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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.22 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Vir a ser psicanalista: caminho sem fim

 

How can we be a psychoanalyst?

 

 

Rosa Broner Worcman*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tentativa de aproximação das dificuldades e fantasias do vir a ser psicanalista, não só pela estranheza, a objeção e a confusão que um processo psicanalítico desperta na sociedade de modo geral, mas também pelas inúmeras e variadas características que muitos autores propõem como imprescindíveis para o exercício da psicanálise. A autora enfatiza a importância e utilidade de apresentação de material clínico para exemplificar, clarificar e possibilitar a percepção da metabolização dos conceitos teóricos. Apresenta a experiência de um processo de longa duração, ainda em andamento.

Palavras-chave: Psicanalista; Psicanálise; Hipérbole; Mudança catastrófica; Inveja.


ABSTRACT

There are many difficulties in the process of being a psychoanalyst, not only because of the oddness in face of a person who appears to be between a doctor and a magician, but also because since Freud, psychoanalysts try to define the indispensable characteristics to be able to work in a psychoanalytic process. So, it is important to present a session or a fragment of a session to show how we assimilate the theory.

Keywords: Psychoanalyst; Psychoanalyses; Hyperbole; Catastrophic change; Envy.


 

 

Um trabalho é tanto mais útil quanto mais passível de dúvidas, de questionamentos puder ser. Este se inicia com a pergunta intrigante: o que vem a ser um psicanalista? Para que serve? A quem serve?

Montesquieu, nas Cartas Persas, relata todo o desconforto, os desencontros, o espanto, o medo do ser humano quando confrontado com uma cultura desconhecida – “Ah! Ah! O Senhor é persa? Que coisa extraordinária! Como é possível ser persa?”.

Podemos parodiar. E psicanalista? Que coisa extraordinária! Como é possível ser psicanalista? Não é filósofo, não é médico, não é padre, não é juiz, não diagnostica, não dá remédio, não dá conselho, o que é isso? Mistério. Conversa dia após dia, é pago para isso, meu amigo faz a mesma coisa, fala a mesma língua, e não cobra. Nem sabia que isso existia, fui aprender na novela. Qualquer um pode fazer psicanálise ou só louco vai ao analista? É a mesma coisa que psicólogo? Psiquiatra? Há toda uma série de preconceitos, pressupostos, temores, desentendimentos que perpassam, que se sentem e que impregnam.

Ouvi de um senhor em sua primeira entrevista: “você não é psicanalista; você deve ser uma dessas que fez cursinho de fim de semana e agora se diz psicanalista. Eu sei que psicanalista veste tailleur escuro, calça botas até o joelho, usa cabelos presos, não fala, sabe tudo só de olhar pra gente”.

Uma colega contou que ao dizer a seu paciente que costumava trabalhar com a pessoa deitada no divã, este rapidamente se deitou no canto e, mostrandolhe o espaço que sobrara, lhe disse: “pronto, pode vir”.

Outra: “desculpe-me a franqueza, acho que não vai dar certo aqui; sei que o paciente tem que se enamorar do psicanalista; como é que vou poder me enamorar de uma mulher velha e feia? Eu só gosto de pessoas bonitas”.

E vai longe o mundo imaginário das pessoas: o que é um psicanalista, uma pessoa que nem conheço, que quer saber tudo da minha vida, que vai me julgar, me avaliar, que uso vai fazer do que eu conto, vai falar pra todo mundo; estranheza, preconceitos, desejos se multiplicam, alguns deles muito conhecidos – tais como: Freud tudo explica, o analista sabe tudo, rapidamente vai fazer desaparecer minha dor; vou sair curado, perfeito, vou me tornar um ser humano superior, semelhante ao analista, que é o máximo. A partir daí pode ter início o processo de desvelamento, de elucidar os pressupostos, se os dois, analista e analisando, estiverem disponíveis para observar e conversar sobre o que ocorre na sessão, observável pelos dois.

E o imaginário do analista? Compreende dois tempos: quando inicia sua análise com tudo o que existe das fantasias acima relatadas, mais o que surge em um segundo tempo, em função de sua opção, quando se decide por uma obrigatória análise didática, em seu caminho de vir a ser psicanalista. Como se trajar, como deve ser o consultório, uma porta, duas portas, sala de espera comum com outros colegas; cumprimentar dando a mão ou não, sorrir, aceitar ou não os clássicos beijinhos; acrescentem-se as fantasias particulares advindas de sua própria personalidade, no estágio de desenvolvimento em que se encontra, com suas angústias, anseios, desejos, idealizações, fruto das experiências que vai “sofrendo” em sua análise, nas supervisões, nos encontros com colegas, com as recomendações lidas e ouvidas no contato com outras pessoas, no trabalho com os analisandos.

Freud recomenda aos psicanalistas: “conter todas as influências conscientes da sua capacidade de prestar atenção e abandonar-se inteiramente à memória inconsciente. (...) Simplesmente escutar e não se preocupar se está lembrando de alguma coisa. (...) equívocos nesse processo é quando se caiu seriamente abaixo do padrão de um analista ideal” (1912, p. 151). Até que se venha a metabolizar e utilizar a atenção flutuante, que mais tarde Bion introduz como “sem memória, sem desejo nem compreensão”; até que se sinta um pouco mais livre para poder “experienciar” o que se conceituou como transferência e contratransferência, complexo de Édipo, identificação projetiva etc, o analista se vê inundado e inibido pelas fantasias impossíveis de se tornar o analista ideal. Será que essa fantasia desaparece ou ela simplesmente vai se transformando, à medida que queremos conhecer cada vez mais? Conforme Freud, “as forças motivadoras das fantasias são desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção de uma realidade insatisfatória” (1908, p. 152).

