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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.18 no.17 São Paulo dez. 2010

 

ARTIGOS

 

Motricidade e aprendizagem: algumas implicações para a educação escolar

 

Motricity and learning: some implications to scholastic education

 

 

Carol Kolyniak Filho*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

 

 


RESUMO

O presente artigo tem o objetivo de apontar implicações educacionais de uma compreensão da motricidade como aspecto central do desenvolvimento humano, que tem estreita relação com os processos de aprendizagem em geral. Apresenta-se o conceito de motricidade, tal como formulado por Kolyniak Filho (2002) a partir das propostas de Manuel Sérgio (1996), bem como elementos de fundamentação teórica das relações entre motricidade e aprendizagem. Tais elementos encontram-se em estudos das chamadas neurociências, bem como em elaborações teóricas de autores como Fonseca (1995, 1998) e Luria (1981). Conclui-se que a aceitação das relações apontadas traz, para a educação escolar, implicações relativas à organização dos recursos materiais e da metodologia de ensino, assim como a necessidade de novos enfoques para a busca de superação de dificuldades de aprendizagem, na perspectiva da educação inclusiva.

Palavras-chave: Motricidade; Aprendizagem; Educação Escolar.


ABSTRACT

This paper aims to point out some educational implications of an understanding of motricity like a central aspect of human development, that has close relation with general learning processes. The concept of motricity, as shaped by Kolyniak Filho (2002) in the basis of Manuel Sergio (1996) conceptions, is explained, as well as some elements of a theoretical basis of relations between motricity and learning. Such elements are found in nervous system studies, as well as in theoretical works of authors like Fonseca (1995, 1998) and Luria (1981). The conclusions point out that the assumption of the exposed relations between motricity and learning processes brings some consequences to schools material resources and teaching methods organization, as well as the need of new approaches to learning difficulties, in basis of the inclusive education concept.

Keywords: Motricity; Learning; Scholastic Education


 

 

Introdução

O discurso pedagógico contemporâneo tem afirmado o pressuposto segundo o qual o aluno é um ser complexo, cujo desenvolvimento deve ser estimulado de forma integrada, nas dimensões cognitiva, socioafetiva e psicomotora. Contudo, a prática observada na grande maioria dos estabelecimentos escolares evidencia a centralização das intervenções pedagógicas na construção de abstrações conceituais, especialmente no que se refere à língua escrita, ao raciocínio lógico-matemático e às ciências exatas, naturais e humanas. Tais práticas vêm recorrendo, quase que exclusivamente, ao trabalho em sala de aula, em situações de relativa imobilidade, exigindo dos alunos quietude e concentração, desde os primeiros anos da escolarização.

A progressiva universalização da educação básica vem evidenciando as insuficiências da metodologia de ensino que recorre, quase que exclusivamente, à atividade mental, mantendo os alunos em relativa imobilidade. Tais insuficiências revelam-se nas inúmeras dificuldades de aprendizagem apresentadas por muitos estudantes, que têm redundado em abandono da escola ou, mais recentemente, na conclusão da educação básica sem apropriação de conhecimentos básicos, como a leitura, a escrita e o cálculo aritmético.

Nesse panorama, cabe refletir, entre outras coisas, sobre a relação entre os processos de aprendizagem escolar e a motricidade, como mais uma possibilidade de avanço em direção à superação das dificuldades de aprendizagem que, se não são novas, estão potencializadas na configuração atual do sistema escolar, especialmente nas redes públicas. Para tanto, o presente trabalho apresenta o conceito de motricidade, tal como elaborado por Kolyniak Filho (2002), a partir das contribuições de Manuel Sérgio (1996), para relacioná-lo aos processos de aprendizagem em geral, a partir de elementos teóricos elaborados por Fonseca (1995, 1998) e Luria (1981) e de enfoques mais gerais das neurociências. Com base nessa articulação, são apontadas implicações pedagógicas que incidem sobre a organização e a metodologia de ensino escolares.

 

Motricidade e Aprendizagem

Introduzindo o Conceito de Motricidade

É fundamental esclarecer o conceito de motricidade que utilizamos. Este conceito faz parte da emergente Ciência da Motricidade Humana, e tem, como uma de suas formulações, a seguinte:

Forma concreta de relação do ser humano com o mundo e com seus semelhantes, relação esta caracterizada por intencionalidade e significado, fruto de um processo evolutivo, cuja especificidade encontra-se nos processos semióticos da consciência, os quais, por sua vez, decorrem das relações recíprocas entre natureza e cultura – portanto, entre as heranças biológica e sócio-histórica. A motricidade refere-se, portanto, a sensações conscientes do ser humano em movimento intencional e significativo no espaço-tempo objetivo e representado, envolvendo percepção, memória, projeção, afetividade, emoção, raciocínio. Evidencia-se em diferentes formas de expressão – gestual, verbal, cênica, plástica, etc.. A motricidade configura-se como processo, cuja constituição envolve a construção do movimento intencional a partir do reflexo, da reação mediada por representações a partir da reação imediata, das ações planejadas a partir das simples respostas a estímulos externos, da criação de novas formas de interação a partir da reprodução de padrões aprendidos, da ação contextualizada na história – portanto, relacionada ao passado vivido e ao futuro projetado – a partir da ação limitada às contingências presentes. Esse processo ocorre, de forma dialética, nos planos filogenético e ontogenético, expressando e compondo a totalidade das múltiplas e complexas determinações da contínua construção do homem. (KOLYNIAK FILHO, 2002, p. 31-2.).

