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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.4 Brasília dez. 2001

 

ARTIGOS

 

Atendimento psicanalítico a crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual

 

 

Elaine Christovam de Azevedo*

Universidade Gama Filho

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho é fruto de uma pesquisa bibliográfica e de campo realizada na Clínica psicanalítica da Violência acerca do abuso sexual na infância e na adolescência. A Clínica é uma instituição de referência no tratamento de vítimas de violência, que tem como proposta utilizar-se do saber psicanalítico para promover a saúde psíquica de sujeitos que precocemente tiveram que lidar com a dor de terem sido violentados em seus corpos e em suas emoções.O relato desta experiência objetiva a maior compreensão do tema para posterior elaboração de meios para prevenir o abuso sexual, colaborando na construção de uma sociedade mais ética.

Palavras-chave: Criança, Adolescente, Abuso sexual, Psicanálise.


ABSTRACT

This paper is the result of a field and bibliographic research performed at Clínica Psicanalítica da Violência about the sexual abuse during childhood and adolescence. The clinic is a reference institution in the treating of victims of violence, which has the objective of using the Psychoanalytical knowledge to promote the psyche health of individuals, who precociously had to deal with the pain of being violented in their bodies and emotions.The report of this experience intends the better understanding of the subject for a subsequent elaboration of resources to prevent the sexual abuse, cooperating in the building of a more ethic society.

Keywords: Children, Adolescent, Sexual abuse, Psychoanalysis.


 

 

Quando falamos sobre psicologia clínica é comum que se imagine uma sala de atendimento, onde um divã e um sofá servem de cenário para uma relação dual. A psicanálise ocupa relevante lugar neste sentido. Durante muito tempo, esteve estigmatizada como uma ciência de elite. Ainda hoje tal idéia é propagada, sem grandes questionamentos.

Hélio Pellegrino buscou romper com a dogmatização da ciência, inseri-la dentro de um contexto sócio político e cultural e aproxima-la das diversas camadas da sociedade. Seu ideal era transformar sua ciência num instrumento acessível a todos aqueles que desejassem ou precisassem buscar o entendimento de si mesmos, do seu sofrimento, independente de sua posição sócio-econômica. Criou com essa finalidade a Clínica Social de Psicanálise, juntamente com Anna Katrinn, onde os clientes pagavam preços simbólicos.

A proposta da Clínica Psicanalítica da Violência é coerente com a de Hélio, pois procura aproximar-se dos demais setores da sociedade, trabalhando dentro de uma perspectiva inter e multidisciplinar, onde o ser humano é sempre colocado em primeiro lugar e considerado no seu contexto “biopsiquicosóciocultural”. O objetivo da Clínica é aproximar-se cada vez mais das questões que emergem em nossa sociedade, onde lamentavelmente a violência ocupa lugar de destaque. Na atualidade, torna-se cada vez mais comum a demanda de pacientes que sofreram ainda bastante jovens alguma espécie de violência sexual. É uma realidade que já não pode ser ignorada.

O sujeito não passa impune por uma experiência desta ordem, fonte de intenso sofrimento, muitas vezes reduplicada pela insensibilidade daqueles a quem costuma recorrer. Não raramente, a violência física e moral é acrescida a dor do descrédito e até mesmo da inversão do papel vítima-sedutor.

Para abordar um assunto tão delicado, em primeiro lugar é necessário coloca-lo em sua real dimensão. A etiologia e os fatores que determinam o abuso sexual contra a criança e o adolescente envolvem questões culturais (um exemplo é o incesto) e de relacionamento (pode-se destacar, por exemplo, a dependência social e afetiva entre os membros da família) que dificultam a notificação e perpetuam o silêncio. Questões da sexualidade (da criança, do adolescente ou mesmo dos pais dentro da complexa dinâmica familiar) também estão presentes na etiologia do abuso sexual.

O abuso sexual é uma situação em que a criança ou o adolescente é usado para a gratificação sexual de um adulto ou até mesmo de um adolescente mais velho, baseado em relação de poder que pode incluir desde carícias, manipulação da genitália, mama ou ânus, exploração sexual, voyeurismo, pornografia e exibicionismo até o ato sexual com ou sem penetração, com ou sem violência. Por vezes, esta prática inclui elementos de sadismo como flagelação, tortura e surras e exploração sexual visando fins econômicos. Para Michèlle Rouyer, psiquiatra francês, o abuso constituído pela pornografia e pela prostituição infantil “tem efeito perverso devido ao prazer narcísico que provoca na criança; por outro lado as gratificações sobre a forma de dinheiro ou presentes associam a sexualidade, sob sua forma mais degradante, ao interesse imediato”.

