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Psicologia: ciência e profissão
versão impressa ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.23 n.4 Brasília dez. 2003
ARTIGOS
Experiências de mulheres sem filhos: a mulher singular no plural1
Experiences of women without children: the singular woman in the plural
Luci Helena Baraldo Mansur*
Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia
RESUMO
Este é um estudo exploratório das dimensões atribuídas à não maternidade, baseado na experiência de oito mulheres sem filhos, na faixa entre 40/50 anos. Através da análise qualitativa das narrativas e de um enfoque psicossocial, busca compreender e ultrapassar a abordagem tradicional e estigmatizada da não maternidade e evidencia a complexidade dessa experiência moldada na intersecção entre história, cultura, sociedade, família e personalidade. A não maternidade emerge como uma experiência multifacetada e com significados diversos, não apenas para as diferentes mulheres entrevistadas mas também para cada uma individualmente, em função da perspectiva e do momento em que foi avaliada ao longo do tempo.
Palavras-chave: Maternidade, Mulheres, Narrativa, Experiências de vida, Feminilidade.
ABSTRACT
This is an exploratory study of nonmaternity's dimensions, based on eight childless women experiences, aged 40/50. Through qualitative analysis of interviews and a psychosocial approach, it was sought to understand and overcome the traditional and stigmatized approach of nonmaternity, as well as to highlight the complexity of such experience taking place in the intersection of history, culture, family and personality. Nonmaternity appears as a multifaceted experience with diverse meanings, not only to the different women who have been interviewed but also to each one of them in particular, depending on the perspective and the moment in which she was assessed in the course of time.
Keywords: Nonmaternity, Women, Narration, Life experience, Femininity.
Sabemos que existem diferenças construídas socioculturalmente para os papéis sexuais feminino e masculino, e que o papel materno tem sido supervalorizado através dos mais variados meios de transmissão de valores. Badinter (1985) aponta as pressões e o sentimento de culpa que as mulheres vêm sofrendo em decorrência da crença generalizada de que o instinto materno faz parte da natureza da mulher normal, procurando demonstrar que, em séculos anteriores, a maternidade não tinha as mesmas características e a mesma importância que passou a ter do século XIX em diante. A autora afirma que, embora a mulher seja um ser histórico, dotado da capacidade de desejar e simbolizar, muitos aspectos da ideologia do instinto materno perduram até hoje, disseminados como verdades absolutas.
O tema da maternidade mobiliza emocionalmente qualquer mulher, pois ela sabe que não ter filhos, por opção ou circunstância, implica não realizar um potencial, desviar-se de uma norma secular e instaurar uma significativa e incômoda diferença. Pravaz (1981, p. 97) avalia que a mulher sem filhos enfrenta seus próprios sentimentos e o olhar dos outros, uma vez que "encerra um mistério não revelado em seu interior, não se mostrou por dentro, não chegou a 'saber se' por inteiro". A maternidade parece demonstrar que a mulher está inteira e completa, "que seu interior conserva intacta sua identidade ao repetir o rito ancestral de gestar parir"; a capacidade de ter um filho, de preferência sadio, pode significar "salvar se do desterro da comunidade de mulheres mães", uma vez que, sendo como as demais, a mulher estabelece sua pertinência ao mundo feminino e ocupa o lugar para ela reservado no âmbito socio-cultural.
Portanto, mulheres sem filhos são freqüentemente estigmatizadas, e a manutenção dos preconceitos geralmente provoca sentimentos de exclusão e anormalidade. Goffman (1982), reexaminando o conceito de estigma, criado pelos gregos para indicar sinais corporais através dos quais se tornava visível algo de extraordinário ou mau relativo ao status de quem fosse o seu portador, observou que, na atualidade, o termo é usado de maneira bastante semelhante ao sentido original, embora seja aplicado mais à própria desgraça do que à sua evidência corporal.
Para o referido autor (p.12), a própria sociedade incumbe-se de estabelecer os meios de classificar as pessoas e o conjunto de atributos considerados comuns e naturais para os membros de determinada categoria, sendo que cada ambiente social estabelece a categoria de pessoas que têm probabilidade de nele serem encontradas. Quando surgem evidências de que alguém possui "um atributo que o torna diferente de outros que se encontram em uma categoria em que pudesse ser incluído, deixamos de considerá lo criatura comum e total, reduzindo o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando seu efeito de descrédito é muito grande - algumas vezes ele é também considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem". Prosseguindo, Goffman (1992, p.15) alerta para o fato de que "tendemos a inferir uma série de imperfeições a partir da imperfeição original" e que "por definição, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano". A partir do reconhecimento de um atributo depreciativo, a pessoa "diferente" é discriminada, desumanizada e desvalorizada, passando a ter suas chances de realização na vida bastante diminuídas.