Klein (1960) enumera alguns elementos de uma personalidade bem integrada, ponto de chegada desejado de todo ser humano, que resumo em maturidade emocional, força de caráter, capacidade de lidar com as emoções conflitantes, equilíbrio entre a vida interna e adaptação à realidade, bem como uma bem sucedida fusão das diferentes partes da personalidade em um todo.

Reik (1949) é enfático: fala da necessidade de um ouvido aguçado para os processos inconscientes, do talento para observar e discernir nuanças nos problemas psicanalíticos com independência de julgamento e coragem intelectual; minimiza o fato de alguém ter diplomas, ter M.D., ter estudado psiquiatria com sucesso, ter feito análise didática, ser membro de uma sociedade de psicanálise, pois nada disso prova que ele apreenda a psicologia dos processos inconscientes. Se e em que extensão uma pessoa é um psicanalista depende do tipo de homem que ele é. E assevera: psicanalistas nascem, não são feitos.

Zimerman, a partir de sua leitura da obra de Bion, reúne como características necessárias a um psicanalista “a identidade analítica, amor à verdade, capacidade de ser continente, premonição, paciência, capacidade negativa, intuição, empatia, comunicação, discriminação, ética, respeito e coragem” (1995, p. 152).

Permeando os volumes II e III de Uma memória do futuro, de Bion (1977- 79/1991), encontramos vários de seus pensamentos e preocupações com o vir a ser psicanalista: admite que existam enormes dificuldades, que nunca se está apto; considera que não basta o querer, mas reconhece como os pretendentes fazem esforços incessantes para se habilitar para o trabalho, constantemente submetidos à disciplina de se aprofundar ao máximo no conhecimento das forças onipresentes no ser humano, sem se desviar do caminho de busca da verdade (O), convivendo com a impossibilidade de alcançá-la.

Barros (2004, p. 2-6), Menezes (2004, p. 7-11), Duarte (2004, p. 11-13), Herman (2004, p. 18-22) e Mello Franco (2004, p. 74-79) trazem suas idéias a propósito das características imprescindíveis para o exercício da análise no número 39 da revista IDE, da SBPSP.

As idéias são muitas e variadas. Não é meu objetivo tecer comentários a respeito das diferentes aproximações de cada autor, mas dizer, como o artista plástico Leonilson: “são tantas as verdades”; e acrescento: são tantos os pressupostos, são tantas as idealizações.

Nesse caminhar vamos nos constituindo como psicanalistas, estudando, aprendendo, raciocinando e, tantas vezes, racionalizando. Freud diz que o que descobriu foi calcado no que intuiu com a observação de sua experiência; dános liberdade e nos estimula a chegar a outros resultados, ainda que diferentes dos dele, incitando-nos a investigar cada vez mais. Bion considera que uma interpretação não deve ser avaliada como certa ou errada, mas se é útil, se promove desenvolvimento, um movimento de desestruturação para novas estruturações, a integração das múltiplas facetas da personalidade de uma pessoa. Freud assinala que “um curso de ação que via de regra é justificado possa às vezes mostrar-se ineficaz, enquanto outro que habitualmente é errôneo possa conduzir ao fim desejado” (1913, p. 164).

Com a apresentação da teoria das transformações, Bion (1965) aprofunda, explicita e desenvolve o enfoque no acompanhamento da experiência emocional, reforçando o que já estava esboçado em Freud (1917), ao mostrar que nosso conhecimento acerca do material inconsciente deve atingir a área do emocional do paciente, para não ficar como um conhecimento paralelo que não produz mudança.

 

Ser ou não ser, eis a questão

(Shakespeare, Hamlet)

A apresentação de material clínico ou de flashes de sessão, nos quais se encontram elementos que possam clarificar ou exemplificar conceitos é de interesse? As emoções, as imagens que assaltam o analista devem ser levadas em consideração?

A grande conquista que a psicanálise nos traz é a possibilidade de – por meio do pensar – conviver conosco mesmo, seres imperfeitos e limitados que somos, fazer da insatisfação um estímulo, sem que desistamos da luta diante das frustrações.

Cada psicanalista, com sua experiência, com seus desejos, vai formatando explícita ou implicitamente o que considera necessário, fundamental, possível para o seu vir a ser psicanalista. Dizer, escrever, teorizar pode estar muito correto e bonito, mas o relevante é o que se pode entrever a partir da prática clínica, onde se põe à prova o que se está podendo ser, como a teoria está sendo metabolizada, ainda que o material apresentado não seja o todo, pois se trata de uma transformação de um momento particular, de uma fase específica do trabalho com um determinado analisando. É quando podemos perceber como o ideal fica distante da realidade, pois nosso próprio inconsciente nos prega peças, tantas vezes arrastados que somos pelas forças internas em ação.