A violência física contra crianças e adolescentes abusados sexualmente não é o mais comum, mas o uso de ameaças e/ou conquista da confiança e do afeto da criança.

No abuso sexual a sexualidade está a serviço de necessidades não sexuais: O outro é destituído do seu lugar de ser desejante e forçado a ser objeto de um jogo perverso. É inegável que esta violência deixa marcas profundas no psiquismo das vítimas, o que se agrava pela conotação sensacionalista que é dada aos casos.

O incesto é a forma de abuso sexual mais difícil de ser reconhecida. Embora existam divergências quanto a noção de incesto dentro da própria psicanálise e a díade biologia x psiquismo seja geralmente polêmica, mais que os laços sanguíneos, considerarei a função que o abusador ocupa na vida da vítima. Sendo assim, pode-se pensar em um padrasto, no qual a enteada depositou a sua confiança e delegou o papel de pai. Se dele ela espera carinho e o que recebe é sexo, esta situação será introjetada como um incesto.

Pode-se averiguar na Clínica Psicanalítica da Violência que, estatisticamente, a maior parte dos abusos sexuais foi cometida pelos próprios pais das vítimas, seguido de perto por outras pessoas que dispunham da confiança das crianças como, por exemplo, irmãos. Raramente um abuso desta ordem é cometido por um estranho.

No incesto a vítima freqüentemente fica exposta a sedução perversa do agressor. Além disso, ocorre a desintegração de toda a família, que invariavelmente já era marcada por uma estrutura bastante frágil. E quando existe o envolvimento de familiares há pouca probabilidade de que a vítima ou a pessoa que se torna responsável por ela, parta para um ato concreto, como uma denúncia, seja por motivos afetivos, seja por uma sucessão de medos: do abusador, de perder os pais, de ser expulso de casa, de que os outros membros da família não acreditem em sua história ou simplesmente de ser o (a) causador (a) da discórdia familiar.

Uma experiência sexual precoce não apenas produz efeitos devastadores no psiquismo infantil, como abala profundamente toda a família da criança, que se vê as voltas com processos, interrogatórios, inquéritos, e é obrigada a confrontar-se com uma realidade, da qual preferiria não tomar conhecimento. Tilman Furniss desenvolveu um trabalho com crianças vítimas de abusos e concluiu que quando a mãe e “cuidadores não abusivos” não foram diretamente envolvidos na entrevista de revelação, torna-se ainda mais difícil para eles acreditarem que tal violência possa ter acontecido com aqueles por quem zelam. Ele cita como exemplo o caso de uma mãe, que mesmo diante da confissão do abusador preferiu acreditar que este estivesse mentindo, e colocou a criança sobre tal pressão, que a equipe terapêutica precisou denunciá-la por violência emocional.

Não é de se estranhar que muitas mães sintam-se culpadas de não terem protegido suficientemente o filho ou mesmo de tê–lo deixado sobre os cuidados de alguém no qual também depositaram confiança, freqüentemente, um homem que elas mesmas escolheram para viver e que chegou a ser seu marido e pai deste filho que se tornou vítima de sua perversão. A experiência da Clínica Psicanalítica da Violência revela que o trabalho psicanalítico flui com melhores resultados quando as mães ou responsáveis não abusivos iniciam sua própria análise paralelamente a da criança. Um dado interessante é que o abuso, em geral, ocorre durante a visitação, na própria casa do agressor, que é divorciado da mãe da criança. Por isto é tão comum encontrar casos em que o pai perverso tenta subverter a ordem das coisas, rotulando sua ex-mulher de “mentirosa”, “vingativa” e acusando-a de manipular o (a) filho (a) contra ele. Coloca-se a vítima no lugar de culpado induzido. Este é um outro trabalho realizado pela análise: fortalecer tanto a vítima quanto a mãe para suportar tais pressões.

Em geral, a criança fica dividida entre o amor que sente pelo progenitor e o ódio diante da violência física e emocional exercida por este. A ambivalência afetiva, natural em determinada fase do desenvolvimento, assume proporções que o ego do pequeno, ainda bastante fragilizado, não tem condições de suportar. É importante esclarecer ainda que estas crianças não vivenciam a situação edípica, que é uma fase estruturante do sujeito, já que a situação fantasística concretiza-se de maneira abrupta, dificultando-lhe a possibilidade de descobrir-se como ser único e desejante, a partir da saída encontrada para o complexo, como ocorre nas situações de desenvolvimento normal. Ferenczi faz com maior clareza esta distinção quando diz que “… as crianças, quase todas, sem exceção, brincam com a idéia de ocupar o lugar do progenitor do mesmo sexo, para tornar-se o cônjuge do sexo oposto, isto, sublinhe-se, apenas em imaginação. Na realidade elas não quereriam nem poderiam dispensar a ternura, sobretudo a ternura materna. Se no momento dessa fase de ternura, se impõe a criança mais amor ou um amor diferente do que elas desejam, isso pode acarretar nas mesmas conseqüências patogênicas…”.

