SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 número16O lugar da literatura na constituição da clínica psicanalítica em FreudDa passagem ao ato à transferência: duas soluções em um caso de psicose índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.9 n.16 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

“Alienação” na psicanálise: a pré-história de um conceito

 

Alienation in the psychoanalysis: the prehistory of a concept

 

 

Maria Cristina PoliI

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-graduação em Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A inclusão do conceito de “alienação” no vocabulário psicanalítico, a partir do legado de Lacan, tem importantes conseqüências teóricas e clínicas. Ela permite que a psicanálise avance tanto no sentido da promoção do enlace de sua prática em extensão e em intensão, quanto na compreensão da estrutura originária do eu. Um estudo dedicado ao tema da “alienação” na psicanálise deve promover um encontro com as origens do termo na cultura e sua influência nas obras de Lacan e Freud. Buscou-se nas obras de Rousseau, Pinel, Hegel e Marx re­estabelecer as bases semânticas do conceito. Na obra de Lacan, a presença destes autores pode ser observada, já em 1946, na crítica à concepção psiquiátrica da loucura.

Palavras-chave: Alienação, Lacan, História, Filosofia, Loucura.


ABSTRACT

The inclusion of the concept of “alienation” in the psychoanalytical vocabulary, following Lacan’s legacy, has important theoretical and clinical consequences. It allows that the psychoanalysis advances in the direction of the promotion of the bond in its practical extension and intension, as well as in the understanding of the original structure of the ego. A dedicated study to the subject of the “alienation” in the psychoanalysis has to encourage an encounter with the origins of the term in the culture and its influence in the works of Lacan and Freud. This article looks through the works of Rousseau, Pinel, Hegel and Marx to establish the semantic bases of the concept. Lacan has already, in 1946, referred to these authors while advancing a critical position in regard to the psychiatric vision of madness.

Keywords: Alienation, Lacan, History, Philosophy, Madness.


 

 

Introdução

Assim como o conceito de “sujeito”, não é a Freud que a psicanálise deve o termo “alienação” em seu vocabulário. Se podemos reconhecê-lo como um conceito na psicanálise – o que não é de todo seguro –, foi Lacan que o formulou como tal. Sua referência encontra-se presente desde os primeiros escritos e seminários do psicanalista até 1968, ano do Seminário 15, O ato analítico (Lacan, 1967-68), no qual encontramos a última menção. Atualmente a aplicação da palavra alienação no campo psicanalítico é vastamente realizada. Apesar disso, não há ainda – que seja de nosso conhecimento – um trabalho crítico sobre a inclusão desse conceito na psicanálise. Para que isso possa vir a ser feito, consideramos imprescindível que a história do termo “alienação”, sobretudo sua gênese na filosofia e na psiquiatria, possa ser conhecida.

Não é nossa pretensão recortar de forma exaustiva o campo semântico a que o termo “alienação” historicamente se refere. Temos tão somente a intenção de recorrer a alguns dos principais contextos discursivos de elaboração do conceito, a fim de que possamos reconhecer a função de sua inscrição no vocabulário da psicanálise. A nosso ver, a utilização do termo “alienação” em psicanálise responde aos propósitos freudianos da constituição de um dispositivo clínico de análise da cultura e das relações sociais. Pensamos poder aí situar a proposta de Lacan do que seria a formulação de uma “psicanálise em extensão”. O que permitiria, por outro lado, a reintegração dessa interpretação na psicanálise em intensão.

Na Encyclopaedia Universalis, Ricoeur indica que “a palavra ‘alienação’ é hoje, na língua francesa, uma palavra doente” (2002, p. 817). A “doença” em causa é a de um uso excessivo do conceito, abarcando um campo semântico excessivamente vasto. Ele nos apresenta um breve histórico do termo, de forma a tentar “curá-lo”. Na psicanálise, denominaríamos esse processo de restauração do valor significante. A aplicação excessiva de uma palavra, podendo efetivamente transformá-la em uma “palavra vazia”, cujo excesso de significado é índice da ausência de sujeito.

Segundo Ricoeur, fazer um histórico do termo é a empresa necessária para restituir seu valor. Mais do que um trabalho de precisão conceitual, trata­se de um verdadeiro processo de evocação memorialística. Como a psicanálise nos ensina, também as palavras podem sofrer de reminiscências. Ao tornar-se monumento semântico, acontecimento conceitual, um significante torna-se signo e funda-se sobre um duplo apagamento: um “esquecer de esquecer”. Junto com o valor significante, o recalcamento incide sobre todo “complexo conceitual” adjacente. Assim, concordamos com Ricoeur que:

O único serviço que a reflexão pode oferecer é o de restituir uma memória as nossas palavras e de ponderar seu emprego através de uma consciência exata das criações de sentido que caíram no esquecimento ao caírem no uso comum (p. 826).

 

Alienação na filosofia política e na psiquiatria – Rousseau e Pinel

O termo “alienação” é, na época de Lacan, bastante familiar à cultura psiquiátrica e filosófica. Seguindo os passos indicados por Roudinesco (1994), pode-se dizer que a referência a esse conceito encontra-se no cerne da virada de Lacan da psiquiatria fenomenológica à filosofia, como passagem forçada para a apreensão e releitura da obra de Freud. Dito de outro modo, é o termo que Lacan guarda – da psiquiatria para a filosofia, chegando na psicanálise –, mas alterando completamente seu sentido a cada mudança de campo semântico. Na psiquiatria Pinel o utiliza desde 1797 para caracterizar o estado dos doentes, substituindo o termo “loucura”, julgado muito genérico. No artigo Manie, vésanies, aliénation mentale ou dérangement des fonctions intellectuelles, ele explica o porquê de sua preferência pela “alienação”: “é um termo feliz que exprime em toda a sua latitude as diversas lesões do entendimento” (apud Postel, 1995, p. 23).

