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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.25 n.4 Brasília dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Depressão e neoliberalismo: constituição da saúde mental na atualidade

 

Depression and neoliberalism: constitution of the mental health

 

 

Lenita Gama Cambaúva*; Mauricio Cardoso da Silva Junior**

Universidade Estadual de Maringá

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tendo em vista o grande número de indivíduos acometidos por depressão nos dias atuais, este estudo objetiva contribuir para a compreensão desse fenômeno ao buscar relações existentes entre o mesmo e o neoliberalismo, modelo político-econômico em vigência, por meio de um referencial psicanalítico e histórico-social. Tem, também, como propósito uma reflexão sobre a prática do psicólogo. Para isso, realizou-se uma análise acerca da atuação dos fatores sociais na constituição da saúde mental dos indivíduos.

Palavras-chave: Depressão, Neoliberalismo, Saúde mental, Psicologia.


ABSTRACT

Having in mind the great number of individuals suffering from depression in the present days, the goal of this study is to contribute for the comprehension of this phenomenon looking for a relationship between depression and neoliberalism, a political-economic model of our days, through psychoanalytical and historic-social referentials. It also points out a consideration about the practical assistance of the psychologist. For this purpose, an analysis was carried out in order to know how the social factors can influence the constitution of the individual mental health.

Keywords: Depression, Neoliberalism, Mental health, Psychology.


 

 

Pode-se observar, na atualidade, um grande número de indivíduos acometidos pelo mal denominado depressão. Paoliello (2001) expõe dados segundo os quais a depressão atinge de 5 a 6% da população mundial, sendo considerada a quarta doença no ranking da OMS (Organização Mundial da Saúde), com perspectivas de que atinja o segundo lugar em 2010. Conforme divulgado pela BBC Brasil (2004), para tornar mais evidente a gravidade dessa questão, na Inglaterra, estima-se que foram emitidas, no ano de 2001, cerca de 24 milhões de receitas médicas de antidepressivos. De acordo com essa mesma fonte, há indícios de que elementos do antidepressivo Prozac se encontram diluídos nos rios e redes de esgoto de Londres.

Os sintomas que remetem à depressão consistem, de acordo com autores como Fenichel (1981), Kolb (s/d) e Mackinnon e Michels (1981), em desânimo, pessimismo, diminuição da auto-estima, falta de interesse pelo mundo externo, diminuição da atividade sexual, insônia, falta de apetite, expressão de sentimentos auto-punitivos e descrença em capacidades individuais, sendo que a atenção, concentração e memória podem ser prejudicadas devido à ruminação mental dos problemas - excessiva preocupação com problemas pessoais, dificuldades em contatos sociais e idéias suicidas. Tais sintomas confluem com as principais queixas dos pacientes na clínica atual, que, segundo Lowenkron (2003), são, entre outros, vida ausente de sentido, sentimento de vazio, de aniquilamento, perda de identidade, dificuldade de nomear as experiências, solidão.

Mas, ao mesmo tempo em que a categoria depressão se encontra tão disseminada entre a população de um modo geral, ela carece de uma definição mais clara. Autores como Di Loreto (1997), Rodrigues (2000), Paoliello (2001), Lowenkron (2003) e Monteiro (2004) põem em xeque a atual "epidemia" depressiva. Estaria havendo um "hiperdiagnóstico" de depressão. O conceito estaria sendo banalizado, generalizado, sendo que qualquer forma de tristeza manifestada pelos indivíduos ganha a conotação de que deva ser combatida a todo custo, para que se vista a indumentária da felicidade. É nessa luta contra a tristeza que nos deparamos com uma grande proliferação de recursos farmacológicos e terapêuticos contra a depressão.

Segundo Rodrigues (2000), esse alto índice de depressão registrado na contemporaneidade deve-se, muitas vezes, ao diagnóstico padrão da psiquiatria: os sintomas são agrupados no DSM IV (Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais) sob a denominação de "transtornos do humor", dentre os quais se localiza a depressão. Porém, a autora expõe que esse agrupamento se torna problemático na medida em que os sintomas apresentados pelos indivíduos são cindidos de sua etiologia: as classificações estariam baseadas somente na descrição e observação do fenômeno, ignorando-se o sujeito. Não lidando com as causas da depressão, as vertentes biologicistas limitam-se a trabalhar com seus sintomas.

