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versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.12 n.22 São Paulo jun. 2008
ARTIGOS
Abrindo espaço para o ser: Winnicott e a ludoterapia no contexto da violência familiar1
Opening space to being: Winnicott and play therapy in the context of family violence
Maíra Bonafé Sei*
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
RESUMO
O presente trabalho busca descrever um processo ludoterápico com um menino que havia passado por situações de violência familiar, compreendido à luz da teoria winnicottiana do desenvolvimento emocional. O pequeno paciente pôde desenvolver-se emocionalmente, construindo aspectos mais saudáveis em sua personalidade, tendo a intervenção psicoterapêutica, apoiada na compreensão de ser humano descrita por Winnicott, um papel de extrema importância ao oferecer nova esperança e sentido para o viver.
Palavras-chave: Desenvolvimento; Psicanálise; Violência familiar; Criança; Caso clínico.
ABSTRACT
The present work describes the play therapy with a boy that had suffered family violence, analyzing within the emotional development proposed by Winnicott. The little patient was able to develop himself emotionally, building healthier aspects in his personality. The psychotherapeutic intervention, based on the great importance of Winnicottian comprehension of the human, thus offering the boy a new hope and a new sense of being.
Keywords: Development; Psychoanalysis; Family violence; Child; Clinical case.
As crianças são seres humanos que se encontram em desenvolvimento não apenas físico como também emocional, e desta maneira, precisam de cuidados e atenções especiais, com o objetivo de atender as necessidades dessa especial fase da vida.
Para o pediatra e psicanalista inglês Donald W. Winnicott, a necessidade de atenção do meio externo é extrema no caso dos bebês, já que estes se encontram em um momento de “dependência absoluta”. Dessa maneira, ainda não estão em condições de comunicar aquilo que precisam, sendo importante a sintonia do ambiente e de seu representante, geralmente a mãe, com o bebê. Esta sintonia é chamada de “preocupação materna primária” (Winnicott, 1956), e se manifesta por meio de um estado temporário de fusão entre mãe e bebê, fazendo-se importante ressaltar que para possibilitar a entrada da mãe nesse estado, ela mesma deve estar sendo apoiada, sustentada, pelo companheiro e/ ou ambiente que a cerca. A força do ego da criança nesse momento depende, então, da relação e identificação existente entre a mãe e o bebê o ego do pequeno indivíduo é fraco e forte, dependendo apenas da capacidade da mãe em lhe apoiar (Winnicott, 2001).
Com o passar do tempo e o amadurecimento de seu filho, a mãe volta-se novamente para suas atividades externas, contando com a capacidade emocional e cognitiva adquirida de sua criança de esperar, caracterizando um segundo momento, denominado de “dependência relativa”. Há certa internalização dos cuidados e o desenvolvimento de uma confiança no meio, possibilitando a tolerância quanto à ausência de cuidados, com a mãe podendo “falhar” mais com seu filho, ao fazê-lo aguardar pelo atendimento de necessidades e desejos (Winnicott, 1960a).
Nesse processo de desenvolvimento, há então uma acumulação de memórias pelo indivíduo acerca dos cuidados recebidos, fato que possibilita a reprodução deles para consigo próprio, fazendo com que não haja uma dependência grande do meio. Conceitua-se esse momento final de “rumo à independência”, denominação indicativa de uma tendência à independência, não sendo esta completa, visto que “o indivíduo normal não se torna isolado, mas se torna relacionado ao ambiente de um modo que se pode dizer serem o indivíduo e o ambiente interdependentes” (Winnicott, 1963, p. 80).
Assim, se durante o desenvolvimento essas fases seguem normalmente, atinge-se um estado de saúde, caracterizado pela possibilidade do indivíduo se colocar de forma verdadeira e criativa no mundo (Winnicott, 1975). Isso ocorre devido à ilusão de onipotência experienciada quando o bebê tem suas necessidades atendidas por uma mãe devotada, atenta a seu filho, no exato momento em que as necessidades se apresentam. A partir da experiência de onipotência, faz-se possível o processo de desilusão, quando gradualmente vai se reconhecendo a realidade externa, diferenciando-se aquilo que é interno daquilo que é externo.
