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Psicologia: ciência e profissão
versão impressa ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.17 n.3 Brasília 1997
Psicanálise e feminilidade: algumas considerações
Olivia Bittencourt Valdivia
Psicóloga
Escutar as histéricas no seu esforço de falar com seu corpo levou Freud a lançar as bases da psicanálise. A feminilidade e o desejo da mulher são analisados por Freud e Lacan. O enigma da feminilidade e o trabalho psíquico envolvido no devir mulher são questões fundamentais aqui analisadas.
A questão da especificidade do feminino constitui o ponto de partida da psicanálise e também o ponto de retorno constante à teoria freudiana.
Foi em fins do século passado que Freud, tentando escutar a histérica, percebeu que talvez ela quisesse dizer alguma coisa com o seu corpo. E a histérica falou do amor, do desejo, do ódio e da culpa. Freud, impulsionado pelo desejo de saber o que seria específico do feminino e a relação entre a sexualidade e a etiologia da histeria, iniciou seu trabalho a partir da clínica. Foi pelas mãos de Freud que a histeria deixou de ser "doença" da mulher, tornando-se a possibilidade de uma relação humana "doentia" que submete uma pessoa a outra.
O que é universal ? O que é específico à histeria ? Como se constitui o desejo masculino e feminino ? O que é a feminilidade ? A partir de Freud, a psicanálise tem lançado delicadas e esclarecedoras luzes neste imbricado de relações. Paradoxalmente, Freud escreveu pouco especificamente sobre a sexualidade feminina. Mas há em sua obra muito material referente a esta temática, disperso em seus textos sobre outros assuntos.Desde as primeiras cartas a W. Fliess, Freud tenta precisar a questão da feminilidade em abordagens sucessivas e diferentes. Escrevendo a Fliess (1897), sobre a teoria da repressão, Freud incluiu o seguinte comentário:
"Essas ondas sucessivas do desenvolvimento provavelmente possuem um ordenamento cronológico diferente nos sexos masculino e feminino... Contudo a principal diferença entre os sexos emerge na época da puberdade, quando as meninas são acometidas de uma repugnância sexual não neurótica e os meninos têm incrementado a libido".
No livro "A Interpretação dos Sonhos" (1900), Freud sugere, na situação edipiana, um paralelo entre os dois sexos: "a primeira afeição de uma menina é para com o seu pai e a de um menino é para com a sua mãe". Essa tese de um desenvolvimento sexual paralelo das meninas e dos meninos - sendo o menino o modelo - é mantida por Freud com tenacidade decrescente, até invalidá-la totalmente, em 1925, em um texto que foi sua contribuição ao Congresso Psicanalítico de Hamburg.
Este texto intitula-se "Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos". Nele está condensada uma completa reavaliação de Freud referente à psicologia feminina e a significação da sexualidade da mulher. É neste artigo também que encontramos todos os germes de seus outros trabalhos sobre o assunto: "Sexualidade Feminina" ( 1931 ); "Novas Conferências Introdutórias" ( 1933 ) e o capítulo VII do "Esboço da Psicanálise" (1940).
Até 1925, o Complexo de Édipo na obra de Freud era analisado como uma das bases principais para a aquisição da sexualidade masculina e feminina. A fase pré-edipiana (para meninos e meninas) era inexplorada na psicanálise. Freud estabelece neste artigo um novo domínio extremamente importante, principalmente para a sexualidade das meninas. Para elas o complexo de Édipo é apenas uma formação secundária. Antes de chegar ao complexo de Édipo positivo (amor pelo pai ), há a fase pré-edipiana, extremamente importante na questão da feminilidade.
Mesmo em seus trabalhos posteriores, esse enigma não foi de todo aclarado por Freud. Na conferência "A feminilidade" ( 1933 ), dentro das Introdutórias, Freud questiona se a psicologia teria parâmetros conclusivos sobre o que é específico do masculino e do feminino. Postula que os dados anatómicos e biológicos seriam insuficientes para definir o que é o masculino e o feminino, atribuídos na cultura, às funções reais e simbólicas, inerentes ao homem e à mulher. Faz equivaler "masculino" a ativo e "feminino" a passivo, advertindo que podem ser influenciados pelo social.