Conforme Ricoeur, esse sentido “psiquiátrico” do termo alienação – como “alienação mental” – encontra-se presente desde o século XV. A seu lado encontramos um uso mais antigo do termo: o sentido jurídico, em que “alienação” significa “a cedência, o dom ou a venda” de um título de propriedade. Porém, a carreira propriamente filosófica do termo terá início com Rousseau (1762b) e o contrato social. Para o filósofo, o contrato social é fundado sobre a alienação que os homens fazem de sua liberdade natural à coletividade. Eles alienam – no sentido jurídico da palavra, de outorgar um bem pessoal a outro – sua liberdade individual, própria à natureza humana, para que, segundo as leis do “contrato social”, ela lhes seja devolvida como liberdade social, mediada pelas regras da convivência com os outros indivíduos.

Como se pode notar, a apropriação psiquiátrica do termo não é de todo independente de seu uso filosófico. Mesmo que historicamente sua origem seja anterior, o “alienismo” de Pinel é herdeiro também da filosofia contratualista. Segundo o dicionário de psiquiatria Larousse (Postel, 1995), o “alienado mental” é aquele que perdeu sua liberdade moral, condição para o estabelecimento do contrato social. O médico seria o representante da sociedade que tem por encargo proteger e assistir o doente. Alienação significa, neste contexto psiquiátrico, a desresponsabilização do doente sobre seus atos. A doença mental é assimilada à degenerescência do juízo moral.

No livro História da loucura, Foucault (1989) indica que nos hospitais psiquiátricos a relação paciente (alienado) e médico era regrada sobretudo pela moral. O médico, mais do que um homem de ciência, é alguém que detém uma posição de respeitabilidade moral. Ele deve sustentar o doente em sua fraqueza. É assim que, com Pinel e a inserção do médico nos asilos, o uso do termo “alienação” vulgariza-se. A partir de 1838 passa a vigorar a lei que formaliza o “contrato”, mediado pela alienação, entre doente e médico/ instituição. Falta apenas um pequeno passo para que a palavra passe a ser veículo de um certo número de preconceitos. “Os alienados” são caracterizados como aqueles a quem falta o pleno domínio das faculdades mentais.

O que chama mais a atenção nessa passagem da filosofia de Rousseau ao campo da psiquiatria é a inversão de valor que se opera no uso do termo “alienação”. Os “alienados”, no sentido de Pinel, designavam sobretudo aqueles que não tinham outro lugar senão às margens da sociedade, isto é, aqueles que resistiam a, ou que não tinham as condições necessárias para “alienar­se”, no sentido de Rousseau, ao pacto social. O processo terapêutico empregado na época preconizava que o doente deveria “entregar” (“alienar”) sua alma à ciência do médico. Este, da mesma forma que a coletividade em Rousseau, era encarregado de “devolvê-la” pelo tratamento. Assim, na psiquiatria, ser “alienado” era ao mesmo tempo uma descrição que se queria científica do estado d’alma do doente e um julgamento moral: a incapacidade de ser incluído no pacto social. Um sentido explicando-se pelo outro: “ser alienado”, no sentido psiquiátrico, significava a incapacidade à “alienação” no sentido rousseauliano. O que nos conduz a pensar que esse sentido antinômico do termo está desde sempre incluído em sua utilização, seja política, seja psiquiátrica. Uma seria a revelação, pelo avesso, da outra.

É fato que, em Rousseau, a alienação que funda o pacto social deve obedecer algumas pré-condições. No “contrato social” ele distingue a alienação de um escravo ao seu mestre daquela que instaura a organização de um povo como tal. A primeira, precisa o autor, é o ato pelo qual um homem, ou um povo, vende-se ou se dá a outro. Estando a venda descartada, pois é o mestre que vive à custa de seus escravos e não o contrário, a alienação do escravo é a entrega deliberada de todos os seus bens ao serviço do mestre. Para Rousseau, esse tipo de alienação é imoral e só pode ser realizado por loucos. Pois a ninguém é dado o direito de dispor de sua liberdade natural, deliberadamente, para uso de outro.

Já a alienação fundadora do contrato social parte do princípio da igualdade entre os homens. O corpo moral e político será então resultado da alienação de cada contratante, a entrega total de sua liberdade para o interesse e a vontade coletivos. Para Rousseau, a “alienação total” dos direitos dos indivíduos em prol da comunidade é a cláusula fundamental do contato social; ela estabelece a igualdade entre os contratantes e a eqüidade de direitos, impedindo o exercício do domínio e submissão de alguns em particular. Ou seja, a alienação de todos ao mesmo princípio coletivo tem por função interditar a alienação do escravo ao mestre (Rousseau, 1762b, p. 35-36).

Conforme Rousseau, em cada composição social o pacto não é apenas um ato realizado; para que uma associação sobreviva, ele deve ser constantemente reinscrito. A participação de cada pessoa no contrato é a expressão de um ato de vontade individual, um exercício do direito natural à liberdade. Por intermédio da alienação deliberada o indivíduo é subsumido ao corpo coletivo: a vontade e liberdade individuais tornam-se coletivas. Deste ato, cada contratante recebe da coletividade “sua unidade, seu eu (moi) comum, sua vida e sua vontade”. Ele torna-se pessoa pública, isto é, Corps politique. Rousseau acrescenta ainda que ao perder a liberdade natural e o direito ilimitado sobre tudo, ganha-se no contrato social a liberdade civil e o direito à propriedade. É o estado civil que se adquire que “faz o homem verdadeiramente dono de si próprio” (p. 39). Para o filósofo, a escravidão consiste em responder ao impulso da vontade, enquanto a liberdade só é adquirida pela obediência à lei.

Curiosamente, em Emile, Rousseau (1762a) define a liberdade moral como aquela que o homem adquire em sua relação consigo mesmo. O que nos faz pensar que essa relação do homem a si mesmo inclui a passagem pelo corpo coletivo. Não nos parece, no entanto, que a filosofia rousseauliana consiga resolver internamente todos os impasses que a definição dos conceitos apresentam.