Há, então, a necessidade de uma mãe e um ambiente suficientemente bons, que sustentem adequadamente esse processo de desenvolvimento emocional, não necessariamente de forma perfeita, já que a perfeição não faz parte de nossa condição humana, mas de forma a não falhar além da capacidade que a criança tem de suportar essas falhas. Quando não é possível contar com as condições descritas, o indivíduo pode desenvolver algumas estratégias de defesa, dependendo de suas características pessoais, dos tipos de falhas vivenciadas e do momento em que as mesmas ocorreram.
Dentre as possíveis conseqüências, pode-se citar o desenvolvimento de uma psicose, quando as falhas se dão nos momentos iniciais da vida da criança. Diante de importantes falhas, que são sentidas como uma invasão nesse processo de integração do indivíduo, uma outra estratégia de defesa pode se configurar, sendo esta denominada de falso self. Este teria a função de proteger o verdadeiro self das intrusões sentidas como aniquiladoras, levando a criança a adequar-se, de maneira forçada, às exigências do meio externo. Ele pode se manifestar em diferentes graus, desde o mais extremo, quando se implanta como real, fazendo com que aqueles que o observam pensem que se trata da pessoa real, até o grau mais leve, caracterizado pelas atitudes sociais educadas e amáveis (Winnicott, 1960b).
No caso do falso self, a submissão ao meio externo desrespeita o movimento natural do indivíduo, dominando a sensação de irrealidade e trazendo um sentimento de inutilidade. Assim, em casos extremos, “quando tudo o que importa e é real, pessoal, original e criativo, permanece oculto e não manifesta qualquer sinal de existência, (...) o indivíduo não se importaria, de fato, de viver ou morrer” (Winnicott, 1975, p. 99).
Quando a falha ocorre em um momento posterior, quando o indivíduo já não se encontra mais na fase de “dependência absoluta”, pode-se desenvolver uma “tendência anti-social”. Esta se caracterizaria por atos anti-sociais, que indicariam a esperança que o indivíduo tem de reencontrar uma experiência boa que foi perdida, estando assim a privação como raiz dessa tendência (Winnicott, 1999). Entretanto, caso não haja um reconhecimento de suas necessidades, por meio dessa comunicação, a tendência anti-social pode se concretizar na forma de delinqüência, havendo, então, uma impossibilidade de tratamento.
Um panorama sobre a violência familiar: conceituação e conseqüências
Como foi observado na apresentação à teoria de Winnicott, o meio, representado pela mãe e família de forma geral, desempenha um papel primordial para um amadurecimento emocional saudável. Assim, a violência que ocorre dentro do seio familiar, local que deveria funcionar como um local de apoio e sustentação do indivíduo, pode trazer importantes conseqüências no que concerne ao desenvolvimento emocional, principalmente das crianças.
Conceitua-se o termo “violência familiar” como “ações e/ou omissões que podem cessar, impedir, deter ou retardar o desenvolvimento pleno dos indivíduos” (Koller e Antoni, 2004, p. 297), que ocorram dentro do contexto familiar, este englobando todas as possíveis configurações familiares. Opta-se por adotar o termo “violência familiar”, em detrimento do termo “violência doméstica”, visto o caráter internacional da primeira, e o fato da última carregar um significado atrelado ao caráter íntimo e privado em que este fenômeno por anos foi visto.
A violência familiar pode ser dirigida a diversos membros da família, como a mulher, o idoso, os portadores de deficiência, as crianças e os adolescentes (Brasil, 2001), sendo que no presente trabalho será abordada a questão dos maus-tratos infantis.
Quanto às possíveis divisões dos maus-tratos infantis, Bringiotti (2000) propõe que possam ser divididos em pré-natais, que incluiriam as circunstâncias prejudiciais à criança, relativas ao período de gravidez da mãe; pós-natais, incluindo circunstâncias ocorridas durante a vida da criança; e por fim, os institucionais, quando instituições e sociedade expõem a criança a situações que trazem prejuízo ao seu desenvolvimento.
