de Kant e Hegel reafirmam a identificação da arte com a filosofia. A obra de arte, como entidade estética, torna-se dissolvida em favor de um estudo dos sentimentos, conceitos e filosofias do artista. O ato criador e o artista passam a ser os centros de atenção em detrimento da obra de arte.

Na verdade, a Clínica do Juízo Estético de Kant dá início ao movimento do Romantismo; se tudo está contido nos limites da razão, o Romantismo busca extrapolar esses limites na exaltação dos sentimentos entendidos como algo caótico, incontrolável. Na célebre expressão Sturm und Drang (tempestade e ímpeto), o movimento filosófico/ literário/artístico abre caminhos para a valorização dos sentimentos, dos desejos, da vontade como elementos fundamentais que dão sentido à existência do homem, do mundo, da vida.

É no período do pessimismo romântico de Nietzsche (1870-1876) que Wagner e Schopenhauer simbolizarão os grandes espíritos românticos anunciadores da revolução cultural alemã. Por assim dizer, o sentimento de paixão do filósofo pelo drama musical wagneriano e o sentimento de admiração ao pessimismo de Schopenhauer impulsionarão Nietzsche a reconhecer a música de Wagner como expressão da metafísica de Schopenhauer. A arte wagneriana será compreendida como a manifestação do crescimento da grande arte grega.

A concepção nietzscheana sobre a arte tem suas raízes na tragédia grega. O grego arcaico foi quem mais teve sensibilidade para o sofrimento e intuição da tragédia da existência. No Nascimento da Tragédia (1871), Nietzsche conta a antiga lenda do sábio Sileno, companheiro de Dionísio, quando este, prisioneiro e interpelado pelo rei Midas, revela com desprezo aquilo que convinha à espécie humana: "O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer".1 Esta problemática existencial é que dá origem à arte e à tragédia grega. A tragédia significa o conflito entre as pulsões artísticas da natureza; a arte trágica é que possibilita a união e o equilíbrio entre os instintos pulsionais apolíneo e dionisíaco da natureza.

Isto significa dizer que a tragédia grega tem como heróis primordiais Apolo e Dionísio; Dionísio, o deus da desmesura, do caos, da fúria sexual, da volúpia da dor, representa o elemento extático do palco grego, enquanto que o deus Apolo é a expressão da luz, da beleza, da harmonia, da ordem, da liberdade dos sonhos que possibilita tornar a vida possível e desejável. A união de Apolo e Dionísio enquanto forças simbólicas expressam a essência da natureza. Daí resulta que Dionísio não possa viver sem os limites que Apolo lhes oferece ao transformar o mundo em arte.

Na exaltação da cultura trágica grega, Nietzsche revela a existência do duplo princípio gerador das artes como expressão essencial do mundo: as pulsões naturais artísticas apolíneo e dionisíaco, as quais manifestam-se na vida humana através dos estados estéticos, respectivamente, do sonho e da embriguez. Esses estados fisiológicos opõem-se como condições necessárias para a arte produzir-se. O sonho caracteriza o mundo estético originário do princípio apolíneo como símbolo da bela aparência face ao mundo estético da embriaguez originário do princípio dionisíaco. A embriaguez é o estado que despedaça e elimina o individual. Em outras palavras, na embriaguez desfaz-se os laços do principium individuationis como se o véu de maia rasgasse para aparecer a realidade mais fundamental: a união do homem com a natureza. É, sob a inspiração da metafísica da arte de Schopenhauer, que Nietzsche compreende a oposição das pulsões a partir da noção de Vontade schopenhaueriana. No primeiro capítulo de O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer consagra à Vontade, entendida como o núcleo do mundo, o uno primordial, o lugar de origem ou o fim de toda efêmera individualidade. Essa unidade mais originária e fundamental (das Ur-Eine), em incessante e suprema dor, se dá eternamente ao movimento de esfacelamento em direção à individuação. Por assim dizer, com a dilaceração do principium individuum pela intensificação das emoções dionisíacas, tudo volta à unidade primeira. O homem reconcilia-se com a natureza dando nascimento à arte musical e imagística que é a tragédia. O artista dionisíaco é aquele que joga com o sonho e a embriaguez. A lucidez é o elemento apolíneo de transfiguração que se introduz no dionisíaco para transformá-lo em arte. Apolo vem em auxílio do artista salvando-o do desejo de perder-se na vontade e de dilacerar-se no devir dionisíaco.

É através dessa hipótese da metafísica do artista que Nietzsche busca elucidar o processo transfigurador do uno primordial que a natureza realiza através do sonho para criar a bela aparência.

Contudo, com a tendência anti-dionisíaca iniciada por Eurípedes ao privilegiar a razão, a consciência como critério pelo qual se deve orientar toda a produção estética, a relação entre arte e vida cede lugar à relação arte e ciência; o espírito racionalista de Eurípedes desdobra-se no racionalismo socrático-platônico que se estende sobre a posteridade.

