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Psicologia: ciência e profissão
versão impressa ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.23 n.1 Brasília mar. 2003
ARTIGOS
Repensando a perspectiva institucional e a intervenção em abrigos para crianças e adolescentes
Dorian Mônica Arpini1
Departamento de Psicologia, UFSM
RESUMO
O trabalho faz uma reflexão sobre a realidade institucional de abrigo para crianças e adolescentes, mostrando, através do discurso de adolescentes, como os mesmos a representam, bem como a importância de repensar, recuperar e investir no universo institucional superando os estigmas que acompanham a realidade das instituições como lugar do “fracasso”, permitindo que a mesma seja vista como um local de possibilidades, de acolhimento, de afeto e proteção, objetivo, aliás, que determinou sua origem. Dentro dessa perspectiva, o texto enfatiza a importância da intervenção da Psicologia nas instituições, auxiliando as mesmas através de um trabalho de assessoria no enfrentamento dos preconceitos, dificuldades e conflitos que caracterizam seu funcionamento.
Palavras-chave: Instituições de abrigo, Crianças e adolescentes, Intervenção.
ABSTRACT
This paper makes a reflection about the institutional reality of shelters for children and adolescents showing through the speech of adolescents as they themselves show it and the importance of rethinking, reclaiming, and investing in the institutional universe as well, overcoming the stigmas that accompany the reality of institutions as a place of “failure”, permitting it to be seen as a place of possibilities, acceptance, affection and protection, which as a matter of fact determined its origin. Under this perspective the text emphasizes the importance of the intervention of Psychology in the institutions helping them through an advisory work regarding the act of facing prejudice, difficulties and conflicts that characterize its operation/functioning.
Keywords: Shelter institutions, Children and adolescents, Intervention.
Este artigo é parte das reflexões produzidas no trabalho desenvolvido na tese de doutorado intitulada: “Sonhar a Gente Sonha”: Representações de Sofrimento e Exclusão em Adolescentes em Situação de Risco2. Utilizamos neste trabalho uma metodologia qualitativa, a história de vida, junto a adolescentes em situação de risco da cidade de Santa Maria/RS.
A temática da tese de doutorado foi despertada em função de nossa participação, por dois anos, em projetos de extensão na Universidade Federal de Santa Maria junto a essa população. Esses projetos, que eram denominados “Meninos no Campus” e “Meninas na UFSM”, objetivavam propiciar um atendimento integral a adolescentes em situação de risco, vítimas de abandono, exclusão e violências, visando a minimizá-las e a contribuir também para a inserção sociocultural dos adolescentes. O projeto era desenvolvido no turno da tarde, de segunda a sexta-feira, com ações diversificadas, desde atividades laborais e participação em oficinas nos diferentes departamentos envolvidos no projeto como Música, Educação, arte, esporte, Psicologia, Informática, entre outros. O projeto também oferecia transporte e alimentação no restaurante universitário. A cada ano eram integrados de 12 a 15 adolescentes em cada um dos projetos acima referidos. A atividade da Psicologia constituía na realização de grupos semanais, onde se oferecia um espaço de integração das diferentes atividades realizadas no projeto, juntamente com a busca de alternativas que viabilizassem a superação das dificuldades e obstáculos que emergem da própria tarefa, assim como integrar os participantes do projeto facilitando a troca de experiências e o relacionamento grupal. As manifestações afetivas e as angustiantes características da adolescência também eram trabalhadas no grupo.
Os adolescentes que integraram os projetos eram indicados pelos conselhos tutelares, sendo a freqüência à escola um dos requisitos obrigatórios.
Em nossa pesquisa de doutorado, a decisão de que os sujeitos de nosso estudo pertencessem aos projetos acima referidos foi baseada no fato de que já os conhecíamos em nossa prática de trabalho,a qual nos tinha permitido construir um vínculo significativo com eles e uma relação de confiança que nos parece ser uma condição importante para a realização de histórias de vida.