Quanto às modalidades de maus-tratos praticadas, tem-se, a partir da definição do National Information Clearinghouse (2004), os seguintes tipos: negligência, que se diferencia dos outros tipos por não se tratar de uma ação, mas de uma omissão de cuidados necessários à criança (Gonçalves, 2003); abuso físico, constituído por danos físicos advindos de ações como socar, morder, chutar, queimar etc; abuso sexual, que incluiria atividades como manipulação dos genitais da criança, penetração, exploração por meio da prostituição etc; abuso emocional, que se configuraria como um padrão de comportamento prejudicial ao desenvolvimento emocional, incluindo desaprovações, ameaças, rejeição, negação de amor, suporte e direção. Cabe ressaltar que apesar de serem definidos de forma separada, os maus-tratos são usualmente encontrados de maneira combinada.
Considerando as possíveis seqüelas para o desenvolvimento de uma criança, pode-se pontuar que elas dependem de variáveis diversas, como o tipo de maustratos sofridos, severidade, freqüência, cronicidade dos episódios, autor dos maus-tratos, idade e sexo da criança (Jourdan-Ionescu e Palacio-Quintin, 1997).
Para Reichenheim e cols. (1999), as conseqüências podem abranger as esferas física, social, comportamental, emocional e cognitiva, podendo se fazer presentes a curto, médio e/ou longo prazo.
Várias são as seqüelas de cunho emocional, como ansiedade, medo, hiperatividade, depressão, psicose, envolvimento com substâncias psicoativas, maior dificuldade nos relacionamentos interpessoais, menor simbolização nas 1997; Amazarray e Koller, 1998; Mello, 1999).
Assim, a partir das considerações acima, Cicchetti e Toth (1995) advogam uma terapia preventiva junto a essa população, visando à diminuição dos possíveis agravos advindos das situações vivenciadas.
Psicoterapia e psicanálise: possíveis formas de intervenção
Diversas são as formas de intervir de maneira a prevenir a ocorrência dos maus-tratos ou diminuir suas conseqüências. Assim, no que concerne à prevenção, Cavalcanti (1999) discorre sobre as ações do Programa de Saúde da Família, que por meio das visitas domiciliares permitem o estabelecimento de laços entre população atendida e profissionais, auxiliando na prevenção, identificação e intervenção diante de situações de maus-tratos.
De maneira geral, quanto ao tratamento, Araújo (2002) aponta para a necessidade de uma abordagem multidisciplinar, integrando intervenções punitivas, protetoras e terapêuticas.
No caso das intervenções psicológicas, apesar de fundamentais para a interrupção de um possível ciclo de violência, apresentam menor aderência, já que em outros atendimentos, como o médico e o social, tem-se uma resposta mais rápida às necessidades concretas da família, diferentemente do atendimento psicológico, que “exige engajamento mais direto, comparecimento semanal e participação ativa dos responsáveis na resolução das dificuldades familiares”, não oferecendo respostas imediatas (Ferreira e cols., 1999, p. 128).
Blau e cols. (1993) pontuam que, no caso de crianças, a forma de intervenção mais comum é a terapia individual, observando que essa população freqüentemente necessita comunicar o trauma como uma forma de elaborar a experiência, apontando o brincar como a forma mais natural da criança se comunicar.
Rotondaro (2002) percebeu a importância do respeito ao ritmo da criança, devendo o terapeuta ser uma figura acolhedora e sensível, criando um espaço para reconstrução da confiança da criança em si mesma. Notou também que uma intervenção psicoterapêutica grupal, realizada em abrigo, pôde facilitar o desenvolvimento emocional e oferecer espaço para manifestação do gesto espontâneo de seus participantes, e de um viver mais criativo (Rotondaro, 2005).
Lamanno-Adamo (1999) aponta, a partir de uma perspectiva psicanalítica, que é necessário o terapeuta auxiliar no processo de simbolização das crianças, o qual fica afetado diante da experiência de violência familiar; assim, deve fazer com que as experiências possam ser evoluídas e pensadas, ao invés de encenadas e atuadas.