Se considerarmos somente os sintomas para lançarmos o diagnóstico, podemos estar incorrendo em erros, isso porque, como afirma Lowenkron (2003), um diagnóstico deve contemplar, na perspectiva psicanalítica, os mecanismos que estão por trás dos sintomas, do que é aparente. Dessa forma, os sintomas acima descritos não bastariam para estabelecer o diagnóstico de um quadro de depressão. Afinal, seria legítimo considerar que as manifestações do mal-estar atual se enquadram sob a denominação "depressão"?

Se está ocorrendo, de fato, um diagnóstico abusivo, como levantam os autores, essa é uma questão que foge ao alcance da presente análise. O fato é que há a queixa de sintomas relacionados à depressão, independentemente da estrutura psíquica subjacente a ela. Se, conforme explana Rodrigues (2000), toda neurose (como, por exemplo, a neurose obsessivo-compulsiva ou a histeria) pode manifestar sintomas depressivos, e a tristeza, para Freud, segundo a autora, é constituinte de uma personalidade "normal"; algo pode estar ocorrendo na atualidade que atue como potencializador desse aspecto da personalidade.

Um quadro que atinge tais proporções requer uma análise para além do individual, caso queiramos compreender que fatores estão envolvidos nesse fenômeno, como expõem Fromm (1979) e Di Loreto (1997). É possível, então, conceber fatores sociais que colaborem para a crescente onda de depressão no mundo contemporâneo?

Na perspectiva de autores como Fromm (1979) e Guinsberg (2001), sim. O modo como está organizada a sociedade é decisivo para a saúde mental de seus membros. Como afirmam esses autores, o meio social oferece aos indivíduos modelos de estruturação e funcionamento da personalidade, e a subjetividade dos mesmos é constituída de acordo com tais modelos. Suas necessidades e ideais, entre outros, estarão apoiados nos moldes preexistentes fornecidos pela cultura. Aqueles que não conseguem suprir a demanda dos ideais propostos pela cultura são marginalizados e considerados anormais e/ou patológicos.

No âmbito psíquico, de acordo com Laplanche e Pontalis (1983), o meio social tem suas regras, imposições e exigências interiorizadas pelo indivíduo por meio da instância da personalidade denominada superego. Tal instância assume as funções de auto-observação do indivíduo, de moralidade e a função de ideal (o modelo ao qual o sujeito procura conformar-se). Portanto, o superego é produto da cultura, referente à sociedade em que vive o indivíduo.

Tendo em vista tais considerações, propusemo-nos investigar possíveis nexos entre o crescimento da incidência da depressão, como apontado pelas estatísticas, com o modo como está estruturada a sociedade atualmente, ou seja, de acordo com os pressupostos do neoliberalismo, modelo político-econômico em vigência no mundo capitalista. Para tanto, pensamos ser pertinente apresentar alguns dos principais pressupostos dessa sociedade para o prosseguimento do trabalho.

 

Princípios regentes do sistema neoliberal

O neoliberalismo consiste em um sistema econômico e político que surge com a proposta de resgatar alguns pressupostos do liberalismo (neo - novo - liberalismo) que haviam sido abandonados na ocorrência da crise de 1929, quando então o Estado adotou medidas de bem-estar social propostas por Keynes (1883-1946) para retomar o crescimento do País (Cambaúva, 2002). Tais medidas vigoraram até os anos 70 do século XX, quando uma nova crise do capitalismo atingiu a economia mundial. Visando a uma retomada do crescimento econômico, vem à cena um grupo de pensadores - Sociedade Mont Pèlerin - que, desde o final dos anos 40, criticavam as práticas protecionistas e de bem-estar social, as quais seriam responsáveis pela estagnação da economia (Paulani, 1999 e Guinsberg, 2001). Dentre esses pensadores, situa-se Hayek (1899-1992), que, como solução à crise capitalista, fundamentou o neoliberalismo.

Comecemos pela visão sobre a qual se alicerça esse sistema. Segundo Hayek (1987), os homens são desiguais por natureza. Concebido como juiz de suas próprias aspirações, cada indivíduo deve lutar para atingir seus próprios objetivos, mesmo causando prejuízo aos seus semelhantes. Nesse "cada um por si", o homem pode contar apenas consigo mesmo, posto que, na perspectiva neoliberal, é dotado de capacidades tais como autocontrole e auto-suficiência diante dos demais. Para Hayek (1987),

[...] o sistema de objetivos do indivíduo deve ser soberano, não estando sujeito aos ditames alheios. É esse reconhecimento do indivíduo como juiz supremo dos próprios objetivos, é a convicção de que suas idéias deveriam governar-lhe, tanto quanto possível, a conduta, que constitui a essência da visão individualista (p.76).