Interessa-nos destacar aqui como, nesse início de carreira filosófica, o termo “alienação” expressa um duplo sentido:

1. na relação mestre e escravo, como ato imoral ou irracional pelo qual alguém entrega todos os seus bens para o gozo de Outro. Este é o sentido negativo do termo, que será preservado na psiquiatria;

2. no contrato social, como ato fundador da coletividade. Neste segundo sentido, a alienação implica uma aposta pela qual perde-se algo (a liberdade natural) a fim de ganhar algo melhor (a liberdade civil). Este segundo sentido tem como premissa o fato de ser um ato coletivamente realizado. Não se trata de uma alienação de uma pessoa a outra, mas de pessoas, semelhantes, que se alienam a uma coletividade que é criada por esse mesmo movimento.

A alienação ao contrato social é concebida positivamente como um processo de troca. Sacrifica-se algo, o estado de natureza, para receber coisa melhor no lugar. É necessário considerar que a filosofia política de Rousseau não é descritiva, é propositiva. Ou seja, ela compõe uma utopia do passado, uma versão mítica do como deveria ter sido a instauração do pacto social. Desse ponto de vista, ela é a-histórica, desenhando um tempo mítico de passagem do estado de natureza, idealizado por Rousseau, ao estado de sociedade. O filósofo contratualista tenta corrigir essa passagem, de forma que a sociedade não deturpe o “bom selvagem”, mas aprimore suas qualidades naturais. Conforme assinala Ricoeur (2002), talvez possamos situar aí a relação de ressentimento que, no senso comum, guardamos com o conceito de “alienação”. Como se essa aposta primeira, pela qual um sujeito indeterminado abandona-se à coletividade (ao Outro) e renuncia a uma parcela de gozo, não se mostrasse finalmente bem sucedida para o indivíduo singular.

É preciso levar em conta que a definição da origem da sociedade como estabelecida com base em um processo de troca, de alienação mútua, é uma concepção nova na história das idéias; é uma concepção propriamente moderna. Ela estabelece o princípio de que a relação do indivíduo com o mundo exterior, com os outros e consigo mesmo é, ou deveria ser, mediada. Os homens entre si compõem uma terceira instância – uma pessoa pública – que não é a simples soma de seus elementos. Essa mediação, significada pelo termo alienação, passa a compor a própria definição de homem como tal, imiscuindo-se na relação consigo mesmo. Daí que a aplicação de tal conceito ao campo psiquiátrico não seja anódina. Ela revela o irrealizado da utopia de Rousseau na sua projeção social. Como se ao médico – representante da moral – fosse dada a faculdade de corrigir o desvio, sempre presente pela perda do estado de natureza, da alienação mental, na direção da forma ideal, a alienação ao contrato social.

É fácil constatar que essa aproximação da figura do médico psiquiatra com o representante da norma social é decorrente da idéia de que a moralidade é uma forma sublimada – isto é, uma alteração de estado que mantém a identidade da substância – da ordem natural. O “alienado mental” é, neste sentido, sinônimo de “pervertido”. Tratar-se-ia de uma deturpação sobrevinda na passagem da natureza à sociedade, ou seja, interna ao processo de “alienação”.

Foucault (1989), retomando esse movimento histórico no qual surge a figura do “alienado”, demonstra a alteração que ela promove na relação do homem com a verdade. Segundo o autor, é a partir da segunda metade do século XVIII que o “parentesco originário” entre a alienação dos filósofos e a dos médicos se faz sentir, em uma acepção de loucura que se configura na ruptura do homem com a imediatez da natureza (p. 368-369). O estatuto médico-político do “alienado” representa, em última instância, os efeitos subjetivos de uma clivagem – social/natural – fundadora da figura abstrata do homem político moderno. É aí também que se situa a inclusão da “história” no pensamento sobre os estados do homem.

 

Alienação na dialética hegeliana

O sentido etimológico da palavra “alienação” provém do latim, do verbo alienare, que tem o sentido de tornar estrangeiro, hostil; e do substantivo alienatio, que guarda o sentido de dissociação, hostilidade (Ricoeur, 2002). Na literatura moderna podem ser encontrados exemplos desse uso. Mas desde Aristóteles ela é utilizada sobretudo para significar um processo jurídico, que consiste em ceder ou vender a outro algo sobre o qual se detém a propriedade. Conforme vimos acima com Rousseau, tal processo passa a designar não mais apenas a materialidade de uma ação jurídica específica, mas o fundamento da interação política. Já na história da psiquiatria, “alienação” coaduna os dois sentidos originais, a partir da herança da filosofia contratualista. Trata-se do nome que designa a “loucura” como sendo o “estrangeiro hostil” que nos habita. Porém, como demonstra Foucault (1989), não no sentido de uma animalidade sempre presente, mas como resultado de uma deturpação da natureza humana decorrente de sua interação com o meio social. Neste sentido, o “alienado” revela a verdade escondida sob a utopia rousseauliana: o temor à alteridade. Se Rousseau precisa propor a forma ideal de alienação é porque ele parte do princípio de que a sociedade é de fato corrompida e corrompedora da boa natureza humana (1762, p. 25-26).

O problema posto por Hegel (1807) na Fenomenologia do Espírito não é muito diferente. Conforme já demonstramos em um outro trabalho (Poli Felippi, 1998), a principal inspiração do filósofo alemão no início de sua carreira é, dentro do espírito da Aufklarung, a superação do estado de opressão no qual os homens vivem em sociedade. Sua preocupação é de desenvolver um método que concilie os dois princípios do pensamento moderno: racionalidade e liberdade. Para o jovem Hegel, a crítica à opressão moral será formulada como crítica ao racionalismo abstrato. O alvo do filósofo será sobretudo as “filosofias da subjetividade solipsista” de Descartes a Kant. A partir da Fenomenologia do Espírito – obra que marca o início da fase madura de seu pensamento –, essa crítica se materializará na consideração da história como desenvolvimento e superação das contradições postas pela coexistência de razão e liberdade. Para Hegel, trata-se sempre de pensar no homem em relação a outros homens – figuras do Espírito. Porém, ele será acusado por alguns, Heidegger notadamente, de ao tentar escapar do subjetivismo iluminista – o princípio da identidade da consciência – tê-lo transformado em uma onto-teo-logia. A figura da autoconsciência como desdobramento do Espírito absoluto, em síntese, não diferiria muito das premissas teológicas.