Segundo Junqueira (2002), a oferta do terapeuta de “viver com” seu paciente possibilita uma redescrição da própria história, colaborando para se significar e simbolizar o trauma, vivenciando situações outras, mais estruturantes, que não aquelas de abuso, usualmente devastadoras e destruidoras. Assim, a continência de estados mentais experienciados por pacientes que passaram por situações de abuso colaboram para a elaboração de sentimentos ambivalentes (Sussuman, 2000).
Para Alvarez, o processo de elaboração “é complexo, longo, nem sempre visível, e com certeza não necessariamente verbalizado” (1994, p.161), sendo que o terapeuta facilitaria a construção de um equipamento mental capaz de refletir sobre a experiência.
Por fim, Magalhães (2003) observa a relevância de o paciente viver experiências inéditas e significativas por intermédio da psicoterapia, com o terapeuta existindo como uma pessoa real, que estabeleça limites e ofereça um espaço de sustentação capaz de promover a continuidade do desenvolvimento emocional da criança. Oferece-se uma oportunidade de reconstrução de objetos internos, prevenindo possíveis conseqüências futuras de ordem psicológica (Fávero e cols., 2005).
O conhecimento de um processo
Tem-se uma quantidade significativa de pesquisas que discorrem sobre a etiologia e seqüelas da violência familiar, mas poucas no que concerne à prevenção e ao tratamento daqueles implicados no fenômeno (Cicchetti e Toth, 1995), sendo ainda menor o número de trabalhos que abordam o tratamento de crianças que passaram por situações que não a de abuso sexual.
Assim, busca-se uma exploração atenta e detalhada do material clínico advindo do atendimento de um menino abusado fisicamente, realizado na própria instituição onde a criança estava abrigada, articulando-o à teoria do desenvolvimento emocional proposta por Winnicott. Espera-se, com este trabalho, ilustrar uma possível estratégia de atendimento clínico realizado na instituição, e como tal, passível de ser empregada com essa população, demonstrando os alcances observados.
Considerações acerca da pesquisa qualitativa
Apresenta-se aqui uma pesquisa qualitativa, e como tal, inserida em um paradigma de ciência que aceita a existência de múltiplas realidades, predominando a lógica da descoberta e não da verificação, de forma a buscar o aprofundamento de aspectos “que necessitam de um mergulho intensivo, mais do que um olhar extensivo” (Eizirik, 2003, p. 29).
Busca-se uma compreensão particular do fenômeno estudado, despreocupando-se com generalizações, princípios e leis, sendo de natureza teórica e prática (Martins e Bicudo, 1989). Assim, não há uma divisão rígida das etapas de pesquisa, havendo, então, uma maior liberdade teóricometodológica (Triviños, 1987).
Considera-se que se tem uma relação sujeito-sujeito, já que o pesquisador está inexoravelmente implicado no processo de pesquisa, com sua subjetividade permeando cada etapa da pesquisa (Silva, 1993), sendo que no caso da utilização de material clínico, e diante da impossibilidade de registro de todos os fenômenos ocorridos, tem-se sempre um recorte a partir do ponto de vista do pesquisador (Safra, 1993).
Considerando-se a relação entre seres humanos existente na coleta de dados, tem-se uma impossibilidade de reprodução precisa da matéria-prima a partir da qual são obtidos (Mezan, 2001). Assim, “o trabalho não pode ser copiado porque o terapeuta é envolvido em cada caso como pessoa, razão por que não há sequer duas entrevistas que sejam semelhantes quando podem ser realizadas por dois psiquiatras” (Winnicott, 1984, p. 17).
Assim, propõe-se o estudo de caso cuja finalidade “é realizar um retrato de uma unidade em ação” (Calil e Arruda, 2004, p. 197) de um atendimento em ludoterapia de orientação psicanalítica, com um menino que no início do atendimento estava com idade de três anos e nove meses. Encontrava-se abrigado em uma instituição para crianças e adolescentes que haviam passado por situações de violência familiar, e havia sofrido, juntamente com seu irmão, abuso físico perpetrado por sua mãe biológica.
