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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.13 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

 

Alienação e separação nos processos interpretativos em psicanálise1

 

Alienation and separation in interpretative processes of psychoanalysis

 

 

Christian Ingo Lenz Dunker*I;Tatiana Carvalho Assadi**II

*Universidade São Marcos
**Universidade Estadual de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A presente pesquisa objetiva examinar processos interpretativos na clínica psicanalítica a partir de sua análise retórica e lógica. Adotou-se como referência a teoria proposta por Lacan (1966) com relação à importância do significante e do sujeito em face da interpretação. Estabeleceu-se como problema verificar a compatibilidade entre os conceitos que regem a noção de interpretação sob o paradigma lingüístico, notadamente centrado nas idéias de metáfora e metonímia, e o paradigma lógico, reunido nos conceitos de alienação e separação. Para isto examinou-se uma passagem do caso clínico conhecido como Homem dos Lobos (Freud, 1918), demonstrando convergência entre as perspectivas interpretativas e retóricas discutidas.

Palavras-chave: Psicanálise, Interpretação, Retórica, Alienação, Separação.


ABSTRACT

The following research examines the interpretative processes in psychoanalytical clinics from rhetorical and logical perspectives. It refers to the theory proposed by Lacan (1966) about the importance of the significant and the subject during the interpretation process. It establishes as an issue for further investigating the compatibility that may exist among concepts which define and determine interpretation within the linguistic paradigm, centered around the notions of metaphor and metonymy, as well as within the logical paradigm with its central concepts of alienation and separation. For this purpose we examine a fragment of the clinical case known as “The wolf man” (Freud, 1918), thus demonstrating the convergence between the interpretative and the rhetorical perspectives.

Keywords: Psychoanalysis, Interpretation, Rhetorical, Alienation, Separation.


 

 

Lingüística e lógica da interpretação

Entre 1964 e 1968 encontramos no ensino de Lacan o uso sistemático dos conceitos de alienação e separação, com o objetivo de especificar as relações possíveis entre o Sujeito e o campo do Outro. Trata-se de um momento crucial na trajetória desse pensador, pois conjuga transformações políticas internas e externas a instituições psicanalíticas, produzindo mudança de referência na formalização de conceitos. Até então Lacan trabalhara com um paradigma lingüístico-estruturalista, combinando aspectos da teoria hegeliana para extrair desse paradigma o que ele, em primeira instância, não poderia oferecer – ou seja, uma teoria do sujeito.

Até o Seminário XI (1964), o problema era contornado por Lacan com o uso de hipóteses que tornavam isomórfica a posição do sujeito ao efeito de certas produções lingüísticas. Assim, em Instância da letra (Lacan, 1957, p. 519), o lugar do sujeito é “confundido provisoriamente” com a condição de passagem do significante ao significado na metonímia e na metáfora. Em Subversão do Sujeito, afirma-se que o sujeito “não é nada além do shifter ou indicativo que, no sujeito do enunciado, designa o sujeito enquanto ele fala naquele momento” (Lacan, 1960, p. 814). Ao tornar o sujeito comensurável com a linguagem, seja no modo da fala, do discurso, ou da escrita, seja segundo as estruturas do signo, da metáfora, da holófrase ou do código/mensagem, Lacan propicia diretrizes bastante claras sobre o processo interpretativo. Ocorre que este ganho em termos de clareza técnica apóia-se em uma teoria insatisfatória do sujeito. O sujeito dividido pela lingua-gem, em posição intervalar na cadeia significante, entendido como efeito do inconsciente, é em última instância um sujeito alienado (Fink, 1998, p. 68).

A partir de 1964, todavia, o uso da lingüística por Lacan parece ceder lugar à lógica e à topologia como instrumentos de reflexão. O sujeito é pensado como um conjunto vazio, mas ao mesmo tempo capaz de subjetivar sua causa. Estranhamente causa e efeito – no ensino lacaniano desse período – não são conceitos recíprocos: o sujeito é um efeito do significante, entretanto sua causa não é o próprio significante, mas o objeto a. Essa dualidade de apreensões do sujeito tem levado alguns comentadores a falar em uma clínica do significante em oposição a uma clínica do real, centrada nos desenvolvimentos posteriores sobre o objeto a.