Ao trabalhar a questão das diferenças/desvios na área da Antropologia Social, Velho (1985, pp.12-14) avalia que, no âmbito do senso comum, o problema do desviante é geralmente remetido a uma perspectiva de patologia, e os comportamentos alheios aos padrões convencionais são considerados sintomas ou expressão de desequilíbrios e doença, requerendo, portanto, diagnóstico e tratamento. "Enfim, o mal estaria localizado no indivíduo, geralmente definido como fenômeno endógeno ou mesmo hereditário". Outra perspectiva citada pelo autor é a que busca determinar como a estrutura social e cultural favorece o comportamento socialmente desviado, sugerindo a possibilidade de "sociedades doentes', 'instáveis' ou 'mal integradas', nas quais haveria um desequilíbrio entre os objetivos culturais e normas institucionais e os modos aceitáveis de alcançá-los".
Velho (1985) pensa que essa mudança de enfoque implica tão somente o deslocamento da patologia individual para uma patologia social, constatando que os estudos sobre o comportamento desviante têm tradicionalmente oscilado entre o psicologismo e o sociologismo. Morrissette e Spain (1991) apontam para a mesma direção: as pesquisas das últimas décadas estão geralmente divididas em duas posições: a Sociologia procurando justificar tal escolha, enquanto a Psicologia realiza a sua avaliação.
Considerando o impacto e a importância das idéias freudianas relativas às questões femininas e maternas, Badinter (1985) considera que, através de uma teoria proposta a partir da observação e experiência clínicas, foram engendradas as representações da mulher normal e da mulher desviante, anormal ou doente. Ao analisar a evolução psicossexual que transforma uma menina em mulher, Freud e seus discípulos descrevem a passividade, o masoquismo e o narcisismo como características da natureza feminina, desembocando na definição da mãe naturalmente devotada, nascida para a renúncia e o sacrifício. A inveja do pênis, base da interpretação freudiana da personalidade feminina, conforme sua sublimação ou não através da maternidade, faria com que a mulher fosse sadia ou doente. Como conseqüência, todas as que demonstrassem independência e atividade, preferindo trabalhar - ou criar - a procriar, seriam imaturas, regredidas, incompletas e anormais.
Segundo Badinter (1985, p. 334), o mesmo erro metodológico cometido por Rousseau (1762) em "Émile" foi repetido posteriormente por Freud: "Ambos pensavam descrever a natureza feminina e, na realidade, não faziam mais do que reproduzir a mulher que tinham diante dos olhos". Características adquiridas foram consideradas inatas; postulados teóricos foram confundidos com verdades demonstradas, desconsiderando se os fatores socioculturais presentes, e assim engendrando o mito do instinto materno ou do amor espontâneo de toda mãe por seu filho.
Olivier (1992) considera que, com as formulações freudianas, a inferioridade das mulheres, já consagrada socialmente, passou a ter um aspecto científico e um valor de sentença que deixaram marcas profundas. Atualmente, prossegue a autora, as mulheres percebem que a imagem fixa da maternidade fecundidade não lhes convém, pois são mães transitoriamente, enquanto o fato de serem mulheres é perdurável. Tal distinção, entre outras coisas, situa o prazer da função sexual onde antes se encontrava apenas a reprodução, e alerta para o fato de que a circunscrição da mulher na maternidade/maternagem promove a exclusão de outros espaços, como a cultura ou a sublimação intelectual.
Em "Psicanálise da Maternidade", Chodorow (1990) procura explicitar a perpetuidade da maternagem das mulheres como elemento central e constituinte na organização e reprodução social dos gêneros. Sua hipótese é que a reprodução contemporânea da maternagem ocorre por intermédio de mecanismos psicológicos e sociais estruturalmente induzidos. Não a considera um produto da biologia nem de preparo intencional para a função e, através da teoria psicanalítica do desenvolvimento da personalidade, busca demonstrar que a maternação das mulheres se reproduz ciclicamente. Como mães, as mulheres produzem filhas com desejos e capacidades de maternar que surgem no próprio relacionamento mãe filha. Os filhos, por outro lado, têm suas habilidades e necessidades maternantes sistematicamente reduzidas e reprimidas, e isso os predispõe a papéis menos afetivos, ao trabalho impessoal e à vida pública.
Chodorow (1990) propõe o enfoque das bases sociológicas e estruturais presentes em manifestações individuais e recorre à teoria psicanalítica para fazer uma análise da estrutura familiar e da reprodução social, lembrando que:
"De fato, a Psicanálise foi criada não apenas para explicar nossa formação psíquica inicial, mas para nos mostrar como superar suas limitações. Além do mais, a Psicanálise argumenta contra o modelo unilateral do determinismo social, e em favor de variação e criatividade no que as pessoas fazem de suas experiências da infância e também de suas experiências posteriores" (p. 268).
Em seu trabalho sobre os deslocamentos do feminino, Kehl (1998, p. 262) lembra que, historicamente, a única identificação permitida para as meninas na cultura ocidental dos séculos XVIII, XIX e início do século XX, de acordo com os ideais de seu gênero, era "a identificação à mãe, não enquanto mulher no sentido amplo - essa mulher ainda não existia -, mas só enquanto mãe. Da leitura dos escritos freudianos sobre a feminilidade, produzidos em uma época em que não havia outras opções sociais para as mulheres, podemos resumidamente concluir que:
(...) "maternidade e casamento significariam uma espécie de ponto de chegada para a mulher, a partir do qual nada mais é esperado dela, nem no plano erótico nem no sublime; no erótico, é como se a feminilidade não tivesse qualquer outra função depois de ter cumprido seu único objetivo, a conquista de um homem que lhe desse filhos" (Kehl, p. 261).