A questão do abandono e da violência em relação à criança e ao adolescente vem há muito preocupando determinados setores da sociedade. Durante um longo tempo, a prática que norteou o atendimento às crianças adolescentes abandonados esteve ligada ao atendimento institucional3. Entretanto, a qualidade do serviço prestado pelas instituições sempre se constituiu objeto de crítica.
Bleger (1984), chama a atenção para o fato de que o funcionamento das instituições tende a reproduzir a mesma lógica do problema que esses espaços visavam a combater; dessa forma, sua proposta de abrigo, proteção, amparo e formação nunca chegou a obter êxito. Ao contrário do que se esperava, elas acabam por criar as mesmas dificuldades, sofrimentos e abandonos já vividos por essas crianças e adolescentes, reeditando, assim, a mesma relação que a sociedade estabeleceu com esses sujeitos ao abandoná-los e isolá-los.
O regime disciplinar e autoritário que caracteriza tais instituições foi objeto de vários estudos, dentre os quais se encontram os trabalhos de Foucault (1997) e Goffman (1974). Nessas obras, os autores refletem sobre aspectos como a representação que o interno faz da vida institucional, o aniquilamento de sua identidade, a estigmatização e as dificuldades enfrentadas em seu processo de reinserção social. Podemos acrescentar também os estudos de Guirado (1980, 1986), que evidenciam as conseqüências da separação da criança de sua família, e de Silva (1997), no qual o autor tematiza a carreira criminosa construída dentro dessas instituições, conseqüência de práticas violentas e que contribui para a construção de uma identidade negativa. Assim, conforme observamos anteriormente, a instituição criou uma imagem negativa de seu próprio mundo, uma vez que serviu de cenário para que todas as repressões, humilhações e violências acontecessem com a população interna, ficando definida como um lugar de fracasso, um lugar sem saída e sem perspectivas.
Segundo Lane:
Devemos ainda considerar o fato das instituições serem as reprodutoras de ideologia que têm a sua eficácia garantida pelo seu conteúdo de valores, cuja captação no plano individual se dá pela esfera afetiva, e se não forem refletidas ou decodificadas pela linguagem, irão constituir fragmentos que poderão inibir o desenvolvimento da consciência, dar falsos significados à atividade e mesmo constituir aspectos nucleares da afetividade, levando à cristalização da identidade (1995:62).
O fracasso desse modelo levou à criação de soluções alternativas, dentre as quais se destaca a proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), que constitui, atualmente, a linha de frente das ações direcionadas ao problema em relação a essa questão. Silva afirma:
A extinção dos grandes complexos de internação e a construção de unidades menores, que mais se assemelham às condições de um ambiente familiar, são medidas que têm como pano de fundo a compreensão da necessidade de erradicação das condições institucionais que favorecem o florescimento das identidades negativas e criminosas, e que são determinantes na definição da etiologia do comportamento criminoso ( 1997:147).
Segundo Silva (1997), essa prática vem priorizando o processo de socialização e de convivência familiar como a medida mais eficaz contra a deterioração da identidade da criança ou do adolescente.
O discurso dos adolescentes evidencia a presença das instituições de abrigo nas suas histórias de vida , seja porque aí viveram parte de sua infância ou adolescência, seja porque seus irmãos, amigos ou conhecidos lá viveram, ou, ainda, por terem sofrido a ameaça constante de virem a integrar esse universo. Aspecto que também é evidenciado por Fonseca:
Assim, mesmo que nem todos tenham contato direto com a Febem, todos os moradores da vila vivem com esta instituição no seu imaginário (1987:23).
A instituição de abrigo está muito presente em seu cotidiano, fato que se comprova quando dizem que foi nas instituições que se sentiram protegidos da violência em que viviam, de modo que, mesmo não sendo desejada, quando entra em suas vidas a instituição não tem a força negativa e destrutiva que marcava as instituições mais tradicionais. O discurso dos adolescentes revela justamente o oposto, evidenciando que estes guardam lembranças do período vivido em instituições que muitas vezes são menos traumáticas e dolorosas do que aquelas relativas à vivência familiar.
