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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.4 Brasília dez. 2001

 

ARTIGOS

 

Os programas de redução de danos como espaços de exercício da cidadania dos usuários de drogas

 

 

Isabela Saraiva de Queiroz*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta a possibilidade de reconhecimento dos programas de redução de danos como espaços de exercício da cidadania dos usuários de drogas. A autora tem dois objetivos principais: levar o leitor a perceber, através de um percurso histórico, a insuficiência dos tratamentos existentes em apontar saídas efetivas para o uso e abuso de drogas; apresentar os programas de redução de danos como uma alternativa a mais na abordagem do problema, que vem oferecer ao usuário um espaço de reconstrução do seu lugar de cidadão.

Palavras-chave: Uso de drogas, Redução de danos, Cidadania.


ABSTRACT

This work presents the possibility of recognizing damage reduction programs as spaces for the exercising of drug users’ citizenship. The author has two main objectives: convince the reader, through a historic review, of the insufficiency of existing treatments in pointing effective solutions for drug use and abuse; and present the damage reduction programs as a different alternative for this problem, offering to the user a space in the reconstruction of his place as a citizen.

Keywords: Drug use, Damage reduction, Citizenship.


 

 

A fragilidade da vida humana sempre foi um dos principais fatores responsáveis pelo desenvolvimento do conhecimento científico. Com a obtenção e acumulação de saberes o homem pôde desenvolver formas de extinguir ou pelo menos diminuir muitos dos seus sofrimentos, fossem eles físicos ou psíquicos (haja vista o desenvolvimento tecnológico da medicina e farmacologia). Assim, foram-se apresentando inúmeras propostas de tratamento para os transtornos do ser humano e, no seu conjunto, elas são o coroamento de um vasto conhecimento acumulado, continuamente atualizado para satisfazer as necessidades de cada época.

O campo clínico das toxicomanias apresenta-nos uma gama variada de ofertas de tratamento que, em sua maioria, partem do princípio da abstinência, o que torna suas propostas ineficazes na maior parte dos casos. Neste trabalho apontarei uma alternativa aos modelos tradicionais de prevenção e tratamento das toxicomanias – os programas de redução de danos – que ao introduzir a dimensão da particularidade do sujeito no tratamento e não partir da égide da abstinência, dá um novo rumo à questão e aos impasses advindos da atual forma de se trabalhar, representada principalmente pelo modelo proposto pelas fazendas de recuperação.

Utilizarei a teoria freudiana e os conceitos fundamentais de pulsão de morte e supereu para mostrar por que as propostas de tratamento da drogadicção fundamentadas na repressão ao uso não alcançam resultados satisfatórios e, a partir disso, apresentarei a proposta da redução de danos como alternativa aos modelos tradicionais.

Importa lembrar que ao apontar novas formas de se trabalhar, não estamos desconsiderando a importância das fazendas de recuperação. Não se trata apenas de criticar os modelos existentes, mas sim de aprender com seus limites e impasses.

Este trabalho justifica-se pelo fato da toxicomania ser um fenômeno presente em larga escala nos dias atuais, ainda carente de soluções efetivas. Daí a relevância de um trabalho que venha oferecer uma justificativa teórica para uma nova forma de abordagem e tratamento da toxicomania: vem dizer da busca de se construir um modelo de tratamento que reconheça os usuários de drogas como sujeitos particulares e como cidadãos, que têm direito à saúde e a um tratamento que seja realmente efetivo e produtor de sentido.

 

O Impasse dos Tratamentos da Toxicomania

O campo das toxicomanias apresenta-nos uma gama relativamente variada de ofertas de tratamento, que podem ser resumidas em: tratamento medicamentoso com ou sem internação em hospital geral, psiquiátrico ou clínicas especializadas; tratamento não medicamentoso com internação em fazendas de recuperação; tratamento não medicamentoso através do ingresso em grupos de ajuda mútua (como o AA, por exemplo); psicanálise; terapias cognitivas ou comportamentais; tratamento através de técnicas alternativas como acupuntura, florais, homeopatia e, até mesmo, a cura através da fé.

Com exceção da psicanálise, todas as ofertas orientam-se pelo princípio da abstinência. Constatamos, contudo, que além de ser o fim último e desejável do tratamento, a abstinência também é a condição de entrada e permanência nele, o que por si só torna esta orientação contraditória.

Neste capítulo, pretendo realizar um ensaio histórico-reflexivo sobre a questão da toxicomania, buscando ater-me ao ponto específico das ofertas de tratamento. Assim, elejo, do seio das propostas, uma que nos interessa mais de perto, primeiro, por ser utilizada em grande escala e, segundo, por conter em seus fundamentos os princípios do tratamento moral proposto por Pinel no início do século XIX e posto em xeque atualmente pelas propostas advindas do movimento da Luta-Antimanicomial. Estamos falando das Fazendas de Recuperação.

Para tanto, partirei do tratamento moral pineliano, passando pela reforma que constituiu as colônias agrícolas até chegar às comunidades terapêuticas, apontando de que maneira estas propostas estão ligadas em suas conceituações fundamentais e como estas conceituações foram condensadas nas fazendas de recuperação.

 

O Tratamento Moral Pineliano

A figura do médico clínico, surgida no início do século XIX tem em Pinel sua principal e primeira expressão. É ele quem organiza o espaço asilar de maneira classificatória, objetivando a loucura e dando-lhe uma racionalidade fenomenológica, fundando a ciência psiquiátrica que classifica os loucos e os “acorrenta como objeto de saberes, discursos e práticas”.