O encontro psicanalítico é uma obra aberta, com múltiplas possibilidades de apreensão e de verbalização, mais uma vez reiterando a dependência do interjogo das personalidades envolvidas, com seu nível de desenvolvimento, no determinado momento da sessão. É uma viagem que se processa entre calmaria e tormentas, eivada de situações, emoções e palavras que penetram, perturbam, profanam, mas necessárias para quebrar o gelo, a anestesia ou a onipotência, estimulando a coragem para enfrentar o susto que é viver, esse eterno vir a ser.

Para a tentativa de acompanhamento de um trabalho que considero psicanalítico, transcrevo a transformação do material clínico de um encontro com uma analisanda. Alguns dados foram conscientemente mudados para proteger sua identidade; outros inconscientemente, por estarmos constantemente sujeitos à interferência do desconhecido de nosso mundo psíquico.

D. entra, lança-me um olhar medindo-me da cabeça aos pés, e com ar superior, encaminhando-se para o divã, diz: “que sandália velha, essa sua!”. Senta-se no divã para descalçar os sapatos, sorri-me insinuante, parecendo dizer-me: “você pode estar muito bonita, com roupa bonita, mas não sabe se vestir; eu sei”, em um tom misto de deboche, provocação, desprezo.

Um turbilhão aconteceu dentro de mim; emoções, sensações, idéias, indagações, imagens, interpretações. Senti-me pressionada, exigida, puxada a tecer um comentário a respeito de algo relacionado à inveja; imediatamente ocorreume a idéia de que era para isso que estava sendo convidada. No ínterim, surgiu a imagem de um filme em que uma jovem casada com um ricaço combina com seu amante a farsa de seu próprio rapto, o que acabou resultando em desastre para eles. Pensei que se eu entrasse nessa de falar sobre a inveja, seria uma farsa, estaria roubada a possibilidade de fazer análise, entraríamos em um conluio, o que seria um desastre. Isso tudo em questão de segundos, como tão bem conhecemos.

Como escapar disso? Sentia-me incisivamente provocada, como se ela dissesse: “você tem que falar sobre inveja”, em uma postura que me parecia uma espécie de gozo. Soou uma campainha quando fui tocada pela entonação de desprezo, deboche, com que pronunciou velha; velha eu, velha ela, ambas passadas dos sessenta anos. Foi fácil perceber o ataque; mas dando-me conta do tom de sua voz, da imagem do filme, da pressão e do não sei mais o quê, juntei os elementos e aventei a hipótese de que, paralelamente à inveja, insinuava-se o desgosto, a existência da dor que ela vivia pelo envelhecimento e conseqüente proximidade de aposentadoria compulsória. Ocorreu-me dizer-lhe: “velho também pode ser útil”.

D. levou um susto; quedou-se boquiaberta, olhou-me de esguelha (terá me visto, nesse momento, separada dela?), calou-se por minutos, o que é raro nela, e em um tom de voz que me parecia de conciliação, de fazer-me uma concessão, diz: “eu também uso roupa velha. Lá em casa tem uma porção de coisa velha; (e imediatamente arremete) mas é que eu sinto inveja de você, que fica aqui e as pessoas todas vindo até você, mesmo com toda essa chuva; e tem também todas aquelas senhoras que vêm aqui, com livro e caderno na mão, feito moscas no mel, fico com muita inveja (muito sedutora).

Durante seu curto susto, indaguei-me: será que teve alguma percepção? Acredito que a surpresa, o inesperado, introduz um espaço para o pensar, interrompe um caminho de antemão pré-determinado; permite emergir o “estranho”, o desconhecido. Em seguida, pareceu-me que ela usou as palavras de que também usa roupa velha, que até poderiam ter o significado de alguma percepção de seu funcionamento mental, como um tempo para se recuperar do susto e retornar a seu plano inicial, confirmando minha intuição de que queria falar sobre inveja, demonstrar como conhecia inveja, o quanto dolorosamente sabia da presença de outras pessoas, querendo que me sentisse culpada por isso.

Tive um momento de irritação, pois me lembrei de como faz questão de aguardar a chegada e a saída de outros analisandos, como abre portas de armários e de outras salas de minha casa para ver o que tem dentro; considerei que paralelamente ao sentimento de inveja, queria entrar em mim, ser só ela, ser amada mais que todas, fazer par comigo, desejando ser querida; ela queria mais do que tinha. Entre as várias possibilidades, eu disse: “é que você não se satisfaz com o que tem. Quer mais”.

Insurge-se, alteia o busto e responde de imediato: “eu não quero tudo”. Interrompi e perguntei-lhe: “você me ouviu dizer tudo?”. Engole em seco, esquiva-se ao meu comentário; terá se dado conta de sua voracidade? Mais uma vez tenta uma reaproximação, fica queixosa e diz: “é que não me esqueço o que você disse uma vez a respeito das amigas de M., que é preciso também aceitar o desconforto de ter amigos, que podem te telefonar a qualquer hora” (sim, é verdade, a qualquer momento da sessão procuro comunicar-me com ela, digo-lhe coisas que lhe parecem desagradáveis. Até aí parecia estar refletindo, levando em consideração o que havíamos conversado em outra sessão a respeito de que amigos podem também ser inoportunos, requisitar-nos, não sendo só agradáveis). Em seguida, queixase: “mas para mim só telefonam quando precisam de mim; a T. ficou falando uma hora e quinze comigo no telefone para depois eu perceber que só me telefonou para pedir uma receita que tenho; não me perguntou se eu tinha essa uma hora e quinze para falar com ela; e só queria a receita, não é porque gosta de mim. E a G. (prima) que mandou um e-mail para T. contando que teve um achaque, foi pro hospital e pediu para ela me contar, mas não escreveu para mim”.