Eu acho que a fase que eu fui pra casa das meninas lá eu aprendi coisas novas, tive oportunidade de entrar no projeto, né, da Universidade. Eu acho que foi a melhor fase da minha vida até agora, né (Adolescente, sexo feminino, 15 anos).
Foi ótimo né, porque eu conheci várias pessoas. Eu tive oportunidade de aprender bastante coisa assim, conheci várias gurias, aprendi assim a faze coisas assim que talvez quem sabe no futuro eu precise daquilo, do que eu aprendi, foi bom. Até por mim eu não queria sair, que eu fui para uma casa, antes de ir lá pra cassa dos meus parente eu fui pra uma senhora e pelo fato dela não aceitar que eu continuasse no projeto, acabou não dando muito certo, né, depois eu voltei pra casa abrigo (Adolescente, sexo feminino, 16 anos).
Embora eles saibam que a instituição é geralmente um lugar de passagem, como já pudemos observar anteriormente em seu discurso, ela tem possibilitado que eles sejam retirados da violência e do abandono em que viviam, oferecendo-lhes um local de maior tranqüilidade e apoio, até que suas vidas sejam reestruturadas. É importante salientar que, como suas histórias de vida foram extremamente violentas, isso contribui para que a instituição seja vista como menos ameaçadora.
Porém, é preciso evidenciar que nos referimos aqui a instituições já remodeladas pelo estatuto e que, portanto, já não apresentam as características mais penosas das tradicionais casas de abrigo de menores, as tão conhecidas “instituições totais” estudadas por Goffman (1974).
São, portanto, instituições mais abertas, com uma clientela mais definida, menores, com espaço para respeitar e manter a individualidade, que têm caráter temporário e, portanto, que não objetivam a permanência por um período muito longo, ficando dentro das determinações de abrigamento referidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Essa renovação, no entanto, não garante que alguns dos vícios, abusos e violências característicos das instituições totais não tendam a se reproduzir no novo modelo.
Entendemos, portanto, que é preciso reconsiderar a perspectiva institucional, investindo num processo de transformação rumo a maior qualificação de seu universo, trabalhando sobre os “preconceitos instituídos”, sobretudo o de que “ela é uma alternativa fracassada”. Na verdade, a instituição muitas vezes se apresenta ( mesmo que temporariamente) como a melhor alternativa para um grande grupo de crianças e adolescentes, o que determina a necessidade de um comprometimento ainda maior em suas ações, pois esse é o único caminho para a superação dos trágicos estereótipos de sua história. Dentro dessa perspectiva, é preciso repensar a relação que a sociedade construiu com as instituições e as famílias, na medida em que os depoimentos nos mostram que a instituição não é sempre vivida como um “mau” lugar, assim como a família nem sempre é o lugar privilegiado e protetor.
A Febem, devido a seu forte estigma social, é sempre a instituição mais temida, sendo associada, pelos adolescentes, a faltas graves; assim, funciona sempre como uma “ameaça”, como a punição extrema que podem vir a sofrer. Marcados pela situação de risco, que os caracteriza, eles convivem com a possibilidade de terminar numa Febem, o que para eles seria a pior situação, “o fundo do poço.” Quando falam de algum conhecido que vive nessa instituição, a ele se referem como alguém que está “ralado”. Existe, entre eles, sempre a referência a um amigo, colega, namorado ou parente que está ou esteve ali institucionalizado.
A passagem por uma instituição de abrigo, por outro lado, representa marca dolorosa na vida desses jovens, pois as situações que os levam à institucionalização são sempre muito duras, fazendo com que convivam com experiências muito dramáticas. A isso se soma, ainda, a saída da vida familiar, que os leva, em virtude do distanciamento criado, a refletir sobre o que significou sua vida e o que representa sua família.
Muitos sabem que a entrada em instituições pode representar o corte definitivo com sua família, e, embora esta seja marcada pela violência, a possibilidade de ficarem sozinhos é também muito assustadora, como nos revela uma das adolescentes, cujo pai foi destituído do pátrio poder e cuja mãe nunca foi por ela conhecida: “eu não tenho ninguém” (adolescente A, sexo feminino, 16 anos).
