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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.11 n.21 São Paulo dez. 2007

 

ARTIGOS

 

O desejo em questão: ética da psicanálise e desejo do analista

 

On desire: psychoanalysis’s ethics and the analyst’s desire

 

 

Moisés de Andrade Júnior

Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo procura estudar a aproximação teórica entre o conceito de desejo do analista, de Lacan, e a ética da psicanálise, tal como definida em seu Seminário 7, bem como as conseqüências clínicas desta aproximação. Para isso, parto da hipótese de que o desejo próprio que caracteriza a função analítica &– o desejo do analista &– possui implicações éticas para a direção da cura. A partir desta idéia, proponho que a formulação de Lacan para uma ética própria da psicanálise, compromissada com o desejo do sujeito em análise, é indissociável deste desejo que cabe ao analista sustentar.

Palavra-chave: Desejo do analista, Ética da psicanálise, Função do analista, Conflito moral, Clínica psicanalítica.


ABSTRACT

This article discusses the theoretical approximation between the concepts of the analyst’s desire and psychoanalysis’s ethics &– both define in Lacan’s 7th Seminary &– as well as the clinical consequences of such approximation. Our hypothesis is that the desire that constitute the analyst’s function &– the analyst’s desire &– contains ethical implications related to the cure’s direction. We therefore f propose that Lacan’s formulation of specific ethics for psychoanalysis is committed and truly connected to the subject desire, of which is the analyst responsibility to support.

Keywords: Analyst’s desire, Psychoanalysis’s ethics, Analyst’s function, Moral conflict, Psychoanalytic clinic.


 

 

O problema da técnica

"O que fazemos quando fazemos análise?” (Lacan, 1975, p. 19). Essa pergunta, proferida por Lacan no início de seu seminário sobre os escritos técnicos de Freud, guarda uma densidade quase profética: durante os anos subseqüentes de seu ensino, Lacan irá se concentrar em desenvolver as conseqüências e desdobrar as vicissitudes desta questão, buscando, neste retorno a Freud, as bases epistemológicas que norteiam o trabalho analítico. Desde sua proposta inicial &– uma releitura de Freud a partir das influências saussurianas e hegelianas &–, Lacan preocupou-se em definir, com uma precisão lógica, em que consiste o ofício psicanalítico. Dos matemas aos aforismos sobre o sujeito e o inconsciente, a tentativa de Lacan sempre foi levar a psicanálise às ultimas conseqüências que sua teoria comporta: parafraseando Sade, “amigos, mais um esforço, se quereis ser psicanalistas”.

Os motivos para esta empreitada antecedem seu ensino: na metade do século XX, a psicanálise enfrentava uma grave apatia teórica. Cada vez mais distante da experiência do inconsciente que marcou profundamente a teoria freudiana, a psicanálise dita americana havia se voltado à adaptação e conformação do ego à realidade. Portanto, quando Lacan formula sua pergunta, busca um sentido radical: ele tenta resgatar, naquilo que definiu como questõeschave da psicanálise, a natureza de uma prática que havia sido não só negligenciada como também empobrecida. É assim que em seus primeiros discursos evidenciava-se uma preocupação não somente em sistematizar a teoria psicanalítica e diferenciá-la daquilo que foi denominado ego psychology, mas resgatar o verdadeiro sentido da obra freudiana. Sua crítica fundamentavase no caráter conformista que a análise passou a adotar por meio da apropriação tendenciosa de certos textos freudianos, como O ego e o id (Freud, 1923-1925), transformado em um manual ao pé da letra. Nessa psicologia voltada para o ego, ao eu do paciente foi dada a função de “tomar o comando” da pulsão, tornando-se novamente o senhor de sua própria casa, a despeito das afirmações de Freud sobre o propósito contrário da psicanálise.

Assim, a adaptação das pulsões e a sexualidade à questionável “realidade social” constituía a tópica dessa psicanálise de conformações. À perda da dimensão de alteridade e primazia do inconsciente tornava necessária a crítica de Lacan: é a partir desse contexto que ele propõe uma volta aos textos de Freud, retorno que servirá de preâmbulo para toda uma leitura inédita e audaciosa da obra freudiana. Ciente da fragilidade do eu e da necessidade de uma prática coerente, Lacan ressaltou a importância de resgatar o verdadeiro propósito da análise: uma terapêutica baseada na experiência do desejo inconsciente.