A situação se complica quando o incesto funciona como mantenedor da própria família, isto é, a filha supre as insuficiências da relação conjugal e o pai não precisa buscar satisfação sexual fora de casa. Tem-se aí uma justificativa para a passividade e mesmo a cumplicidade silenciosa de muitas mães, que se afastam de suas filhas no momento em que estas precisam denunciar o incesto. Neste caso, a equipe profissional que vier a lidar com esta criança indubitavelmente irá defrontar-se com uma família que nega a violência.

Muitas vezes, o segredo só é rompido na puberdade ou mesmo na fase adulta, embora a violência tenha sido perpetuada por muitos anos. É difícil para as crianças saberem em quem confiar após terem sido abusadas, dentro de suas próprias casas, por alguém no qual depositavam amor e confiança. O pai, que deveria ocupar o lugar da lei, resguardando a criança de colocar-se como “falus” materno, além de não assumir sua função, coloca-se justamente num papel contrário. Não há espaço para a lei enquanto interdição do gozo. A criança é colocada unicamente como causa de prazer, objeto de uso de um pai perverso. Em seu artigo, “A violência silenciosa do incesto”, a Dra. Graça Pizá, diretora da Clínica Psicanalítica da Violência, nos diz que “o pai incestuoso ocupa o lugar da permissividade, da violência, da pulsão de destruição, através de uma ruptura vital, libidinal, decisiva e podendo ser na maioria dos casos irreversível, tanto na dimensão do gozo, quanto na dimensão do castigo, da sanção, da culpa”. Como resultado, tem-se uma criança impedida de se desenvolver tanto sexual quanto social e moralmente. A única forma de conseguir suportar o incesto é fazendo uso de mecanismos de defesa como a denegação, preferindo ver no ato perverso do adulto que a submete a seu gozo, uma possível expressão de amor e carinho. Ainda segundo a Dra. Graça “,… curiosamente o incesto pode permanecer em alguns casos, como uma forma da criança se defender do conflito edípico, daí a ambivalência de seus sentimentos identificatórios”.

Mesmo quando a família tenta efetivamente proteger a criança, seja de um agressor com quem mantém uma relação de afeto ou de uma situação traumática vivenciada com um estranho, pode sentir-se desorientada, sem saber como alcançar o seu intento. Seria importante que a mãe tranqüilizasse a criança, demonstrando que acredita nela e não a culpa, que está triste pelo que aconteceu, mas satisfeita por ela ter-lhe contado e fará o melhor para protege-la e dar-lhe suporte. Mas a mãe pode estar muito atormentada para conseguir tomar decisões sensatas. Através da análise, ela se fortalecerá e poderá então dar ao filho o apoio de que ele tanto precisa.

Quando o incesto ocorre por parte da mãe, é ainda mais difícil de ser detectado, pois, é ela quem naturalmente tem um contato mais íntimo com o corpo da criança, seja dando banho ou vestindo-a. É fácil esconder o abuso sob uma máscara de cuidados maternos erotizantes. Segundo Françoise Dolto, “a mãe incestuosa é aquela que se recusa em deixar nascer a alteridade da criança”. Com base em sua experiência, a Dra. Graça nos diz que “é freqüente observarmos na Clínica uma fusão do corpo da mãe, que vai além da realidade orgânica nutriente para se cristalizar, para bloquear todo o processo de organização libidinal da criança”. Nos casos mais graves, há ainda a produção subseqüente de uma psicose, com a perda de limites entre seu corpo e o corpo do outro. O abuso incestuoso materno coloca o indivíduo numa situação de risco extremo, sendo necessária uma intervenção das mais drásticas por parte do psicanalista, para que seu ego não se desestruture totalmente.

Ainda que a violência sexual não se constitua de um incesto, as marcas psíquicas são profundas e a imagem corporal torna-se dilacerada. Porém, esta pessoa, certamente, terá mais possibilidades de falar sobre o assunto e elaborá-lo, pois o sentimento de culpa subjacente ao abuso – derivado da fantasia de que o teria provocado – costuma ser bem menor, além de não haver a necessidade de utilizar-se e de mecanismos compensatórios como a denegação, caso mais freqüente em sujeitos que vivem o incesto.