Interessa-nos nesse trabalho a forma como Hegel vale-se do conceito de “alienação”. Principalmente porque é bem conhecida a influência do pensamento hegeliano, notadamente por intermédio de Kojève (1947), sobre a obra de Lacan. É importante enfatizar, no entanto, que não se trata do mesmo conceito. O psicanalista mesmo o diz, recusando a denominação de hegeliano no momento em que está formulando o conceito de “alienação” no campo psicanalítico (Lacan, 1964, p. 204). Para ele tratava-se de nomear algo que Freud havia formulado. O trabalho de recuperação histórica que estamos fazendo visa esclarecer a força interpretativa que “alienação” pode ter ao ser transportado ao campo analítico. Sobretudo por permitir, como já indicamos, um enlace entre clínica individual e social.

Um primeiro ponto que destacaremos em relação à “alienação” na obra de Hegel é do registro da língua. Em alemão, é preciso que se distingam as expressões “Aeusserung”, “Entäusserung” e “Entfremdung”. Na passagem para as línguas latinas, no entanto, elas podem ser indistintamente traduzidas como “alienação”. As duas primeiras, às quais poderíamos acrescentar ainda “Veräusserung” e “Unveräusserung”, contêm “äusser”, que significa “exterior”. Jarczyk e Labarrière (1996) optaram por traduzi-las por “externação” (Aeusserung) e “exteriorização” (Entäusserung). Essas palavras evocam uma ação pela qual alguém “se desfaz de algo”. É algo próprio que é externado, movimento primeiro do estabelecimento de um circuito de trocas. Por isso, são estas as expressões empregadas no sentido jurídico de “alienação” (Veräusserung) – doar ou vender algo para alguém. Por outro lado, “Entfremdung”, no qual a partícula “fremd” significa “estrangeiro”, indica a dessemelhança aportada pela alteridade. Não se trata de um ato de saída de si para encontro do outro, estabelecendo uma mediação. O termo “Entfremdung” expressa uma exterioridade que não comporta o mesmo retorno reflexivo. A confusão é que normalmente esses termos são igualmente traduzidos por “alienação”. A distinção entre os termos que nos importa demarcar é indicada assim por Jarczyk:

Sabemos que Aeusserung designa a simples saída de si de uma interioridade, sem que seja decidido se esta “saída” conduzirá ou não a uma autentica determinação reflexiva de si mesmo (neste caso se falará de Entäusserung) ou a uma perda de si sem retorno, em uma realidade definitivamente estrangeira (o que seria, no sentido próprio, uma Entfremdung, uma “alienação”) (1984, p. 118).

Portanto, há em Hegel um uso da língua que permite demarcar a diferença entre o que seria da ordem de uma alienação contratual, de uso jurídico, de um outro tipo de relação à alteridade. Nesse ponto, o filósofo alemão faz a crítica à filosofia de Rousseau por assimilar os dois processos. Segundo Hegel (1821), o contrato é uma forma simples do direito – o direito abstrato –, que estabelece um circuito de trocas implicando apenas indivíduos particulares. A interação social, do âmbito da moral e da ética, tem de levar em consideração uma outra forma de alteridade – em que a distinção entre o interior e o exterior traz a marca do “estrangeiro”. É nesse âmbito que “alienação” torna-se um conceito da filosofia hegeliana. Ricoeur a denomina de “alienação-estrangeiridade”1 para diferenciar da “alienação-contratual”2. Segundo ele, “enquanto esta última designa uma promoção do homem por meio de um despossessão do ter, aquela designa um empobrecimento do homem por meio de um despossessão do ser” (2002, p. 820)3.

A partir dessa distinção, Hegel demonstra, pelo processo dialético, formas distintas de relação à alteridade. De modo extremamente resumido, poderíamos dizer que a externação (Aeusserung), pela qual o interior sai em direção ao exterior, pode vir a se revelar uma alienação-contratual ou uma alienação­estrangeiridade, conforme se proceda ou não o caminho reflexivo de retorno à interioridade. O operador para tal é privilegiadamente, na filosofia hegeliana, o “reconhecimento” (Annerkenung). Se a “consciência” pode “se reconhecer” na exterioridade, ela torna-se “consciência-de-si”. A partir daí, o circuito de trocas – onde vigora a alienação-contratual – entra em vigência e o exterior é suprassumido (Aufhebung). Já no caso de não haver reconhecimento, o exterior (ausser) torna-se estrangeiro (fremd) e a alienação passa a ser índice de perda, de empobrecimento.

Vale destacar que o reconhecimento não é relativo à posse do objeto, mas sim à vontade/desejo. A clássica figura do senhor e do escravo representa bem o momento em que, segundo Hegel (1807), um sujeito deve submeter-se a Outro para ser reconhecido como sujeito do desejo. Isso porque o que esta figura encena é a determinação do desejo humano como desejo do Outro. Para o autor, este é o momento de passagem do estado de natureza à determinação social. Trata-se de um primeiro movimento dialético em que a negação que determina o caráter relacional da vontade aparece como submissão. A escolha que se coloca para a “consciência-de-si” em estado nascente é ou bem matar/morrer, ou bem submeter-se à vontade alheia. Como matar ou morrer significa excluir-se da determinação do desejo, torná-la impossível, o sujeito opta pela submissão. A relação de dominação que se estabelece então, revela a falsa aparência da “vontade livre” do estado de natureza. A liberdade e a vontade só se realizam pela passagem por outra vontade que estabeleça o seu limite, reconhecendo-as.