Pinel na França, Tuke na Inglaterra, Chiaruggi na Itália, Todd nos Estados Unidos, entre outros, serão os principais protagonistas de um movimento de “reforma” através do qual, pela primeira vez, os loucos seriam separados de seus colegas de infortúnio e passariam a receber cuidado psiquiátrico sistemático. Alegadamente centrado em bases humanitárias o movimento generalizou-se com o nome de tratamento moral. Se as amarras que atavam fisicamente os doentes mentais foram efetivamente rompidas, outras surgiram, tanto mais perigosas porque sutis, consentidas e sofisticadas.

O ponto central do sistema de tratamento era a inculcação e o encorajamento de um profundo sentimento de auto-respeito e dignidade nos pacientes e a manutenção de grupos de discussão nos quais os pacientes comentavam seus problemas e se ajudavam mutuamente.

Pinel acreditava que o espírito perturbado podia ser reconduzido à razão com o auxílio da instituição de atendimento. Assim o ambiente do alienado desempenhava um papel capital no tratamento. Era preciso isolá-lo numa instituição especial, primeiro para retirá-lo de suas percepções habituais, aquelas que haviam gerado a doença ou, pelo menos, acompanhado seu despontar, e depois para poder controlar inteiramente suas condições de vida. Ali ele era submetido a uma disciplina severa e paternal, num mundo inteiramente regido pela lei médica. Pela ação dosada de ameaças, recompensas e consolações, e pela demonstração simultânea de uma grande solicitude e de uma grande firmeza, o doente era progressivamente assujeitado à tutela médica e à lei coletiva da instituição, ao “trabalho mecânico” e ao “policiamento interno” que a regiam. O objetivo era “subjugar e domar o alienado, colocando-o na estreita dependência de um homem que, por suas qualidades físicas e morais, fosse adequado para exercer sobre ele uma influência irresistível e para modificar a cadeia viciosa de suas idéias”1.

Tudo isso acarretava um certo número de recomendações institucionais: o veto à violência e às vexações inúteis (correntes, visitas de estranhos), decerto, mas também um pessoal numeroso e bem treinado, habituado a observar e a compreender os doentes, um supervisor chefe que dominasse bem seus homens e fosse totalmente dedicado ao médico, e ainda espaço e possibilidades de trabalho para os doentes. Em suma, o asilo devia ser um centro de reeducação modelar, onde a submissão fosse o primeiro passo para a cura. Como vimos antes, a educação mal feita predisporia à loucura; no asilo, ao contrário, o sujeito adquiriria uma educação modelar, que se prolongaria em conselhos profiláticos para evitar uma recaída.

Em todas as áreas, o tratamento moral visava a uma reforma dos costumes, a uma sociedade sadia e regulamentada.

Em Machado2 , vimos que para Foucault os procedimentos utilizados no interior do hospício para produzir a cura poderiam ser assim resumidos:

• A religião, purificada de suas formas imaginárias e reduzida a seu conteúdo essencial;

• O medo, que deve incutir culpa e responsabilidade;

• O trabalho, que cria o hábito da regularidade, da atenção e da obrigação;

• O olhar dos outros, que produz auto-contenção;

• A infantilização;

• O julgamento perpétuo, que faz do hospício um microcosmo judiciário e do louco uma personagem em processo;

• O médico, responsável pela internação e autoridade mais importante no interior do asilo.

 

As Colônias Agrícolas

As primeiras críticas ao ato fundador de Pinel dirigiram-se ao caráter fechado e autoritário da instituição psiquiátrica e terminaram por consolidar um primeiro modelo de reforma: o das colônias de alienados. Neste projeto, o resgate da razão se daria por meio da recuperação da liberdade ou da “ilusão de liberdade”. Na prática, o modelo das colônias serviu para neutralizar parte das críticas dirigidas ao hospício tradicional e, em que pese seu princípio de liberdade, não se diferenciavam dos asilos pinelianos.

O objetivo das colônias agrícolas era reproduzir a vida de uma comunidade rural e o “armamento terapêutico” mais utilizado era a praxiterapia (ou laborterapia, como é chamado nas fazendas de recuperação de toxicômanos), isto é, o trabalho como fator de cura. O estímulo e a glorificação do trabalho incorporaram-se à ideologia da nascente sociedade burguesa européia, e os ociosos recalcitrantes, os inadaptados à nova ordem, foram jogados na categoria de anti-sociais e duramente reprimidos; trabalho e não-trabalho seria a partir de então mais um ponto de clivagem a estabelecer os limites do normal e do anormal. Como a prática psiquiátrica assimila aos seus critérios de diferenciação do normal e do patológico os mesmos valores da sociedade onde se insere, era de se esperar que se empenhasse em devolver à comunidade indivíduos tratados e curados, aptos para o trabalho. O trabalho passou a ser ao mesmo tempo meio e fim do tratamento3 .

 

As Comunidades Terapêuticas

Muito tempo se passou até a 2a. Guerra Mundial. No período pós-guerra novas questões são colocadas no cenário histórico mundial. A deprimente condição dos institucionalizados em hospitais psiquiátricos passa a ser comparada à lembrança dos campos de concentração, intolerável para a Europa democrática. Somam-se a isso os danos causados pela guerra em um enorme contingente de homens jovens e, diante do projeto de reconstrução nacional, a reforma dos espaços asilares atualiza-se, então, enquanto imperativo social e econômico ante o enorme desperdício de força de trabalho.

As primeiras experiências de “psiquiatria reformada” representaram reformas restritas ao âmbito asilar sendo as Comunidades Terapêuticas uma de suas principais representações.