Ouvia a queixa de não ser querida, valorizada, tão diferente de mim, com tantos me procurando; vê-se injustiçada, culpabilizando os outros, por não receber o que merecia; e o que ela faz para que isso aconteça? Onde sua responsabilidade? De pronto surgiu-me uma lembrança. Lembranças se anunciam independentes de desejo, memória e compreensão, o que não isenta da possibilidade de erros que, se percebidos, podem se tornar proveitosos – falei: “lembrei-me que você me disse que mandou um e-mail para sua prima parar de ficar se queixando para você”.

Até então a conversa parecia estar ocorrendo em um campo controlado, defendido, cortês. Após esse comentário houve uma reviravolta: as emoções surgiram torrencialmente e ela vociferou: “mas isso foi na época da eleição do Bush, ela estava me enchendo com os achaques e as idéias dela, dizendo que os americanos são legais, que eles é que inspiraram a revolução francesa, vê que absurdo; ela não conhece História?”; e passa a falar sobre o Holocausto, ataca os judeus, em um aglomerado de vômitos esparsos e petardos, tendo havido um rápido momento que me chamou a atenção, em que abrandou a voz, dizendo baixinho que “nem todos os alemães foram culpados”, para depois continuar esbravejando que “os americanos estão fazendo a mesma coisa no Iraque, matando civis”; e se enrolava, tropeçava nas palavras, com uma argumentação desesperada, dando-me a impressão de que ao mesmo tempo se debatia, se afogava e me atacava. Parecia-me uma criança birrenta que se joga no chão, se bate, grita, xinga, se machuca. Eu a ouvia, perguntava-me se seriam essas as emoções que estavam procurando caminho, se teriam derivado da intolerância à frustração por eu não ter entrado na dela e estar separada dela, ou por se ver responsável por sua própria dor. Teria sido eu intrusiva com meu comentário? Seja o que for, transformei-me em um perseguidor, que precisava ser atacado.

Poderia ser uma oportunidade para assinalar a reação à frustração, como quando frente à evidência de alguma imperfeição sua, reage explosivamente; mas a partir de minha imagem de criança birrenta, achei que isso seria improdutivo. Aproveitei uma pausa e disse: “você perguntou a G. por que não te escreveu?”. D. se acalma (dá-se conta que não me destruíra?), remexe-se desconfortavelmente no divã, e baixinho diz que “tentou algumas vezes, e que por fim G. disse que não quis incomodá-la com seus achaques”. Anima-se, e já refeita, com voz alegre: “é importante perguntar, saber conversar; já percebi isso com a Y. (filha). Eu cheguei para ela e disse: filha, estou carente! E ela: corta essa, mãe; e eu completei: de fazer carinho em você. Aí ela se achegou a mim. Você vê? Descobri um jeito de falar com ela”. Era o final da sessão e ela saiu com um sorriso feliz, vitorioso. Eu fiquei com muitas dúvidas. Teria sido uma tentativa de encontrar um objeto bom? Mais uma vez estaria me afirmando: viu como sou ótima, como aprendo as coisas com você? Quis me agradar depois dos ataques? Teve um vislumbre de que éramos separadas e procurou a filha para se agarrar? Quis despertar inveja em mim, como se dissesse: vou ficar com minha filha e você vai ficar aí sozinha? Estaria tentando satisfazer suas necessidades com suas próprias criações, operando no terreno das transformações em alucinose? Estaria agradecida, apreciando os ganhos de uma análise? Cada uma das dúvidas levantadas oferece a oportunidade de diferentes linhas de teorizações.

Na sessão seguinte, ela me diz: “eu estou me salvando porque aqui posso soltar todo meu ódio, diferente do S. (marido), que é louco; ninguém pode falar com ele”. Novamente um sim e um não; agradeço pelo que recebo aqui e isso me torna melhor que os outros. Somos nós duas versus os outros. Contudo, noto que assinala que uma das funções importantes de um analista é a de ser continente, permitir ao analisando expressar sentimentos, pensamentos, emoções que encontram oposição da autocrítica punitiva inconsciente. Uma semana depois, ao se deitar, estende a mão em direção a um quadro, que estava um pouco inclinado, suspende o gesto e diz: “eu, se fosse você, endireitaria esse quadro”. Perguntei-lhe: “você quer ser eu?”. Ela respondeu: “não; estou aprendendo muitas coisas aqui com você, que uso lá fora; mas o principal é que estou tendo coragem de ser eu”.

Vem dos gregos o ditado de que o destino do homem está em sua alma. Significaria que para eles tudo estaria escrito, dependente dos deuses? Ou que o homem é escravo do que desconhece? O psicanalista acredita que há tratamento para o destino, por meio da descoberta de Freud, dessa extraordinária situação humana em que duas pessoas se encontram para investigar e tentar dar significado às experiências vividas.