Sennett (1999), ao analisar essa perspectiva, conclui que o indivíduo deve depositar confiança em si mesmo e ter lealdade para consigo próprio, sendo o outro um obstáculo à sua realização pessoal. Tornando-se um ser que se basta, o homem necessita minimamente do outro para constituir-se. Os objetivos individuais, sendo inconciliáveis e conflitantes aos objetivos comuns, trazem como conseqüência, como explanam Guinsberg (2001) e Sennett (1999), a fragilização das relações sociais, que adquirem um caráter superficial, com laços tênues ligando os seres uns aos outros. Interagir com o outro perde o sentido quando o indivíduo se concebe como um "super-homem", e o que é de âmbito privado se sobrepuja ao que é público, o que leva ao esvaziamento daquele, posto que o que passa a existir é o público enquanto instância para expressão do privado, significando, assim, a publicização do privado.

O homem, possuindo auto-suficiência, não necessitaria da proteção do Estado. Um real governo, na concepção de Hayek (1987), se efetua pelo mercado. Este, sendo guiado por interesses particulares, seria a garantia da liberdade individual, pois o sujeito não estaria preso à vontade e aos interesses de uma classe social ou de um governante. Diante de um mecanismo imprevisível e flutuante, regido pela concorrência entre os indivíduos, o destino destes fica "aberto", indeterminado, inconstante e imprevisível, e, em tese, teriam chances iguais de lutarem pelo sucesso pessoal.

Para ele [Hayek], será a ordem de mercado que deverá superar os impasses criados pela vida em sociedade, baseada em normas que não serão plenamente conhecidas por todos, mas que, ainda assim, regerão a vida social e a distribuição de bens (Garcia, 2003, p.5).

Os indivíduos ficam, então, à mercê da sorte, do destino, do acidental - palavras constantes na obra de Hayek (1987). Submetendo-se à impessoalidade, à incerteza, à irracionalidade e às vicissitudes do mercado, segundo o autor, torna-se possível a construção de algo que está acima de nossa capacidade de compreensão. O conhecimento das regras que regem a vida não pode ser atingido por todos, e é justamente a imprevisibilidade e a inconsciência daquele conhecimento que é a garantia da liberdade.

Com efeito, uma das principais justificativas da concorrência é que ela dispensa a necessidade de um "controle social consciente" e oferece aos indivíduos a oportunidade de decidir se as perspectivas de determinada ocupação são suficientes para compensar as desvantagens e riscos que a acompanham (Hayek, 1987, p.58).

Em uma realidade tão instável, Maia (2001) e Sennett (1999) concordam ao afirmarem que os indivíduos se deparam com a necessidade de tornarem-se flexíveis ante a vida, ou seja, devem estar abertos a mudanças, a se adaptarem de acordo com a situação e a dançarem conforme a música, o que significa que devem assumir uma espécie de identidade polimorfa. Seus projetos de vida devem pautar-se no imediato, a curto prazo, posto que a vida é regida pela incerteza, pela sorte.

 

Homem hodierno, desamparo e narcisismo

Como já afirmamos anteriormente, os indivíduos que não portam as qualidades exigidas pelos ideais da cultura são excluídos da mesma. Na cultura neoliberal, segundo Maia (2001), são culpabilizados por não possuírem as capacidades requeridas pelo modelo neoliberal, como, por exemplo, auto-suficiência e identidade flutuante. Mesmo que esse ideal de homem seja inatingível, toda a responsabilidade por não se adequar àquele modelo recai sobre o indivíduo. Hayek é partidário da visão que Bock (1999) denomina "perspectiva do Barão de Munchausen", segundo a qual o indivíduo é responsável e capaz de desenvolver sua individualização independentemente do meio; seria, portanto, responsável pelo seu sucesso ou fracasso, devendo arcar com as conseqüências de seus atos sozinho, como se não sofresse influência dos aspectos históricos ou econômicos vigentes no meio em que vive.