A proximidade da argumentação hegeliana com o trabalho de Freud (1925) no texto A negação pode surpreender. O comentário de Hyppolite (1954) a esse respeito é bastante conhecido. Em ambos autores, Hegel e Freud, trata-se de um trabalho que é, antes de tudo, com a língua, isto é, com a construção das condições de representação.

Gostaríamos de enfatizar, na leitura de Hyppolite, o destaque dado aos termos utilizados por Freud. A expulsão original, por exemplo, pelo qual o “eu” separa o “mau” – estranho (“Fremde”) – de si é “Ausstossung”. Segundo Hyppolite, Freud descreve aí a gênese mítica da produção dos juízos, anterior à inscrição simbólica da negação. Ele prescreve as suas pré-condições, entre elas a construção dos limites entre dentro e fora e a distinção entre as funções intelectual e afetiva. Em relação ao mito da Ausstossung originária produzido pelo psicanalista, o comentário de Hyppolite inclui a alienação como situando o percurso que leva da oposição formal entre o dentro e o fora à sua relação dialética (p. 898).

Haveria, pois, segundo Hyppolite, no texto de Freud, dois níveis de trabalho com a diferença dentro/fora, correlativos da aplicação dos dois juízos. O primeiro, que seria uma “oposição formal”: movimento de expulsão (Ausstossung) que cria o “estrangeiro” (Fremde) e de introjeção, apropriação, pela afirmação (Behajung), que estabelece os limites do “eu”. Essa expulsão pode-se ler em Freud como expressão do impulso destrutivo. E um segundo nível que coloca em causa a relação entre eu e estrangeiro como relação de alienação (Entäusserung) e hostilidade. Trata-se, nesse momento, do juízo de existência que busca reencontrar – no sentido de reconhecer – o objeto representado na realidade. O símbolo da negação se expressa aí, indica Hyppolite, como decorrente da expulsão originária. O “não” é a marca, o símbolo, que fica dessa expulsão. A função simbólica da negação é justamente de suprassumir (Aufhebung) o desejo de destruir, expulsar, e a negação deste desejo pela sua representação libidinal. Assim, quando do juízo de existência, o “fora” não é mais expresso como “estrangeiro” mas como “não-eu”. Pela intermediação de Eros, o desejo de jogar fora, de fazer estrangeiro (Fremde), é representado dentro como “não” – “eu não quero saber” – operação do recalque.

Para Freud, “não se descobre na análise nenhum ‘não’ vindo do inconsciente”, o que não contradiz o fato que “a efetuação da função do juízo só se torna possível pela criação do símbolo da negação” (apud Hyppolite, 1954, p. 901). Trata-se de demarcar a relação entre inconsciente e recalque que permite a Freud concluir seu texto assim: “(...) e que o reconhecimento do inconsciente por parte do eu se exprima numa fórmula negativa” (Freud, 1925, p. 2886). No relato do sonho: “não é minha mãe”, o que traduz, ao mesmo tempo, “é minha mãe” e “eu não gostaria de reconhecê-lo”.

A dialética hegeliana trabalha basicamente em torno da função da negação na linguagem. O movimento dialético expressa as progressivas determinações, através da mediação do “não”, que constituem o conjunto de um sistema simbólico. Hegel busca decifrar a lógica de funcionamento da máquina simbólica, isto é, a dependência do singular aos determinantes universais da linguagem que são, por princípio, coletivos. Seu mérito, e o interesse que lhe dedicamos aqui, é de demonstrar os processos pelos quais a estrutura da linguagem constrói, diferencia e põe em relação sujeito e objeto. Para a psicanálise, trata-se de ler nesse processo a gênese da estrutura fantasmática que suporta o sujeito em sua relação ao mundo.

Esse diálogo entre Hegel e Freud – que traz a marca do recalque pelo irrealizado de tal encontro –parece-nos fundamental para entender a lógica do fantasma em Lacan. Não faremos, no momento, essa demonstração. Pelo momento gostaríamos de avançar em nosso trabalho com o conceito de “alienação”. Até porque também Marx, na revolução que ele empreende da dialética hegeliana, permite aos psicanalistas uma outra forma de apreensão desse conceito. No materialismo dialético não se trata mais tanto da estrutura do fantasma. Para a psicanálise a importância do trabalho de Marx está na sua consideração das conseqüências reais da colocação em causa de tal estrutura de linguagem. O que permitirá a Lacan (1974-75) enunciar, de forma bastante forte, que Marx é o inventor do sintoma.

 

A alienação segundo Karl Marx

Como é sabido, Marx é tanto adepto da filosofia hegeliana quanto seu mais famoso crítico. Sua adesão ao método dialético se estabelece, ao longo de sua obra, dentro de um projeto revolucionário de reformulação das estruturas sociais. Como já demonstramos em outro lugar (Poli, 1997), para Marx, Hegel soube descrever corretamente a forma de organização da ideologia burguesa. Sua crítica, tentando resumi-la em uma palavra, é que o projeto idealista de Hegel esconde sob a idéia do “Absoluto” o verdadeiro princípio totalizador do sistema político moderno: o “Capital”.

Não pretendemos entrar nas nuances das proposições marxianas. Nosso interesse em retomar esse diálogo de Marx com a filosofia hegeliana está em que uma das principais manifestações dessa crítica situa-se no conceito de “alienação”. Como vimos acima, Hegel vê na dialética do reconhecimento a “solução” para os impasses do que poderia provocar uma “falha” no sistema reflexivo. A alienação-estrangeiridade é contornada pela incorporação promovida pela especularidade de uma alienação-contratual. Na proposta marxiana, ao contrário, trata-se justamente de denunciar o movimento reflexivo como reificador do ser humano. Segundo o autor, este é o modo pelo qual a ideologia capitalista reduz o homem a mercadoria, força de trabalho, excluindo­ o como sujeito do processo produtivo.