Não é sem razão, portanto, que o início de seu ensino oral &– formalizado em seus seminários publicados &– traz a marca de uma releitura da técnica freudiana. Frente à confusão de toda uma prática, fazia-se necessário resgatá-la de seu equívoco. Torna-se óbvio, desde os primeiros momentos da leitura do primeiro seminário, que não se trata de uma leitura tecnicista: não é um manual How To sobre o trabalho do analítico, tampouco uma sistematização da técnica analítica: trata-se, acima de tudo, de uma problematização da clínica, buscando encontrar as condições e as premissas teóricas que caracterizam nosso ofício: o que faz um analista? Portanto, sua releitura diz não somente sobre a questão de ser um analista &– o que o analista faz &– mas também do problema do ser do analista: o que (ou em que) consiste um analista. A questão ecoa e faz-se ouvir em diversas passagens de seu ensino: por meio de suas intervenções, escritos e seminários, Lacan convocará os analistas a sustentar um desejo em análise absolutamente singular: o desejo do analista, um desejo cujo objeto &– o analisar &– tornou-o desejo em ocupar o lugar do objeto causa de desejo de seu analisante: desejo, portanto, absolutamente necessário para uma prática de análise que tenha como objetivo levar o sujeito a querer saber algo de seu próprio desejo.

Entretanto, questionar a prática analítica evoca diversas outras questões, problemas em que confluem teoria e clínica. Quando alicerçada a uma prática coerente, a teoria inevitavelmente entra em foco quando a prática é questionada: o ensino de Lacan segue nesse campo, abordando estes pontos nodais de confluência, e é em seu sétimo seminário que ele sistematiza o tema mais próximo da técnica, presente na prática e que perpassa por completo a teoria: a ética, abordada no instigante (e talvez por isso polêmico) seminário sobre a ética da psicanálise.

 

O problema da ética

Abordar a ética na psicanálise nunca foi uma tarefa fácil. Freud já se questionava sobre as repercussões que sua teoria causariam no discurso moral de sua época ao deslocar o sujeito consciente de sua posição dominante no psiquismo. Este “severo golpe no narcisismo universal dos homens” (Freud, 1917, p. 149) não deixou de produzir efeitos em diversos campos da atividade humana: afirmar que o eu já não é o senhor de sua própria casa implicava repensar e redefinir toda uma forma de pensar, cujas heranças iluministas centravam a vontade humana no campo da consciência. Salvo raras e pouco exploradas exceções, o século de Freud via na idéia de inconsciência, e em suas diversas manifestações comprobatórias &– a histeria, por exemplo &–, se não um verdadeiro desatino, no mínimo uma farsa bem planejada, a ser colocada no campo das bizarrices humanas que não merecem mais atenção do que a curiosidade e a chacota. Mas quando Freud faz do desejo a origem de toda a atividade humana, e encontra na dinâmica do funcionamento psíquico um embate entre as pulsões &– que não obedecem a nenhuma regra moral para sua satisfação &– e o eu &– sobrecarregado pelos padrões morais a que é submetido &– , Freud desvela uma concepção sobre o agir humano cujas conseqüências não deixarão de ser sentidas pelo discurso moral de sua época1.

Fato é que as descobertas de Freud sobre o inconsciente e suas formulações teóricas denunciavam uma relação controversa entre o homem e a moral. Em seu texto O mal-estar na civilização, Freud levou a questão até as bases da gênese da cultura: a necessidade da manutenção do laço social pressupunha uma renúncia às exigências pulsionais do indivíduo em detrimento do bem-estar coletivo. Como Freud coloca, “finalmente &– e isso parece o mais importante de tudo &–, é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia aos instintos, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação [...] de instintos poderosos” (1930, p. 103-104). Esta renúncia, que incide sobre as pulsões sexuais, constitui uma necessidade para a manutenção de qualquer ordem social a que uma civilização se submete. O que fica cada vez mais clara é uma situação inconciliável: a psicanálise não irá se furtar a encontrar uma das fontes do padecimento neurótico nas exigências morais às quais um indivíduo é submetido. Aqui Freud desdobrava umas das conseqüências mais complexas de sua teoria: uma relação próxima, marcada pelo conflito, entre as pulsões e a moral2. Há uma tensão inevitável entre desejo e moralidade, em que, mesmo longe de quaisquer determinismos, a moral constitui um dos fatores mais importantes na etiologia das neuroses. E se a prática analítica visa a investigação dos conflitos neuróticos, aqui ética e técnica se confluem: se há realmente uma dimensão moral envolvida no conflito psíquico, sendo o sintoma neurótico, portanto, a expressão deste conflito moral &–, urge pensar em que parâmetros éticos pode uma análise ser fundamentada, bem como seu papel no campo das virtudes.