O termo comunidade terapêutica é consagrado por Maxwell Jones, na Inglaterra, em 1959. Passa a caracterizar um processo de reforma do hospital psiquiátrico, marcado pela adoção de medidas administrativas democráticas, participativas e coletivas. Para tanto, propõe a “terapêutica ativa” ou terapia ocupacional, e novamente temos o mito de que o trabalho seria a forma básica para a transformação dos doentes mentais, pois mediante o trabalho se estabeleceria um sujeito marcado pela sociabilidade da produção. Outra ordem de propostas baseava-se na integração dos pacientes em sistemas grupais, onde seus problemas poderiam ser compartilhados e debatidos, facilitando com isso sua ressocialização. Enfim, por meio da concepção de comunidade, procurava-se desarticular a estrutura hospitalar considerada segregadora e cronificadora. A ênfase na comunicação livre entre equipe e grupos de pacientes e nas atitudes permissivas que encorajam a expressão de sentimentos, implicaria numa organização social democrática, igualitária e não numa organização social de tipo hierárquico tradicional.

As críticas às comunidades terapêuticas referem-se ao seu afastamento do plano de realidade sobre o qual vive a sociedade, já que cria condições ideais dentro do espaço da instituição que não podem ser reproduzidas fora de seus muros4 . Dessa maneira cria-se um ambiente artificial, rigidamente controlado, e incute-se nos loucos a ilusão de que através de um exercício de convivência grupal realizado no interior destas comunidades, eles poderiam resgatar uma suposta autonomia e liberdade. No entanto, seu reingresso no “mundo real” continua “perturbador”, já que não encontram na vida em sociedade as mesmas condições ideais às quais estavam submetidos nas comunidades terapêuticas.

 

As Fazendas de Recuperação

A discussão do modelo terapêutico desenvolvido nas Fazendas de Recuperação ou Fazendas Terapêuticas é ainda praticamente inédito. Devido à falta de bibliografia sobre o tema e para uma melhor discussão deste tópico, utilizarei dados secundários – folders, folhetos, formulários, manuais internos – colhidos diretamente em instituições que podem ser caracterizadas como fazendas terapêuticas. Os grifos são meus.

Grande parte das fazendas terapêuticas funcionam em regime de vida comunitária, obedecendo a um programa fundamentado na disciplina, na espiritualidade e no trabalho como recursos terapêuticos. Note-se bem que vida comunitária, disciplina, espiritualidade e trabalho serão as palavras mestras ordenadoras da discussão, já que traduzem a natureza da proposta terapêutica das fazendas de recuperação e retomam princípios vistos anteriormente no tratamento moral pineliano, nas colônias agrícolas e nas comunidades terapêuticas.

Conforme explicitado nos manuais internos de fazendas terapêuticas, a primeira fase do tratamento – Triagem - tem duração média de 60 dias e é realizada em regime de semi-internato. O objetivo desta etapa é estabelecer um elo positivo entre o dependente e o programa de tratamento. Pretende-se nesse período levar o dependente a reconhecer e admitir sua existência enquanto toxicômano e aceitar o tratamento, estabelecendo assim sua participação nos grupos de ajuda mútua.

Nesta fase do tratamento desenvolvem-se principalmente oficinas terapêuticas, que além de manterem o usuário em produção, os afastam daquilo que nesta abordagem é denominado de imaginação mórbida, isto é, pensamentos “impuros” que podem levar o dependente a desistir do tratamento recém-iniciado. Também têm o objetivo de abordar o dependente, levando-o a questionar suas demandas através da distração e da produção. O fazer torna-se assim possibilidade de construção para mudança. Vê-se com isso que o tratamento define claramente e educa as pessoas sobre as dimensões física, emocional, espiritual, mental e social. É importante resgatar nesse momento os pilares do tratamento moral – grupos de ajuda mútua, disciplina severa e paternal, a religião, o medo e o trabalho - apontando como eles são condensados de maneira muito clara neste modelo de fazenda terapêutica.

Ainda nesta primeira fase, inicia-se o trabalho com a família do dependente, através de reuniões semanais que são condição preparatória (e indispensável) para as visitas que os familiares farão à fazenda. As reuniões de família funcionam como local de desabafo e troca de experiências e têm como cerne das discussões os princípios do Amor exigente (filosofia americana inspiradora de algumas fazendas terapêuticas), os 12 passos do A.A. ou ensinamentos bíblicos.

A segunda fase do tratamento tem duração de 9 meses (simbolizando o tempo de gestação de uma nova vida), em regime de internação. O objetivo principal desse período, é promover a recuperação e o crescimento pessoal. Isso é conseguido mudando-se o estilo de vida do indivíduo através de pessoas interessadas em trabalhar em conjunto para ajudarem-se mutuamente. Neste sentido, sentir-se parte de algo maior que sua própria individualidade é fator especialmente importante para facilitar um crescimento positivo. Assim as pessoas numa fazenda terapêutica são “membros” como em uma organização familiar, e não “pacientes”.

Os membros têm um papel significativo na administração da comunidade e são responsáveis por toda a manutenção da vida comunitária – lavam suas roupas, preparam a comida, cuidam da limpeza do local e das culturas agrícolas existentes. Têm um programa diário de laborterapia (terapia através do trabalho) que garante o engajamento dos membros e evita que algum deles fique ocioso ou isolado dos demais. Os membros mais antigos agem como modelos positivos para que os mais novos os imitem e à medida que o tempo passa “graduações” são dadas aos membros, criando uma hierarquia de recuperação entre eles.

Durante a internação são trabalhados os princípios do amor exigente e os passos do A.A., diariamente, em reuniões específicas para esse fim, assim como acontece com as reuniões de desenvolvimento da espiritualidade.

As fazendas terapêuticas representam um ambiente altamente estruturado, com limites definidos, tanto morais quanto éticos. Empregam-se sanções e penalidades impostas pela comunidade, bem como promoções pelo merecimento e privilégio como parte do processo de recuperação e crescimento. Preconiza-se a não-violência física e verbal e o profundo respeito aos direitos humanos, imprescindíveis para as mudanças no estilo de vida e para a reinserção na sociedade.