Para Freud (1973) e Kehl (2003), o homem é um ser desamparado, frágil ante as vicissitudes da vida, ante a morte. Além de recorrer à figura de deuses, por exemplo, pode suportar a vida através do estabelecimento de vínculos com seus semelhantes. Ao estabelecer laços (investir libido no outro), sua vida adquire sentido, posto que reconhece a si mesmo através do olhar do outro. A vida em sociedade, as trocas afetivas, nascem, portanto, de uma questão de sobrevivência.

Segundo Figueiredo (1991b), na sociedade neoliberal, o indivíduo adquire uma espécie de liberdade que considera negativa, e que vem acompanhada do desamparo. O homem, em outras formas de organização política, econômica e social, encontrava-se, em parte, apoiado, protegido pelo Estado e pela sociedade. Apesar de o sistema capitalista possuir mobilidade social (afinal, pelo menos em teoria, ninguém nasce predestinado, mas, sim, cada um terá de construir seu caminho durante a vida), o indivíduo deve caminhar só, defender seus próprios interesses, em competição com os demais, não contando com qualquer arrimo.

[...] esse indivíduo livre é um desamparado. Ele pode escolher (até certo ponto), mas, mesmo que sua escolha seja real, ele passa a conviver com uma indecisão: seu destino, pelo menos teoricamente, passa a depender dele, de sua capacidade, de sua determinação, de sua força de vontade, de sua inteligência e também da sua esperteza, da sua arte de vencer, de passar por cima dos concorrentes, de chegar primeiro _ e de sua sorte [...] Todavia, se pode subir, pode também descer, pode chegar à miséria sem que ninguém se preocupe com ele _ e isso, numa sociedade tradicional, também é muito improvável (Figueiredo, 1991b, pp. 25-26).

A cultura atual, ao estabelecer esse ideal, propicia o investimento libidinal do indivíduo em si mesmo, que, na visão de Maia (2001) e Guinsberg (2001), favorece as denominadas patologias do narcisismo, entre as quais se situa a depressão. Estas remetem o indivíduo ao estágio do desenvolvimento humano no qual o bebê não se reconhece enquanto ser separado do mundo externo: percebe-se fundido com o mundo, não há o sentimento de alteridade, de reconhecimento do outro, sendo que a libido se encontra voltada para si mesmo, requerendo que suas necessidades sejam satisfeitas imediatamente, caso contrário geram grande tensão (Laplanche e Pontalis, 1983).

Segundo Freud (1973), um retorno a essa fase ocorre diante do desamparo, de situações nas quais o indivíduo se depara com a desproteção que o levam a recorrer a mecanismos que o defendam de possíveis aniquilações, como rejeição ao perigo que o ameaça. Regride, portanto, ao estágio em que a criança se sente onipotente, ela se basta. Tais manifestações podem ser compreendidas como resultado da tentativa de os indivíduos se incluírem na cultura; o adoecimento reflete, portanto, o caráter social (nos termos de Fromm, 1979, o ideal de sujeito) cobrado dos mesmos. O homem, encontrando-se desamparado pelo próximo (que lhe é obstáculo à realização pessoal), abandonado pelo Estado, desloca a libido de objetos externos e investe-a em si mesmo para que possa suportar a caminhada que fará solitariamente rumo aos seus objetivos - incertos - a serem atingidos. Destituído de apoio, iguala-se a um deus.

Quando se descobre abandonado pelos deuses que ele próprio criou, o homem tem de enfrentar seu desamparo mais radical, o do lugar vazio do fiador último da história simbólica pessoal e da humanidade. Nesse contexto, seu próprio "eu" constitui um desses ídolos divinizados (Pereira, 1999, p.127).

Através do conteúdo até o momento exposto, pode-se notar que a atual forma de organização social possui algumas características que propiciam o adoecimento dos seus membros. Mas tais fatores estariam relacionados com a onda de depressão que atinge a humanidade atualmente?

 

Depressão na contemporaneidade: conseqüência psíquica do neoliberalismo?