Contudo, as dificuldades não poderiam ser menores. Definir o padecimento neurótico como um conflito moral &–, não somente implica localizar a teoria psicanalítica no campo do ethos, mas também definir um posicionamento ético para a prática analítica. Se de um lado o desejo é subsumido, apagado pela moralidade civilizada na formação de certo “sujeito social” &– que não escapa, neste processo, do retorno do desejo recalcado &–, por outro, como Freud insiste em afirmar, toda sociedade está fundamentada em renúncia instintual, alicerçada na culpa de um parricídio mítico: a Lei é não apenas necessária para qualquer ordenação social, mas também estruturante para o sujeito3. O que permanece nesta abordagem é a exigência de uma dimensão ética para a psicanálise: como a clínica se insere nessa relação paradoxal entre as virtudes e o sujeito?

Exatamente porque há uma dimensão moral no conflito psíquico, a questão das virtudes &– o que é bom, justo e necessário, sejam esses valores tomados como ideais transcendentes ou construções sociais utilitárias para o “bom convívio entre os pares” &– adquire uma dimensão de excepcional importância entre as quatro paredes de um consultório. A resposta da ego psychology foi precisamente a adaptação do sujeito às normas sociais, a apropriação e domesticação de suas pulsões pelo eu: é a máxima do autoconhecimento levado ao campo da sexualidade, tomando o ego como o sujeito cognoscente. O ego aqui não é mais um mecanismo de defesa, como define Freud, instância psíquica necessária para qualquer trato possível com a realidade externa, mas ponto central a partir do qual o sujeito deve orientar-se. Desnecessário insistir na aplicação controversa desse princípio, que não apenas desvirtua a concepção de primazia do inconsciente dada por Freud, mas que principalmente serve à promoção de uma concepção de ser humano no mínimo empobrecida, “domesticada” por um way of life que não cessa de produzir patologias. O que Lacan propõe, ao tomar o sujeito a partir do inconsciente, é um outro tipo de prática: fazer do desejo inconsciente o objeto norteador da análise, o que conduz necessariamente a um posicionamento particular do analista frente ao campo das virtudes.

 

Uma ética para a psicanálise

É a partir da descoberta freudiana dessa “alteridade mais íntima” &– o inconsciente &–, e do conflito psíquico como um conflito essencialmente moral, que Lacan trata de investigar em seu seminário sobre a ética o que constituiriam as “metas morais da psicanálise” (Lacan, 1986, p. 363). Em seu percurso sobre este tema, Lacan toma a ética de Aristóteles como ponto de partida, e da definição dessa ética das virtudes delimita como contraste o que constituiria uma ética da psicanálise. Para Lacan, “a ética em Aristóteles é uma ética do caráter. Formação do caráter, dinâmica dos hábitos &– ainda mais, ação em vista dos hábitos, do adestramento, da educação” (p. 20). Aqui, a escolha de Aristóteles é bastante fortuita. Não há dúvidas de que essa herança grega ainda prevalece: mesmo que séculos de filosofia tenham se debruçado sobre esta questão (cuja discussão foi precisamente inaugurada pelos escritos aristotélicos4), as idéias de Aristóteles ainda continuam a imperar no discurso social sobre o comportamento moral, principalmente no campo da política. É a esta ética &– fundamentada na Razão e na concepção do homem como animal essencialmente racional &– que Lacan irá contrapor a psicanálise. Sua discussão, matizada sem quaisquer pudores em seu seminário, centra-se na suposta conformação do sujeito a um orthos logos &– o discurso reto &– encontrada na ética aristotélica: “trata-se, portanto, de uma conformação do sujeito a algo que, no real, não é contestado como supondo as vias desta ordem” (p. 33). O discurso reto &– a Razão correta, que Aristóteles define como ontológica ao homem, sua real Natureza &– é o fim de toda busca ética, de todo agir humano. É esta concepção de sujeito que Lacan desvirtua ao deslocá-lo para a dimensão inconsciente: para ele, a psicanálise desvela um real que não comporta quaisquer referências a uma felicidade inata ao homem. Para tanto, busca em Freud suas bases:

Não escapa a Freud que a felicidade é, para nós, o que deve ser proposto como termo a toda busca, por mais ética que seja. Mas o que decide [...], o que eu gostaria de ler no Mal-estar na civilização é que, para essa felicidade, diz-nos Freud, não há absolutamente nada preparado, nem no macrocosmo nem no microcosmo (Lacan, 1986, p. 23).

Antes mesmo de Lacan discorrer sobre a questão ética, Freud já anunciava o desconforto do homem em seu meio social. Suas experiências o levaram ainda mais longe: em 1920, quando formula a pulsão de morte, ele finalmente rejeita qualquer tendência inata ao prazer ou a uma beatitude na satisfação pulsional. Ele percebe que o fenômeno da repetição marca para o sujeito um além do princípio do prazer, uma negação radical de toda tendência possível à felicidade. No fenômeno da repetição, o sujeito insiste em reproduzir o desprazer: mais determinantes que quaisquer aspirações à vida, as pulsões de morte conduzem ao insuportável, à extinção completa de toda tensão. Os guardiões da vida são, em verdade, os lacaios da morte: mais além do princípio do prazer, a atração da morte. Assim, em sua segunda teoria das pulsões, Freud mostra que se há algo inato no homem, é sua tendência ao inanimado: “se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o que vive morrer por razões internas, tornar-se mais uma vez inorgânico, seremos então compelidos a dizer que o objetivo de toda vida é a morte” (Freud, 1920, p. 49). Não é, portanto, sem razão que a psicanálise sempre tenha sido um discurso marginal. Afora o peso dessas assertivas, a sexualidade é, no campo da moral civilizada, uma ex-centricidade incômoda, que deve ser subjugada ou, na melhor das hipóteses, controlada e dominada pelo eu. Mais uma vez, lemos em Aristóteles que os chamados “desejos bestiais” pertencem ao campo das aberrações, na série de tendências que devem ser suprimidas pela Razão. Lacan justifica-se:

O pensamento de Aristóteles referente ao prazer tem algo que não é contestável, e que se encontra no pólo diretivo da realização do homem, uma vez que se há no homem algo divino é o fato de pertencer à natureza. Deverão avaliar o quanto essa noção da natureza é diferente da nossa, pois comporta a exclusão de todos os desejos bestiais para fora do que é, propriamente falando, a realização do homem (1986, p. 23).

O que a descoberta freudiana do inconsciente revelou é uma verdade do sujeito que lhe escapa, e da qual nada quer saber: a dimensão de seu desejo &– nada mais avesso ao ideal aristotélico, mas absolutamente imprescindível para a clínica psicanalítica. E se a ética tem também a função de balizar uma prática, a ética da psicanálise não pode pautar-se por ideais de conduta forjadas nos universais de uma felicidade na Razão. Ao descentrar a ética do plano do ideal, da felicidade encontrada na Razão &– o discurso correto &–, e recentrá-la no desejo inconsciente, Lacan introduz certa concepção ética, um pensamento singular sobre o papel das virtudes: se para Aristóteles as virtudes são valores que devem ser cultivados para uma vida ética, cujo fim seria a beatitude alicerçada na Razão, a psicanálise, por sua vez, deixa cair por terra qualquer promessa de felicidade encontrada na ordenação dos bens. As virtudes adquirem uma nova acepção no discurso psicanalítico: sejam elas quais forem, não se encontram dadas tampouco fazem parte da constituição do sujeito. Não há completude alguma na virtude a que se possa aspirar. É o desejo que surge como o mais íntimo ao homem, e é exatamente desse desejo que o eu se esquiva: suas ilusões de felicidade, para usar as palavras duras com que Freud define a busca religiosa dos homens em seu texto O futuro de uma ilusão, consistem exatamente no desconhecimento de si próprio, na adaptação a uma moral que nada lhe diz respeito, em que o desejo surge como desarmonia; um estranho não convidado. Se há uma ética da psicanálise, portanto, é somente em referência a esse desejo, e se a ética diz respeito a uma diretriz de conduta &– “se há uma ética da psicanálise [...] é na medida em que, de alguma maneira, por menos que seja, a análise fornece algo que se coloca como medida de nossa ação, ou simplesmente pretende isso” (p. 374) &–, uma ética para a psicanálise repousa em permitir ao sujeito reconhecer seu desejo; ou, de maneira mais radical, reconhecer-se desejante.