De minha leitura de Klein (1957), depreendo que mesmo com todo o peso que coloca nas forças instintivas destrutivas inatas, as quais poderiam tornar uma psicanálise inviável pela inveja excessiva (com tudo que a acompanha em rivalidade, competição, reação terapêutica negativa), ela enxerga desenvolvimento como possível, em função das forças construtivas que diminuem o impacto das destrutivas. Bion reforça e amplia essa visão com a ênfase que dá ao trabalho com os aspectos psicóticos da personalidade, tornando-nos mais sensíveis a esses aspectos comuns aos seres humanos.

Após dezesseis anos de trabalho com D., vem se evidenciando uma forte determinação de se enfrentar com seus aspectos destrutivos e tentar controlá-los, também entrevistos a partir de relatos de sua vida; porém, esses sinais aparecem em meio a uma massa de elementos carregados de onipotência, avidez, desespero; de vontade de querer ganhar, vencer; e de medo de deprimir. Noto que mesmo manifestações de cuidado, carinho, vêm entremeadas de sadismo.

 

Tentando nos aproximar de verdades, acercamo-nos de incertezas

O universo da relação é infinito. Impossível apreender o todo que acontece na experiência emocional, não somente no espaço de uma sessão psicanalítica, mas após ela, bem como a cada momento de vida. Escritores, músicos, poetas, filósofos, pintores, cada um a sua maneira, traz à tona parte desse universo. A singularidade de nosso trabalho, como analistas, consiste em que tentemos nos aproximar desse acontecer em uma relação vivida a dois, com uma escuta peculiar, sem sofisticar esse encontro, atentos às possíveis ressonâncias e transformações em ação para, a posteriori, ampliar o ca\mpo de reflexões, descobrir novos significados. Percebemos que o que apreendemos é uma pequena parte do acontecer psíquico prenhe de sentimentos, fantasias, emoções, idéias, intuições, premonições, com suas miríades de nuanças que transcendem a linguagem, pois como dar nome às vivências primitivas, tantas vezes experimentadas até corporalmente? Resulta que o que comunicamos verbalmente ao analisando é uma parte ainda menor. E ao ler o que transcrevemos, vemos que está permeado de faltas, além de surgirem novas percepções e outras possibilidades de caminhos. Tentando nos aproximar de verdades, acercamonos de incertezas. Há mais coisas entre analista e analisando, entre o analista e ele mesmo, do que nossa mente incipiente pode comportar. Procuramos investigar o desconhecido, o que vai além da realidade sensorial; lidamos com coisas sutis, mas que são tão reais que nos afetam e poderiam até mesmo nos destruir.

Proponho-me pensar a partir do material de uma única sessão, na tentativa ilusória de limitar o campo, pois essa analisanda em especial convence-me de que todas as teorias que conheço mal perpassam as fímbrias de seu ser.

Em nossos primeiros encontros, tive a impressão de um monte de partes despedaçadas, desconjuntadas, esfinge sem contorno. Atualmente posso usar a metáfora conhecida dos vários atores diferentes desempenhando um drama longo e complexo, aos quais vamos tendo a chance de sermos apresentados e de reconhecê-los em suas diferentes roupagens.

Psicanálise é função da personalidade do psicanalista, personalidade essa que se vai desenvolvendo vinculada às qualidades herdadas mais as experiências vivenciadas, desde um tempo que não sei precisar – cada vez penso mais na questão da filogênese e ontogênese. Esse conjunto colabora para o como estar na vida, que engloba os elementos das teorias que se selecionam ou pelos quais somos selecionados. Creio que teoria é nossa tentativa de ordenar o caos, de delimitar onde se situa nossa práxis, de assinalar o que fazemos como sendo psicanálise.

No material transcrito aparecem elementos que me autorizam a utilizar a teoria da inveja, tais como ciúme, superioridade, voracidade, rivalidade, competição, ódio, e as defesas contra ela (que podemos olhar como o interjogo constante dos instintos de vida e de morte). Novas questões se colocam: levamos em consideração a teoria do instinto de morte? Quando verificamos sua preponderância maciça, vale a pena empreender uma análise? Tão forte quanto o instinto de morte seria o instinto de vida, que precisa encontrar espaço para maior expressão e contrabalançar a destrutividade?

Conhecemos em nós mesmos e na história da humanidade a presença e as conseqüências perniciosas de sentimentos destrutivos manifestados a partir da inveja. Quando a serpente instiga Eva a comer do fruto proibido, uma das possíveis versões é que estava mobilizada pela inveja de Deus, talvez pensando: quem é ele para se colocar superior a mim, para ser amado e obedecido por Adão e Eva? Quando Eva aceita a proposta, também poderia estar sob a influência da inveja daquele seio que tudo provê, mas guarda para si algo que ela quer ter e não tem, do qual se sente roubada e quer roubar. A civilização vem escrevendo muito de sua história sob a égide da inveja: guerras, conquistas, ultrajes, lutas políticas, religiosas, empreendidas a partir do “eu quero o que você tem, ainda que me custe parte do que eu tenho”. Odisséia, de Homero, o Inferno, de Dante, Macbeth, de Shakespeare, são algumas das obras-primas que apresentam o sofrimento e conseqüências de inveja. Entre elas coloco Inveja e gratidão, de Klein (1957), na qual, em linguagem contundente, ela aborda e abarca a inveja em inúmeras facetas, seus fatores primitivos, constitucionais, manifestações, defesas e possibilidade de integração. Ressalta que a capacidade para o amor, tanto quanto para impulsos destrutivos, é até certo ponto constitucional; que a inveja contribui para as dificuldades do bebê em construir seu objeto bom, pois ele, insaciável, sente que a gratificação de que foi privado foi guardada para uso próprio ou de outrem pelo seio que o frustrou.