Com a intenção de contribuir para a ampliação do campo a partir do qual as mulheres possam constituir uma narrativa pessoal, um estilo e um destino como sujeitos, Kehl (1998, p. 317) conclui que a teoria psicanalítica precisa ter plasticidade suficiente para acompanhar e compreender as mudanças ocorridas na sociedade desde o final do século XIX, quando ainda inexistiam opções para a mulher no campo social: "Se a produção psicanalítica contemporânea não puder acompanhar esses deslocamentos, a Psicanálise deixará de fazer sentido", uma vez que "nasceu para dar voz ao emergente e não para corroborar a tradição."
Portanto, antigas teorias intrapsíquicas da motivação à não parentalidade e não maternidade não fornecem suporte empírico suficiente para as alegações de patologia, e as variáveis sociais, econômicas e culturais são também pertinentes e devem ser levadas em conta para a compreensão da escolha reprodutiva. É necessário que se compreenda o comportamento humano de maneira mais integrada, uma vez que em sua própria gênese não é possível estabelecer compartimentos estanques quanto à evolução biológica e cultural. A dicotomia entre indivíduo e sociedade torna se nefasta quando encaminha os raciocínios analíticos, deformando os processos de conhecimento; a sociedade não tem vida própria, ela é criada pelo conjunto dos homens; da mesma forma, a psicologia das pessoas não pode ser separada da sociedade e da cultura em que vivem.
Metodologia
Avaliar, Justificar ou Compreender?
Nos bancos de dados acadêmicos, descobrimos que a maioria dos pesquisadores vêm se dedicando a investigar os aspectos psicológicos relativos à gravidez, maternidade e relação entre mãe e filho. Em número menor, as pesquisas sobre não maternidade, basicamente relacionadas com a infertilidade principalmente funcional utilizam enfoques clínicos e enfatizam aspectos intrapsíquicos relativos ao ajustamento psicológico das mulheres em questão. Só mais recentemente surgiram novas abordagens que, utilizando recursos da Antropologia, Sociologia, Demografia e História Social, procuram compreender e situar algumas vivências de mulheres que permaneceram sem filhos, por opção ou circunstância, considerando a complexa interação que ocorre entre os modos de subjetivação e o contexto histórico-cultural.
Como exemplo, cito o trabalho de Morrisette e Spain (1991), que apresentam uma revisão crítica da literatura psicológica e sociológica relativa a casais ou mulheres voluntariamente sem filhos, apontando o viés de avaliação e julgamento relativos à normalidade, presentes nessas investigações. Considerando que os resultados dos trabalhos mais atuais contradizem a noção inerente à teoria psicanalítica tradicional, segundo a qual as mulheres sem filhos seriam perturbadas psicologicamente e muito diferentes das que são mães, as autoras sugerem que sejam feitas abordagens mais descritivas e compreensivas desse tema. Concluem que, muitas vezes, foi atribuído ao fenômeno da não-maternidade um caráter de homogeneidade que não corresponde à realidade das mulheres sem filhos e que promoveu generalizações indevidas; outras vezes, não houve preocupação em contemplar os componentes socioculturais envolvidos, priorizando apenas as características intrapsíquicas das mulheres estudadas e utilizando referenciais teóricos considerados ultrapassados.
Construindo a Pesquisa
Ao estudar as condições de elaboração e transmissão de experiências na modernidade, Schmidt (1990, p. 70) retoma a análise feita por Benjamin (1994) acerca da tradição oral, considerando que a narrativa encontra condições de trânsito e legitimidade, seja no âmbito geral da comunicação social ou em relação à pesquisa e passagem de conhecimentos no circuito acadêmico. O narrador, não totalmente excluído do mundo contemporâneo, sobrevive na figura daqueles que, sintonizados com seu tempo e sua cultura, registram experiências vividas e falam por quem não tem voz, reconhecem a tradição, mas também avalizam transformações necessárias e, principalmente, mantêm acesa a chama da memória. A autora propõe uma estratégia que permita atingir a experiência vivida pelo outro, considerando a em sua diferença e diversidade, respeitando a pluralidade de sentidos da narrativa, assumindo um compromisso com a criação de uma linguagem que comunique o encontro e também os seus impasses, "inventando, contra toda linearidade convencional dos modelos de pesquisa, as articulações que dêem conta de seu trajeto labiríntico em torno do fenômeno que estuda."