Assim, enquanto uma ética baseada nas virtudes pressupõe a possibilidade da harmonia por meio da Razão correta, um modus vivendi que encontra ressonância no natural do ser, a psicanálise dirige-se a proposições exatamente contrárias: a sexualidade não admite essa completude, essa perfeita simetria: “não há”, diria Lacan aqui, “não existe a possibilidade da relação sexual”. Dois corpos não fazem Um, pois a plena comunicação entre dois sujeitos &– em que a linguagem constituiria ponte perfeita de encontro entre os seres falantes &– é impossível. Frente à sexualidade, as soluções são absolutamente singulares: não existe nenhum atributo natural que norteie a sexualidade humana, nenhum instinto herdado que indique o que fazer com o sexual. Desde que somos seres de linguagem, toda completude é impossível, exatamente porque &– ainda que os esforços (sempre fracassados) do neurótico tentem sustentar o contrário &– a linguagem não diz tudo, algo falta ao Outro. É por isso que não há instinto: o que existe é a pulsão, e o desejo sempre em falta. A ética da psicanálise é, portanto, uma ética do singular, das respostas de cada analisante para o enigma de sua sexualidade.

Portanto, é a partir da impossibilidade de uma “ordenação dos bens” 5, que possa garantir a felicidade plena, que o discurso psicanalítico toma o desejo como seu norte. Se esta é a condição do desejo, fora de quaisquer promessas de felicidade plena, sua condição trágica é atestada na medida em que o desejo não comporta qualquer conciliação. Na construção da neurose, o desejo se cala sob o peso da moral civilizatória. O sintoma constitui exatamente o tamponamento do desejo &– na medida em que nega ao sujeito o acesso a ele &–; mas também denuncia sua existência, na medida em que, por trás do sintoma, esconde-se algo que o sujeito ativamente desconhece. Tal é o sofrimento do neurótico, que renuncia de seu desejo pelo gozo do sintoma; sofrimento que mascara o ganho secundário de uma solução de compromisso entre desejo e exigências superegóicas. E isto, Lacan reconhece, constitui um conflito moral: “contrariamente ao que é admitido, acredito que a oposição entre o princípio do prazer e o princípio de realidade, a do processo primário e do processo secundário sejam menos da ordem da psicologia do que da ordem da experiência propriamente ética” (p. 49).

Sendo esta a natureza do conflito neurótico, o trabalho do analista é radicalmente contrário a um adestramento das pulsões ao reino das virtudes. A escuta psicanalítica é absolutamente singular: seu compromisso não se encontra na virtude cuja promessa é a felicidade, mas no desejo inconsciente e seu papel no conflito psíquico. Se para a psicanálise não há uma natureza ideal à qual o sujeito pode formatar-se, a posição do analista frente à demanda de felicidade que muitas vezes lhe é dirigida na clínica analítica deve pautarse a partir da escuta que lhe é própria &– uma escuta do desejo.

Para tanto, cabe ao analista tornar a demanda de felicidade um desejo de saber. A demanda em análise é sempre uma demanda de felicidade: algo não funciona bem na estrutura neurótica, em que o real do sintoma tornou-se insuportável. O retorno do recalcado cobra um preço alto demais na economia psíquica do sujeito em sofrimento. E se cabe ao analista acolher este sofrimento, dar a ele seu devido lugar, esta postura faz parte de uma ética, ainda que isenta de quaisquer promessas de felicidade. Orientado pela ética do desejo, o analista arrisca: uma aposta de que existe um desejo por trás do sintoma, aposta na possibilidade de saber de algo, desta verdade que escapa ao sujeito que procura a análise. Como coloca Lacan, “essa verdade que procuramos numa experiência concreta não é a de uma lei superior. Se a verdade que procuramos é uma verdade libertadora, trata-se de uma verdade que vamos procurar num ponto de sonegação de nosso sujeito. É uma verdade particular” (p. 35). O desenvolvimento teórico de Lacan sobre a questão repousa neste particular, em suma: no posicionamento de cada sujeito frente à incompletude do Outro. E é nesta fissura &– nesta brecha do Outro &– que o desejo do sujeito irrompe: frente à falta do Outro, o sujeito deve se situar por seu desejo.