Em O Capital, em uma nota de rodapé no capítulo sobre “A mercadoria”, pode-se ler esta bela passagem:

O que sucede à mercadoria ocorre, de certo modo, ao ser humano. Como ele não vem ao mundo munido de um espelho, nem da fórmula do Eu fichtiano, o homem se vê e se reconhece primeiro no espelho de um outro homem. É somente através de sua relação ao homem Paulo, seu semelhante, que o homem Pedro se refere a si mesmo como homem. Mas, assim fazendo, o Paulo em questão, com toda a sua corporeidade paulina em carne e osso, é igualmente reconhecido por ele como forma fenomenal do Gênero humano (Marx, 1993, p. 60).

A comparação de Marx apóia-se no fato de que um objeto se realiza como mercadoria na medida em que ele possui a dupla característica de ser, ao mesmo tempo, “objeto de uso” e “valor de troca”. Esta segunda qualidade da mercadoria designa seu caráter de “fetiche”, isto é, de representar por uma equivalência – um valor – uma disparidade original (utilidades diferentes). Antes de considerar a “moeda” como um tipo específico de mercadoria que permite a mediação do valor, Marx apresenta a relação simples de troca – um objeto por um outro – em que o corpo de um torna-se o espelho do valor do outro. A comparação com o ser humano é aí precisa e, também, bastante irônica. Como o autor demonstrará, ainda em O Capital, o trabalho humano é também mercadoria e, a este título, as relações sociais capitalistas são relações em que o ser humano é reduzido a esse estatuto.

No tema da alienação, a referência à citação acima é reveladora da versão marxiana da figura do mestre-escravo. Segundo Marx, o movimento de “alienação e reconhecimento”, descritos pela filosofia hegeliana como constituintes da “consciência-de-si”, prescrevem a redução do sujeito à condição de ser objeto do Outro. O argumento subliminar poderia ser assim enunciado: a relação especular entre os homens, relação de alienação e reconhecimento, tem a condição de determiná-los como semelhantes – denegando a diferença – e atribuí­los um valor – a pertença ao “Gênero humano”. Porém, se essa determinação é necessária à condição humana, ela produz o sujeito Paulo, assim como Pedro, como objetos próprios para o mercado, isto é, como “valor de troca”. Justamente, poderíamos resumir, a peculiaridade da realização deste valor – abstrato por princípio – na mercadoria está na denegação de suas propriedades intrínsecas (as suas determinações histórico-materiais) insubsumíveis à lei do mercado. O registro social do homem, sua inserção em um sistema de trocas, delega-lhe valor – pertença ao Gênero humano – ao preço da exclusão de sua singularidade própria e suprassunção como objeto coletivo.

Contrariamente a Hegel, para Marx o retorno especular do valor é índice de desperdício. Neste sentido, o autor faz a crítica da argumentação filosófica, que desconsidera a realidade material atendo-se tão somente aos princípios lógicos do desenvolvimento conceitual. Interessado na força opressiva do capitalismo, Marx demonstra que tal mecanismo dialético opera no sistema simbólico regido pelo Capital, impondo-se aos homens e transformando-os em instrumentos de produção, em objetos-máquina (força de trabalho) a seu serviço. Segundo ele, a alienação tematizada pela filosofia hegeliana, semelhante à servidão religiosa, expressaria essa “submissão involuntária” dos indivíduos ao sistema econômico.

A crítica de Marx dirige-se assim não apenas ao fetichismo da mercadoria mas, e sobretudo, à “produção do pensamento abstrato”, que se orienta pela história da exteriorização (Entäusserung) e sua retomada. Segundo Marx, o verdadeiro interesse da exteriorização está na própria alienação (Entfremdung), isto é, no que há de intransponível na relação à alteridade e não na superação dialética dos opostos (1844, p. 42).

Pode-se observar que a duplicidade da relação de Marx com o movimento de externação (Aeusserung), inerente ao método reflexivo da dialética de Hegel, remete às diferenças entre os conceitos de exteriorização/alienação­contratual (Entäusserung) e alienação/alienação-estrangeiridade (Entfremdung) descritas acima. Marx parece apontar que a “verdadeira alienação” – no sentido negativo estabelecido por ele, isto é, de reificação do ser humano – situa-se na inequivocidade de um movimento reflexivo necessário e imanente, que desconsidere as condições históricos-materiais de sua realização. O que em Hegel remete a uma superação necessariamente exitosa da externação, uma vez que tem suas determinações adscritas pela lógica interna do pensamento, seria o lugar mesmo do empobrecimento do homem, de sua perda, na filosofia marxiana.

Assim, conforme Marx, a possibilidade concreta de superação dessa “perda” dar-se-ia no espaço aberto em que a teoria, da mesma forma que a ideologia, expressa uma insuficiência conceitual/simbólica, em que a racionalidade apela para as condições históricas de sua possibilidade. Em outras palavras, a superação da reificação seria possível pela assunção do papel necessário de uma exterioridade, de um mais além do princípio, determinado pelas contingências. O autor destaca a potencialidade da alienação-estrangeiridade (Entfremdung), o trabalho irresolúvel da contradição, como princípio libertador do sujeito das amarras simbólicas que o determinam e o assujeitam à posição de objeto. Trata-se de assinalar, poderíamos dizer, o espaço da liberdade humana como aquele interstício no qual o Real resiste ao Simbólico, permanecendo sempre como abertura e insistência.

A astúcia da argumentação marxiana, que resumimos aqui, está justamente em potencializar a “falha” do sistema como espaço de abertura ao sujeito. Mais uma vez, pode-se ler um importante antecedente da revolução operada pela psicanálise na cultura. Como nos indica Althusser (1993), a proximidade entre essas duas grandes obras – de Freud e Marx – não deve ser buscada em uma semelhança de seus objetos, projeto fracassado de Reich e outros. O que elas têm em comum é a crítica da unidade, que se mantém sobre uma suposta identidade entre aparência e verdade. Althusser refere-se à semelhança das críticas marxianas à ideologia burguesa e à sua falsa consciência com o desalojamento do “eu”, “consciência de si”, operado pela revolução freudiana.