De posse dessas referências, procuramos realizar um estudo qualitativo e exploratório das dimensões atribuídas à não maternidade, buscando encontrar subsídios que permitam compreender melhor essa experiência, colaborando para a discussão das manifestações do feminino, sob um enfoque psicossocial. A amostra foi selecionada segundo a intencionalidade da pesquisa, sendo constituída por oito mulheres, profissionais atuantes e economicamente independentes, residentes na região central da cidade de São Paulo e pertencentes aos segmentos sociais médios. A faixa etária média foi de 47 anos, situada nos limites da (im)possibilidade de ter filhos e, portanto, da irreversibilidade da situação - embora lembrando que, com os procedimentos da reprodução assistida, as mulheres já podem ter filhos após a menopausa, através da implantação de óvulos de outras mulheres.
Utilizamos a narrativa pessoal, ou seja, entrevistas abertas que permitem ao entrevistador fazer as perguntas e intervenções que julgar convenientes e oferecem ao entrevistado a flexibilidade e autonomia necessárias para configurar o campo da entrevista, segundo suas características particulares. Na análise do material recolhido, levamos em conta a importância de cada entrevista individual, em função dos dados que dela emergem e, a partir do caleidoscópio de informações diversas formado pelo conjunto dos relatos, procuramos compor meu quadro de modo abrangente. As referências à literatura foram buscadas e utilizadas para apoiar, na medida do possível, idéias que surgiram durante o processo de análise das narrativas. Para dialogar com o material selecionado, procurando explicitá lo, contribuições de autores de diversas áreas das ciências humanas e sociais foram articuladas ao eixo psicológico deste trabalho.
Resultados/Discussão
As protagonistas da Diferença
Cada uma das participantes chegou a essa característica comum de não ter filhos por caminhos diversos: dois casos de gravidez e aborto provocado, um caso de não gravidez e vários tratamentos e cinco casos de não gravidez e nenhum tipo de tratamento. Em relação à complexa questão de haver ou não uma escolha, descobrimos que Alice queria ter muitos filhos, tentou muitas vezes e não conseguiu; Dolores não queria nenhum, engravidou e abortou; Isabel chegou a pensar na hipótese, mas desistiu e se conformou; Leila engravidou duas vezes e abortou porque filhos não faziam parte de seu projeto de vida; Laura e Clara queriam ter filhos e continuam desejando, apesar da pouca probabilidade de conseguirem; Beatriz questiona se foi uma decisão ou decorrência de um estilo de vida, e Lina se expressa dizendo: "eu não fui tendo..."
Ressonâncias do método e do tema
A narrativa é um recurso técnico cujo domínio permite desenvolver "conversas com finalidade" (Parga Nina, apud Minayo, 1994, p. 22), extremamente férteis. Conforme o uso, a narrativa pessoal configura práticas distintas que permitem a abertura de um vasto campo psicológico, no qual determinados processos mentais e emocionais têm maior chance de ocorrer em função da liberdade associativa.
Geralmente relacionamos as condições para reflexão pessoal que favorecem o autoconhecimento aos recursos técnicos utilizados na clínica, enquanto os procedimentos de pesquisa limitam-se a uma abordagem mais focada na produção de conhecimento acadêmico. Contudo, no presente trabalho, a metodologia propiciou espaço para uma reflexão que foi se conduzindo em direção às histórias de vida, às origens e aos destinos pessoais e, aos poucos, foi ficando claro, como sugere Barus Michel (1986, p. 803), que toda pesquisa é uma clínica que se ignora.
Durante o estudo, dispostas a revelar as próprias experiências, as entrevistadas mostraram se também pesquisadoras de si mesmas; embora a demanda tenha se originado externamente pela necessidade e interesse da pesquisa, foi uma oportunidade para avaliarem e transmitirem um modo de ser e estar no mundo. Laura, Lina e Isabel expressaram claramente, após o término da entrevista, que um trabalho psicológico inesperado foi sendo processado durante as conversas. Dolores se deu conta de que: "Agora que eu estou falando com você, eu estou juntando muita coisa, você está fazendo papel de psicóloga mesmo". Beatriz, em determinado momento, comentou: "Eu percebo que falo para você, de uma certa maneira, o que eu já pensei sobre não ter filhos", mas em outro momento ocorre o contrário: "Estou pensando agora, não tinha me ocorrido..." Clara percebe que está falando demais e até saindo do assunto: "Eu imagino que vou ser uma das mais exageradas. Sabe, é um negócio tão meu, que eu nunca falei para ninguém. Será que eu vou estar usando...[esta ocasião para falar]?"
Leila, em determinado momento, perguntou: "Você está assustada comigo? Nem um pouco?", referindo se à maneira direta e franca com que ela trata o fato de não querer ser mãe. Confirmou prontamente a transcrição, sem fazer comentários. Ser ou não ser mãe é uma pergunta que inúmeras mulheres se fizeram e algumas responderam negativamente; contudo, aquelas consideradas excepcionais no mundo das artes, da política etc., parecem mais protegidas da "anormalidade" pela própria criatividade e excelência em suas áreas de atuação, mas, como avalia Serrurier (1993, p.16), "a não mãe comum - cuja criação pessoal não ultrapassa os limites de seu círculo imediato - essa sim, questiona e amedronta..."