Visitas só são permitidas aos familiares a partir do 1º mês de internação. Em algumas fazendas os pacientes fazem visitas às suas casas, a partir do sexto mês de internação. Ao completar o nono mês, há uma cerimônia de “formatura” e o membro retorna à casa – fator por si só gerador de inúmeras “recaídas”. Após a saída da fazenda os membros continuam freqüentando os grupos de apoio e de prevenção à recaída nos quais os princípios vivenciados durante os nove meses de internação são revistos e reforçados pelo grupo, acarretando a manutenção do controle e da disciplina adquiridos na fazenda. Um trabalho de ressocialização para aqueles que ficaram sem trabalho também faz parte do tratamento em algumas instituições. No entanto, o trabalho mais desejado por uma grande parte dos ex-internos é ser Monitor da casa ou da fazenda, isto é, ser o modelo a ser seguido por aqueles que estão iniciando o tratamento.

Ao percorrer os textos representativos das propostas apresentadas ao longo deste capítulo, acerca do tratamento moral pineliano, colônias agrícolas, comunidades terapêuticas e fazendas de recuperação, deparamo-nos com uma série de fundamentos que as tornam semelhantes em suas concepções básicas. Pudemos perceber como as fazendas de recuperação repetem aspectos do modelo pineliano de tratamento ao preconizar como pilares do tratamento o trabalho, a espiritualidade e a disciplina. Lembre-se que em Pinel temos como instrumentos terapêuticos privilegiados o trabalho, a religião e o medo. Também a questão do olhar do outro, enfatizado já no séc. XIX como fator de “cura” é utilizado nas fazendas através dos monitores (geralmente “ex-adictos”) que funcionam como “modelos a serem seguidos”. Os conselhos profiláticos para evitar as recaídas, a laborterapia, o regime de vida comunitária – são princípios presentes em todas as propostas apresentadas.

Uma leitura atenta das quatro propostas (tratamento moral, colônias agrícolas, comunidades terapêuticas e fazendas de recuperação) é suficiente para que se perceba a semelhança existente entre seus fundamentos, ideologias e visões de mundo. Pensemos então nos efeitos desta semelhança.

Há cerca de 20 anos as propostas de uma reforma psiquiátrica que prevê a desconstrução do manicômio e a criação de dispositivos que irão progressivamente substituir a estrutura asilar vêm ganhando espaço e provocando mudanças culturais nas sociedades em várias partes do mundo. Temos visto nascer os NAPS (Núcleo de Atendimento Psico-Social), CERSAMs (Centro de Referência em Saúde Mental), Centros de Convivência, Lares Abrigados, Cooperativas de Trabalho e uma série de outros dispositivos que vêm dizer de uma “reconsideração” do louco em nossa sociedade. Desde que os fatores sociais e políticos que estavam por trás do processo de exclusão do louco foram denunciados por Foucault, vem-se trabalhando no sentido de reconhecer o status de diferença que o louco possui. Tarefa árdua, o reconhecimento da diferença. Para qualquer um. Certo é que, em meio a avanços e retrocessos, algumas conquistas fundamentais foram e continuam sendo conseguidas.

De que maneira, no entanto, os toxicômanos entram nesse processo de conquista de cidadania? É certo que, pela nova lei5 , suas internações deveriam passar a ser feitas nas enfermarias de hospitais gerais, mas não se tem ainda uma discussão efetiva sobre os reais efeitos e observância desta regra. A questão que nos fica então é saber quais foram as conquistas feitas pelos usuários de drogas no que diz respeito ao seu direito à cidadania.

O que continua-se vendo após dois séculos da reforma de Pinel é que, no campo das toxicomanias estamos vivendo um “atraso” catastrófico. Como foi citado no início do capítulo, a maioria das propostas de tratamento continuam repetindo o modelo das fazendas terapêuticas, que recebem parcelas de contribuição do tratamento moral pineliano, das colônias agrícolas e das “bem intencionadas” comunidades terapêuticas. Modelos que já sofreram duras críticas – o próprio Ministério da Saúde reconhece a ineficácia das políticas públicas neste setor - mas que ainda assim continuam sendo amplamente valorizados. Por quê?

Podemos pensar que tais modelos repetem um discurso no qual alguns são detentores de um saber que (ainda que supostamente compartilhado nos grupos de discussão e de ajuda mútua) deve ser tomado como “modelo” e funciona como um tampão, evitando que a fala do sujeito venha à tona, fala esta que apontaria para um mal-estar insuportável, que, no fundo é de todos nós, de nossa condição de humano. O toxicômano encontra na droga uma saída para esse mal-estar e não basta calar o que há de angústia, mas antes, fazer ouvir o que pulsa e elaborar outras saídas possíveis.

Para além das críticas às fazendas de recuperação, devemos lembrar, como pontua Zenoni, que não se trata de abolir as instituições. Se somente considerarmos a instituição em sua função terapêutica, tenderemos a torcer pelo seu fim, pois ela não é terapêutica. No entanto, a instituição guarda uma função social de importância extrema. “Antes de existir para eventualmente tratar do sujeito, a instituição existe para acolhê-lo, colocá-lo ao abrigo, colocá-lo à distância, assisti-lo...”6 . Em alguns casos graves de toxicomania não se trata de fazer um tratamento, trata-se de ser protegido e a instituição constitui a única resposta praticável nesses estados. “Antes de ter um objetivo terapêutico, a instituição é uma necessidade social, é a necessidade de uma resposta social a fenômenos clínicos, a certos estados da psicose, a certas passagens ao ato, a alguns estados de depauperamento físico, que podem levar o sujeito à exclusão social absoluta e até a morte”7. A existência da instituição se justifica pela sua função social e não pelo fato de curar ou não curar.