A noção de separação, sucedida pela de travessia do fantasma, emerge no período em questão como forma de representar logicamente a relação entre o sujeito, o objeto que lhe dá causa e a cadeia significante. Em 1968, no Seminário sobre o ato analítico (1968), as categorias de alienação e separação, que exprimem em última instância a releitura lacaniana do cogito de Descartes, encontram sua consolidação final e sua presença em textos posteriores é bastante esparsa.

Se, no entanto, a modificação na noção de sujeito apresentada acima é substancial, presume-se que ela traga conseqüências para a teoria da interpretação. Verificar tal possibilidade é o objetivo da presente pesquisa. O problema que procuramos aprofundar diz respeito à compatibilidade entre a noção de interpretação no período anterior a 1964, e no âmbito das transformações teóricas regidas pela introdução dos conceitos de alienação e separação. Trabalharemos com a dimensão retórica para verificar em que termos é possível encontrar disparidades e convergências com o modelo lógico de causação do sujeito no interior de processos interpretativos. A escolha da retórica como guia metodológico justifica-se, pois ela é um campo de estudos sobre a linguagem, que congrega a análise das condições de produção do sentido (Jacobson, 1995; Todorov, 1996), com a tematização do aspecto performativo ou pragmático necessário para a abordagem do sujeito (Maingenau, 1995).

 

Processos interpretativos

Por processo interpretativo entendemos o conjunto de transformações enunciativas que envolvem a posição do sujeito, a estrutrura do discurso ou o teor da significação no interior de um segmento de análise. Trata-se de uma definição pragmática orientada para a perspectiva clínica, e assumidamente não exaustiva. Outra característica de nossa definição é que ela evita localizar, necessariamente, a interpretação com um pronunciamento do analista. Distanciamo-nos assim da definição de Laplanche e Pontalis, em que a interpretação seria: “uma comunicação feita ao indivíduo procurando fazê-lo ace-der ao sentido latente, segundo as regras determinadas pela direção e evolução do tratamento” (1986, p. 319). Acompanhamos Lacan na idéia de que uma interpretação mede-se por seus efeitos; logo, se uma interpretação não tem efeitos não pode ser legitimamente considerada como tal, independente da exatidão de seu conteúdo ou da intencionalidade de quem a expresse.

Freud parece reservar a expressão “interpretação” ao trabalho de ressignificação pontual, como via de regra observa-se em relação aos sonhos, pequenos esquecimentos, atos falhos e chistes. O emprego do termo em relação a sintomas, fantasias e manifestações transferenciais é mais raro, e geralmente subentende a combinação de elementos originados do trabalho interpretativo do primeiro tipo. No entanto, em ambos os casos, os efeitos clínicos da interpretação podem ser agrupados em duas dimensões:

1.modificações no teor do discurso associativo: aparição de lembranças, evocação de outras formações inconscientes, interrupções da fala ou desvios temáticos, que de modo geral ponderam o eventual sentido comprobatório da intervenção. Inclui-se aqui o efeito de ressignificação produzido pela análise no âmbito da história do sujeito a partir da reapropriação de seus significantes fundamentais;

2.modificações nos processos de causação do sujeito: como se pode inferir ocasionalmente da desaparição, deslocamento ou irrupção de sintomas, alterações no plano da angústia, emergência de acting out e, de modo geral, efeitos que indicam a relação antinômica entre desejo e gozo. Conjugam-se nesse caso os processos de alienação e separação do sujeito em face ao objeto a.