E se a verdade do sujeito é também uma meia verdade, no sentido em que toca o real e um resto sempre permanece &– “dizê-la toda [a verdade] é impossível, materialmente: faltam palavras. É por esse impossível, inclusive, que a verdade tem a ver com o real” (Lacan, 2001, p. 508). O trabalho analítico pauta-se pelo compromisso ético em levar o sujeito até ela, “até o limite extático do ‘Tu és isto’ em que se revela, para ele, a cifra de seu destino mortal, mas não está só em nosso poder de praticantes levá-lo a esse momento em que começa a verdadeira viagem” (Lacan, 1966, p. 103). Cabe ao analista permitir ao sujeito ir além desta demanda de felicidade, e questionar seu próprio desejo &– Che Vuoi?

 

O desejo do analista como condição ética

O questionamento de Lacan sobre o “fazer analítico” prosseguiu em todo seu ensino, sofrendo as transformações que seu percurso, muitas vezes tortuoso, reservava às suas elaborações teóricas. É perguntando-se sobre a causa do desejo que Lacan delimita seu objeto &– o objeto a, objeto causa do desejo, alvo impossível para o qual o desejo se dirige: aquém da linguagem, por ser causa desta, e além da linguagem, por ser o objeto mesmo do desejo. No lugar desse objeto &– perdido na operação simbólica do assentimento do sujeito à linguagem &– coloca-se para o ser falante o Outro, a linguagem como sua estrutura, bordejando este objeto que é sua causa. E assim como a estrutura do sujeito é construída ao redor do objeto a, a teoria lacaniana cada vez mais passa a girar ao redor desse objeto fora da linguagem e seu registro &– o Real.

É do desdobramento da prática analítica como uma estrutura de relações que permite a assunção do desejo6, que Lacan finalmente instaura o analista no lugar do objeto a, o objeto causa de desejo. É ao analista, colocado nesta posição, que o analisante dirige seu desejo: portanto, para Lacan, o lugar do analista é um lugar de vazio, de abstinência de gozo, semblante de objeto a. Ao tomá-lo como causa de seu desejo, o analisante deposita, na figura do analista, o desejo que para ele é uma incógnita: deste lugar de objeto a, o analista permite-se ser tomado como Outro pelo analisante, para desvelar, nesse movimento, o próprio desejo que move o sujeito em análise. Há um semblante, um “fazer-de-conta ser o objeto capaz de realizar o desejo do paciente”. Vale a pena lembrar que, ainda aqui, Lacan segue de perto as recomendações freudianas sobre a abstinência do analista. Relendo Freud, o desejo do analista encontra sua ressonância no texto Observações sobre o amor transferencial:

a técnica analítica exige do médico que ele negue à paciente que anseia por amor a satisfação que ela exige. O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência. Com isto não quero significar apenas a abstinência física, nem a privação de tudo o que a paciente deseja, pois talvez nenhuma pessoa enferma pudesse tolerar isto. Em vez disso, fixarei como princípio fundamental que se deve permitir que a necessidade e anseio da paciente nela persistam, a fim de poderem servir de forças que a incitem a trabalhar e efetuar mudanças, e que devemos cuidar de apaziguar estas forças por meio de substitutos (Freud, 1915, p. 182 &– grifos nossos).

Portanto, o analista constitui, tanto em Freud como em Lacan, o motor do trabalho analítico, sendo a transferência condição necessária para qualquer possibilidade de análise. Ao ocupar esta posição, o analista permite ser tomado como objeto de desejo para, a partir daí, demarcar por meio do ato analítico o desejo que move o analisante em sua transferência. Para delimitar a função do analista dentro de sua teoria sobre o objeto causa de desejo, Lacan formula o conceito de desejo do analista. Finalmente, Diana Rabinovich oferece uma síntese precisa sobre este conceito:

O psicanalista (...) deve-se oferecer vazio para que o desejo do paciente &– o desejo como objeto, o desejo do Outro &– se realize enquanto desejo do Outro através desse instrumento para sua realização que é o analista enquanto tal. O Desejo do Analista definido como um vazio, como um lugar onde algo poderá se instalar, morar, torna evidente que o que se deve instalar ali, na prática da psicanálise, é o desejo do paciente como desejo do seu Outro, o da historicidade própria do paciente, o das circunstâncias próprias de sua vida (2000, p. 14-15).