Freud parece concluir que a psicanálise não se propõe a revolver este enigma, uma vez que a investigação psicanalítica descreve como a menina ( ser bissexual ) vem tornar-se uma mulher. Freud apresenta a evolução libidinal da fase pré-edipiana da menina com a conseqüente vinculação desta com a sua mãe; o complexo de castração, no qual a menina entra no Édipo, elegendo o pai como objeto de amor, havendo a mudança do seu objeto amoroso; e a mudança da zona erógena do clitóris para a vagina.
Assim, indicando o território, Freud lança as bases para uma análise do feminino, que é retomada posteriormente por Lacan. Tanto as meninas como os meninos podem ter atitudes femininas e masculinas. Ambos vivem as identificações e ligações da fase pré-edipiana; ambos têm complexos edipianos masculinos e femininos.
Em ambos os casos a relação mãe-criança é quebrada pela intervenção do pai que evita o desejo incestuoso de seus filhos ( pela mãe ). No caso do menino é a ameaça da castração que o faz abandonar o seu primeiro objeto amoroso e identificar-se com o pai, superando assim o seu complexo de Édipo. Nas meninas a castração não é ameaçada, mas já implicitamente realizada, fazendo-a depreciar a mãe (castrada) e voltar-se amorosamente para o pai, entrando assim na situação edípica. E é justamente neste momento de intensa rivalidade com a mãe e inveja do pênis ( do pai ) que ela precisa escolher a feminilidade em detrimento do complexo de masculinidade ou da inibição sexual ( neurose), como diz Freud em 1933. De certa forma o menino terá de repudiar a feminilidade e a menina, assumi-la. Em seu artigo "Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor( Contribuições à Psicologia do amor) ( 1912 )", Freud esclarece sobre a cisão do desejo masculino, constituída em duas correntes: uma terna e outra erótica. Esta dificuldade é típica da vida amorosa dos homens, impossibilitando-os a amar e desejar a mesma mulher: a mulher amada não pode ser desejada sexualmente e a mulher desejada não pode ser amada. A "virgem" e a prostituta constituem-se assim objetos típicos do desejo masculino. Freud explica este fato como um dos possíveis efeitos da relação incestuosa do menino com sua mãe, anterior à interdição paterna. Esta reflexão sobre o desejo masculino será retomada posteriormente no decorrer deste texto constituindo-se em refinado material para a discussão das posições que uma mulher pode ocupar em face da feminilidade.
Lacan utilizou os conceitos freudianos manipulando-os e indo além. Segundo ele, Freud desenvolveu seu estudo sobre a sexualidade feminina até a chamada posição histérica, ou seja, uma posição subjetiva em que a mulher pode ocupar frente à feminilidade, fazendo-a relacionar-se de forma específica frente ao amor, ao desejo e ao gozo. Há de certa forma um abismo radical entre a condição feminina concebida por Freud e por Lacan.
No decorrer de sua obra, Lacan vai desenvolvendo teses elucidativas referentes à divisão do sujeito na sexualidade, e consequentemente vai postulando tentativas de aclarar o enigma da feminilidade, cujas fórmulas constrói nos Seminários: "... ou pire"; "L'étourdit"; "Mais, Ainda". Estas fórmulas fazem parte do esforço de Lacan de matematizar a psicanálise, buscando o máximo de rigor teórico. Ele a descreve como a escritura que vai ordenar a sexuação para todos os seres falantes.
Essa escritura não significa aspectos anatômicos. São posições subjetivas que os seres falantes podem ocupar em face da sexualidade. Constituem dois conjuntos: masculino (a esquerda) e feminino ( a direita ). A tese de Lacan apresenta o fato de a divisão do sujeito ante o sexual não ser uma divisão entre os dois sexos, mas entre dois gozos: um todo fálico; outro não-todo. A escritura das fórmulas de sexuação é a seguinte:
No canto superior, na parte de baixo, do quadro à esquerda lê-se x . fx (todo x fi de x). Esta parte anuncia que todos os elementos desse conjunto estão sujeitos à função fálica: todos estão sujeitos à castração. É pelo preço da castração que o homem ascende à posição viril. A castração é a lei que vale para todos os seres masculinos. Assim, o sujeito perverso, que se apresenta como não-castrado, não se incluiria deste lado da escritura.