Nos dois ângulos de consideração dos efeitos da interpretação, a escuta analítica orienta-se respectivamente para a articulação significante e para a causação do sujeito. No primeiro caso, este é compreendido como uma atividade de tradução ou retradução do sentido, permitindo a continuidade de seu deslizamento. Não é, entretanto, o produto dessa tradução o que importa ao processo, mas a articulação significante necessária para sua efetuação. Nesses termos, a interpretação introduz algo que repentinamente torna a tradução possível (Lacan, 1956). Em outras palavras, trata-se de limitar a significação ao introduzi-la em uma série sincrônica, quando são exploradas as ressonâncias homofônicas de um significante, por exemplo; ou ainda de captá-la em uma série diacrônica, como no caso da pontuação da insistência de um significante no discurso. No segundo caso, a interpretação refere-se à modificação do lugar de onde emerge o sentido e acompanha-se de uma fratura da significação. Tal perda de significação deve-se à incidência da interpretação sobre a causa do desejo (Lacan, 1972). Obtém-se como efeito um sujeito separado do campo do Outro. Por exemplo, no caso Dora (Freud, 1905), a paciente encontra-se alienada em uma trama amorosa, em que a única posição que lhe parece possível é de reivindicação e denúncia. Freud alude sucessivamente: (a) à implicação de Dora na trama; (b) ao desejo pelo Sr. K; e (c) à fantasia de felação. Nesse movimento, o objeto destaca-se do campo do Outro ao mesmo tempo em que o sujeito separa-se desse Outro. O produto é a modificação da posição subjetiva da paciente, no caso com sérias conseqüências para a transferência.

Nossas categorias poderiam se ramificar caso as combinássemos com a distinção proposta por Allouch (1995), que aborda a interpretação a partir das múltiplas operações contidas na idéia de deciframento, ou seja, transcrição, tradução e transliteração. Para esse autor, a tradução opera na perspectiva de preservação do sentido entre línguas diferentes. No caso da psicanálise, isso exemplificar-se-ia na idéia de traduzir o material manifesto, recuperando o sentido latente. É este esquema interpretativo que permitiu a Freud, no caso conhecido como Homem dos Ratos (1909), explorar a polissemia do significante “Ratten”, que no desenrolar do tratamento foi traduzido por ratos (no sintoma fóbico), mas também dívida (na relação ao pai), e secundariamente por filhos (na relação com a Dama) e por excrementos (na “língua” da pulsão anal).

A transcrição supõe variações na produção do sentido, levando-se em conta diferentes modos expressivos de uma língua, ou suas condições de figurabilidade, notadamente da língua falada para a escrita. A interpretação de heterogeneidades temporais e dialetais que habitam uma língua também são objeto do trabalho de transcrição. Freud utiliza o termo transcrição para referir-se às diferentes formas de associação e dissociação entre representaçãopalavra e representação-coisa. Por exemplo, no artigo O inconsciente (1915), discute-se a incidência diferencial da expressão “Augenverdrehen” (literalmente, virador de olhos; no sentido metafórico, sedutor), supondo-se formas distintas de transcrição dessa representação no caso da histeria (conversão ocular) e no caso da psicose (sensação subjetiva de reviramento nos olhos). A “linguagem de órgão” varia de um caso para outro, pois trata-se de modos diversos de transcrição da mesma moção pulsional.

A transliteração, por sua vez, refere-se aos diferentes sistemas de escrita possíveis na linguagem. Sabe-se que a maioria das línguas glossográficas, isto é, baseadas na representação da fala, podem admitir variações conforme o princípio associativo seja o morfema (caso do chinês), um segmento da fala (como nas línguas semíticas), ou a sílaba (caso do Linear B), ou ainda o fonema (caso da maioria das línguas ocidentais). Estes exemplos servem para mostrar, como apontou Sampson (1996), que não se deve confundir o grafema, derivado de um sistema de escrita, com o significante, derivado de um sistema composto por fala e língua. No caso da psicanálise, a transliteração é um modo de escuta particularmente útil para compreender operações de deciframento em torno do chamado rébus de transferência. O rébus é uma forma de funcionamento da linguagem em que as palavras representam-se por desenhos ou imagens gráficas. Ocorre que no rébus de transferência é possível falar seguindo regras desse sistema de escrita. Por exemplo, uma paciente, mencionada por Allouch (1995, p. 171), observando o colarinho feito de celulóide (Celuloid) de um enfermeiro, conclui que o jogo de damas que usava lhe foi enviado por Lulu (a filha de seu patrão) por meio de um navio (Loyd). A interpretação de “Celuloid” para “C’est Lulu Loyd” (É Lulu Loyd), apesar de baseada na homofonia, tem como princípio a suposição de diferentes sistemas de escrita.