Como se sabe através dos escritos de Fenichel (1981), o depressivo encontra-se regredido narcisicamente. Fechado para o mundo externo, apresenta como sintoma a ruminação mental de seus problemas pessoais, na tentativa de resolvê-los por si só. Mackinnon e Michels (1981) destacam que a auto-estima de tais indivíduos baseia-se na autoconfiança, que os faz buscar enfrentar seus problemas independentemente daquilo que os rodeia. Não temos aqui uma grande similaridade no que tange ao perfil de indivíduo cobrado pelo sistema neoliberal, quando este exige um ser auto-suficiente, isolado dos demais?

A sociedade contemporânea, favorecendo uma regressão narcísica, distancia os indivíduos uns dos outros. De acordo com Mackinnon & Michels (1981), a depressão também tem como sintoma o isolamento social. O indivíduo tende a esquivar-se do contato social, buscando resolver por si só seus problemas, desvalorizando o apoio do próximo. O contato entre as pessoas, na sociedade atual, conforme aponta Monteiro (2004), se dá de forma superficial, no qual os indivíduos evitam falar de si mesmos. Segundo os autores, vive-se em uma época de incomunicação. O homem sente-se solitário, mesmo em meio a uma multidão. Concebe-se que os conflitos devem ser elaborados no âmago de cada um, sendo refutável quem os exponha publicamente, posto que o homem deve sustentar a imagem que lhe é exigida pelo ideal, como nos jargões sorria, você está sendo filmado, e no stress. Exige-se um indivíduo "desafetado". O valor do mal-estar é, assim, revogado. O conflito psíquico, sinal de bom funcionamento mental, como expõem Guinsberg (2001), Di Loreto (1997) e Monteiro (2004), é tido como patológico, em nome de uma concepção de sujeito saudável enquanto ausente de conflitos.

A palavra, segundo Monteiro (op. cit.), o veículo para elaboração da angústia, do trauma, do luto bem como instrumento que vincula os seres uns aos outros, é abolida do cotidiano. Se a palavra é abolida, a atividade do indivíduo em nomear suas experiências fica prejudicada. Como expõem Kehl (2003) e Lowenkron (2003), o indivíduo mergulha no vazio, na ausência de sentido da existência, pois encontra-se depauperado subjetivamente. Sem a palavra, retorna ao desamparo, posto que, se as experiências não são nomeadas, são desconhecidas para o indivíduo. Ante o medo do desconhecido que ronda o ego permanentemente nessa sociedade, resta a defesa narcísica de investir libido em si mesmo, resguardando-se do meio externo hostil.

Ainda no campo das relações interpessoais, observa-se que, principalmente entre o público jovem, o "ficar" é a forma de relacionamento amoroso em voga na atualidade, consistindo em uma espécie de relacionamento relâmpago, sem vínculos entre os envolvidos. Remete à lógica do imediatismo presente na cultura, conforme explana Maia (2001), como forma de evitar frustrações com um vínculo mais sério, evitar perdas, obter satisfação momentânea. O outro é somente um instrumento que, depois de oferecer ao desfrutador o prazer almejado, é descartado.

Pode-se notar que essa forma de relacionamento atende à necessidade narcísica do prazer imediato, presente no indivíduo depressivo. Este pode apresentar, como traço de personalidade, a denominada adicção de amor, que, para Fenichel (1981), consiste na busca por relações com o outro apenas para que suas necessidades sejam satisfeitas, através de um vínculo narcísico com o objeto, a fim de obter prazer imediato. Assim, não importa as características desse objeto, e, sim, que este supra sua carência. Dessa forma, a libido se encontra investida em si mesmo, não se deslocando para o objeto, fator essencial para o estabelecimento de relações com o outro (Maia, 2001).

A identidade dos indivíduos se encontra, assim, em crise, pois, como postula Bock (1999, p.3): "[...] não sabemos mais quem somos, isso porque o sabermos a nós mesmos só é possível quando sabemos nosso mundo e o dos outros". Nessa crise, conforme aponta Monteiro (2004) e Guinsberg (2001), surgem os mal-estares, tais como os sentimentos de vacuidade, tristeza, ou até melancolia, todos esses sintomas embutidos com o mesmo rótulo: depressão.

Podemos dizer que o indivíduo se encontra inserido num meio fragmentado: fragmentação do tempo, que perde a linearidade para ser composto de instantes; fragmentação do conhecimento, pois não é possível ter-se o conhecimento total acerca dos fenômenos sociais, mas somente parcelas destes (Fernandez, 2003); fragmentação do espaço, pois não há limites espaciais ante a globalização e a mídia eletrônica; extinguem-se, assim, as distâncias, e ocorre a fragmentação de si mesmo, já que o indivíduo não possui uma identidade fixa, mas flexível.