“É preciso distinguir a dimensão do sujeito e a dimensão do cidadão, do indivíduo, que tem direito a assistência e ajuda. A dimensão do sujeito é a dimensão da implicação, da liberdade, da responsabilidade. Os cuidados não são recusados a um indivíduo, mesmo que o sujeito não se implique.” (...) “É preciso que o sujeito tenha a assistência à qual ele tem direito, com a liberdade de recusar o tratamento.”8

Para Zenoni, o sujeito pode ser acolhido sem ser obrigado a fazer um tratamento. Esse tratamento é deixado como uma opção para o sujeito. Mas essa liberdade dada ao sujeito já tem efeitos terapêuticos.

Enfim, a terapêutica predominante nas fazendas de recuperação retrata, muitas vezes, uma desconsideração dos usuários de drogas em sua condição de sujeito e de cidadão. O fato de muitas vezes impor a entrada no tratamento, ou de negar acolhida se o sujeito não se mantiver abstinente o desqualifica como cidadão. Isto obriga o sujeito a permanecer no ciclo no qual se inscreveu: busca na droga uma saída possível ao mal-estar em que se encontra e, cruelmente, como alternativa à saída que lhe foi possível, encontra apenas a mesma estrutura insuportável que o levou a recorrer a ela.

 

Breves Considerações Psicanalíticas

Na fundamentação teórica deste trabalho, utilizaremos um conceito que está “além da ordem, que ocupa um lugar situado além do inconsciente, além do princípio de prazer”9 : o conceito de pulsão de morte.

O desenvolvimento do conceito de pulsão de morte tem como principais marcos os artigos: Além do Princípio de Prazer (1920), no qual Freud afirma que “uma pulsão seria um esforço inerente ao organismo vivo de reprodução de um estado anterior”10 ; A Denegação (1925) quando nos fala de uma “pulsão de destruição como um desejo geral de negar”11 ; e, finalmente, O Mal-Estar na Cultura (1930) quando reconhece a autonomia da destrutividade na pulsão de morte e a aponta como obstáculo maior à Cultura.

Para os fins deste trabalho, privilegiaremos a formulação conclusiva de Freud sobre a pulsão de morte proposta em O Mal-Estar na Cultura. Segundo Garcia-Roza, quando Freud discute nesse texto o que poderia tornar inócua a destrutividade original do ser humano, conclui que ela – a destrutividade que se opõe à Cultura – deve ser interiorizada, reinviada a seu ponto de partida, voltada contra o próprio eu; resumindo, ela deve ser transformada em supereu. Quando o supereu é estabelecido e a destrutividade internalizada sob forma de autoridade, os fenômenos da consciência atingem um estágio mais elevado e a destrutividade originária do homem é, então, contida. Ele não mais realiza atos destrutivos ou “maus”.

No entanto, a transformação da destrutividade em supereu traz como “efeito colateral” um sentimento de culpa. Este advém do fato do sujeito não conseguir se livrar do desejo de dar vazão à pulsão destrutiva ainda que, por ação do supereu, tenha renunciado a praticá-la; isto é, o desejo persiste e não escapa ao supereu, engendrando o sentimento de culpa no indivíduo. A renúncia pulsional que originalmente constituía o resultado do medo da autoridade externa – renunciava-se às próprias satisfações para não se perder o amor da autoridade – passa agora a ser regida por uma autoridade interna, não possuindo mais um efeito liberador, já que a continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor. Uma ameaça à felicidade externa – perda do amor ou castigo por parte da autoridade – foi permutada, pela tensão do sentimento de culpa, por uma permanente infelicidade interna.

O estabelecimento do supereu é fundamental à existência da cultura, pois é ele quem garante a continência dos impulsos destrutivos, facilitando a ação do impulso erótico que leva os seres humanos a unirem-se em um grupo estreitamente ligado. De outra maneira a pulsão de morte – entendida como potência destrutiva – agiria tendo como alvo a disjunção das unidades, a recusa da permanência e a produção de diferenças.

Assim, a cultura se garante ao preço de um profundo mal-estar em seus membros. “O preço que pagamos por nosso avanço em cultura é uma perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa”12 .

Freud, no segundo capítulo de “O Mal-Estar...”, aponta três medidas paliativas utilizadas pelos homens em busca de alívio para o mal-estar que os acomete como resultado da sua inserção na cultura: a atividade científica, a religião e a intoxicação. Para ele, a mais grosseira, embora também a mais eficaz destas medidas é a intoxicação, pois torna o homem insensível à sua desgraça. Esse método de evitar o sofrimento leva o organismo a buscar satisfação em processos psíquicos internos, com o propósito de tornar-se independente do mundo externo e, além disso, proporciona sensações prazerosas. Daí inferirmos a importância que o uso de drogas tem em nossa sociedade.

O que vemos, no entanto, é que a grande maioria dos programas de prevenção e tratamento da drogadicção tem como pressuposto a possibilidade de se chegar a uma sociedade sem drogas e como objetivo principal a abstinência total, isto é, a eliminação de todo e qualquer consumo.

Partindo dos elementos já apontados anteriormente, reveladores do fato de que as práticas interventivas fundadas sob a égide da abstinência total, da repressão ao uso do proibicionismo não têm conseguido resultados efetivos no campo da drogadicção, somos levados à necessidade de buscar novas saídas para a questão.