Inveja e intolerância à frustração eram e continuam sendo fatores preponderantes no processo analítico com essa analisanda, bem como a violência das emoções, incontáveis vezes vivenciadas e exaustivamente trabalhadas, o que já lhe permite certo contato com esses elementos de sua personalidade. Sem duvidar da presença de inveja e de sua necessidade irônica de me depreciar por meio da “sandália velha”, pareceu-me que ela se apercebera disso e tentava dar outra função para suas palavras, reivindicando ser produtor e consumidor – ou seja, “veja como sou bacana, já conheço minha inveja, sei tanto quanto você”. Essa hipótese confirmou-se quando ela explicitou e explicou o motivo de seu sentimento.

No breve intervalo de tempo em que pude iluminar-me ou ser iluminada pela presença de elementos mais sutis, entonação de voz, postura, sorriso sardônico, pressão, imagem do filme, foi-me possível conjecturar que subjacente à inveja estaria o desejo de ser amada, admirada e perceber, como alerta Caper (1999), que existe a insinuação, uma tentativa de conluio de nós contra eles – o “nós” sendo o analista e o analisando, que se compreendem um ao outro, e o “eles” são aqueles que não são os iniciados, que nada sabem de mundo mental, que não sabem que têm inveja, que são inferiores a nós, que somos “super”, que não aprendem como ela, que é ótima. Sua insistência em falar de inveja e sua queixa sedutora contêm a necessidade de demonstrar inteligência, sagacidade, esperteza, e assim despertar elogios e amor – talvez para evitar o medo de ser atacada, abandonada, medo de perder o objeto amado pelo ódio e agressividade. Pode ter ouvido o meu “velho pode ser útil” como se eu tivesse me ofendido, e ela tentou aplacar minha ira condescendendo em que também usa roupa velha, para novamente voltar à inveja e se fazer humilde, buscando meu amor. É doloroso para ela não ser a única, a principal. Contudo, é sabido que avidez e inveja aumentam o sofrimento: a simples privação é vivida como frustração.

Parece-me que o contato real com dor psíquica só foi possível quando tentei alertá-la sobre sua participação, sua contraparte em seu sofrimento, do ser compelida a culpar os outros exatamente para não se responsabilizar. O irromper abrupto de percepção é vivenciado como intrusão dilacerante que devia ser implodida, ejetada com vômitos, petardos para todos os lados e bem longe, até a Alemanha, o Iraque. Seria o que Bion denominou de hipérbole? (1962-63; 1965; 1992). Ele adota esse termo para especificar a violência da emoção que se associa à inveja, quando transparece asserção de superioridade moral sem a mínima moralidade, contrastando uma superioridade com a deficiência que encontra em tudo, tentando estimular culpa no analista. Sua característica mais importante é o ódio a qualquer novo desenvolvimento da personalidade, como se fosse um rival a se destruir. Indago-me se essa manifestação turbulenta seria uma tentativa de fuga diante da possibilidade do acontecer uma mudança catastrófica, ou se chegou a acontecer a mudança catastrófica imediatamente evacuada pela dor advinda do contato abrupto com algo novo, real e indesejado de sua personalidade.

Até esse momento do rompante, parecia-me que D. driblava a dor, que o temor ao ódio, à inveja, a forçava a falar deles como se fossem coisas banais, conhecidas, ignorando que ao assim proceder destrói a possibilidade de contato com ela mesma e com os outros. Plagiando F. Pessoa: o poeta é um fingidor, finge tão completamente que finge nem sentir a dor que deveras sente.

Minha formulação “você perguntou a G. por que não te escreveu?” pode ter sido uma tentativa de aplacar a ansiedade diante daquela turbulência, mesmo não sabendo o que redundaria daquela indagação, que poderia ter gerado mais ódio e culpa. Minha hipótese é que ela se acalmou por ter me visto inteira, por ter tido um vislumbre do desarrazoado de sua reação e/ou por ter podido acolher sua participação em seu sofrimento.

D. oscila entre inveja e tendência à gratidão. Digo tendência, pois ao sair altaneira, com o olhar vitorioso, parece-me estar abrindo caminho para reparação, ainda que travestida com roupagem maníaca. Subsiste o desejo de controlar o objeto, a gratificação sádica de superá-lo, pois talvez quisesse suscitar minha inveja ao falar de seu relacionamento amoroso com a filha. Tendo eu feito uma formulação que possivelmente tenha estimulado uma percepção contundente que a balançou; ao relembrar seu pedido para que a prima não a incomodasse; isso provocou violenta e descontrolada eclosão de ódio, de dor; tornei-me perseguidora, a responsável por seu sofrimento; em meio à desorganização, foi incapaz de pensar. Ainda assim, deve ter percebido que havia algo de verdade presente, o que pode estimular gratidão e apreciação pela capacidade do analista, mas em seguida, essa percepção de ter uma analista boa, desperta a inveja, incitando a vontade de controle. É um movimento em espiral cambaleante, com evolução se processando lentamente.