Este pequeno esboço do pensamento de Nietzsche sobre a arte vinculada à vida na investigação do fenômeno dionisíaco na Grécia arcaica revela dupla inovação - a criação de uma sui generis psicologia e interpretação do socratismo. A singular psicologia nietzscheana ao operar com as pulsões artísticas da natureza manifesta um inconsciente primordial o qual escapa às possibilidades de representação da consciência. A dimensão do inconsciente emerge como função de um princípio ativo, embora em seu pensamento filosófico não seja apresentado como um princípio fundamental. É preciso dizer que a Psicologia de Nietzsche situa-se no domínio da reflexão filosófica e não se refere ao campo específico da investigação caracterizado pela valoração positiva da experiência sensível como fonte principal do conhecimento. A psicologia nietzscheana está mais próxima de um método peculiar de interpretação do que propriamente de uma ciência constituída.

Em sua autobiografia Ecce Homo, o filósofo refere-se à Psicologia como a arte de "ver além dos ângulos"2, como um dom artístico da visão aprimorada para ver aquilo que há de mais profundo e enigmático na realidade existencial: a dimensão pulsional, dos instintos. Essa arte da visão, além de qualquer perspectiva, diz respeito a uma dupla e talvez a uma terceira visão ciclópica dos metafísicos, sob o efeito da interdição, não pode contemplar a dimensão obscura da existência, tal como nos sugere Nietzsche: "Imaginemos agora o grande e único olho ciclópico de Sócrates, voltado para a tragédia, aquele olho em que nunca ardeu o gracioso delírio de entusiasmo artístico - e pensemos quão interdito lhe estava mirar com agrado para os abismos dionisíacos: o que devia ele realmente divisar na "sublime e exaltada" arte trágica, como Platão a denomina? Algo verdadeiramente irracional, com causas sem efeitos e com efeitos que pareciam não ter causas; e, no todo, um conjunto tão variegado e multiforme que teria de repugnar a uma índole ponderada, constituindo, entretanto, para as almas sensíveis e suscetíveis uma perigosa isca".3

A citação exposta vale para esclarecer a posição característica de Nietzsche em relação a Sócrates e a Platão vistos como representantes do início da decadência do espírito grego. Com Sócrates começa a idade da razão, do homem teórico em oposição ao homem trágico, isto é, aquele que acredita dar ordenação ética aos problemas essenciais da existência. Todavia, o olhar sagaz do filósofo-psicólogo, que provém não apenas de suas possibilidades de divisão interiorizada, mas também da sua sensibilidade artística, alcança os abismos dionisíacos da existência.

É certo quer Nietzsche auto denomina-se como o primeiro "psicólogo sem igual"4 porque ninguém antes dele teve a ousadia de produzir tão "complexa arte de estilo".5 Um tipo de arte que comunica "um estado d'alma, uma tensão interna do sentimento",6 do sentimento do Eterno Retorno...pois, Nietzsche-Zaratustra, "o primeiro psicólogo dos bons"7, afirma a intensidade da eternidade ao superar todas as dicotomias da vida, ao desejar atravessá-la "até a um dionisíaco dizer-sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção"8. Este é o paradigma supremo que se pode alcançar "estar dionisiacamente diante da existência"9 tendo como fórmula "amor fati"10 para a grandeza do homem.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

NOFFAT NETO, A. O Inconsciente Como Potência Subversiva. São Paulo: Escuta, 1991.        [ Links ]

NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo, trad. , notas e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.        [ Links ]

NIETZSCHE, F. Ecce Homo, trad. de Lourival de Queiroz Hentel. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.        [ Links ]

NIETZSCHE, F. Os Pensadores. Obras. Incompletas São Paulo: Abril Cultural, 1993.        [ Links ]

MARTON, S. Nietzsche: Consciência e Inconsciência In: A. L. AUFRANc et al. São Paulo: Escuta, 1991.        [ Links ]

 

NOTAS

* Ressonância: Comentário ao texto Arte e Modernidade, de Rodrigo A. P. Duarte publicado em Psicologia: Ciência e Profissão, ano 14, n 1,2 e 3, 1994, p.10-13.

** Professora de Filosofia na Faculdade Carioca, Rio de Janeiro.

1   Cf. Nietzsche, F. O Nascimento da Tragédia, § 3.

2  Cf. Nietzsche, F. Ecce Homo, Porque sou tão sábio, § 1.

3  Cf. Nietzsche, F. O nascimento da Tragédia, § 14.

4 Cf. Nietzsche, F. Ecce homo, Por que Escrevo Bons Livros, 5.

5  Idem, 4.

6  Idem.

7 Cf. Nietzsche, F. Ecce Homo, Por que sou Tão Fatalista, 5.

8  Cf. Nietzsche, F. Os pensadores - Obras Incompletas. Eterno Retorno, § 10.

9  Idem.

10  Idem.