O trabalho da análise, em ambos os casos, permitirá uma simbolização e rememoração da violência sofrida e no caso específico do incesto o restabelecimento de mecanismos identificatórios transferenciais, permitindo uma nova construção psíquica.

Quando a violência sexual ocorre com um adolescente, o descrédito é uma reação comum, pois estes já contam com um corpo sexuado de adulto e evocam menos ingenuidade que as crianças, sobretudo, nestes tempos de erotização precoce. No entanto, a experiência demonstra que são bastante raros os casos que não envolvem o abuso real. Segundo o Dr. Patrick Alvin, médico francês, “ao contrário das verdadeiras vítimas, que vivem por muito tempo o medo de desvendar o seu segredo ou simplesmente de tornar a falar sobre ele, as mitômanas não param de contar a sua história para quem quiser ouvir” e ainda “… um outro caso de jovens mitômanos não deveria servir de exemplo ou álibi perpetuamente reiterado para justificar a desconfiança sistemática em relação a toda descrição de agressão sexual por parte de um (a) adolescente”.

Há algum tempo atrás, os jornais noticiaram o caso de uma adolescente de doze anos, que teria engravidado devido ao estupro por parte de um vizinho. É preocupante que a discussão tenha se voltado exclusivamente para a validade de um aborto, tendo sido deixada de lado a violência sofrida pela menor. Mais espantoso ainda foram os comentários acerca de uma possível sedução da menina, colocando-a num lugar de responsável maior pelo que lhe acontecera. Em primeiro lugar, não descarto a existência da sexualidade infantil, mas é preciso que se saiba diferencia-la de uma sexualidade adulta. Ainda que a adolescente houvesse seduzido consciente ou inconscientemente um adulto, caberia a este a responsabilidade de não se deixar envolver, pois embora possa apresentar um desenvolvimento físico de adulto e ser, por vezes, bastante atraente, nesta idade ainda não dispõe de maturidade psíquica para um ato de tal natureza e seu ego, certamente, não terá condições de suportar a carga de violência que tal experiência implica.

É comum nos casos de adolescentes abusados esta inversão, em que a própria família projeta maciçamente a culpa sobre a vítima. Nos casos incestuosos podem inclusive acusa-la pela desestruturação da família. A retratação pode então ocorrer - pois, o jovem não consegue mais suportar as pressões – sendo normalmente interpretada como prova do caráter infundado da acusação. Mas a realidade é bem mais complexa. Segundo Dr. Alvin “… durante a crise de revelação e, sobretudo, nos quadros de abuso sexual intrafamiliares subestima-se a ambivalência e a culpa da criança, da mesma forma como se ignora quase sempre a série de pressões familiares contra as quais é muito difícil lutar. A retratação, na maior parte dos casos, visa, portanto, restabelecer a aparente coesão familiar que precedia a descoberta. Nesse sentido é um verdadeiro sintoma de adaptação trágico, pensando bem, que deveria a priori reforçar as suspeitas de abuso e não ao contrário”.

O que estas crianças e adolescentes nos pedem, ainda que não o expressem verbalmente é que acreditemos neles, em seus medos e em suas certezas e contradições.

É possível perceber nos indivíduos que sofreram uma violência sexual uma alteração da imagem corporal, o que é facilmente observável pelos desenhos que produzem em análise: mãos e pernas ausentes e ênfase exagerada nos órgãos genitais. Como diz Michèle Rouyer, “o corpo é sentido como profanado; há perda de integridade física; sensações novas foram despertadas, mas não integradas, a criança exprime a angústia de que algo se quebrou no interior de seu corpo”.

É comum notarmos nos desenhos destas crianças a presença de olhos persecutórios e mãos soltas no espaço, provavelmente, evocando a figura do agressor sexual. Isto remete a angústia persecutória, invariavelmente, encontrada nestes casos.

Um denominador comum às crianças vítimas de abuso é um conhecimento sexual inadequado para a idade. Muitas são capazes de descrever com detalhes um órgão sexual masculino e uma relação sexual. A masturbação exacerbada é também forte indício deste tipo de violência, facilmente compreensível se consideramos a sexualidade infantil. É evidente que, misturado a dor e a angústia, a criança sente prazer, o que só contribui para aumentar a confusão em que se encontra. Tais sentimentos podem provocar uma inibição que a impede de investir nos objetos do mundo e resvala apenas no prazer narcísico.