Assim, seguindo de perto as formulações lacanianas de que todo desejo é desejo do desejo do Outro, o analista, em seu semblante de objeto a, é tomado como o Outro capaz de dar a resposta ao sintoma do analisante: sua eleição ao sujeito suposto saber de seu sofrimento confirma este fato, atualizado na transferência com o analista. É aí que o analista deve, a partir desta posição, permitir que a demanda torne-se questionamento sobre o desejo, e é este compromisso com o desejo do analisante que configura também a ética da psicanálise: o desejo do analista é condição para que haja uma ética do desejo. O analista deve oferecer-se a partir de um lugar livre de preconceitos e concepções sobre uma análise ideal, abandonando quaisquer padrões de cura ou felicidade para o paciente, mantendo-se no lugar desse objeto causa de desejo: o objeto a, causa do sujeito em análise e ponto onde sua estrutura se referencia. Assim, é sustentando seu desejo que o analista permite o descortinamento do desejo do sujeito em análise. O analista não é, portanto, uma pessoa &– não há o ser do analista &–; mas uma função: um lugar singular, ocupado por um sujeito na relação transferencial.

O desejo do analista é, desta forma, um desejo pelo saber: um saber do desejo, um convite ao reconhecimento de algo que, para o analisante, fala a despeito de suas convicções morais. O analista é então convocado a criar o desejo pelo saber disso, onde antes existia apenas um nada querer saber. Portanto, do lado do analista, existe também um desejo, desejo causa da análise: de um lugar de vazio, o analista permite que o desejo em questão &– o desejo do analisante &– possa surgir. E principalmente: tomado como causa de desejo, o analista responde de um lugar que é, por definição, um lugar ético.

Contudo, uma advertência pode ser feita aqui, pois sempre há o perigo de transformar uma exigência da clínica &– e, conseqüentemente, uma prática que precisa levar em consideração o peso da moral sobre a constituição dos sintomas &– em um discurso tendencioso, fruto de uma apropriação apressada dos pressupostos lacanianos. Sustentar uma ética da psicanálise implica uma postura avessa a qualquer ética das virtudes, e deste modo, no abandono de quaisquer tentativas de incultar valores no sujeito em análise, ou dirigir-lhe rumo a um ideal de harmonia pré-estabelecido &– seja essa harmonia encarnada em concepções de um Bem transcendente ou mesmo na instituição de uma certa “nostalgia do gozo”, como se houvesse forma mais adequada de gozo sobre os outros. Contudo, é cedo demais para inferir daí que a psicanálise furta-se a qualquer ação no campo das virtudes. Lacan sabia disso, e conclui: “pois, na verdade, não se pode dizer que não intervenhamos nunca no campo de virtude alguma. Desobstruímos vias e caminhos e lá esperamos que aquilo que se chama virtude virá a florescer” (1986, p. 19).

Portanto, se não cabe ao analista determinar as virtudes que possam garantir uma suposta felicidade para o analisante, tampouco seu trabalho pauta-se em uma negação radical de qualquer tipo de virtude, condição que se apresentaria ou em uma total insensibilidade ao sofrimento alheio &– perversidade completamente avessa à direção da cura para Freud ou Lacan &– ou em um discurso antimoralista7, iconoclastia que denuncia o apego a um ideal de análise sadiano. E desde muito sabemos que a libertinagem, isenta de qualquer norte moralista, é a perfeita atualização de um outro discurso categórico de pretensões éticas, em que o sujeito do desejo é anulado no imperativo8. Ao sujeito, cabe-lhe reconhecer seu desejo, e não menos necessário, responsabilizar-se por ele. É Freud quem determina o alcance desta discussão, ao situar a psicanálise no discurso moral:

Ademais, é inteiramente anticientífico julgar a análise como calculada para solapar a religião, a autoridade e a moral, porque, como todas as ciências, ela é inteiramente não tendenciosa e possui um único objetivo, ou seja, chegar a uma visão harmônica de uma parte da realidade. Finalmente, só se pode caracterizar como simplório o temor às vezes expresso de que todos os mais elevados bens da humanidade, como são chamados — a pesquisa, a arte, o amor, o senso ético e social — perderão seu valor ou sua dignidade porque a psicanálise se encontra em posição de demonstrar sua origem em impulsos instintuais elementares e animais (Freud, 1923[1922], p. 268).