Ser visto como um adolescente que vive em uma Instituição de abrigo é ainda um forte estigma social e, sobretudo, uma marca muito forte que eles passam a carregar, pois as pessoas, via de regra, julgam que uma criança ou adolescente institucionalizado carrega algum problema em sua “bagagem”. O preconceito se funda na idéia de que eles não podem ser pessoas “normais”, de que devem ter falhado em algo em sua história, que são em alguma medida responsáveis por sua situação e pela idéia de marginalidade que os acompanha. E é justamente dessa forma que eles são percebidos; na verdade não se considera que o que os levou à instituição não foi uma ação cometida por eles, senão o resultado de uma violência estrutural em nossa sociedade ou do abandono e violência praticados por suas famílias. Isso ilustra muito bem o fenômeno dos “preconceitos instituídos” aos quais nos referimos anteriormente, pois o imaginário construído em torno dessa população é muito forte e determina a perspectiva preconceituosa com que o grupo é tratado, a qual consiste num resultado direto dessa representação socialmente instituída.
Há ainda a tendência em não discriminar as situações que levam um adolescente à Febem por motivo de infração ou a uma instituição de abrigo, em função de situações de abandono, maus tratos, miséria etc, estigmatizando-se, da mesma maneira, o que se evidencia nas próprias relações entre eles. Em certa ocasião, quando retornavam de um passeio realizado pelo projeto Meninos e Meninas na UFSM, já referidos anteriormente, alguns adolescentes, quando perceberam que as meninas eram conduzidas à Casa Abrigo, assim se referiram à situação: “não sabíamos que elas eram da Febem” . Através dessa fala, percebemos a conotação negativa, bem como a surpresa que acompanharam a constatação do vínculo das meninas com a Febem.
Vimos, também, que as instituições com esse caráter ainda mantém muitos preconceitos em relação a essa população, desqualificando-os e desvalori-zando-os, o que explicita a dificuldade em entender o significado de toda essa infância vivida e as dificuldades decorrentes do abandono, da ausência de modelos identificatórios positivos, entre outros aspectos, o que leva à construção de uma relação nem sempre satisfatória.
A instituição, desse modo, reproduz a acusação social e acaba, então, culpando as crianças e adolescentes pela natureza da família destes. Referem-se às famílias sem muitos cuidados e esperam que os jovens eliminem seus contatos familiares sem dor nem sofrimento, considerando suficiente para isso apenas o fato de entenderem que seus familiares não são pessoas que agiram corretamente. O que ocorre aí é uma desconsideração do fato de que o rompimento de vínculos afetivos é um processo muito doloroso. Não se pode eliminar uma história familiar sem que se viva muita dor, angústia e medo do presente e do futuro. Esse aspecto foi vivenciado por nós quando estivemos vinculados ao projeto de Extensão junto a esses grupos.
Parece-nos que a instituição tem dificuldades em lidar com esse processo ao exigir desses jovens um desafeto que eles não conseguem sentir, ao cobrar deles o fato de desejarem manter seus vínculos familiares, ou, ainda, pelo fato de os mesmos rejeitarem as críticas dirigidas às suas famílias.
Dessa forma, a instituição não abre espaço para trabalhar suas histórias de vida, suas dores, tristezas e violências. Como registra Marin (1999), não se permite que a criança viva sua frustração ou a raiva que sentiu ou ainda sente de seus pais, uma vez que, ao não ser compreendida e ao ver sua história atacada, ela busca refúgio no conhecido, no já vivido, mesmo que aí resida o motivo de seu sofrimento. Percebe-se que há um silenciamento dentro da instituição, gerado pelo temor a esse passado, de modo que, quando este aparece, é de forma depreciativa, produzindo um efeito muito negativo. Não se facilita, desse modo, que a criança ou adolescente possa elaborar seu passado. E, como observa Vicente: “Elaborar o passado é uma das maneiras de livrar-se da mera repetição” (1994:59).