Há também casos em que o abuso não é necessariamente acompanhado de culpa ou inibição, como o que Hilda Hist descreve no seu polêmico livro “O caderno rosa de Lori Lamb”, onde uma menina de oito anos relata o prazer sentido com a prostituição. Não é impossível que na clínica o analista defronte-se com situações parecidas, porém deverá tomar cuidado para não entrar num jogo equivocado. É preciso ter consciência de que uma criança com tais reações só as têm por ter vivido uma experiência sexual precoce para a qual não estava preparada e o prazer do qual fala é apenas uma descarga de energia, o outro não existe enquanto sujeito da mesma forma que ela também não existiu e por isso teve o seu corpo invadido.

Um outro sintoma, bastante grave, que pode ocorrer é a reprodução do ato libidinoso com outros. É preciso cuidado, porém, para não confundir uma brincadeira sexual infantil com uma violência de fato. A cena a qual me refiro remete mais a uma tentativa do pequeno agressor de tentar entender o que ocorreu com ele, do que propriamente a uma brincadeira inocente ou um ato perverso. Vale esclarecer que embora não necessariamente uma vítima de abuso venha a tornar-se um perverso, esta é uma conseqüência possível quando não consegue encontrar esta resposta por uma outra via. E que a violência sexual sempre traz consigo a eclosão de uma patologia, seja uma neurose grave, uma psicose ou a própria perversão. Lacan diria que esta funcionaria como um determinante para a quebra da estrutura do sujeito. Porém, estou convicta de que os sintomas produzidos por esta “quebra” podem ser aplacados com um trabalho sério e responsável e também de muito amor, não apenas por parte da equipe interdisciplinar (assistente social, psicólogo, advogado), mas também por parte das pessoas de sua família nas quais a criança possa confiar.

A criança é ao mesmo tempo vítima e testemunha do abuso sexual. É o depoimento dela que denuncia o abuso e provoca ou não o procedimento de resguardo e eventualmente de punição.é o seu testemunho que deve confirmar ou anular a veracidade do depoimento, a realidade dos fatos e sua qualidade de abuso ou violência. Devido a isso, é comum a chamada “síndrome do segredo”.

De acordo com Summit, em seu artigo “Child Abuse and Neglet”, a criança aparece duplamente como vítima, do abuso sexual e da incredulidade dos adultos, e cria mecanismos para adaptar-se a esta situação. Daí muitas vezes, a confusão que causa ao desmentir a queixa que havia feito, acabando por reforçar os adultos em seus preconceitos. É impossível que fiquemos impassíveis diante de tal situação. A primeira dúvida que surge é: Por que o segredo? Pois bem, a resposta é mais simples do que parece. De acordo com Summit “o abuso sexual só ocorre quando a criança está sozinha com o adulto e não deve ser partilhado por quem quer que seja”. O segredo é preservado por ameaças como: “Não diga nada a sua mãe, senão ela vai me odiar” ou “Se você contar para a mamãe, ela vai morrer”, que tornam os efeitos da revelação ainda mais perigosos do que o próprio ato. Quanto a submissão, é explicável pelo fato de que normalmente ensina-se a criança a ser desconfiada com estranhos, mas afetuosa e obediente com os adultos que cuidam dela. Ocorre que na maioria dos casos o abusador é alguém conhecido, daí a fraca resistência da vítima. Sem saber o que fazer e sem entender o que de fato está lhe acontecendo, o pequenino adapta-se: “Se a criança não procurou imediatamente uma ajuda e não foi protegida, sua única opção possível é aceitar a situação e sobreviver, ao preço de uma inversão de valores morais e alterações psíquicas prejudiciais a sua personalidade” (Summit, 1983 ). Sobrevive, seja pela identificação com o agressor, como se ambos fossem um só, seja pela clivagem do ego – funcionando como se tivesse várias personalidades – ou mesmo pela conversão da experiência no seu oposto: o que era ruim é afirmado como bom. Graças a tais mecanismos a revelação do abuso acaba se dando tardiamente. Summit aponta que “diante do risco de catástrofe que a revelação provoca, a criança optará por retratar-se, sobretudo porque é o que lhe esperavam os interventores médico-sociais, que mais temem as conseqüências da revelação do que as conseqüências do abuso sexual no funcionamento psíquico da criança e em seu desenvolvimento. O conhecimento desta síndrome permite melhor abordagem preventiva e terapêutica dos abusos sexuais. Quanto mais apurada for a formação das pessoas, maior será sua abertura para aceitar a realidade dos fatos, podendo assim oferecer à criança uma ajuda mais adequada. Quando as crianças estiverem em terapia, os terapeutas correrão menos riscos de tratar o abuso como um fantasma”. Furniss alerta os profissionais que lidam com estas crianças sobre o perigo de se confundir comunicação inconsciente e segredo. Para ilustrar, ele nos fala sobre uma criança que durante a análise fala sobre pesadelos de conteúdos sexuais e tem sua comunicação interpretada como parte de fantasias inconscientes. Sensatamente, Furniss nos diz o seguinte: “Os profissionais devem reagir de modo muito diferente quando uma criança tenta comunicar os fatos do abuso sexual. Se existe alguma suspeita de que a criança pode estar conscientemente indicando o abuso sexual, esta comunicação jamais deve ser interpretada. Em vez disso, a criança deve receber licença terapêutica explícita para se comunicar: “A criança pode estar percebendo muito bem o que está fazendo e testará secretamente se nos interessamos pelo aspecto de realidade do abuso sexual, se somos capazes de ver a realidade na sua comunicação e se ela pode confiar em nossa ajuda”. Ele cita ainda sua própria experiência, onde por várias vezes, crianças que lhe foram encaminhadas como psicóticas (pois assim foram rotuladas por terapeutas) tentavam apenas comunicar a realidade de um abuso sexual.