Há outros aspectos nessa sessão que mereceriam ser abordados, principalmente a questão da culpa – pela própria destrutividade, por não aceitar ajuda do analista, revivendo talvez a culpa arcaica de rejeição do leite materno; pode surgir o temor de ser castigada, o que conduziria ao esforço de conciliação para não ferir o analista. Curiosa a entonação, a pequena pausa que deu ao falar que “nem todos os alemães foram culpados”; pareceu-me que se “perdoava” por sua destrutividade, com uma possível conscientização de que não era tão destrutiva como se imaginava. Será que em algum escaninho de sua mente houve um assinalamento de que envelhecer não é conseqüência de destrutividade?

Outras versões são factíveis, bem como outras interpretações do material. Pergunto-me o que me fez caminhar nessa sessão diferentemente do que considero produtivo, que seria o acompanhamento das transformações da experiência. Poderia ter assinalado que ela deixou de lado a idéia nova de “velho” (velho também pode ser útil) e retornou ao velho da inveja, e assim por diante; poderia assinalar que parecia querer que falássemos de inveja; poderia... poderia... poderia... Mas o que toma conta do analista durante o encontro? Seriam as memórias, reflexões metabolizadas dos encontros anteriores confrontadas com a emoção, a angústia, as incertezas originadas no encontro, ainda quando se receba o analisando como se fosse a primeira vez que o vemos? Afinal, o que está digerido, e mesmo o indigesto, permanece, faz parte integrante das pessoas envolvidas na relação. Vivemos a experiência significativa de um momento. Ao ser repensada ou relatada, a experiência tem outro significado, talvez em função daquilo que é inefável. A experiência clínica proporciona uma soma de pormenores cujo efeito cumulativo tende a aproximar-nos de O (realidade última, verdade), o que vai sendo verificado se a pessoa adquirir a coragem de vir a ser o que é, e não de parecer ser, que seria talvez um processo aprendido de como ser. Ser ou não ser, eis um dilema.

Psicanálise é uma ciência nova e em desenvolvimento; a grande dificuldade para esse desenvolvimento é que depende de nosso próprio crescer, com a possibilidade de refletir sobre esse crescer. Além disso, seu criador – Freud – foi um gênio que, como um ímã, atrai e direciona nosso olhar para as amplas descobertas que tão bem articulou. A sua é uma obra aberta, sempre surpreendente, estimulante para novas investigações. Em Dois verbetes de enciclopédia, define: “psicanálise é o nome de 1- um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, 2- um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e 3- uma coleção de investigações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa disciplina científica” (1923, p. 287).

Desenvolvimento vem se processando lenta mas persistentemente, com a prática e a reflexão crítica do que existe e se percebe. Eu sou eu e minhas circunstâncias (Ortega y Gasset), e ao tentar pensar o que é ser psicanalista, chego a algumas respostas temporárias. Primeiro, é que não há fórmula para isso, assim como não há fórmula para ser mãe, pai, marido, esposa etc. Além disso, é óbvio que não existe analista sem analisando com quem se possa conversar, em que as funções continente-contido sejam exercidas de modo a se constituir uma dupla construtiva; também óbvio é que a verdade, tão almejada, é inatingível, aproximamo-nos até certo ponto; nossas hipóteses e teorias são no máximo plausíveis e só relativamente verificáveis, fruto da experiência emocional.

Como corolário, vir a ser psicanalista acontece com a observação da e na experiência clínica, no refletir a respeito do que aconteceu, com as possibilidades de novas versões, ir descobrindo e sofrendo na pele os dilemas, realizando conceitos e teorias já descobertos por Freud, Klein, Bion, Winnicott etc; é estar presente no encontro in totum, atuante, atingido e atingindo por ações e reações, “sofrendo”, pensando a experiência emocional oriunda de duas mentes em interação, desenvolvendo a escuta peculiar que nos permite ouvir o dito e o não dito, tentando dar um contorno significativo para a experiência. Se conseguirmos nos aproximar, no contato com o outro, de que nada que é do homem nos é desconhecido, ousaremos pensar; chegaremos a nos respeitar e aos outros; humildes, isentos de julgamentos morais, pacientes com as dificuldades, as imperfeições, acolhedores de qualidades positivas e negativas para tentar verificar suas funções. Vir a ser psicanalista seria conseguir atingir a realidade de se ser humano, com fraquezas, limitações, angústias, onipotência, inveja, desejos, amores etc, em uma luta constante com nossos ingovernáveis eus; não contra os eus, mas com os eus, tentando conhecê-los o suficiente para poder utilizá-los a nosso favor. Apropriando-me do título de um trabalho de Bion, seria como tornar proveitoso um mau negócio.

 

Caminho sem fim?