À luz de Freud (2000), a depressão deriva da perda de objeto investido libidinalmente. Ao ocorrer a perda, o ego inicia o luto a fim de elaborá-la. Em lugar de a libido, com a perda, deslocar-se para outro objeto - como ocorre no luto normal - esta é investida no ego, que se identifica com o objeto abandonado, o que acarreta uma mudança estrutural, passando a ser tratado pelo superego como se fosse o objeto internalizado.

Os indivíduos, imersos no jogo do "cada um por si" e "que vença o melhor", devem depositar fé em si mesmos; perdem, assim, o que lhes servia de amparo: perda de seus próximos, que se tornam obstáculos à realização pessoal e perda de um Estado, que os deixa entregues à sua própria sorte, regido pelo mecanismo impessoal do mercado. A desigualdade entre os indivíduos é vista como natural e necessária no modelo neoliberal, impondo a todos grandes limitações no curso da vida. Segundo Guinsberg (2001) e Fenichel (1981), a insatisfação com a vida, que exige muitos sacrifícios dos indivíduos, se caracteriza como um dos fatores que favorecem a depressão.

[...] uma sociedade que não consegue dar satisfações necessárias aos seus membros por força cria grande número de indivíduos de caráter oralmente dependente. Os tempos instáveis e as depressões econômicas, privando os homens das suas satisfações, também privando-os do seu poder e prestígio e dos modos habituais por que regular a auto-estima, aumentam-lhes as necessidades narcísicas e a dependência oral (p.379).

Os homens, no modelo neoliberal, são culpabilizados pelas situações de crise que atingem a sociedade, tais como miséria e recessões econômicas. O fracasso, o insucesso, a perda, a derrota têm suas causas atribuídas à falta de capacidade de o indivíduo lidar com as adversidades (Figueiredo, 1991a). O neoliberalismo exige um indivíduo onipotente, e, quando este falha, toda a culpa recai sobre seus ombros.

Um sistema que atribui demasiada responsabilidade ao indivíduo tem seus reflexos em nível psíquico. O superego, enquanto representante das normas que regem a cultura, adquire uma crueldade e sadismo em demasia ao exigir o cumprimento do ideal cobrado pelo neoliberalismo e culpar unicamente o ego caso não cumpra tais expectativas. Segundo Fenichel (1981), o superego do depressivo possui caráter sádico. O ego está a ele subjugado, obedecendo às suas regras e sofrendo suas retaliações. Como o ego do depressivo se encontra regredido, é infantil (orientado oralmente), ele obedece ao superego como se fosse um filho diante da autoridade dos pais. Sofrendo constantes ataques dessa autoridade, o ego sente-se abandonado, desamparado.

O ideal de homem requerido pela sociedade contemporânea é, segundo Guinsberg (2001) e Maia (2001), algo muito distante da realidade dos seres humanos, quase inatingível. Para o primeiro autor, esse fator eleva os índices de depressão tanto nas classes médias quanto nas menos privilegiadas. Nas classes médias, o desejo não é satisfeito plenamente, é inesgotável, posto que não existe nada fixo, tudo é temporário, instantâneo; em se tratando de consumo, por exemplo, sempre existem produtos novos lançados no mercado, cada um superando o anterior em alguma inovação. Já as classes mais baixas não têm possibilidade, não têm acesso aos ideais de consumo da cultura, acabam ficando à margem da sociedade, ou seja, são excluídas. Nota-se que o neoliberalismo se caracteriza como um sistema gerador de insatisfação nos indivíduos, ante a vida e para consigo mesmos.

De acordo com Paulani (1999) e Guinsberg (2001), o mercado adquire força de entidade máxima, único capaz de assegurar a liberdade individual, no qual as forças que a regem são desconhecidas, impessoais, não passíveis de serem conhecidas na sua totalidade pelos sujeitos. Para Paulani (1999), Hayek admite que o mercado regente da sociedade é "[...] amoral, mas é o que de melhor se pode conseguir!" ( p. 122).