 

Lacan e a questão da alienação

Freud (1933) dizia desconhecer a obra marxiana e desconfiar de suas fontes no idealismo hegeliano. Seu interesse reduzia-se, a crer em suas próprias palavras, à crítica da propriedade privada, que também ele identificava como uma das origens do mal-estar na cultura. No entanto, para Lacan, podemos encontrar nas obras de Hegel e Marx um importante ponto de apoio para uma releitura da obra do fundador da psicanálise. Se ele não enuncia esse projeto diretamente – Roudinesco (1994, p. 119) refere o projeto irrealizado de escrita de um trabalho conjunto com Kojève sobre Freud e Hegel –, ele o faz em ato. A releitura da obra de Freud empreendida por Lacan, principalmente na primeira metade dos seminários, é perpassada pelo hegelianismo. A crítica que empreende da “psicologia do ego” é sustentada por uma leitura do “eu” freudiano, que o identifica à figura consciência de si alienada da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel (Lacan, 1954, p. 375).

O texto Formulações sobre a causalidade psíquica é exemplar neste sentido. Lacan (1946) oferece-nos a oportunidade de alinhavar o trabalho que estamos construindo sobre os antecedentes filosóficos da “alienação” e seus fundamentos para o retorno a Freud. Trata-se de uma produção inicial do psicanalista francês. Nele podemos identificar as seguintes linhas de força na argumentação: crítica a uma concepção organicista (Henri Ey) da loucura; substituição por uma proposição psicogenética de inspiração hegeliana; atribuição de um lugar e de uma função centrais ao estágio do espelho como colmatador do narcisismo e do masoquismo primordiais descritos por Freud; e por fim, crítica social com base na instrumentalização científica das imagos e dos ideais.

Em relação às duas primeiras linhas de argumentação, Lacan faz jogar os termos liberdade e racionalidade na determinação causal da loucura. Pode-se ler em seu texto, uma forte crítica às antinomias de um pensamento psiquiátrico no qual a loucura é entendida como produto de uma desordem orgânica, expressando-se como perda da liberdade. A psiquiatria organicista delega, assim, a função de causa dos distúrbios mentais a um tipo de determinismo que baseia seus argumentos no exercício de uma racionalidade cartesiana estrita: a vulga separação corpo e mente. Lacan, por sua vez, busca demonstrar que as expressões da loucura têm a mesma determinação que os demais fenômenos humanos, isto é, são problemas de significação, fenômenos da linguagem. Trata-se de fazer trabalhar o sentido de revelação de uma verdade que essas expressões contêm. O psicanalista vale-se, para tanto, da dialética hegeliana na qual, justamente, a verdade se determina e se desdobra na progressão e superação de um “aparecer enganoso”. Ele evoca aí, para além da psicopatologia, a psicogênese do eu (Moi) – o estágio do espelho – como processo histórico das determinações identificatórias onde o sujeito se aliena para desconhecer/reconhecer sua verdade.

Neste texto de Lacan, o histórico das escolhas identificatórias do sujeito é descrito como o percurso dialético de uma alienação dos determinantes particulares do eu (Moi) ao universal do Ser (l’Être), rumo a universalização desta particularidade – obra do Complexo de Édipo. Segundo o autor, nesta época precoce de suas elaborações, a constituição do sujeito coincide com a evolução de sua servidão, que o conduz de uma discordância original entre Eu (Moi) e Ser (l’Etre) a uma coincidência ilusória da realidade com o ideal como resolução. O percurso das identificações constitui, assim, diz Lacan: “essa loucura pela qual o homem se crê homem” (1954, p.189)

Em termos de psicopatologia, o psicanalista aproxima a busca pela significação dos fenômenos delirantes, da estrutura da paranóia de autopunição: em ambos, há uma sobreposição entre desconhecimento (méconnaissance) do ser e desordem do mundo. Dito de outro modo, o que o sujeito paranóico desconhece é que a desordem do mundo que compõe seu delírio é a manifestação invertida da falha constitutiva na significação do ser do homem, a determinação negativa da liberdade (p.177).

Resumimos assim, muito brevemente, a linha argumentativa deste importante texto onde podemos identificar a colocação em relevo das concepções anteriores de alienação e sua subversão. Para destacar esse movimento, poderíamos esquematizar o breve histórico do conceito que apresentamos anteriormente, descrevendo, da seguinte forma, as diferentes concepções do conceito de alienação:

1. Como representante da antítese que opõe alienação como ideal social – condição do contrato – e alienação como fracasso na realização deste ideal – representada como loucura – (Rousseau e Pinel representam esta oposição, presente contudo em ambos);

2. Exteriorização/alienação-contratual (Entäusserung) – despossessão do ter – como reintegração reflexiva do exterior e alienação/alienação­estrangeiridade (Entfremdung) – despossessão do ser – como perda ao estrangeiro (ambas vigentes em Hegel);

3. Inversão: exteriorização/alienação-contratual (Entäusserung) como perda reflexiva de si ao Outro e alienação/alienação-estrangeiridade (Entfremdung) como saída resolutiva da submissão ao Outro (ambas vigentes em Marx).

Para Lacan, a apropriação psicanalítica do conceito de “alienação” não designa nenhum destes sentidos anteriores. Não deixa no entanto de ter relação com eles na medida em que, como acabamos de ver, o psicanalista:

– situa a crítica da psicanálise à psiquiatria de seu tempo para qual a causalidade orgânica não é sem relação com a noção de “alienação mental” como desvio de um estado ideal de natureza (Pinel e Rousseau). A liberdade como atributo de uma “natureza sã”, e não de uma determinação social ou linguageira, é o índice mais acabado desta interface, entre psiquiatria e filosofia, sobre o qual a psicanálise vem a operar um verdadeiro “corte epistemológico”, no sentido de Bachelard;

– aproxima a dialética hegeliana do aparecer enganoso da abordagem freudiana das formações do inconsciente – “Lacan coloca o inconsciente freudiano no lugar da consciência hegeliana”, chega a afirmar Roudinesco (1988, p.163-164) –, evocando a primeira como suporte metodológico para sua concepção de identificação, própria ao estágio do espelho. Neste ponto, encontramos os fundamentos da concepção lacaniana da estrutura paranóica do eu, onde a relação de alienação, figurada na dialética do senhor e do escravo, serve de modelo teórico para conceber a origem “intersubjetiva” do Ego.