Isabel e Lina também têm seu relatos incluídos na categoria dos considerados menos emocionados e mais leves. Para Lina, a leitura da transcrição causou "muita surpresa" quanto ao modo como se expressa e ao conteúdo do que foi dito: "repetições, dizer-desdizer, sair do tema..." Acabou concluindo que aquele era o seu estilo de comunicação, reconhecendo se no texto, embora "preferisse ser mais objetiva tanto em uma entrevista, quanto na vida em geral..." Parece ter tido acesso a uma característica da qual estivera, até então, pouco consciente. Isabel comentou: "É engraçado ler a transcrição, como se fosse um personagem." Não fez alterações, mas ressaltou que manteria apenas a estrutura básica do que falou, pois certos detalhes fazem parte do momento. Como nunca fez terapia, e esse era um assunto pouco conversado, ela sentiu que houve um trabalho de elaboração pessoal durante todo o processo.
Em uma hipotética linha intermediária, estariam situadas Alice, Beatriz e Clara, que falaram de seus sentimentos dando lhes um colorido um pouco mais intenso. Para Alice, foi ideologicamente importante participar da pesquisa, colaborar e inclusive poder indicar outras possíveis entrevistadas. Disse estar falando "com a alma aberta"; quanto ao texto da entrevista, manteve-o como estava - "com as repetições e contradições "é isso mesmo, tem tudo a ver com a minha situação". Beatriz considera que: "É esquisito expressar coisas assim, de uma substância tão profunda, com um gravador ligado". Clara comenta: "É uma coisa meio complicada falar, desculpe eu estar falando isso com você, eu nem sei se devia estar falando isso com você..." Parecia, ao mesmo tempo, aliviada e constrangida por estar revelando intimidades que não divide com ninguém: "Eu não consigo falar; com amigas com filhos eu não falo; com amigas sem filhos eu também não falo..."
No outro extremo, estão incluídos os relatos com alta densidade emocional. O relato de Laura foi quase que totalmente acompanhado por lágrimas. Em sua vida aconteceram fatos muito difíceis de elaborar e no final da conversa constata que havia falado muito mais do que havia previsto. Nossa conversa mobilizou intensos sentimentos de perda, constituindo uma oportunidade para rever seus dramas pessoais e, após ver a transcrição, disse não ser nada fácil ler a própria história, mas que não alteraria nada do que havia dito. Dolores também ficou muito emocionada quando falou de seus conflitos e de recordações dolorosas e disse ter sentido "um impacto" quando leu seu relato transcrito. Também não fez alterações, como as demais entrevistadas, mas acrescentou uma última frase: "A sociedade atua silenciosamente, cobrando muito dos que 'ousam' ser diferentes".
Embora o conteúdo dos relatos também indiquem redutos de privacidade, essas mulheres falaram com surpreendente franqueza sobre inúmeros aspectos de suas histórias, personalidades e circunstâncias pessoais. Confirmando Barus Michel (1986), houve o surgimento do sofrimento, da emoção, do apelo ao sentido, do sentido atribuído e do restabelecimento de alguma coerência, habitualmente presentes na situação clínica.
O pesquisador, que se coloca como recolhedor de experiências e tem como proposta construir uma pesquisa compartilhada, reencontra se como clínico onde menos espera essa conclusão deu nos a sensação de ter achado uma saída luminosa para um dos labirintos propostos pelo desafio do conhecimento.
Algumas dimensões da não-maternidade
Verificamos que um movimento espontâneo ocorreu no conjunto das entrevistas: os relatos encaminharam se naturalmente da resposta ao desencadeante da nossa conversa - como é não ter filhos? - para a busca de justificativas que pudessem explicar porque não tiveram filhos. As razões pelas quais cada uma permaneceu sem filhos remete diretamente à complexa questão de se tratar ou não de uma escolha - mais ou menos consciente, mais ou menos deliberada, mais ou menos aceita - e sabemos que, do ponto de vista psicológico, a construção de sentidos para os fatos e vicissitudes da vida geralmente tem uma eficácia simbólica e terapêutica, visto permitir a atribuição de significações pessoais, inclusive a aparentes incoerências.
Não querer um filho é diferente de querer e não ser capaz de ter. Se, por um lado, a limitação de uma mulher com problemas de fertilidade pode ser considerada apenas do ponto de vista físico e sua capacidade de amar avaliada como estando preservada, os termos técnicos "estéril" ou "infértil" carregam a noção pejorativa de que ela é vazia, seca e sem vida por dentro, colocando em cheque seu valor pessoal e feminilidade, através da avaliação de sua fecundidade. O relato de Alice (50 anos) ilustra com bastante clareza a longa batalha contra uma dificuldade dessa ordem e as conseqüências decorrentes de seu esforço. Ela é representante, no conjunto da amostra, das mulheres que os pesquisadores classificam como "tradicionais", ou seja, aquelas que não tiveram filhos devido a algum impedimento de natureza orgânica. Seu depoimento permite ver o impacto e o desgaste provocados nela própria, no companheiro e no casamento devido às inúmeras tentativas para engravidar.