Sob o marco teórico da psicanálise pode-se depreender que a maioria dos tratamentos oferecidos aos usuários de drogas baseia-se principalmente no estabelecimento de um supereu forte o suficiente para fazer com que os sujeitos-usuários renunciem ao pulsional. Contudo essa “lei superegóica” muitas vezes é imposta de maneira autoritária e desprovida de sentido o que acaba levando os usuários a uma renúncia “forçada”, que se dá a partir de um ideal dado pelo outro, sendo por isso insustentável. Essa renúncia imposta irá reforçar a instalação de um profundo mal-estar que, por sua vez, atuará no sentido de impelir os sujeitos a um retorno à intoxicação ou, na melhor das hipóteses, a buscarem alívio na religião como promessa de perdão dos seus pecados e de uma vida melhor depois da morte.

Decorre disso que muitas recaídas acontecem pelo fato dos sujeitos não suportarem o mal-estar advindo de sua inserção social como um “ser de cultura”, que renuncia às suas pulsões destrutivas. Diante desse pressuposto, torna-se imperativo voltar o nosso olhar para as possibilidades de amenização do mal-estar, de modo que a inserção do sujeito no mundo da cultura não seja tão danosa e opressora.

Para tanto, o próprio sujeito participaria da elaboração das formas de sua inserção, denunciando aqueles aspectos da nossa sociedade que o levaram ao consumo abusivo de drogas e o modo como esse consumo garante a ele a não implicação em sua própria história.

 

Os Programas de Redução de Danos

Antes de iniciar a apresentação das práticas e políticas de redução de danos, vale lembrar que a dissolução de regras antigas e a formação de novos movimentos são sempre marcadas por fortes emoções, medos e esperanças. Assim, quando nos dedicamos à tentativa de fundamentação de um novo campo de saber, o risco de cairmos em um discurso ideológico e militante pode ser grande.

Para evitar as redes deste engôdo lançaremos mão do fato de que, na literatura sobre o assunto, encontramos dados científicos que sugerem que a abordagem da redução de danos não só é atraente do ponto de vista humano, mas também menos custosa no que se refere aos recursos financeiros, além de mais eficiente quando comparada com as abordagens tradicionais. Com isso, deslocamos o centro da discussão do meramente ideológico para o debate científico, que embora obviamente não seja neutro, serve para subsidiar a tomada de decisões a partir de critérios universalmente consagrados, como eficiência, eficácia e relação custo-benefício.

A redução de danos é um movimento internacional que surgiu em resposta à crescente propagação da Aids na década de 80, embora as origens desta abordagem aos problemas com drogas possam ser remontadas a um período anterior.

As primeiras intervenções, no plano da saúde coletiva, adotadas dentro deste referencial datam de 1926, na Inglaterra, quando da prescrição de opiáceos por profissionais de saúde com o objetivo de possibilitar ao usuário desta droga uma vida “mais estável e mais útil à sociedade”. À época, pressupunha-se, como hoje, ser mais adequado a interrupção completa do uso de opiáceos. No entanto, por reconhecer que seu uso estava intrinsecamente associado às características de vida dos usuários, a prescrição médica da droga poderia minimizar os efeitos mais danosos à saúde dos indivíduos com ela envolvidos.

Antes de tornar-se um conceito e uma estratégia científica a redução de danos deu-se enquanto movimento político. Por volta dos anos 70, na Holanda, vinha sendo estruturada uma política nacional tolerante às drogas. Especificamente no ano de 1972, antes mesmo da emergência da epidemia de Aids, houve a publicação de um documento pelo “Comitê de Narcóticos”, cuja conclusão estabelecia que as premissas básicas de uma política de drogas deveriam ser congruentes com a extensão de riscos envolvidos no uso das mesmas, o que convergia para a aplicação de intervenções via redução de danos. Em 1976 houve uma revisão da “Lei Holandesa do Ópio” a qual passa a diferenciar o tratamento a ser dado às drogas com “risco inaceitável” (como heroína, cocaína, anfetaminas e LSD) e àquelas que oferecem riscos mais baixos como a maconha e o haxixe.

Em um comentário a respeito dessa distinção E.M. Engelsman, sociólogo holandês e um dos principais defensores da redução de danos, assinala: “A esse respeito, os holandeses mostram-se muito pragmáticos e tentam evitar uma situação na qual os consumidores de maconha sejam mais prejudicados pelos procedimentos criminais do que pelo uso da droga em si.”13 Tal política reflete um princípio implícito, segundo o qual seu objetivo “não é erradicação do uso da droga ilícita, mas a minimização do seu dano”. Este princípio é comumente descrito como “normalização”, isto é, redução da demanda através da integração social dos usuários de drogas14 .

Concomitantemente a este processo de desenvolvimento e implementação de uma política holandesa tolerante às drogas, no início dos anos 80, neste mesmo país, um grupo de usuários preocupados com o aumento do número de casos de hepatite e com a possibilidade de limitação no acesso a agulhas e seringas, organizou-se no sentido de obter, através da troca, equipamentos estéreis.

A partir de então, através da auto-organização destes usuários numa espécie de sindicato para usuários de drogas pesadas chamado Junkie-bond (Liga de Dependentes), há um impulsionamento para a geração de novas organizações locais de usuários de drogas, o que culmina na viabilização de propostas de redução de danos em conjunto com o estado holandês. “O ponto de partida da Junkiebond é zelar pelos interesses dos usuários de drogas. O mais importante é combater a deterioração do usuário ou, dito de outra maneira, melhorar as condições de vida e de moradia do dependente. Sua filosofia é a de que os próprios usuários de drogas conhecem melhor seus problemas.”15 A participação dos dependentes associados à Junkiebond levou à implantação do primeiro programa de troca de seringas em Amsterdã, em 1984.