Muitas vezes, as crianças são punidas por ousarem falar de determinados conteúdos sexuais. Os adultos brigam e se esquecem de perguntar como puderam ter acesso a tais informações. Pode-se objetar que a televisão e os demais meios de comunicação seriam os responsáveis pelas “fantasias” dos pequenos, porém, aqueles que aprenderam a realmente ouvir uma criança, sabem que há uma diferença significativa entre o discurso de uma criança que brinca com a sexualidade para a qual começa a despertar e uma outra que de fato vivenciou uma situação sexual para a qual não estava preparada. É espantoso como tais crianças conseguem descrever com detalhes a anatomia do outro ou mesmo reproduzir com perfeição cenas de caráter sexual, que não poderiam ter aprendido somente pela observação.

Nem sempre é fácil perceber essas manifestações. Além de aprender a ouvir uma criança, tarefa essa, sem dúvida, muito mais complexa do que parece, o analista defrontar-se-á com uma série de dificuldades de outra ordem, como a pressão da imprensa, intimações judiciais, pedidos de laudo. Mais do que nunca precisará ser ético e resguardar a cidadania do seu jovem cliente.

A experiência tem demonstrado que quando se consegue o afastamento da criança e do abusador, suspendendo, por exemplo, as visitas paternas, o quadro de desestabilização psíquica evolui consideravelmente, aumentando as chances de um prognóstico favorável. É o advogado que trabalhará para que isto ocorra,e para tal, contará com o apoio daqueles que lidam diretamente com a vítima como os profissionais de saúde. Quanto ao magistrado, caberá a ele tomar uma decisão que poderá interferir profundamente na vida da vítima. A integração da equipe ajudará a enfrentar as dificuldades, com as quais, sem dúvida, se defrontará.

O lidar com o abuso sexual não começa com a família ou a vítima mas com a própria atitude da equipe em relação ao sexo e ao abuso da criança. Uma das principais dificuldades é a própria comunicação. Um analista que se inibe ao tocar no tema jamais conseguirá que uma criança aborde na análise o abuso sexual, pois ela sentirá esta inibição e compreenderá que este é um assunto proibido, ou seja, acabará por aumentar ainda mais o conflito do pequeno analisado. Do mesmo modo, os médicos nem sempre tem a sensibilidade necessária para lidar com uma criança obrigada a submeter-se a um exame de corpo de delito, podendo fazer com que a criança sinta este momento como uma nova invasão. Tilman faz um paralelo bastante interessante: “Médicos inexperientes ou não tem coragem de olhar para a vagina ou o ânus da menina, ou correm o risco de metaforicamente mergulharem entre as pernas da criança de uma maneira que pode ser extremamente ansiogênica e assustadora para ela” e comenta que: “ A natureza sexual do abuso pode tornar muito difícil para os profissionais uma comunicação apropriada e explícita. Nossa própria vergonha, embaraço e sentimento de voyeurismo podem interferir com uma posição profissional neutra.

Outra dificuldade é quando o abusador goza de prestígio em nossa sociedade, caso mais comum do que se imagina. Esses aparentes senhores respeitáveis acabam por manipular a situação de tal modo, que ficam parecendo as vítimas de uma cilada e não os culpados. Devido a isto, podem contar com a simpatia de profissionais despreparados, que não estão aptos a lidar com tais artimanhas. Alguns advogados, médicos e psicólogos – inclusive conceituados em sua prática – preferem defender o abusador à vítima. É bem verdade que, às vezes, não apenas por simpatia a este, mas, sobretudo, pelas recompensas que possam vir a ter assumindo a defesa de um homem “importante”. É impressionante que alguns profissionais façam laudos acerca do abuso sem ter estado com a criança uma única vez! É dever dos profissionais sérios, que realmente se interessam pelo esclarecimento da situação e o bem estar das vítimas, oporem-se a este absurdo. Certamente antiético não é ir contra o parecer de um colega e sim permitir que uma criança ou adolescente continue exposto a uma violência que o fere cada vez mais.