Ainda, no mesmo lado, a fórmula superior E x . f x ( existe x não-fi de x) está indicando que existe uma exceção a essa regra, havendo ao menos um elemento não-castrado, um elemento que escapa à lei. Como Lacan esclarece é necessário pelo menos um elemento que não esteja sujeito à lei, para que ela seja válida. Ele referencia, neste elemento não-castrado, o Pai ancestral do mito da horda primitiva, descrito por Freud em Totem e Tabu. Esse ancestral, ao qual todos os homens se remetem, funda a classe dos homens, constituindo um conjunto fechado, cujas fronteiras são delimitadas pelo falo: o homem é fálico e todo fálico.
No canto superior do lado direito lê-se E x. f x ( não existe x não-fi de x ). Lacan faz uma modificação na lógica clássica, escrevendo a barra da negação sobre o quantificador da existência, para indicar que não há neste conjunto a exceção. Os elementos deste conjunto não irão se constituir como um todo, sendo então escrito Vx . f x ( não-todo x fi de x). Lacan chama isso de seu quantor não-todo. Cada elemento desse conjunto se relaciona com a função fálica e com a castração, enquanto não-todo.
Da escritura da feminilidade feita por Lacan podem-se extrair várias implicações. Uma delas é a relação de uma mulher com o seu gozo, que será diferente dos seus parceiros homens. A mulher, por estar não-toda na função fálica, tem acesso a um outro gozo, o gozo do Outro ( suplementar). Por ser fora-da-linguagem, o gozo do Outro permanece na ordem do indizível, dando à feminilidade um ar de mistério, frequentemente incompreensível para os homens, que tentam apreendê-la do ponto de vista masculino, ou seja, da posição do todo fálico. Essa dificuldade do masculino em compreender o feminino é facilmente observável nas análises, tal como ilustra o seguinte fragmento:
"As mulheres são doidas. Só podem ser doidas! Eu tenho espelho e me conheço um pouco. Como aquela mulher tão linda deixou de ir ao seu compromisso, prá ficar no bar do aeroporto, escutando um cara como eu ?Eu, jogando o meu "lero"; fazendo mil promessas que nunca vou cumprir. E, ela ali tão linda me olhando como se na face da terra só existisse eu".
A escritura referente à feminilidade não apresenta um conjunto fechado, e isto impede que se constitua uma classe de mulheres; não existe uma classe feminina como há na ordem do masculino. As mulheres são únicas e só podem ser contadas uma a uma. Não há mulher "artigo definido" para designar o universal, pois não há nela um significante que lhe seja específico. Segundo Lacan, a mulher não existe. E é justamente esta inexistência que vai promover a sua existência enquanto ideal: tanto pelos homens, para os quais uma mulher é o seu sintoma, quanto para as mulheres, que se norteiam na tentativa de alcançar uma identificação feminina. A representação simbólica da mulher é inalcançável, só sendo conseguida pela via da maternidade. Mas, isto a situa como mulher somente enquanto mãe.
Não existindo uma classe das mulheres, a relação entre um elemento do conjunto masculino e um elemento do conjunto feminino não pode ser estabelecida, ou seja, não pode ser escrita. Lacan conclui radicalmente: "a relação sexual não existe". Na ordem da escritura ela permanece na ordem do impossível, embora os parceiros tentem realizá-la na cópula, na tentativa de escrevê-la. Mas não é ao parceiro que se dirige o desejo, e sim ao falo: seja para o homem, uma mulher, da qual ele faz do corpo dela o recorte adequado ao seu falo; seja para a mulher, o órgão, o qual ela encontra no corpo do homem. Se a relação sexual se escrevesse, não haveria a falta; não haveria o desejo. O amor é impensável sem a castração. O humano sempre aspira a este ser que lhe falta e que está irremediavelmente perdido.
A impossibilidade dessa relação pela dissimetria entre os conjuntos se confirma na parte esquerda inferior do quadro. Lacan escreve do lado masculino ( E ), colocando o sujeito como atributo masculino, fazendo partir dele uma seta em direção ao objeto a ( do lado feminino ). Este objeto, do qual o sujeito é separado na sua constituição, está para sempre perdido; não podendo ser articulado como um significante. E é também para Lacan, este objeto, aquele no qual a pulsão faz o contorno podendo assumir várias formas: falo ( como objeto imaginário ), o mamilo, o olhar, a voz. Nele não se vê senão um traço, o qual é acertadamente enunciado por Barthes, que afirma poeticamente: "o amor é um detalhe". A chave do desejo está no real da estrutura. E a causa do desejo, o objeto (a) está estruturalmente perdida.