A intensa frustração pela não realização da maternidade, sonhada desde a infância, fez com que ela se sentisse marcada por um estigma que abalou o sentido de sua existência. Embora já tivesse conquistado uma posição social e profissional bastante satisfatória e demonstrado competência no "mundo dos homens", não havia passado na "prova de feminilidade", que lhe daria o atestado de completude e normalidade; além de um provável lugar no paraíso prometido às mulheres que têm filhos. Excluída de uma categoria considerada muito importante, diferente das mulheres mães, Alice deixou de se considerar alguém normal e total, reduzindo se a uma pessoa diminuída e desacreditada.
Whiteford e Gonzales (1995) avaliaram o estigma associado à infertilidade, bem como a culpa e a vergonha decorrentes da internalização das normas sociais expressas nos papéis dominantes do gênero feminino, concluindo que o processo de intervenção médica freqüentemente estigmatiza as mulheres que, sentindo se desvalorizadas para outras realizações fora da reprodução, vêem se como defeituosas. Como a esterilidade é muitas vezes associada a uma etiologia psíquica, pode ocorrer também que terapeutas ainda presos a condicionamentos ideológicos não questionados atribuam um valor excessivo ao desejo de ter filhos, que seria preciso assumir para voltar à normalidade. Alice relata que recorreu a um psicanalista que, com muita sensibilidade, iluminou outras áreas produtivas de sua vida e, dissociando a fertilidade biológica da fertilidade mental, ajudou a a restaurar a auto estima perdida. Nesse sentido, Azambuja (1976, p. 54) diz que "para a mente não é necessária a fertilidade biológica para que haja toda uma busca de fertilidade mental" e que "a ausência de fertilidade biológica não exclui a procura da mesma mentalmente - pode até incentivá-la."
No outro extremo das mulheres pesquisadas encontra se Leila (51 anos), que optou claramente pela não-maternidade, tendo realizado dois abortos. Pertence à categoria das chamadas "transformadoras" ou "manifestantes precoces", formada por uma minoria de mulheres que, sem esforço e incertezas, rejeitam precocemente o papel materno, escolhendo uma vida na qual não há lugar para filhos. Sem manifestar ambivalências, ela conta que colocou sua vida em primeiro lugar, e que cuidar de bebês não fazia parte de seu projeto. Seu relato mostra que o desejo de ter filhos não era natural para ela, embora seu corpo estivesse absolutamente apto para a gestação de outras vidas. Ao contrário, queria estar livre dos encargos desse tipo de compromisso. Diz "ter feito" essa decisão que, embora precoce, foi definitiva e certamente influiu na escolha de seus parceiros, que nunca questionaram sua opção.
Tanto Alice quanto Leila demonstraram muita firmeza em suas posições diametralmente opostas e ativamente sustentadas: uma, através dos inúmeros tratamentos para engravidar; a outra, por meio da realização de dois abortos intencionais e da escolha de parceiros "cúmplices". Há, no entanto, um espaço intermediário em que estão situadas as outras mulheres que, por uma série de razões, não fizeram uma opção definitiva, não afirmaram categoricamente que jamais se tornariam mães - foram adiando a maternidade, até que se tornou muito tarde para ter filhos. Dolores, Beatriz, Lina, Isabel, Laura e Clara fazem parte do grupo das chamadas "transicionais" ou "adiadoras".
Como sugere Bonini Vieira (1997), a palavra escolha, nesses casos, pode ou deve ser entendida como uma prática que foi sendo reafirmada no decorrer da vida, diante de eventos circunstanciais, e que não caracterizaria "a escolha", mas um conjunto de "escolhas" que conduzem a uma direção. Para a maioria das mulheres, a maternidade é tão fundamental para a noção de feminilidade que a reorganização da identidade é algo que leva tempo para ser alcançada. Elas hesitam em eliminar a possibilidade de não ter filhos e, até que a biologia intervenha, vão acumulando evidências em relação a um fato consumado.
O termo "voluntariamente sem filhos", embora aparentemente simples, envolve um conceito complexo, multidimensional e, por vezes, vago - implica uma escolha livre, mas é difícil operacionalizá lo. Para Mosher e Bachrach (1982), a ausência voluntária de filhos deve ser avaliada transversal e biologicamente, visto existirem mulheres que, incapazes de ter filhos devido à sub fecundidade ou esterilidade, afirmam não desejar a maternidade; outras dizem querer ter filhos, mas adiam o momento de tê los até que seja tarde demais, e existem as mulheres que, não sendo casadas, estão mais distantes da possibilidade de se tornarem mães.
A biologia estabelece o limite quanto ao número de anos que uma mulher tem para se decidir, mas a maneira como cada uma lida com essa imposição, excluindo a possibilidade precocemente, manejando a questão metódica ou esporadicamente, ou demorando se nela indefinidamente, está relacionada a aspectos da personalidade e a circunstâncias pessoais. Naturalmente, a maternidade tem significados diferentes para uma mulher que a rejeita na maturidade e para aquela que a rejeitou precocemente, mas o reconhecimento de que uma vida sem filhos foi se tornando realidade implica sempre um trabalho emocional importante. Nos relatos que obtivemos, aparecem os vestígios de um longo processo de indagações e busca de justificativas também relatado por outros pesquisadores.