Cabe ao analista a sensibilidade de perceber as nuances delicadas deste tipo de caso, fazendo com que a pessoa que busca uma ajuda terapêutica perceba que ela é vítima e não culpada ( mesmo que julgue que, por algum motivo, provocou a situação) e que ela pode encontrar novos caminhos. As marcas certamente ficarão, mas sua vida não se paralisará por conta do trauma sofrido se ela puder, durante seu percurso terapêutico, reconstruir sua imagem corporal e traçar suas saídas sublimatórias.

Não é um trabalho fácil, pois exige empenho, dedicação e a disposição para lidar com o lado mais sombrio do ser humano. O psicanalista deve ter consciência de que trabalhar com crianças sexualmente abusadas interfere no seu psiquismo e pode despertar sentimentos bastante conflituosos que vão desde a compaixão pela vítima e repulsa ao agressor até uma espécie de “turvação”, que o impeça de enxergar coisas essenciais ao decorrer da análise.

Portanto, além da supervisão deveria submeter-se ao seu próprio processo analítico para trabalhar seu material inconsciente recalcado e conhecer-se a fundo, inclusive em suas limitações. A leitura, assim como a atualização acerca do tema e a participação em grupos de estudos, é essencial mas, sobretudo, a sensibilidade, pois é este sentimento aliado a uma autêntica empatia a vítima que o levará a auxiliar o analisando na elaboração da vivência traumática.

A psicanálise vem obtendo resultados bastante satisfatórios no atendimento a vítimas de violência sexual. É claro que tais resultados são fruto de um trabalho árduo e diferenciado. A partir de seu percurso analítico é permitido ao sujeito compreender o que se passou com ele, entender que foi vítima de uma violência e que não precisa paralisar sua vida e seus investimentos libidinais e reconstruir, aos poucos, uma imagem corporal dilacerada. Fortalecido emocionalmente terá condições de resistir aos impactos desta experiência limite, suportando as pressões do meio, evitando a autotortura e encontrando saídas para o seu drama através de uma via sublimatória. A análise propiciará a este sujeito a redescoberta de si mesmo enquanto ser humano digno de amor e respeito. Como diz a Dra. Graça Pizá: “Ser alguém e possuir um corpo ainda pulsando. este é o tempo de sua análise, tempo de virar o cinismo, a vergonha, o medo imposto e descobrir, longe de seu tirano íntimo, o maravilhoso”.

Ainda hoje, há muitos mitos acerca da violência sexual, sobretudo, quando se trata de quadros de abuso sexual intrafamiliar. O silêncio e o desconhecimento apenas colaboram para a permanência de uma situação que vitimiza milhares de pessoas, em todo o mundo. É preciso falar, sem medo, do que efetivamente é a violência sexual, pensa-la como um elemento presente em nossa cultura e assim nos permitirmos pensar não somente as causas, mas também as soluções para este tipo de violência.

O abuso sexual é uma situação bastante complexa à medida que envolve um menor, seus pais, possível quebra do sigilo profissional e mesmo relações coma justiça. Mas antes de qualquer coisa, é preciso lembrar que o conceito de ética remete a uma busca pela felicidade e pelo bem-estar do cidadão. Nada fazer é compactuar com a violência sofrida pelo menor. Segundo o Código de Ética, “O psicólogo colaborará na criação de condições que visem eliminar a opressão e a marginalização do ser humano”. Sendo assim, a tomada de uma atitude mais diretiva significa justamente criar tais condições para impedir que seu cliente continue sendo oprimido. A primeira providência seria um contato com os pais na presença da criança a fim de averiguar a dinâmica familiar e possibilitar ao seu cliente expor no setting a sua versão dos fatos e defrontar os pais com sua dor. Com a devida permissão do jovem, o analista poderia sim, tocar diretamente na questão do abuso sexual, ainda que de forma cuidadosa. Caso a violência se revele nesta sessão, será fundamental que se proponha outras e que a família seja trabalhada como um todo, principalmente quando for detectado o incesto, posto que este invariavelmente ocorre com famílias que até podem ostentar uma “capa”de perfeição, mas são desestruturadas.