O atendimento se iniciou com uma freqüência de uma vez por semana, antes das férias de fim de ano. A criança foi desabrigada2, e após novo episódio de agressão física, foi novamente abrigada, quando o atendimento foi retomado com uma freqüência de três vezes na semana. Foram realizadas 106 sessões, de aproximadamente 50 minutos cada, na própria instituição, em diferentes salas disponibilizadas pelo abrigo, contando com o apoio de uma caixa lúdica individual, que continha material gráfico e brinquedos: bonecos, jogo de cozinha, carrinhos, toalha, bacia e bexigas.
Uma ludoterapia suficientemente boa? Algumas reflexões
Como descrito, ocorreram 106 sessões de atendimento, durante um período aproximado de um ano e três meses, sendo que houve uma longa interrupção quando a criança foi desabrigada. A freqüência de três vezes na semana foi possível devido ao fato dos atendimentos serem realizados no próprio local onde a criança habitava, evitando as faltas tão comuns nos atendimentos a essa população (Ferreira e cols., 1999).
Através da leitura atenta das transcrições feitas após cada atendimento, foi possível dividir o atendimento em diversas etapas ou movimentos, descritos a seguir, que de maneira geral refletem as etapas pelas quais passa o indivíduo durante o processo de desenvolvimento emocional, tal como proposto por Winnicott.
Expressando suas necessidades
Nos primórdios do processo de desenvolvimento humano, o bebê necessita de uma mãe atenta, sintonizada com suas necessidades, já que ele não dispõe de recursos para verbalizar aquilo que se faz necessário naquele momento, estabelecendo-se, então, uma relação de “dependência absoluta” (Winnicott, 1963).
O pequeno paciente, no início da psicoterapia, parecia estabelecer uma relação próxima à filial, demandando da terapeuta uma posição atenta para com suas necessidades. Sua verbalização era precária, e grande parte da comunicação se dava de outra maneira, com uma gradual sintonia entre terapeuta e paciente.
Havia momentos em que o menino urinava sem pedir para sair da sala e se dirigir ao banheiro. A terapeuta passou a perceber, através de sua expressão corporal, os momentos em que a criança estava prestes a urinar na sala de atendimento, e passou a perguntar se ele não queria ir ao banheiro. Aos poucos ele pôde passar a pedir o que precisava, e o espaço proporcionado pela psicoterapia tornou-se um local de maior contato consigo mesmo, no qual o paciente pôde se ver, diferenciar-se e passar a comunicar suas necessidades e desejos ao outro.
Maternagem
Os cuidados maternos são de extrema importância para um amadurecimento emocional saudável, sendo que muitas vezes a psicoterapia é o espaço em que os cuidados anteriormente não fornecidos podem ser percebidos, e com isso, oferecer pela primeira vez a experiência de um ambiente suficientemente bom, de uma sustentação para esse desenvolvimento (Abram, 2000). Na psicoterapia descrita, muitas vezes esse processo, nomeado aqui como de maternagem, acontecia por meio de uma proximidade e cuidado até físico de suas necessidades; por exemplo, quando limpava-se o nariz escorrendo, as mãos ou parte do corpo, ou ao se dar as mãos durante os pequenos trajetos percorridos dentro da instituição.
Havia uma preocupação em proteger e não invadir o paciente, respeitando seu distanciamento em momentos como aquele em que voltou ao abrigo, quando se encontrava extremamente machucado, física e psicologicamente, mas com uma presença atenta e acolhedora, posicionando-se sempre ao seu lado. Através da sustentação oferecida, do fornecimento de cuidados básicos ao paciente, houve um processo de internalização desses cuidados e dessa sustentação, de forma que lhe foi possível reproduzi-los consigo mesmo e com os bonecos e brinquedos diversos presentes em sua caixa lúdica.