Enquanto isso, em Liverpool, Inglaterra, as estratégias de redução de danos, como prática de saúde pública instituída, encontravam sustentação. A partir de 1985, os dependentes passaram a dispor de uma grande variedade de serviços, incluindo:

• troca de seringas e educação em sua comunidade;

• prescrição de drogas como heroína e cocaína;

• serviços de aconselhamento, emprego e moradia;

• tratamento para a dependência, incluindo internação para desintoxicação.

É de grande interesse assinalar que somente cerca de 10% dos usuários interessavam-se por um tratamento cuja meta fosse livrar-se do uso de drogas16 .

O reconhecimento das intervenções referenciadas na redução de danos como básicas e diretivas deu-se, naquele momento, por intermédio de quatro fatores fundamentais, intimamente vinculados à emergência da epidemia de Aids:

• a intensa infecção pelo vírus HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis, bem como por hepatites, entre usuários de drogas injetáveis;

• a estreita relação entre os casos de Aids e o abuso de drogas, indicado pelas altas taxas de soroprevalência entre os usuários de drogas injetáveis;

• o aumento substancial do número de usuários / dependentes de drogas;

• a certeza de que as práticas interventivas fundadas na repressão e no proibicionismo não tinham conseguido inferir no problema, ao longo de todo o período decorrido.

Assim, é dentro dessa concepção político, filosófica e científica que encontra lugar o conceito de redução quando associado ao uso de drogas e à epidemia de Aids.

Percebe-se, claramente, uma diferença ideológica entre os dois movimentos pioneiros em redução de danos, ou seja, o modelo de Liverpool, o qual se estrutura a partir de justificativas que legitimam a necessidade de intervenções alternativas e eficazes no âmbito da saúde pública, e o modelo holandês, que se funda numa articulação social entre organizações governamentais e um grupo específico da sociedade civil organizada, o que dá a este um cunho mais político e ao de Liverpool mais científico.

Importa lembrar que a redução de danos é muito mais do que uma alternativa à abstinência no tratamento da dependência química e na prevenção do HIV/AIDS. A redução de danos trata do manejo seguro de uma ampla gama de comportamentos de alto risco e dos danos associados a eles. Desse modo, o importante não é se determinado comportamento é bom ou ruim, certo ou errado. Na redução de danos, a ênfase é se o comportamento é seguro ou inseguro, favorável ou desfavorável. A redução de danos centra-se no que funciona (pragmatismo) e no que ajuda (empatia e solidariedade).

Em síntese, adotar condutas de redução de danos pressupõe que suportemos a idéia de vivermos fora do campo dos ideais, encontrando formas alternativas de diminuir prejuízos maiores que possam ser gerados a partir de um único problema.

As ações de redução de danos constituem um conjunto de medidas de saúde pública voltadas a minimizar as conseqüências adversas do uso de drogas. O princípio fundamental que as orienta é o respeito à liberdade de escolha, à medida que os estudos e a experiência dos serviços demonstram que muitos usuários, por vezes, não conseguem ou não querem deixar de usar drogas e, mesmo assim, precisam ter os riscos decorrentes do seu uso minimizados.

 

Sobre o Direito à Cidadania dos Usuários de Drogas

Os Direitos de Cidadania são direitos considerados básicos a partir da realidade de um dado país e não se referem a todos os homens indiscriminadamente, mas aos homens que são reconhecidos como cidadãos de um dado país. Têm portanto um caráter universal mais restrito do que os Direitos Humanos.

São Direitos de Cidadania os direitos civis – que garantem as liberdades individuais; os direitos políticos – que permitem a participação no exercício do poder – e os direitos sociais – que permitem que se desfrute dos padrões que prevalecem na sociedade.

A violação dos Direitos Humanos e dos Direitos de Cidadania tem sido uma prática constante em nossa realidade e os fatores que contribuem para essa situação são muitos e de várias ordens. Ela expressa, em grande medida, o grau de violência de nossas relações sociais e o nível de intolerância da sociedade em conviver democraticamente com as diferenças17 .

Uma das possibilidades de superação desses limites para a convivência democrática entre os diferentes, pautada nos direitos universais – humanos e de cidadania -, passa pela consciência ética, que nada mais é do que a capacidade de reconhecer no outro – ainda que ele seja diferente – a nossa própria humanidade.

No caso específico do uso de drogas, fazemos parte de uma sociedade que, muitas vezes, não reconhece o usuário como cidadão que deve ter seus direitos respeitados.

É nesta lacuna que as estratégias de redução de danos se apresentam, incluindo todas as ações, individuais e coletivas, médicas e sociais, preventivas e terapêuticas, que visam minimizar os efeitos negativos decorrentes do uso de drogas18 . Dever imperativo da saúde pública, tocam às questões da responsabilidade social, da cidadania e dos direitos humanos.

Os defensores da ajuda à sobrevivência19 e dos programas de redução de danos invocam em sua argumentação razões éticas e humanitárias, com base nos interesses da saúde pública e da segurança social. Vejamos alguns dos seus argumentos:

• é inaceitável, eticamente, abandonar e continuar a discriminar os toxicômanos que passaram por fracassos terapêuticos ou que ainda não estão aptos e/ou motivados para mudar por meio do engajamento em um tratamento;

• as medidas de ajuda à sobrevivência visam manter os dependentes dentro da rede sanitarista para poupá-los de uma marginalização e de danos físicos e psíquicos ainda maiores;

• tais propostas querem propiciar melhores chances de reintegração social, capacitando-os, aos poucos, a assumir a decisão de deixar as drogas;

• estas medidas enfatizam a multiplicidade de caminhos para sair das drogas, à qual devem responder ofertas de tratamento altamente diferenciadas, com estratégias adaptadas aos diversos sub-grupos de toxicômanos (idade, classe social, etnia, religião, padrão de uso);