A perda, a falta e a separação não são em si o problema para a formação de identidade, aliás, como vimos, podem até ser os determinantes, porém, o que importa é a possibilidade de sua significação e a condição para a simbolização. Quiçá, encontra-se aí o problema da Instituição. Esta, enquanto tenta se colocar como substituta total da família, fazendo-se de mãe e pai, ou melhor, da mãe com pai ausente, procurando negar a falta vivida pela criança, estará justamente impedindo a vivência da demanda (Marin, 1999:48)
Isso pode ser entendido, também, pelo fato de que trabalhar em uma instituição dessa natureza envolve lidar com todas as dificuldades das relações afetivas, com o que de pior as pessoas podem viver e fazer sofrer aos demais, o que é doloroso para qualquer um. Assim, o ambiente institucional, como referimos anteriormente, está menos fechado, menos ameaçador, porém ele se mantém sempre denso, carregado de tristezas, mágoas e intrigas, clima que é percebido pelos seus atores. Assim, ao não saber lidar com isso, muitas vezes a defesa utilizada pelas instituições será justamente o endurecimento afetivo, o abafamento, a depreciação ou a desqualificação. É o que nos coloca Marin (1998), citando Mannoni, em relação a uma violência do silêncio, uma espécie de morte, que leva a um constante empobrecimento da vida:
Aos agentes institucionais fica poupada a angústia de entrar em contato com a desilusão que esses jovens representam. Como responder a suas demandas de justiça social? O que lhes oferecer como ideal de vida? Trabalhar para conseguir o dinheiro para comprar os objetos de desejo? E a crise de emprego? Estudar para ser doutor? Como convencê-los a conviver numa escola que fala de um mundo que não conhecem, que os expulsou, que tem uma linguagem, um código tão distante de seus desejos imediatos? Ter que expô-los e lembrá-los de sua história tão cruel que os tornou “um filho mau”, sem perspectivas? É melhor ficar calado, deixar que o jovem faça o que quiser, como quiser. Se possível, que fique bem longe (Marin, 1998:108).
Portanto, se, por um lado, há uma representação mais positiva em relação ao espaço institucional, como nos mostram os adolescentes, por outro, permanece uma representação social que estigmatiza as pessoas que compõem esse universo.
O caráter transitório dessas instituições faz com que o interesse e o vínculo aí estabelecidos sejam breves e superficiais, quando o que os adolescentes precisam é justamente construir vínculos mais duradouros que lhes permitam elaborar sua história; eles precisam de espaço para explicitarem suas dores, sofrimentos, incertezas de modo a não os encobrir em, sobretudo porque eles já estiveram encobertos por muito tempo até o momento em que os adolescentes procurassem ajuda; esse aspecto é relevante e foi trazido pelos adolescentes ao afirmarem voltar à instituição após sua saída da mesma, mantendo de alguma forma os vínculos aí construídos.
Eu vou sempre lá na casa abrigo, quando eu posso eu sempre vou. Eu tinha treze, é treze, é isso, quando fui da primeira vez. Então ninguém me agüentava lá na casa assim, báh chegavam a reza eu acho pra mim ir embora, mas depois a segunda vez que eu voltei aí me disseram que eu tinha mudado que era outra pessoa, eu tava completamente diferente do que eu era, até a T. L. ficou meia surpresa assim (adolescente, sexo feminino, 16 anos).
Porém, o estigma que os adolescentes carregam por terem estabelecido, em algum momento, vínculo com o conselho tutelar ou com instituições é denunciador de que eles não tiveram uma vida como era esperado, de que não são sujeitos desejados, conforme nos referimos anteriormente. São vistos como representantes do indesejado; o simples fato de terem vivenciado essa situação os coloca como um risco para a sociedade, como aqueles que estão no limite de romper e transgredir; eles são assim identificados como sujeitos “de risco”. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que a sociedade diz protegê-los, ela os acusa duramente, restringindo-lhes, com o estigma, as possibilidades de modificarem essa situação.