Azambuja (1986) relata que, em sua prática clínica, tem sido exemplar a freqüente angústia, o medo e a situação de violência mobilizados na mente humana diante da condição de fertilidade. A fertilidade mobiliza sempre o temor em relação ao espaço que ela vai tomar e às exigências que acarretará, e a ameaça que um filho pode representar para uma mulher não diz respeito apenas à ruptura de um sistema narcísico, mas refere se também à ameaça para a identidade feminina em seu todo e para a sexualidade em particular. É possível encontrar sinais desse processo na fala das entrevistadas, uma vez que as mulheres caminham em conflito entre a maternidade e outras áreas de sua identidade, podendo privilegiar um ou outro aspecto, conforme as demandas e circunstâncias pessoais.
A perspectiva da maternidade vivida por Dolores (43 anos) parece a travessia de um perigoso campo minado, um trajeto com ameaças em todos os estágios, do início ao fim. É uma questão de vida ou morte, de sobrevivência física e emocional. Ela descreve de maneira emocionada seus temores e angústias frente à gravidez, ao parto, à criação de um filho que nascesse com problemas. Encontra em seu histórico familiar muitos argumentos para justificar sua opção e, embora pareça ter tomado uma decisão, já tendo feito um aborto impelida por motivos profundos e poderosos, fica evidente que ainda persistem dúvidas e conflitos.
Em sua pesquisa, Safer (1997, p. 73) descobriu que não é incomum repensar uma posição que parecia imutável, seja contra ou a favor, durante um momento crítico, como um aniversário ou morte na família. Entre as mulheres entrevistadas por ela, predominaram "as resoluções graduais alcançadas de modo cumulativo e consolidadas ao longo do tempo", que fazem parte de "um processo demorado, complexo, e não inteiramente consciente", refletindo as dúvidas e ansiedades que "qualquer mulher responsável sente ao contemplar algo tão sério e central como a maternidade."
O longo diálogo de Lina (43 anos), consigo mesma e comigo, mostra que a questão de ter ou não ter filhos é um dilema genuíno, reexaminado minuciosa e periodicamente à medida que algumas circunstâncias colocaram o assunto em evidência. Ela relata, de um modo didático e bem humorado, todas as fases pelas quais passou até o momento, parecendo estar equilibrando-se em uma corda bamba. Não fala em esterilidade, que sem dúvida é um termo carregado de conotações negativas, mas questiona por que "eu não fui tendo filhos" ou "eu fui não tendo filhos", se não havia nenhum "defeito" orgânico e nem sempre tomou medidas contraceptivas consideradas eficientes.
Todos os fatores que poderiam estar implicados em sua não maternidade são relacionados por Lina: aspectos emocionais interferem nos processos hormonais; existe sua herança familiar - as mulheres do lado materno sempre tiveram muitas dificuldades com a gravidez; teve alguns companheiros considerados inadequados ou que não queriam filhos; o fato de não estar casada dificultava; projetos pessoais incompatíveis; as alterações corporais etc... Enfim, um pouco de tudo - desejo, história familiar, circunstâncias que foram se apresentando em sua vida, moldando "uma coisa meio confusa", que ela considera como uma escolha que foi fazendo e mantendo, apesar das dúvidas.
Beatriz (43 anos) demonstra que tem dado respostas vagas para uma pergunta que já causou mais angústia, quando ainda não havia uma decisão definitiva. No presente, já respondeu a si mesma e aos outros que não vai ter filhos; os ponteiros do relógio biológico parecem ter indicado que a hora já passou; as expectativas familiares e sociais ficaram para trás, mas persiste a dúvida quanto ao que está deixando de experimentar - a suposta completude advinda da maternidade. Aborda de maneira indireta e superficial a influência do homoerotismo em seu estilo de vida, quando diz: "é preciso amar um homem para ter filhos e constituir família".
Isabel (48 anos) diz que hoje está tranqüila com a não maternidade, mas anos atrás pensou muito em ter filhos e até em adotar uma criança. Como não estava casada e não tinha um relacionamento estável, desistiu porque não queria um filho gerado e criado em uma relação em que não houvesse o compromisso do casamento e a presença de um pai. Isabel é uma mulher que, assim como Leila, diz estar "sossegada" com o fato de permanecer sem filhos.
No entanto, as mulheres estão expostas às políticas simbólicas que tentam direcioná las para a maternidade e, geralmente, colocar se na contramão das expectativas sociais causa sentimentos conflitantes, comenta Bonini Vieira (1997). Uma vez que a maternidade é encarada como destino e completude, para algumas mulheres o sentimento de que falta algo fundamental causa intenso sofrimento.