O fato de haver somente um seguimento partindo de E indica que o homem que se posiciona em face da sexualidade como masculino, ( ou seja, do lado esquerdo da escritura ) vai direto ao objeto que causa o seu desejo, recortando-o sobre o corpo de sua parceira. O recorte do corpo da mulher, colocado pelo homem no lugar de objeto, denega a castração masculina e a inclui no lugar de dejeto, tão bem explicitado na figura da prostituta, simultaneamente desejada e desprezada.
O fetichismo (modelo de perversão), específico do homem, mostra a estrutura do desejo sexual do sujeito em relação ao objeto parcial. É comum encontrar nas análises dos neuróticos essa clivagem do desejo masculino que encontra o prazer no corpo da mulher, separando a "virgem" da "prostituta". Amar e desejar concomitantemente a mesma mulher seria incestuoso, questão essa já elucidada por Freud anteriormente. Geralmente os homens precisam de outra "denegrida" para desejar, seja concretamente ou em nível de fantasia. Para amar e desejar a mesma mulher é necessário que ele arrefeça o respeito por essa mulher; respeito esse que recobre o seu horror ao incesto.
Para uma mulher, o desejo não sofreria esta cisão: é um mesmo homem que ela ama e deseja. Esse amálgama com o amor é que dá ao desejo feminino seu caráter inefável e nebuloso. É normal uma mulher não saber exprimir o que sente. A feminilidade é frágil e vacilante, carecendo sempre de uma identificação que a represente. E, neuroticamente, a mulher tenta inventar uma causa que possa tapar o vazio que ela mesma consiste. Isto nos remete ao que Lacan chama de posição histérica, na qual há o repúdio da posição de objeto sexual que lhe destina a fantasia masculina; a histérica não quer ser objeto sexual de um homem. Na falta de um ponto de apoio para uma identificação especificamente feminina, ela aborda a sexualidade à maneira do homem ( na ostentação fálica ) e tenta também sustentar-se pelo culto de uma feminilidade misteriosa, encarnada no corpo de outra mulher.
Na escritura da fórmula de sexuação Lacan, também trata, em outra parte do quadro (do lado feminino ), da relação da mulher com o seu gozo. Ele escreve o A de A mulher, de onde partem dois segmentos: um que se dirige a S ( A ), do lado da mulher, e que constitui o significante de uma falta no Outro ( tesouro do significante ), desse mesmo Outro que é marcado pela barra ( castração ) fundamental na constituição do sujeito. A mulher, de certa forma, é aquilo que tem relação com esse Outro. É essa relação que lhe dá acesso a um gozo suplementar, da ordem do inefável e do qual o homem não tem acesso de modo algum. O outro segmento vai em direção a f ( do lado masculino ), propiciando o acesso ao gozo fálico ( na relação ao falo simbólico ). E é no órgão do homem que a mulher vai encontrá-lo.
Para compreender a feminilidade lacaniana, é também necessário esclarecer que o Édipo, para Lacan, se institui em três tempos, nos quais há modulação na relação do sujeito ao falo. O primeiro tempo é chamado de etapa fálica primitiva. Nele, o falo está presente na ordem da cultura, como pano de fundo. O desejo da mãe é orientado por ele e a criança é submetida ao capricho materno; seu desejo é o desejo da mãe. Nesse tempo a mãe é fálica e a criança é o seu falo. A criança aí já está presente no desejo do Outro (mãe).
No segundo tempo edípico lacaniano, o pai (como função) intervém como privador ( castrador), separando a mãe do seu objeto fálico e a criança de seu objeto incestuoso. É o momento da intervenção da Lei ( do pai ). Mas, para que a Lei produza seus efeitos é necessário que ela seja veiculada ao discurso da mãe. Lacan vai chamar de metáfora paterna a operação significante, pela qual o desejo bruto da mãe é simbolizado pela intervenção do significante do Nome-do-Pai. Um sentido daí advém: a castração. E é justamente neste tempo edípico que se constituem as possibilidades estruturais neurótica, psicótica ou perversa.