A idéia de que na psicanálise também se deva levar em conta o modo de escuta transliterativo recebe forte apoio na seguinte observação de Freud:

Se pensarmos que os meios de representação nos sonhos são principalmente imagens visuais e não palavras, veremos que é ainda mais apropriado comparar os sonhos a um sistema de escrita do que a uma linguagem. Na realidade, a interpretação dos sonhos é totalmente análoga ao deciframento de uma antiga escrita pictográfica, como os hieróglifos egípcios. Em ambos os casos há certos elementos que não se destinam a ser interpretados (ou lidos, segundo for o caso), mas têm por intenção servir de “determinativos”, ou seja, estabelecer o significado de algum outro elemento (1913, p. 180).

A expressão “deciframento”, contida na passagem, sugere que pelo menos dois processos que indicamos acima são necessários para compor a interpretação. Isso porque tanto a transcrição quanto a transliteração implicam em ciframento, o que não ocorre na tradução.

Admitindo-se as variações que delimitamos quanto ao processo interpretativo, e conjugando-as aos modos de escuta posteriormente discutidos, concluímos que de fato a abordagem lingüística e retórica de Lacan, anterior a 1964, é insuficiente para captar uma série de pontos cruciais. Isso porque o aspecto semântico, elaborado e contornado habilmente na esfera da primeira doutrina do significante, é insuficiente para lidar com as propriedades sintáticas, morfológicas e narrativas da linguagem, que são necessárias para o trabalho de transcrição e transliteração.

 

A forma retórica da interpretação

A compreensão dos processos interpretativos como mera produção ou tradução de sentido surge então como uma abordagem bastante parcial da questão. O método psicanalítico possui inúmeras proximidades com a atividade de leitura ou interpretação de um texto, mas estas não esgotam o problema. Isso porque a intenção desse método não é apenas produzir um saber sobre o desejo, derivado de uma exegese do sentido, mas transformar os modos de produção do sujeito a partir de suas alteridades (Birman, 1991).

Desta maneira convivem na prática psicanalítica da interpretação hermenêutica, criptologia e análise estrutural por um lado, mas também retórica, pragmática e análise funcional da linguagem, por outro. A co-dependência entre interpretação e transferência no tratamento analítico, largamente tematizada pelos pesquisadores, é um exemplo do aspecto híbrido desse método. A tensão entre a produção do sentido e a produção do sujeito é um aspecto específico do mesmo problema.

Se as formações do inconsciente possuem estrutura equivalente a de certas figuras retóricas, como a metáfora e a metonímia, é razoável supor que a interpretação seria o processo de desconstrução do sentido veiculado por essas figuras. Tratar-se-ia assim de escutar “ao pé da letra” até extrair o sentido literal expresso em linguagem metapsicológica, que em última instância seria não ambígua. Não pensamos desta maneira. A idéia de que haveria tal ponto como o sentido literal é uma contradição com as premissas da teoria da linguagem em Lacan. Igualmente é preciso recusar a idéia de que a interpretação seria um processo de prolongamento da metáfora na qual se expressam certas formações do inconsciente – idéia esta defendida por Spence (1992). Isso porque tal prolongamento não é suficiente para abordar as transformações subjetivas esperadas de uma análise.

Nossa hipótese é de que a marcação lingüística dessas transformações subjetivas, da alienação à separação, é expressa pela modificação da forma retórica dominante no discurso. Isso não quer dizer que toda transformação desse tipo implique modificação do sujeito, mas que toda modificação do sujeito seria acusada por esse indicador. A desconstrução da metáfora não é sua redução ao sentido literal, mas sua transformação em outra forma retórica.

Em outro momento exploramos este problema, confrontando o que chamamos de interpretação fundada na metáfora à interpretação fundada na alegoria, mostrando como cada uma derivava de concepções diferentes do que é um sintoma (Dunker, 1996). Hoje percebemos como a crítica da interpretação alegórica não é suficiente para justificar a unidade da interpretação baseada na desconstrução da metáfora. De fato, a forma retórica da interpretação admite inúmeras variações, mas se considerada do ponto de vista pragmático, o critério mais claro para abordá-la baseia-se na suposição de que o efeito da interpretação é uma transformação da forma retórica original. Ora, a forma retórica da metáfora implica a substituição de um significante por outro, com a elisão do primeiro. Mas há inúmeros exemplos de interpretação que não se baseiam nessa estrutura.