Se for impossível o contato com os pais ou se eles sumirem após a revelação, será preciso averiguar a quem se pode recorrer nesta situação e denunciar a violência a quem de direito. O código de ética dá subsídios para isto, ao colocar como responsabilidade do psicólogo: “Zelar para que o exercício profissional seja efetuado com a máxima dignidade, recusando e denunciando as situações em que o indivíduo esteja correndo risco ou o exercício profissional esteja sendo vilipendiado”. Neste caso fica evidente tanto o perigo a que o menor está exposto quanto a “sabotagem” promovida pelos genitores a sua psicoterapia, expressa muitas vezes por ameaças de rompimento da análise.

Havendo incesto seria interessante que o responsável não abusivo fosse informado, se possível na presença do analista. Porém, se não na presença do profissional, que pelo menos esteja ciente do que acontece com seu filho para que possa posicionar-se. Caso – como acontece muitas vezes – a mãe prefira se posicionar ao lado do cônjuge abusador, o mais indicado é que seja eleita uma outra pessoa em quem a criança confie para orienta-la, pois, se a existência do abuso sexual for comprovada faz-se necessário o afastamento entre vítima e agressor. Supondo que esta pessoa não exista ou se concentre justamente na figura do analista, acredito que este deva apoiar seu cliente, estando ciente de que esta situação encaixa-se naquelas previstas pelo art.27 do Código que aponta: “A quebra do sigilo só será admissível quando se tratar de fato delituoso e a gravidade de suas conseqüências para o próprio atendido ou para terceiros puder criar para o psicólogo o imperativo de consciência de denunciar o fato”.

O cliente deve ser comunicado acerca desta denúncia e mesmo orientado sobre procedimentos cabíveis. Isto nada tem haver com “quebra” da neutralidade – já que a situação refere-se a uma análise – mas sim, com respeito pela dignidade do ser humano. Tal idéia também pode ser apoiada no código de ética, que cita como um dos princípios fundamentais da profissão o seguinte: “O psicólogo, no exercício de sua profissão, completará a definição de suas responsabilidades, direitos e deveres de acordo com os princípios estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos...” Lembremos que esta situação transcende a análise e conseqüentemente o código de ética do psicólogo. Ao nos remetermos a Lei 8.069 do Código Civil, Cap II, veremos que toda criança ou adolescente tem direito a liberdade, ao respeito e a dignidade, que “o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. E no art.18 do capítulo citado encontramos ainda que: “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. O psicólogo, mesmo o psicanalista não constitui uma exceção. Para sentir-se mais seguro de sua ação, portanto, seria aconselhável orientar-se juridicamente sobre o caso, buscar uma supervisão adequada e inteirar-se sobre os transmites do Conselho a fim de agir da melhor maneira possível. Se for o caso, conforme determina o código, “o psicólogo colocará o seu conhecimento a disposição da justiça, no sentido de promover e aprofundar uma maior compreensão entre a lei e o agir humano, entre a liberdade e as instituições judiciais”. Porém, é interessante ressalvar mais uma vez, que o fará unicamente em benefício do seu cliente,e portanto, revelará apenas o que for de crucial importância para o andamento do processo que venha a se instaurar. O dito, neste caso, deverá ser comunicado ao jovem cliente, que tem o direito de posicionar-se de alguma forma, sendo que seu próprio tratamento analítico, deve auxilia-lo para que se fortaleça nesse sentido.

Uma maneira eficaz de combate e prevenção ao abuso sexual é através de um maior preparo dos profissionais que atuam mais diretamente com os seres humanos, não somente psicólogos, mas também pedagogos, médicos, fisioterapeutas, professores e outros mais. Deveria ainda haver um trabalho de esclarecimento visando despertar neles um maior interesse pelos sinais que a criança apresenta de que algo vai mal; sinais estes que tanto podem apresentar-se no corpo, através de uma somatização, como através de uma mudança súbita de comportamento.

Ficam aí as sugestões para que sejam desenvolvidos mais trabalhos neste sentido, tendo, é claro, o cuidado de evitar o extremo do sensacionalismo. É preciso ter em mente que o que realmente interessa é abrandar o sofrimento de um ser humano ou mesmo evitar que tal violência continue se perpetuando. Há ainda alguns países onde são realizados trabalhos de orientação com jovens acerca da prevenção a agressão sexual. De qualquer maneira, o importante é não ficar de braços cruzados diante destes quadros de invasão e violência extrema.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Elaine Christovam de Azevedo
Clínica Psicoanalítica da Violência
Rua Barão da Torre, 231/sala 101- Ipanema
22411-001 Rio de Janeiro - RJ
Tel.: +55-21 2521-3575
E-mail: cliviol@br.inter.net

Recebido 22/03/01
Aprovado 18/05/01

 

 

* Acadêmico de Psicologia da Universidade Gama Filho em 2000.