No terceiro tempo o pai intervém não mais como pai onipotente, mas como pai potente, possuidor do falo (que a mãe deseja). O falo é aqui restaurado como objeto do desejo da mãe. Desse tempo dependerá a identificação sexual e a saída do Édipo. Essa identificação vai instaurar-se através do ideal do eu (Ich -ideal ), instância distinta do supereu o qual para Lacan, exerce uma função tipificante na assunção da posição subjetiva: masculina ou feminina. É assim que Lacan descreve a saída do Édipo: "É nessa medida que o terceiro tempo do Édipo pode ser ultrapassado". O menino se identificará com o pai, enquanto possuidor do falo, e herdará as "insígnias", que são da ordem de um traço e que vai lhe garantir a "virilidade", masculinidade esta que mais tarde será usada para abordar as mulheres. No caso da menina, é neste tempo que ela reconhece o homem enquanto possuidor do falo: "ela sabe onde ele está, onde deve ir buscá-lo, do lado do pai, aquele que o tem".
No Seminário III sobre as Psicoses, Lacan postula que a identificação com a mãe se efetua através do desvio rastreado pelo objeto do desejo do pai. Assim, algumas meninas podem encurtar este percurso identificando-se imaginariamente com o pai, constituindo a chamada posição estrutural histérica, já evidenciada anteriormente neste texto. Nela há uma assunção da posição masculina, indicando a dificuldade histérica de alicerçar-se a uma identificação sexual. O corpo de outra mulher é, portanto, o suporte de sua identificação imaginária na tentativa de suprir a falta de um reconhecimento simbólico (do pai). Há uma busca incessante em seu semelhante do traço feminino que lhe falta. Isto pode ser facilmente observado na atenção ou mesmo no fascínio que as mulheres exercem entre si. De certa forma a histérica sente-se traída pelo falo. Tendo passado como menino pela fase fálica e pela castração, ela não herda como ele o reconhecimento simbólico do pai. A assunção da histérica à posição masculina não deixa de ser um tipo de homossexualismo, mas só ao nível descritivo.
Do seu sentimento de ter sido lesada, surgem as infindáveis reivindicações histéricas. Doravante, seu sofrimento e suas queixas serão uma demanda perpétua de reconhecimento simbólico dirigida ao pai. Às vezes esta demanda aparece sob a forma de uma atitude de sacrifício em relação ao pai, esperando uma reparação. A fraqueza do pai, se ele apresentar-se fraco e desvalido, não constitui aí um obstáculo. Ela cultua o pai imaginário, idealizado.
Assim, o sujeito histérico apresenta ao outro (o parceiro, o médico, o analista ) a sua própria divisão subjetiva. O sintoma é o seu enigma a ser decifrado por esse outro. Ela promove o homem e o denuncia, apontando a sua falha, sendo ele frequentemente acusado de não satisfazê-la. Na verdade, a histérica tenta construir um senhor ( Maitre ) para, sobre ele, poder reinar sempre. Ela aguarda a vinda do senhor absoluto que ela não poderia questionar, o qual a subjugaria ou a destruiria totalmente. Na vida de uma grande histérica, há sempre um homem perverso apresentando-se como não-castrado, e que, na complementariedade, acaba por realmente destrui-la.
Lacan estabelece uma diferenciação entre a posição histérica e a posição feminina. Ele afirma que a feminilidade está mais além e que é possível ser alcançada via análise. Isso não quer dizer que exista uma mulher alicerçada em verdade. A feminilidade, neste contexto, de certa forma, é sempre mascarada. Por fazer o homem, a histérica migra para a posição masculina ( V x . f x ), almejando uma relação da ordem da totalidade com a função fálica, com a castração, afastando-se dessa forma do gozo Outro, feminino. Talvez a possibilidade de uma mulher ocupar a posição feminina estaria na supressão do endereçamento do seu sintoma ao pai, o que implicaria a resolução da transferência. Uma mulher que se colocasse na posição feminina guardaria uma relação da ordem do não-todo com a castração e com a feminilidade. Seria feminina sem ser toda mulher. E aceitaria sem repúdio o fato de ser o objeto do desejo masculino.
A mulher é fabricada por um longo trabalho psíquico. Ela é um vir-a-ser, como já alertava Freud. Nem a mãe nem o pai podem lhe fornecer um traço unário que suporte sua identidade pelo motivo de o significante da identidade feminina não existir. Há um lado misterioso, irracional e perigoso na feminilidade. Algo de verdadeiro e falso, luz e sombra, escuridão e rutilância. A mulher é um meio dizer que o homem elabora na especificidade do seu desejo, e a mulher o encarna, sendo esta a única abordagem do real.
Para fugir deste horror vazio que lembra a morte, a mulher busca sempre uma identidade nos artifícios e nas máscaras. Ledos enganos de seres afáveis. Será que quer muito uma mulher ?
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