Percebendo-se e percebendo o outro
De um momento em que o menino parecia se colocar em um estado de fusão com a terapeuta, no qual esperava que ela compreendesse suas necessidades, mesmo sem uma clara verbalização, passou-se para uma nova fase, quando lhe foi possível perceber-se como um ser diferente, vendo-se atentamente no espelho, brincando com sua imagem, identificando seu nome na caixa lúdica, tentando reproduzi-lo no papel, ou observando sua imagem em foto presente em um dos corredores da instituição.
Pôde também perceber o outro como alguém separado de si, interessando-se por aquilo que lhe era externo, reconhecendo que esse outro tem um nome e características próprias. Passou então a querer saber o nome de sua terapeuta, mostrando tê-lo aprendido; observou os machucados de si próprio, apontando-os. Terapeuta e paciente eram, então, dois seres diferentes, com identidades e marcas próprias fato concretizado com o desenho da mão de ambos, uma ao lado da outra, mas separadas e nomeadas.
Mostrando-se
O dia-a-dia do paciente foi então apresentado à terapeuta, mostrando-lhe a sua “casa”, isto é, o abrigo, o quarto onde dormia, sua cama e suas roupas; ou também por meio de alguns relatos de atividades que havia realizado. Estabeleceuse entre os dois uma relação de confiança, uma crença no retorno da terapeuta, proporcionando condições suficientes para que o paciente pudesse falar de seus machucados, dos maus-tratos sofridos. Contava situações em que sua mãe havia lhe batido ou apontava machucados atuais, ilustrando um novo momento no qual podia ser cuidado.
Limpar
Com o passar do tempo, o paciente interessou-se fortemente por atividades de limpeza, seja de si mesmo, quando queria limpar seus pés, suas mãos, seja de sua caixa, quando decidia lavá-la ou lavar os objetos que estavam nela contidos, ou por fim, a própria sala. Esta atividade pôde se relacionar com um desejo de limpeza também de suas vivências de sofrimento, advindas das agressões sofridas em seu lar, em uma atitude de reparar essas experiências passadas.
Uma outra atividade com um sentido similar era a atividade de encher, esvaziar e novamente encher bexigas, algo que agradava muito ao paciente. Tem-se um sentido de esvaziar-se de coisas internas, talvez ruins e dolorosas, abrindo espaço para a entrada de coisas novas, diferentes, com um positivo aspecto construtivo (Magalhães, 2003).
Construindo uma casa
O ambiente promovido pela relação terapeuta-paciente pela psicoterapia configurou-se como suficientemente bom, já que pôde acolher e sustentar as necessidades apresentadas pelo paciente, situação fundamental para o desenvolvimento emocional do indivíduo. Pôde-se reviver experiências passadas, agora em uma nova situação, com condições mais próximas das ideais, integrando aspectos de sua personalidade.
No caso do pequeno menino atendido, os resultados dessa relação se mostraram por meio de uma clara internalização de cuidados, cabendo ressaltar que esses cuidados eram promovidos não apenas pela terapeuta, mas também pelo abrigo, que forneceu um espaço diferente, alternativo ao familiar, que se apresentava tão inadequado para seu crescimento e desenvolvimento saudável.
Passando para novas fases do desenvolvimento propostas por Winnicott (1963), de “dependência relativa” e “rumo à independência”, ele pôde mostrar sua evolução, reproduzindo os cuidados por si mesmo. Passou a construir casas nas sessões e reproduzir uma dinâmica familiar, por meio de atitudes de limpeza, alimentação, sono tal como os pais cuidam de seus filhos. Construiu-se um aspecto saudável em sua personalidade, havendo a possibilidade de afetos positivos, de carinho e de sentimentos bons serem demonstrados, fato extremamente importante para população de indivíduos que passam por situações de abuso (Alvarez, 1994).
Independência x dependência
A última fase do desenvolvimento emocional descrita por Winnicott (1963) seria a de “rumo à independência”. A independência em relação ao meio não deve ser total e absoluta; o desejável é que o indivíduo mantenha aberto o contato com outras pessoas. Depois do atendimento, a criança caminhou nessa direção, mostrando sua capacidade de cuidar de si, pelo acúmulo das memórias da relação terapêutica estabelecida e também dos cuidados recebidos no abrigo.