Ser criança ou adolescente de alguma instituição já significa, por isso mesmo, ser um problema. Por outro lado, essa situação é negada no momento em que se espera que eles sejam exemplares nas suas ações, atitudes e comportamentos. Podemos explicitar melhor esse fato tomando como exemplo a relação que tínhamos no projeto quando era exigido dos adolescentes um comportamento exemplar, sem atitudes vulgares, sem brincadeiras, sem manifestações da sexualidade, sem “maus” modos. Não estaria aí uma grande contradição? Ou seja, se os consideramos problemáticos, como podemos querer que tenham um comportamento exemplar?
Agindo assim, não estaríamos negando sua história, vivida num determinado lugar, com uma cultura diferenciada e uniformizando-os, como se eles fossem como qualquer outro adolescente que convive nos interiores da Universidade? Parece-nos fundamental pensar nessas diferenças, não para fazer delas motivo de desqualificação, mas, justamente, para entender e aceitar as diferenças que existem entre universos socioculturais, permitindo que ampliem suas possibilidades de inserção social e abrindo-lhes espaços de pertencimento que não fiquem só no nível do discurso, mas que se instaurem efetivamente, o que só se torna possível quando aprendemos a aceitá-los.
É importante, então, refletirmos sobre as possibilidades de repensarmos a instituição como um local onde possam viver a infância e a adolescência e construir referenciais identificatórios positivos, um espaço que ofereça à criança um ambiente seguro e protetor.
Talvez esses aspectos exijam um esforço de transformação do estigma que carregam as instituições, sobretudo as que atendem a essa população, de modo que possam, a partir daí, serem pensadas como um local onde seja possível construir sujeitos, pois, se, conforme percebemos em nosso trabalho, a família nem sempre vai conseguir o que dela se esperara, muitas vezes para os adolescentes a instituição foi o lugar mais estável em que viveram. Pensar assim nos exige todo um esforço para transformar o discurso e a prática institucional, no sentido de que nos parece ainda impensável, mesmo para os profissionais e as teorias que os sustentam: o de que a instituição possa vir a constituir um lugar positivo do ponto de vista da construção dos sujeitos. Isso se deve ao fato de que, como adverte Marin (1999), a instituição ainda trabalha com um modelo calcado nas relações familiares para pensar a questão da identidade e ao qual as crianças institucionalizadas não se conformam. Segundo a autora, a própria instituição está contagiada pela ideologia do modelo familiar, à qual é veiculada tanto pelas pessoas que nela vivem, quanto por seus projetos.
Se não abandonarmos esse modelo, o que podemos pensar em termos de identidade para essas crianças e adolescentes é muito negativo, pois, se não têm na família a acolhida desejada, e lhes resta apenas uma instituição que não acredita em outra forma satisfatória de se tornarem sujeitos, nós realmente ficamos sem saída e as portas se fecham, sobretudo porque a imagem das instituições é semelhante à imagem que se tem da própria população que a freqüenta, ou seja, uma imagem carente, abandonada, fracassada, desqualificada.
Sobre este aspecto, Marin (1999) observa que a maioria das teorias em Psicologia apontam para a determinação da família na formação dos indivíduos, o que leva a pensar que, para as crianças abandonadas ou violentadas, não existiria uma saída ou uma perspectiva desejável. Porém, como já assinalamos anteriormente, para os adolescentes em estudo a vida na instituição foi uma experiência que trouxe uma possibilidade de construir vivências mais positivas que o ambiente familiar.
Se, realmente, o que a Psicanálise aponta como essencial para a estruturação da identidade, isto é, a possibilidade de ser contido e ao mesmo tempo de não ter tudo (a falta), for uma referência possível, surge uma outra indagação: não se pode pensar além da questão pai, mãe e, portanto, na realidade institucional como um modelo possível? (Marin, 1999:44).