Ao analisar as formas retóricas contidas no livro de Freud sobre o chiste, mostramos como ao lado da metáfora e da metonímia é preciso considerar a sinédoque como uma forma retórica importante nas interpretações psicanalíticas (Dunker, 1999). Igualmente, tais figuras de palavra não subsumem todas as possibilidades de constituição do chiste, logo de estruturação das formações do inconsciente. Há formas retóricas baseadas em processos sintáticos, como a silepse, a antanáclase e a elipse, que são cruciais para a interpretação de certos tipos de chiste, e que não se conformam à estrutura geral do dualismo metáfora e metonímia expresso em Lacan. Há também formas retóricas baseadas em processos morfológicos, como o neologismo, a aliteração e a síncope, que são irredutíveis sob o mesmo argumento. Final-mente, o último ponto fraco da formalização lingüística de Lacan anterior a 1964 é a exclusão que ela implica das chamadas formas retóricas de pensamento, que servem de base a um extenso grupo de chistes analisados por Freud. A ironia, a antítese e o oxímoro são exemplos de jogos de palavras baseados no pensamento, que perderam sua dignidade em face da suprema-cia dos dois grandes tropos organizadores da linguagem, que Lacan retoma da teoria de Jacobson (1995). Neste sentido, o abandono da lingüística por Lacan pode representar uma insuficiência no desenvolvimento de suas categorias, e não uma ruptura irredutível.

 

A forma retórica da alienação e da separação

Que as formações do inconsciente admitam estrutura similar à de formas retóricas, isso não é suficiente para estabelecer uma teoria da interpretação. Esta precisa contar ainda com as regras de transformação a que esta forma retórica está sujeita na situação analítica. Vimos que essas transformações podem ser distribuídas em função do teor do discurso e da posição do sujeito, e que estas se combinam, aos modos de escuta tradutivo, transcritivo e transliterativo. Vamos agora mostrar como a conjugação é possível a partir da análise de um sonho relatado pelo Homem dos Lobos:

Sonhei que um homem arranca as asas de uma “Espe”. “Espe”?, não pude deixar de perguntar; o que você quer dizer? “Um inseto de ventre listrado de amarelo, capaz de picar. Deve ser uma alusão à Grusha, a pêra pintada de amarelo”. “Vespa (Wespe), você quer dizer” corrigi. “Se chama Wespe? Realmente acreditei que se chamava Espe. (...) Mas Espe, esse sou eu, S.P.” (as iniciais de seu nome). A “Espe” é, naturalmente, uma Wespe mutilada. O sonho o diz claramente: ele se vinga de Grusha por sua ameaça de castração (Freud, 1918, p. 86-87).

O primeiro movimento da interpretação é claramente tradutivo, Serguei Pankieff substitui a vespa pela sua antiga babá – Grusha, cujo nome em russo quer dizer pêra. Figura-se assim a ameaça de castração sofrida na infância por meio da mutilação do inseto. Neste sentido, a interpretação que o Homem dos Lobos dá a seu próprio sonho corresponde à desconstrução de uma metonímia, pois conjuga associações contíguas entre os significantes envolvidos, transportando o mesmo significado por meio de um novo arranjo significante. Sua interpretação entende o acontecimento significante contido no sonho como um elemento a mais na série associativa desenvolvida até então.

Vale a pena notar que no início da análise o paciente recordara que durante o período de angústia vivido na infância ele fora tomado pelo medo quando caçava uma borboleta listrada de amarelo. Meses mais tarde o paciente associou o abrir e fechar das asas de uma borboleta com uma mulher abrindo e fechando suas pernas em forma de “V”. O “V”, na escrita latina, liga-se ao horário em que culminam suas depressões diárias, e supostamente indicaria a hora em que se passara a cena primária, o que se poderia inferir por uma interpretação transliterativa. Em um período posterior o paciente recorda-se das pêras listradas de amarelo, que apreciava na juventude, e que aparecem no discurso em contigüidade com Nanya, a babá que antecedeu Grusha. Assim, o sonho insere-se no processo interpretativo, evocando significantes em associação metonímica. Propomos como forma retórica da metonímia a adjunção de dois conjuntos que contêm em si diferentes séries associativas:

Borboleta => listras amarelas <= vespa

Nanya => pêra <= Gruscha

A relação entre os dois conjuntos é de reunião; as propriedades do primeiro transportam-se ao segundo. A reunião contém dentro de si a interseção das propriedades comuns. O significado permanece estável e não há ruptura da barra de resistência à significação. Observe-se que esta metonímia é composta pela adjunção de duas sinédoques: [listra amarela pela borboleta e a lista amarela pela vespa], ou ainda [pêra por Nanya e pêra por Grusha]. Na sinédoque observa-se a relação entre dois significantes baseada na generalização ou particularização. A sinédoque é um caso particular da metonímia – único caso que realiza perfeitamente a fórmula “parte pelo todo” (reunião). Formalizada desta maneira, a compatibilidade com o diagrama da alienação, que esquematizamos abaixo, aparece facilmente:

Sujeito => S1 <= S2

S1 indica o significante enigmático, carregado de não-senso ao ser realizado no sonho, ponto que pede associação. S2 representa o saber efetivado pela ligação com S1 a partir da alienação do sujeito. Assim, a tradução completa-se mas deixa em aberto a causa do desejo. Afinal, o que deseja o Homem dos Lobos nessa insistência? Isso é apenas parcialmente respondido pela desconstrução da metonímia.

Voltemos ao sonho. O segundo movimento compreende uma pontuação de Freud, que chama a atenção para o rigor do dito “Espe”, deixando de lado a unidade do sentido que se preservara pela continuidade do discurso, e tomando por irrelevante o fato do paciente ter o russo por língua materna e apresentar naturais dificuldades ao expressar-se em alemão. Aqui a escuta privilegia o modo transcritivo, pois aponta a incompatibilidade ou equivocidade entre o dizer e o dito. Neste sentido, Freud apóia-se na deformação morfológica da palavra, mais precisamente na presença de uma síncope, ou seja, figura retórica que opera pela supressão de um fragmento fonético da palavra. Note-se que ao alterar o modo de escuta, Freud recusa a contigüidade da interpretação metonímica e reintroduz a posição enigmática de S1 (Espe), que agora não está mais indicado por listras amarelas ou por Grusha. Em outras palavras, essa intervenção convida a associação a prosseguir sob outro modo de inserção subjetivo, marcado aqui por outra forma retórica.

A seqüência revela, no paciente, a aparição de um terceiro modo de escuta, o transliterativo: “Espe, este sou eu”. Toma-se duas expressões foneti camente semelhantes, diferenciando-as pelo modo de escrita: “Espe” e “S.P.” – em alemão pronunciam-se da mesma forma, o que permite diferenciá-los é justamente a presença de determinativos, ou seja, os pontos escritos que marcam a abreviatura. A escuta de Freud enfatizou portanto a dimensão de escritura, e não apenas a dimensão fonemática da fala.

Os determinativos mencionados por Freud no trecho que citamos acima são empregados na escrita hieroglífica, e serviram a Champollion de modo decisivo para a decifração da pedra Roseta. No caso do egiptólogo, foram os chamados cartuchos, que circundavam nomes próprios como “Ptolomeu” e “Cleópatra”, o que permitiu isolar o valor dos grafemas da escrita egípcia. No caso do Homem dos Lobos encontramos pontos (S.P.), mas poderia tratar-se de aspas ou de um sinal equivalente. Sinais que funcionam como embreantes (shifter) na passagem de um modo de escuta ou leitura a outro.

Do ponto vista retórico não se pode dizer que a relação entre “Espe” e “S.P.” está baseada na metáfora, na metonímia ou na sinédoque. A atribuição do efeito da interpretação à homofonia significante, apesar de correta, é ampla em demasia, pois a homofonia está presente tanto na dimensão morfológica quanto na sintática e na semântica. O mesmo argumento aplica-se à equivocidade, outro critério da interpretação assinalado por Lacan (1972). No entanto, se combinamos a análise lógica com a transformação retórica podemos especificar a direção do processo interpretativo.