O pequeno menino mostrava sua força ao pedir para carregar sozinho sua própria caixa, ou quando queria ir e voltar do banheiro ou do bebedouro sozinho, mostrando que havia guardado o caminho de volta para a sessão, confiando na presença da terapeuta à sua espera. A capacidade dele de cuidar de si foi bastante estimulada, embora não ter sido cuidado pela mãe fosse um ponto doloroso para essa criança, e sua capacidade adquirida foi também bastante reconhecida na terapia, incentivando-o a fazê-lo de seu jeito e com suas próprias escolhas.
Havia, entretanto, oscilações: a criança demonstrava momentos de regressão, demandando novamente um movimento próximo ao da maternagem, quando apontava a caixa como sendo um berço, entrando nela e mostrando desejo de ser um bebê. Esse se configura como um movimento natural dessa idade, uma vez que, como observa Palhares, “nada está garantido. Qualquer estágio durante esse período é alcançado e perdido. A criança está o tempo todo em todos os estágios, apesar de um determinado estágio ser considerado dominante” (2002, p. 152). A presença atenta e cuidadora da terapeuta mostrou-se mais uma vez essencial, visto que “diante desta vulnerabilidade, é o ambiente que vai fornecer estabilidade” (p. 152).
Considerações finais
O fenômeno da violência familiar é complexo, e para ser superado necessita de um trabalho integrado com profissionais de áreas diversas (Araújo, 2002). No caso atendido, muito dos ganhos obtidos foram possíveis dada a nova situação em que se encontrava a criança, já que o retorno à família não havia se mostrado positivo, com uma reiteração da dinâmica violenta anterior.
A experiência de violência familiar causa profundas marcas no psiquismo: é uma invasão no processo de desenvolvimento daquele ser humano (Winnicott, 1956), e por isso, a psicoterapia tem um papel de extrema relevância. Esta deve respeitar o ritmo da criança (Rotondaro, 2002; Magalhães, 2003) para não ocasionar novas invasões na continuidade de ser do pequeno indivíduo.
Atentando-se para o processo psicoterapêutico vivenciado pelo paciente apresentado neste trabalho, é possível perceber os ganhos obtidos com a psicoterapia. A terapeuta “vivia com” seu paciente as angústias, sofrimentos e também alegrias, proporcionando o desenvolvimento de uma capacidade de simbolização e elaboração (Lamanno-Adamo, 1999; Sussuman, 2000; Junqueira, 2002).
Assim, uma intervenção psicoterepêutica como a descrita, que busque compreender e acolher o desenvolvimento emocional desses pequenos seres, já tão invadidos pelo ambiente que deveria primar por sua proteção, torna-se de extrema importância, oferecendo uma nova esperança e sentido para o viver dessas crianças.
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Endereço para correspondência
Maíra Bonafé Sei
Rua Barbosa da Cunha, 835 - Guanabara
13073-320 - Campinas/SP - Brasil
Tel.:+55 19 3241-3433
E-mail: mairabonafe@hotmail.com
Recebido em: 24.11.2005
Versão revisada recebida em: 03.09.2006
Aprovado em: 03.09.2006
*Psicóloga; Especialista em Arteterapia; Mestre e Doutoranda em Psicologia Clínica (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo).
1 Trabalho resultante da dissertação de mestrado da autora, apresentada junto ao Instituto de Psicologia, da Universidade de São Paulo (Sei, 2004).
2 Nos casos de violência familiar, tem-se como uma das medidas protetivas para a criança abusada sua retirada do ambiente familiar, que se mostra inadequado para um desenvolvimento saudável. A criança fica, então, em instituições denominadas “abrigos”, enquanto busca-se realizar uma intervenção com a família para o retorno da criança a ela. A criança aqui atendida passou por esse processo de abrigamento, desabrigamento e, diante de novos episódios de violência, por um reabrigamento, permanecendo então na instituição.