Se considerarmos, de acordo com Maud Mannoni, ser essa possibilidade, a do espaço da demanda, da criança perceber que tem um lugar a partir do desejo do outro, e que, portanto, ela também é um ser desejante, a condição para o estabelecimento da identidade não parece ser impossível de se dar, dentro de uma instituição (Marin, 1999:116).
Justifica-se, assim, a necessidade de uma revisão constante de nossos referenciais que nos permita compreendê-los melhor, evitando que tenhamos sobre eles um julgamento precipitado, um diagnóstico inadequado e uma exigência incompatível com suas histórias de vida, reconsiderando a nossa relação com as teorias e mitos que sustentam a hegemonia familiar. É preciso construir um “novo olhar” sobre a realidade institucional: talvez esse olhar possa trazer a esperança de recuperar o funcionamento falido dessas instituições, que, em sua essência, já se originaram para tratar de uma questão que se acreditava sem solução. Se pudermos pensá-la não apenas como depósito do “lixo” social, talvez possamos realmente construir dentro dela uma nova possibilidade e, a partir daí, dar um real sentido à sua existência, permitindo que cada criança ou adolescente que venha a integrar esse universo tenha a possibilidade de encontrar aí um “olhar”, um “lugar” de construção de desejos e possibilidades.
Se acreditarmos que as relações são resultado de construções afetivas, onde ser compreendido, ser aceito, ser respeitado, ser amado é a base necessária para um percurso satisfatório, então poderemos pensar a instituição de uma forma diferente, tornando-a uma alternativa viável para a construção de sujeitos. Acreditamos que isso se dará através da recuperação da solidariedade e da construção de laços afetivos, o que é, em última instância, o alicerce de nossa subjetividade.
E é dentro dessa perspectiva que estamos4 dando continuidade ao nosso trabalho, realizando assessoria às instituições que atendem crianças e adolescentes em Santa Maria, buscando superar os aspectos que parecem repetir as experiências e vivências tão sofridas das crianças e adolescentes que integram esse universo. Dessa forma, estamos priorizando as equipes internas, trabalhando as dificuldades em relação ao universo com o qual se defrontam, os sentimentos que emergem do contato com essa realidade. Em relação aos adolescentes, buscamos trabalhar a experiência da vivência institucional e seus projetos em relação ao futuro e às instituições de maneira geral, no sentido de superarmos a história tão pesada que esse universo carrega e que tende “naturalmente” a se reproduzir. Em relação às famílias, parece-nos importante construir uma relação mais estreita entre a instituição e a família, auxiliando o processo de reintegração das crianças e adolescentes no universo familiar, assim como o contato com a família amplia o conhecimento das crianças e adolescentes e permite a reconstrução de sua história por parte da instituição.
O trabalho nos coloca frente ao grande desafio de trabalhar com a realidade institucional, mas ao mesmo tempo nos dá a certeza de que é possível minimizar os efeitos desse processo, comprometidos que estamos com uma Psicologia que procura dar conta das problemáticas sociais.
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Endereço para correspondência
Dorian Mônica Arpini
Rua Tiradentes, 23 apto 701, Centro
97050 730, Santa Maria, RS, Barsil
Recebido 05/07/01
Aprovado 22/11/02
1 Psicóloga, especialista em Saúde Pública e Psicologia Clínica. Doutora em psicologia Social/PUC/SP. Professora adjunta do Departamento de Psiclogia da UFSM.
2 Tese de Doutorado defendida em maio de 2001 na PUC/ São Paulo.
3 Nesse trabalho, estamos considerando as instituições na perspectiva de Guilhon de Albuquerque (1978), no qual as mesmas são entendidas como um conjunto de práticas sociais, ou de relações sociais concretas, configuradas na apropriação de um determinado objeto, que se reproduzem e se legitimam num exercício incessante do poder.
4 Queremos nomear aqui as acadêmicas do Curso de Psicologia da UFSM, que integram o Projeto de Extensão que realiza assessoria às instituições e que, com muita responsabilidade e compromisso, têm se dedicado ao mesmo. São elas: Aline Siqueira, Bruna S. Melo, Milena L. Silva e Renata G. Costa.