Portanto, é amparado pelas idéias de Freud que Lacan invoca uma ética para a prática analítica; uma atitude do analista perante o campo da moral que só assume sua condição plena ao colocar-se como objeto de desejo do analisante na transferência: é essa função do analista no campo dos valores morais que constitui um dos pontos de encontro entre a proposta ética de Lacan e o desejo do analista. É como semblante de objeto a que o analista pode sustentar seu compromisso ético com o desejo do analisante, e permitir, ali onde o desejo se insinua, o florescimento das virtudes. Assim, a ética da psicanálise &– uma ética do desejo &– faz coro com o desejo do analista, e nele encontra sua possibilidade. Sem essa escuta, e sem a sustentação desse lugar de vazio, é impossível a proposta de Lacan para uma ética na qual “realizar seu desejo coloca-se sempre numa perspectiva de condição absoluta” (1986, p. 353). Existe, assim, uma atitude própria do analista perante o campo da moral. Do semblante de objeto a, Lacan extrai uma ética particular à psicanálise.

A prática do analista é, deste modo, radicalmente avessa a uma educação moral &– as tentativas de transformar a psicanálise em uma “pedagogia das pulsões” mostraram-se mais do que problemáticas. Quando Lacan questiona-se sobre que caminhos éticos a psicanálise poderia trilhar, ele encontra na estrutura do sujeito &– um sujeito constituído pela linguagem &– a vocação ética da psicanálise, exatamente ali onde a estrutura claudica: no campo do desejo. Nas três dimensões que compõem a prática analítica (a política, a estratégia e a tática), Lacan situa a ética da psicanálise na política do falta-a-ser: é nesta orientação &– baseada na alteridade do inconsciente e na falta constitutiva do sujeito &– que é possível uma ética para a psicanálise. Ao propor uma ética da psicanálise, Lacan sustenta esta prática na escuta do desejo pelo analista. E, ao analisante, lança-lhe o desafio: “agiste conforme o desejo que te habita?” (p. 376).

Este é o desejo em questão.

 

Referências

FREUD, S. (1908). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. vol. IX.        [ Links ]

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Endereço para Correspondência
Rua Indiana, 449 / 301 &– 30460-350 &– Jardim América &– Belo Horizonte/MG
tel: (31) 8451-5189
e-mail: mosaias@yahoo.com.br

recebido em 11/09/07
aprovado em 23/03/07

 

 

1. Haja vista a resistência enfrentada pela psicanálise em seu início.
2. Entenda-se aqui o termo moral como o conjunto de normas e valores que constituem o ethos de uma civilização, cristalizado em leis e comportamentos sociais aceitáveis, mais ou menos implícitos nas regras convencionais que são transmitidas entre as gerações. Para uma definição mais precisa do termo moral, ver Vaz (1999, Introdução e cap.1). Para o termo ética, seguimos de perto a definição dada por esse autor, que a define como a ciência prática sobre o agir humano. Entretanto, enfatizamos a diferença que Lacan coloca entre a sua ética e esta concepção filosófica de ética, chamada por Lacan de ética tradicional.
3. Tese que Lacan desenvolverá na elaboração do Nome-do-Pai como pivô da constituição do sujeito na linguagem.
4. Ainda que o tema sobre ética já tenha sido abordado por Platão, Sócrates (por meio dos textos platônicos ou escritos de outros discípulos) e mesmo pré-socráticos, foi Aristóteles quem deu ao tema a densidade conceitual necessária para ser considerado um ponto de partida para a análise histórico-filosófica da ética.
5. “A ética da análise não é uma especulação que incide sobre a ordenação, a arrumação, do que chamo de serviços dos bens. Ela implica, propriamente falando, a dimensão que se expressa no que se chama de experiência trágica da vida” (Lacan, 1986, p. 375-376).
6. Por meio da eleição do analista como objeto privilegiado da transferência.
7. Ou imoral, já que consiste no elogio de uma “anarquia ética”.
8. Para mais detalhes deste paradoxo, ver Lacan (1986).