O domínio da personalidade, por demasiado extenso, não pode ser investigado completamente. O poder da psicanálise demonstra a qualquer psicanalista que adjetivos como “completo” ou “plena” não têm lugar ao qualificar análise. Quanto mais meticulosa a investigação, mais claro se torna que, ainda que a psicanálise seja prolongada, ela representa apenas o começo de uma investigação. Ela estimula o crescimento do domínio que investiga (Bion, 1970, p. 76).

A personalidade do analista e o vínculo que se estabelece entre analisando e analista são os elementos principais em um processo psicanalítico. O recorte feito do que se observa na experiência emocional de uma sessão e a verbalização do vivenciado pelas duas pessoas presentes são dependentes da subjetividade, por mais objetivos que queiramos ser. A apresentação de material clínico, seja em vinhetas ou na transformação de uma sessão, torna-se importante para que se possa apreciar e teorizar, a posteriori, como estão sendo a apreensão e a realização de conceitos e teorias, o que não invalida outras compreensões e diferente aporte teórico. Somente na prática é que se pode tornar vivo, real, o que na teoria pode ser lógico, bonito, inteligente, mas não demonstra como é estar na frente de batalha.

Durante muito tempo a preocupação dos analistas esteve voltada para a questão de cura, remoção de sintomas, embora Freud considerasse que isso seria um efeito colateral do trabalho. Com o avanço da percepção do mundo psíquico, maior número de analistas volta seu interesse para a expansão da mente, de modo a passar de um conhecimento de si próprio para um poder vir a ser o que se é. Não basta saber ser possuidor de inveja, ciúme, ódio, amor, generosidade, coragem etc, o essencial é vivenciar tudo isso na experiência emocional junto ao outro, em suas múltiplas nuanças e momentos, aprimorando a capacidade de pensar, reconhecendo e apreendendo a parte psicótica da personalidade que todos nós contemos. Isso leva tempo.

Bion propõe um modelo para a mente; seria como um mapa-múndi formado por distintas regiões não-lineares, que se enovelam, planas, montanhosas, quentes, temperadas, geladas, que deveriam ser visitadas em uma psicanálise, tornando-nos cada vez mais senhores de tudo que herdamos, favorecendo nossa criatividade, para nos enfrentarmos com nossas vicissitudes. Nesse processo, vai se desenvolvendo na personalidade uma função psicanalítica, que permitiria um processo contínuo de auto-análise. Trata-se do processo necessário a analista e analisando.

Admito que o tempo de duração do processo psicanalítico empreendido entre D. e eu possa despertar surpresa e curiosidade. A mim, a partir de minha própria experiência, causa espanto quando ouço de colegas: “já terminei minha análise, pois já completei os cinco anos regulamentares”. O processo psicanalítico, quando visto como investigação, desenvolvimento do mundo mental, é uma longa viagem. Enquanto a dupla se perceber construtiva, criativa, abrindo caminhos para o pensar o desconhecido, observando a utilidade do processo, este pode continuar.

Em sua relação comigo, D. vê, vive e “aprende” algumas coisas que lhe permitem “corrigir” seu relacionamento familiar, social e no trabalho, o que lhe propicia melhor qualidade de vida. Talvez isso possa denotar desenvolvimento mental, mas não necessariamente. Nas poucas vezes em que propus a D. a interrupção da análise, ela fez um denso silêncio, e depois, em voz tensa, disse: “preciso de você para me ajudar a pensar, sei que sozinha não consigo, vou como um rolo compressor nas minhas idéias, não vejo alternativas” ou “sei que brigo com você quando v fala alguma coisa diferente do que eu quero; mas não jogo fora, fico caraminholando e depois volta” ou “existe uma falha em mim que me faz caminhar como burro com viseira”, o que corresponde à minha percepção. Será que haverá possibilidade dela vir a desenvolver a função psicanalítica? Poderão as manifestações do chamado instinto de morte serem abrandadas pelo fortalecimento da parte amorosa? Observo desenvolvimento, mas também observo que muitas vezes parecemos retornar às estacas antigas, que me levam a pensar no texto de Freud, Análise terminável e interminável (1937). D. vem se dedicando a refletir, a pensar na solidão que sente; mas sua postura de se acreditar sempre com a verdade breca seu desenvolvimento.

Apesar dos percalços, penso que o processo tem sido de utilidade para nós duas e que vale continuar persistindo. D. vem podendo ouvir o que falo, e suas explosões, embora com intensidade semelhante à do início do trabalho, demoram menos tempo e surgem em menor freqüência. Parece-me que, quase a contragosto, está à procura daquela verdade que as pessoas procuram afastar de si, por não gostarem do que enxergam; até vem se permitindo brincar com o que descobre e que julgava desairoso, mas em geral em sessões posteriores.

Inúmeras vezes fui checar com colegas a possibilidade de estar havendo conluio, o que não foi detectado por nenhum deles, mesmo em um acompanhamento prolongado. Assim, continuamos nossa viagem por caminhos desconhecidos, tantas vezes procelosos. Até onde? Não sei...

 

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Endereço para correspondência
Rosa Broner Worcman
Praça Germânia, 132/181 - Jardim Paulistano
01455-080 - São Paulo/SP - Brasil
Tel.:+55 11 3812-6490
E-mail: rosabw@gmail.com

Recebido em: 27.03.2006
Versão revisada recebida em: 10.01.2007
Aprovado em: 18.01.2007

 

 

*Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP); Professora do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica (USP).