Esta aproximação proposta por Lacan, entre o eu freudiano e a consciência­de-si hegeliana, pretende apontar uma solução ao impasse deixado em aberto por Freud na sobreposição espaço/temporal da dupla posição do eu, no narcisismo e no masoquismo primordiais.

Já a concepção marxiana de “alienação” será fundamental na seqüência do ensino de Lacan, sobretudo a partir da consideração do objeto a e a formulação, no seminário 11 (Lacan, 1964), do processo de alienação/separação. Os limites deste artigo impedem o desenvolvimento dessa questão. Voltaremos a ela em trabalhos ulteriores.

 

Conclusão

Ao propor um percorrido histórico do conceito de alienação, pretendemos demonstrar que o seu emprego no campo analítico tem conseqüências tanto teóricas quanto clínicas. É por intermédio da obra de Lacan que a psicanálise pôde chegar a uma interpretação do sintoma que diz respeito, ao mesmo tempo, a sua versão individual e social. Seu emprego na psicanálise permite darmos um passo a mais na análise do mal-estar na cultura sendo também, desta maneira, indispensável a uma prática clínica que queira dar conta das relações do sujeito ao discurso do Outro.

O estudo histórico tem ainda como objetivo diferenciar a aplicação do termo “alienação” seja na filosofia, seja na psiquiatria, de seu emprego na psicanálise. Quisemos também mostrar como para bem compreender e apreender a potência interpretativa deste conceito no discurso psicanalítico atual, é preciso se referir a estes outros campos do saber. Neste sentido, não podemos deixar de ler em Freud a influência que alguns autores tiveram sobre ele, em sua forma de pensar e se referir às relações entre sujeito e objeto. Foi também esta influência que, segundo nossa leitura, permitiu a Lacan apropriar­se do conceito de alienação, transpondo-o para a psicanálise.

 

Referências Bibliográficas

ALTHUSSER, Louis. Écrits sur la psychanalyse: Freud et Lacan. Paris: Stock/Imec, 1993.        [ Links ]

FREUD, S. (1925). A negação. In:___. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. Tomo III.        [ Links ]

________. (1933). Leccion XXXV: el problema de la concepción del Universo. In:___. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. Tomo III.        [ Links ]

FOUCAULT, M. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1989.        [ Links ]

HEGEL, G.W.F. (1807). Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992-93. Parte I e Parte II.        [ Links ]

________. (1821). Principios de la filosofia del derecho. Barcelona: Edhasa, 1988.        [ Links ]

HYPPOLITE, J. (1954). Comentário falado sobre a Verneinung de Freud. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

JARCZYK, Gwendoline. O conceito do trabalho e o trabalho do conceito. Filosofia Política. Porto Alegre. 1: 115-129, 1984.        [ Links ]

JARCZYK; LABARRIÈRE. De Kojève à Hegel: cent cinquante ans de pensée hégélienne en France. Paris: Albin Michel, 1996.        [ Links ]

KOJEVE, A. Introduction à la lecture de Hegel: leçons sur la “Phénoménologie de l’esprit” professées de 1933 à 1939 à l’École des Hautes Études. Paris: Gallimard, 1947.

LACAN, J. (1964). O seminário: livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.        [ Links ]

________. (1946). Formulações sobre a causalidade psíquica. In:___. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

________. (1954). Introdução ao comentário de Jean Hyppolite. In:___. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

________. (1967-1968). O seminário: livro15 – O ato analítico. Inédito.        [ Links ]

________. (1974-1975). O seminário: livro 22 – R.S.I. Inédito.        [ Links ]

MARX, K. Le capital – livre I. Paris: Quadrige/PUF,1993.        [ Links ]

________. (1844). Manuscritos econômico-filosóficos. In: Karl Marx. São Paulo: Abril Cultural, 1974. vol. XXXV. (Coleção Os Pensadores).        [ Links ]

POLI, Maria Cristina. A alienação em Karl Marx: um conceito hegeliano?. Revista Veritas. Porto Alegre. 42(1): 71-77, mar/1997.        [ Links ]

POLI , Maria Cristina Felippi. O espírito como herança: as origens do sujeito contemporâneo na obra de Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.        [ Links ]

POSTEL, Jacques (dir). Dictionnaire de psychiatrie et de psychopathologie clinique. Paris: Larousse, 1995.        [ Links ]

RICOEUR, Paul. Aliénation. Encyclopaedia Universalis. Paris: Encyclopaedia Universalis France, 2002.

ROUDINESCO, E. História da psicanálise na França. (1925-1985). A batalha dos cem anos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. vol. 2.        [ Links ]

________. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.        [ Links ]

ROUSSEAU, J.-J. Émile (1762). In:___. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 1969.

________. (1762). O contrato social. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Cristina Poli
Rua Fernandes Vieira, 569 / 21 – 90035-091 – Porto Alegre/RS
tel: (51) 3268-8728
e-mail: crispoli@mageos.com

recebido em 30/07/04
aprovado em 14/12/04

 

 

Notas

IPsicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Mestre em Filosofia (PUC-RS); Doutora em Psicologia pela Université Paris 13; Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia, Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Psicanálise (PUC-RS).
1“Aliénation-étrangéité”, no original. Neologismo que guarda o duplo sentido de estrangeiro (étranger) e de caráter estranho (étrangeté).
2“Aliénation-contractuelle”.
3No original: “Cette aliénation [étrangéité] est donc l’exact contre-pôle de l’aliénation contractuelle. Alors que celle-ci désigne une promotion de l’homme par le moyen d’un dessaisissement d’avoir, celle-là désigne une déperdition de l’homme, par le moyen d’un dessaisissement d’être”.