• é fundamental oferecer ao público-alvo um leque de ajuda “de baixo limiar”, sem altas exigências e sem coerções, mas passíveis de responder às suas necessidades momentâneas para garantir a sobrevivência;

• um leque estendido permite manter os toxicômanos na rede de assistência social e sanitarista, oferecendo aos profissionais oportunidades de estabelecer vínculos afetivos e, em seguida, de motivá-los a engajar-se em formas de assistência mais exigentes;

• as medidas em pauta, como a troca de seringas, contêm toda uma vertente preventiva concernente à Aids e outras doenças infecciosas, a ser levada em conta quando se avalia o custo social da saúde pública;

• as decisões políticas devem basear-se na responsabilidade coletiva, não podendo referir-se apenas à perspectiva individual do ideal de abstinência de um determinado drogadito ou de um determinado procedimento terapêutico; elas devem levar em conta todos os fatores intervenientes em uma política coerente de saúde.

Apesar de todas as divergências que surgem na discussão sobre a questão das drogas e a sobre as propostas dos programas de redução de danos, existe um consenso entre profissionais, constatável em nível mundial, quanto à insuficiência de estruturas terapêuticas de atendimento e acolhimento20 . Esse consenso situa-se transversalmente a todas as divergências, apontando a necessidade de priorizar política e financeiramente as intervenções idealizadas, quão polêmicas que sejam, para que a resposta sobre sua pertinência e eficácia possa ser procurada através da experimentação responsável de profissionais engajados. Neste sentido, as discussões tanto da discriminação quanto da ajuda à sobrevivência serão fundamentais para liberar o usuário de drogas do seu isolamento e da sua clandestinidade – mas também para alçar o debate ao nível que verdadeiramente deve interessar, aquele da pessoa humana e das suas aspirações legítimas à cidadania.

O desenvolvimento de estratégias de Redução de Danos mais eficientes e factíveis depende da interlocução franca e respeitosa com os usuários de drogas, o que só é possível com o abandono de posturas condenatórias. Ainda que não se admitam as estratégias de Redução de Danos como legítimo direito dos usuários de drogas e contribuição essencial para a superação de um paradigma tão insatisfatório como a associação imediatista do uso de drogas com o crime ou com diferentes “problemas de saúde”, urge compreender seu papel fundamental no controle de doenças que atingem a todos – HIV e outras doenças transmissíveis pelo sangue ou sexo – e na diminuição dos danos sociais.

O objetivo das ações de Redução de Danos dever ser a inclusão social e o rompimento da marginalização dos usuários de drogas.

 

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Endereço para correspondência
Isabela Saraiva de Queiroz
Rua Paulo Afonso, 92/303 - Santo Antônio
30350-060 Belo Horizonte - MG
Tel.: +55-31 3296-9212 / Cel. +55-31 9953-1456
E-mail : isabelasq@bol.com.br

Recebido 22/03/01
Aprovado 18/05/01

 

 

* Bacharel em Psicologia pela UFMG. Especialista em Saúde Mental- Clínica.
1 Bercherie, P. Os Fundamentos da Clínica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989, p.42.
2 Machado, R. Ciência e Saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981, p.80.
3 Machado, R. Ciência e Saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981, p.47.
4 Amarante, P. (org.). Revisitando os paradigmas do saber psiquiátrico: tecendo o percurso do movimento da reforma psiquiátrica. In: Loucos pela Vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995, p.32.
5 Ver Lei Paulo Delgado que regulamenta a desconstrução progressiva dos hospitais psiquiátricos e a criação de dispositivos de tratamento substitutivos.
6 Zenoni, A. Qual instituição para o sujeito psicótico?, Abrecampos – Ano I – N°. Junho/2000, p.14.
7 Zenoni, A. Qual instituição para o sujeito psicótico?, Abrecampos – Ano I – N°. Junho/2000, p.14.
8 Idem, p.28.
9 Garcia-Roza, L.A. O Mal Radical em Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990, p.127.
10 Freud, S. “Além do princípio de prazer”, in: S. Freud, Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standart brasileira. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.47.
11 Freud, S. “A denegação”, in: S. Freud, Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standart brasileira. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.269.
12 Freud, S. “O mal-estar na cultura”, in: S. Freud, Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standart brasileira. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
13 Engelsman, E.M. apud Marlatt, G.A. Redução de Danos – Estratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999, p. 31.
14 Reale. D. O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade. Dissertação de Mestrado em Medicina Preventiva. Universidade de São Paulo, 1997.
15 Marlatt, G.A. Redução de Danos, p. 31.
16 Idem, p. 35.
17 Sobre esta discussão ver: Manual de Redução de Danos – Ministério da Saúde, Coordenação Nacional de DST e Aids: Brasília, 2001.
18 Bucher,Richard. Descriminação, cidadania e ajuda à sobrevivência. In: Baptista, M. e Inem, C. (Orgs.) Toxicomania: Uma Abordagem Multidisciplinar. Rio de Janeiro: Nepad/Uerj: Sette Letras, 1997, p. 189.
19 Bucher, Richard. Descriminação, cidadania e ajuda à sobrevivência. In: Baptista, M. e Inem, C. (Orgs.) Toxicomania: Uma Abordagem Multidisciplinar. Rio de Janeiro: Nepad/Uerj: Sette Letras, 1997, p. 192.
20 Bucher, Richard. Descriminação, cidadania e ajuda à sobrevivência. In: Baptista, M. e Inem, C. (Orgs.) Toxicomania: Uma Abordagem Multidisciplinar. Rio de Janeiro: Nepad/Uerj: Sette Letras, 1997, p. 193.