Se tentar conseguir algo melhor que isso, fica pior. Então não há saída. Temos de abrir mão de nossa suposta capacidade racional e submeter-nos à lógica míope da economia de mercado, convivendo com seus resultados. É um fim melancólico demais, havemos de convir, para o homem moderno, que se descobriu todo poderoso há alguns séculos em função de sua capacidade racional (Paulani, 1999, p. 122).

Todos devem submeter-se aos seus pressupostos como se estes fossem verdades inquestionáveis, naturais, e que devem ser aceitos pelos indivíduos como se não existisse outra alternativa: todos devem, contestando ou não, adaptar-se às leis mercadológicas. Quando se pressupõe uma força desconhecida e poderosa nas rédeas da vida, ocorre uma desvalorização da pessoa, que abdica de compreender o mecanismo que rege a sociedade e entrega-se ao jogo da sorte, o que, para Guinsberg (op. cit.), colabora para a depressão.

 

Considerações finais

Segundo Bock (1999 b, p.30), "[...]o desenvolvimento do indivíduo se dá no contato com a cultura e outros homens". A ideologia do neoliberalismo entende que o indivíduo se faz por si próprio, não necessitando de mais nada para sua constituição além de si próprio. Butler (1987, p.47), grande defensor de Hayek, afirma que:

[...] não são as finalidades que unem as pessoas. As relações entre os homens são, na verdade, relações-meios. Hayek lamenta que muitos não consigam aceitar que a união da humanidade depende, afinal, das relações econômicas e do modo como elas fornecem a satisfação pessoal.

A falta de referências, o isolamento, a necessidade de ter e não ser alguém são algumas das conseqüências da adoção desses valores pela sociedade atual. Assim, podemos dizer que a atual conjuntura propicia a entrada dos indivíduos em um estado depressivo, posto que favorece uma regressão narcísica e a adoção de um caráter depressivo, isso porque se encontram desamparados pelo meio social, que cobra auto-suficiência e desapego do próximo bem como culpabiliza-os pelo fracasso, e tem na força impessoal e incerta do mercado o motor regente do destino das pessoas.

É possível, assim, estabelecer uma relação acerca do desamparo e do adoecimento: o superego, representante interno do meio social e portador das exigências e ideologias do sistema econômico e político, é a estrutura da personalidade que atua cobrando do ego as exigências do modelo neoliberal, que apresenta ideais quase inatingíveis e culpabiliza unicamente o indivíduo por não atingir esses ideais, ou seja, abandona o indivíduo à própria sorte, deixando-o em situação de desamparo; o superego adquire, assim, um caráter sádico, (característica da depressão) e o ego se vê flagelado, desamparado, condição presente na depressão.

Considerando que o indivíduo se constitui como tal a partir das relações sociais que mantém, há uma unidade entre fatores internos e externos. Isso significa que fatores histórico-sociais não só são constitutivos do psiquismo como também colaboram para o aparecimento de patologias. O homem atual é, a um só tempo, desamparado e onipotente e, portanto, vulnerável ao aparecimento de doenças psíquicas. O sistema neoliberal não cria a depressão, mas propicia o seu afloramento, ou seja, fornece várias condições para que o indivíduo seja por ela acometido.

Para Bock (idem, p.34): "O indivíduo só pode ser realmente compreendido em sua singularidade quando inserido na totalidade social e histórica que o determina a dá sentido à sua singularidade".

Entender a ideologia neoliberal e suas implicações propicia ao psicólogo compreender a causa da depressão como expressão dos tempos. Muda a idéia de que o homem é o único responsável pelas suas desventuras; muda, assim, a prática do psicólogo - do enfoque na doença para o enfoque na prevenção. Segundo Bock (ibidem), a Psicologia vem trabalhando com uma visão naturalizada de homem, o que não possibilita entendê-lo historicamente, o que implica uma atuação descontextualizada e ideológica. Para a autora, entender o psiquismo humano é compreender as mediações sociais que o constituem. Ao psicólogo cabe a responsabilidade de apreender as ideologias vigentes por meio do olhar crítico e, dessa forma, ter uma atuação que possibilite a transformação social, e não a sua legitimação.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Mauricio Cardoso da Silva Junior
E-mail:E-mail: o.mauriciojr@ig.com.br.

Recebido 30/03/05
Reformulado 04/10/05
Aprovado 03/11/05

 

 

* Mestre em Filosofia da Educação pela PUC/SP, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.
** Acadêmico do 5º ano de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: o.mauriciojr@ig.com.br.