O efeito produzido pela emergência de “S.P.” faz com que o sujeito apreenda-se em sua causa: “Mas S.P. sou eu”. Nesse movimento, todo o con-junto de pulsões que coordenavam as associações é realocado. Não se trata apenas de olhar sadicamente a mutilação do Outro, nem de identificar-se à sua castração imaginária, mas de uma sobreposição das faltas que põe o sujeito em posição de separação. Em termos lógicos trata-se da operação de interseção e não de reunião. É importante notar que esta separação só pode ser apreendida no contexto do processo interpretativo, que propiciou no primeiro momento a alienação.

Outro movimento importante é a passagem do plano dos predicados ao plano do ser. Segundo Soller (1997), esta é uma inovação trazida pelos diagramas da separação/alienação, isto é, a possibilidade de responder a questão do desejo com a do ser.

Poderíamos imaginar a contingência dessa passagem em uma outra continuidade do discurso. Segundo Mahony (1992, p. 88) e Obholzer (1993, p. 107), o próprio Serguei Pankieff associara as iniciais “S.P.” também à figura de um famoso ator homosexual de Odessa, sua cidade natal, que certa vez se aproximara dele com intenções sedutoras. Igualmente a letra “W”, elidida pelo ato falho, é bastante sugestiva, e deu margem a comentários bizarros entre alguns autores que se dedicaram ao caso clínico em questão. Por exemplo: o “W” é composto pela duplicação do “V”, hora suposta da cena primária (cinco horas da tarde); o “V” invertido torna-se “>”, ou seja “maior que”, mas também o perfil gráfico da boca do lobo devorador; “W” pronuncia-se “Weh”, que em alemão significa “dor”, e no dialeto austríaco “desgosto” (Mahony, 1992, p. 86). Se as associações seguissem esses caminhos, provavelmente não se teria alterado a posição subjetiva, e o processo interpretativo deveria ser considerado sob outro ângulo.

Freud encerra seu comentário afirmando que o sentido do sonho é claro; a Espe é uma Wespe mutilada (sem o W). No entanto, a idéia de que isso permitiria retornar ao conjunto do sonho, sob a égide do desejo de vingança quanto à ameaça de castração sofrida pela babá, levanta problemas. Ela é compreensível pelo lugar que o sonho ocupa na narrativa do caso, funcionando como peça probatória da ameaça de castração. Mas essa meta-interpretação contradiz diretamente os fatos da associação. O que o paciente diz é: “A vespa mutilada sou eu” e não apenas “A vespa mutilada representa Grusha” – o que, afinal, obteve-se no primeiro movimento interpretativo e que foi percebido como insuficiente.

Nesse plano meta-interpretativo é possível reencontrar a forma metafórica ou contrametafórica do processo. Propomos representar a forma retórica dessa metáfora pela adjunção de dois conjuntos, em que sua interseção não contém nenhum elemento significante, mas justamente o que lhe está em exterioridade. A letra, o objeto a e o S de A barrado são conceitos que Lacan propõe para designar esse campo. Na fase lingüística de sua obra, isto corresponde à idéia de que: “é entre o significante do nome próprio de um homem e aquele que o abole metaforicamente que se produz a centelha poética” (Lacan, 1957, p. 511).

A metáfora não é pensada, neste caso, em acordo com a tradição aristotélica da conjugação de semelhanças, mas no recobrimento de diferenças – daí a posição vazia na interseção. Assim pode-se escrever a forma retórica do processo interpretativo:

Espe => inseto de listras amarelas (alienação)

Espe =>? => Wespe (pontuação)

Espe => Wespe mutilada <= Grusha, cena da castração (alienação)

Espe => S.P. => Sou eu... (separação).