O depoimento emocionado de Laura (47 anos) é nitidamente marcado pela manifestação de forças contrárias e reflete a sua dificuldade em chegar a uma conclusão final. Ela sabe que poucas coisas são tão definitivas e irrevogáveis como não ter constituído uma família: é possível divorciar, mudar de profissão e de cidade, mas o fato de não ter uma família conduz a um caminho singular. Ela é uma profissional muito bem sucedida e conseguiu, com esforço e mérito próprios, tornar-se uma mulher vitoriosa profissional e economicamente, mas ficou faltando um pedaço: a maternidade. Realizar uma inseminação ou adotar uma criança são, para ela, soluções improváveis, pois demonstra saber que a disposição ou vocação para ter filhos e constituir uma família vai muito além da mera reprodução biológica. A constatação de que nunca será mãe é muito difícil e solitária, e dá margem a um intenso e doloroso exame introspectivo, no qual são enfrentadas questões muito complicadas, envolvendo aspectos da personalidade e do passado.
A maternidade é tão fundamental para a noção de feminilidade que a reorganização da identidade ameaçada leva tempo para ser alcançada. Sabemos que o fator biológico estabelece limites, e a forma de lidar com essa imposição - excluindo a possibilidade imediatamente, manejando a questão metódica e esporadicamente ou se demorando nela indefinidamente - dependerá da personalidade e das circunstâncias de cada mulher.
Clara (49 anos) também descreve um interminável diálogo interior, no qual demonstra que vai adiando sua hora da verdade e disfarçando uma evidência que parece ainda não suportar. O fantasma da infertilidade foi afastado através de exames médicos, mas não basta um organismo saudável para gerar filhos, é preciso que não existam obstáculos de outra ordem para concretizar o que parece ser a coisa mais importante - e até o momento, impossível - relata Clara. Para ela, filhos também são mais do que o simples resultado do encontro de óvulos com espermatozóides, realizado em algum laboratório; seriam os frutos de um profundo e idealizado relacionamento amoroso, que até hoje não ocorreu. Ela já pensou tanto no assunto que, em suas considerações, faz uma importante discriminação: o desejo de estar grávida é diferente do desejo de cuidar de um filho, e a associação de ambos não é automática.
Muitas mulheres confundem querer ser mãe - que pode ser interpretado com estar grávida, provar que é uma mulher de verdade, dar prazer às famílias garantindo uma nova geração - com a dedicação requerida para criar um filho. Clara afirma que queria passar por essas duas experiências, e embora teoricamente muito informada em assuntos referentes à maternidade, parece ter substituído "fazer" filhos por "pensar" em filhos, fato que ela mesma define como uma "obsessão" ainda não resolvida, apesar do intenso trabalho emocional já realizado.
Um caleidoscópio de sentidos
Uma vez que as mulheres que participaram do presente estudo fazem parte de um grupo específico vivem na maior cidade brasileira, pertencem à classe média, tiveram acesso à instrução superior, são profissionais atuantes que conquistaram independência financeira , podemos perguntar se os resultados aqui obtidos se repetiriam com mulheres de regiões geográficas e status sócio econômico cultural diferentes.
Encontramos, no conjunto desta amostra particular, a experiência da não maternidade voluntária ou involuntariamente vivida, a decisão precocemente assumida ou o adiamento da aceitação de uma vida sem filhos. Cada vivência pessoal envolveu questões e sugeriu temas variados, que foram abordados de maneira bastante matizada, formando como que um continuum em relação tanto à qualidade das experiências quanto à intensidade dos sentimentos correlatos. Assim, a não maternidade emergiu como uma experiência multifacetada, com diversos significados não apenas para as diferentes mulheres entrevistadas mas também para cada uma individualmente, dependendo da perspectiva e do momento em que foi avaliada. Trata se, portanto, de uma matéria polifônica e polissêmica; uma reunião de vozes ou simultaneidade de várias melodias que se desenvolvem independentemente, mas dentro da mesma tonalidade, formando um conjunto de acepções em relação à experiência de vida.
As tentativas de estabelecer generalizações e relações simples de causa e efeito mostraram se infrutíferas, evidenciando que a problemática das mulheres sem filhos escapa a uma concepção linear. A não maternidade provoca o rompimento de um modelo feminino tradicional e, embora represente uma diferença significativa, não significa patologia, constituindo um fenômeno complexo, multidimensional e dificilmente redutível a um único determinante. Sua compreensão requer a revisão das expectativas em relação aos papéis femininos tradicionais, desfazendo o mito do instinto materno e aceitando o fato de que a vida das mulheres pode ter dimensões muito variadas quando a sociedade lhes apresenta outras opções além da maternidade.
Referências
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Endereço para correspondência
Rua Maranhão, nº 554, cj.66, 6º andar - Higienópolis
01240-000 São Paulo-SP
E-mail: lucimansur@uol.com.brlucimansur@uol.com.br
Recebido em 18/02/02
Aprovado em 18/12/03
Agência financiadora: CAPES
* Psicóloga, Mestre e Doutoranda em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1 Dissertação de Mestrado: Experiências de Mulheres sem Filhos: a Mulher Singular no Plural. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2000, 190p. Orientada pela professora doutora Maria Luisa Sandoval Schmidt.