Note-se que se não houvesse a passagem do modo de escuta tradutivo ao transcritivo, o que se acompanhou de uma passagem da forma retórica semântica para a morfológica, não se poderia distinguir a dupla função de “S.P.”. De modo inverso, se não contássemos com a localização da série significante obtida no primeiro movimento do processo interpretativo, não se poderia fixar a cadeia associativa posterior organizada metonimicamente. Isso concorda com a tese defendida por alguns lingüistas de que a metáfora é composta pela relação entre duas metonímias. Freudianamente isso equivale a dizer que a condensação é composta pela adjunção de dois deslocamentos. A forma retórica sugerida acima replica a formalização lógica proposta por Lacan para expressar a separação, a saber:

Sujeito <= a => S1 – S2

O campo do Outro (conjunto da direita) está ocupado pela cadeia significante (S1 – S2), mas algo desse campo destacou-se (o objeto a), tornando o campo do Outro incompleto. Como isto que se destacou não é um elemento do Outro (um significante) mas uma parte dele, mais precisamente a parte dotada de gozo, a interseção pode ser lida como vazia. Inversamente, o campo do sujeito (conjunto da esquerda) está agora ocupado por um sujeito cuja falta inscreve-se na letra e não no significante. Essa relação entre o sujeito e o objeto a (fantasma) é de disjunção, ou seja, perda de gozo. Assim, ele encontra-se duplamente dividido: pela cadeia significante e pelo gozo.

A análise do “vel” lógico, feita por Lacan para especificar as operações de alienação e separação que expressam a causação do sujeito, é em última instância a análise das funções lógicas possíveis do conectivo “ou-ou”. Ora, o “ou” inclusivo (alienação), exclusivo (separação) e o “ou” da escolha forçada (um tipo especial de alienação), não podem ser apreendidos fora de um processo interpretativo. Isso combina com a tematização inicial desses conceitos no artigo Posição do inconsciente (Lacan, 1964), em termos da temporalidade.

 

Conclusão

A idéia de que os conceitos de metáfora e metonímia foram substituídos pelos de alienação e separação, no período de 1964 a 1968 da obra de Lacan, já foi apontada por alguns comentadores (Laurent, 1997, p. 31; Fink, 1998, p. 81). A tendência era compreender essa substituição como uma ruptura que separava claramente o Lacan lingüístico do Lacan lógico, mormente acrescida de uma desvalorização do primeiro. Nosso estudo procurou mostrar que tal ruptura deixa em aberto uma rica perspectiva de releitura do primeiro Lacan, por meio da conjugação da análise retórica com a análise lógica. O dualismo, certamente herdado da perspectiva estrutural, poderia assim ser redimensionado naquilo que tem de redutor, para além das vantagens metodológicas que ele inegavelmente carrega.

Dois pontos permanecem ainda obscuros após este percurso. O primeiro diz respeito à apreensão clínica do sujeito no caso da separação realizada na operação de travessia do fantasma. O que o distinguiria da primeira separação do sujeito, analisada do ponto de vista retórico? A resposta talvez resida na ampliação da pesquisa para o campo da chamada retórica dos argumentos, campo este capaz de fornecer uma nova base de consideração do Outro em termos psicanalíticos.

O segundo ponto problemático refere-se à relação entre os diferentes tipos de efeitos da interpretação e os modos de escuta possíveis do discurso. Vimos, no fragmento de análise examinado, que a passagem pelo modo transcritivo foi fundamental para a separação entre letra e significante e para a emergência do sujeito em separação, mas não teria sido isso uma contingência? Seria, de fato, necessária essa passagem? O problema ganha em amplitude se notarmos que em um exemplo clássico da clínica lacaniana – no caso apresentado por Laplanche e Leclaire (1961) em torno do sonho do Licorne (unicórnio) –, as mesmas operações de transformação lingüístico-retóricas podem ser constatadas. A solução do problema traria conseqüências importantes para o entendimento de temas clínicos como a travessia do fantasma e a destituição subjetiva, que são francamente inabordáveis se nos mantemos na esfera do sujeito da alienação e das operações de desalienação baseadas no reconhecimento do desejo.

 

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Endereço para correspondência
Christian Ingo Lenz Dunker
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Recebido em 28/07/03
Versão revisada recebida em 28/08/03
Aprovado em 05/09/03

 

 

Notas

IPsicanalista; Professor Doutor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade São Marcos; Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo.
IIPsicanalista; Mestre em Psicologia (Universidade São Marcos); Doutoranda em Ciências Médicas (UNICAMP); Pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da Unicamp, lugar em que desenvolve o trabalho sobre a perversão feminina.
1Artigo apresentado em comunicação oral no V Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, ocorrido em setembro/2000.