Assim entendida, a motricidade é constitutiva do ser humano. Sua construção, no desenvolvimento da espécie e das culturas e nos processos individuais, insere-se na totalidade da construção do humano, nos planos filogenético (construção da espécie) e ontogenético (construção do indivíduo).

 

A Construção da Motricidade na Ontogênese

A motricidade constrói-se na relação recíproca entre as heranças biológica e sócio-histórica. Vale dizer que, tanto no plano da espécie como no do indivíduo, a motricidade resulta da interação entre o genoma, as condições e características ambientais e os processos sociais em sua historicidade.

A título de exemplo, consideremos o desenvolvimento da motricidade de um indivíduo em relação a diferentes variáveis. Assim que ocorre a fecundação de um óvulo, constitui-se uma herança biológica específica, ou seja, um genótipo. O genótipo contém em si possibilidades para a construção da motricidade, na medida em que contém uma programação para a construção de estruturas e funções biológicas características da espécie humana – músculos, articulações, sistema nervoso, etc.. A realização dessas possibilidades passa a depender, já durante a gestação, das condições concretas de existência da mãe, num meio sociocultural dado – de alimentação, higiene, condições de saúde, atividades cotidianas de trabalho e lazer, acesso a serviços de saúde, relações interpessoais, etc.

Além das condições da gestação, as condições em que se dá o parto e as ocorrências que o acompanham também influenciam na constituição das características biológicas do bebê. Dependendo das circunstâncias do parto, a criança pode ter melhores ou piores condições para iniciar seu desenvolvimento como organismo independente do da mãe. Por exemplo, crianças que nascem com asfixia ou com outras complicações podem ter sequelas importantes no desenvolvimento, se não forem atendidas imediatamente.

A partir do nascimento, o bebê passa a relacionar-se com o mundo, inicialmente, exclusivamente por meio de movimentos reflexos (movimentos que são controlados por uma ligação neurológica, que se dá na medula espinhal e, portanto, não passa pelo sistema nervoso central), como os de sucção, preensão, tônico-cervical e outros. Esses reflexos vão sendo exercidos em condições específicas, que representam uma mediação sociocultural para a expressão da motilidade biológica. Por exemplo, a criança que exerce seu reflexo de sucção no seio materno tem um estímulo diferente daquela que o exerce em uma mamadeira. Igualmente, a criança que recebe diferentes estímulos para seus reflexos de preensão (segura diferentes brinquedos, assim como partes do corpo de outras pessoas) tem um desenvolvimento diferente do daquela que pouco é estimulada.

Aos poucos, o exercício dos movimentos reflexos, em específicas condições socioculturais, aliado à maturação (mielinização de determinadas vias nervosas), possibilita o surgimento de movimentos com características diferentes dos reflexos – os movimentos involuntários, assim designados por Wallon. Tais movimentos são chamados de involuntários por serem controlados por vias nervosas subcorticais (cerebelo, vias extrapiramidais, formação reticular e outras), e dependem da quantidade e da qualidade dos estímulos sensoriais que a criança recebe. Assim, uma criança que recebe abundância de estímulos táteis (toque de outras pessoas, contato com superfícies e objetos variados, assim como com a água, etc.), visuais (luzes, figuras, formas, rostos, movimentos, cenários...), auditivos (som da voz humana, música, sons da natureza...), além dos estímulos olfativos e gustativos, tende a produzir respostas motoras mais diversificadas e cada vez mais específicas, constituindo um repertório de possibilidades de interação com o ambiente maior do que aquele que pode ser construído por uma criança que recebe pouca variedade de estímulos.

A construção dos movimentos involuntários, junto à continuidade do processo de maturação, que ocorre em interações sociais (família, creche), possibilita o surgimento da função simbólica ou semiótica e, nela e com ela, a formação da linguagem. A linguagem nasce associada ao gesto; uma vez apropriada pela criança, instaura o movimento voluntário, caracterizado pela presença do controle cortical (vias nervosas piramidais), que se soma ao controle subcortical e medular, característico das formas anteriores (movimentos reflexos e involuntários).

A construção do movimento voluntário demonstra que a humanização ocorre em um processo unitário, no qual se formam tanto as "funções psicológicas superiores" (cf. VYGOTSKI, 2001) como as formas especificamente humanas de movimento (que podem ser chamadas de "funções motoras superiores"). Essas funções são fruto de um mesmo processo e determinam-se reciprocamente. Sendo assim, não cabe discutir se as funções motoras superiores surgem antes ou depois das funções psicológicas superiores.

A emergência do movimento voluntário, fruto do desenvolvimento da criança num meio social, abre ao indivíduo novas possibilidades de interação, nas quais e pelas quais sua motricidade vai se tornando mais complexa. No convívio familiar, a criança vai aprendendo formas específicas de movimentos e habilidades consideradas necessárias e desejáveis para a sobrevivência e as relações sociais – como alimentar-se, vestir-se, cuidar da higiene, sentar-se, cumprimentar outras pessoas, realizar tarefas simples da vida diária, etc.. Assim que a criança ingressa na escola, as influências familiares somam-se as normas de convivência, as demandas e as características da instituição escolar, as quais criam novos estímulos e novas exigências para as expressões da motricidade: manter-se sentado por mais tempo, compartilhar espaços coletivos, controlar mais os movimentos, adquirir habilidades motoras mais precisas (desenhar, colar, pintar, modelar, participar de jogos, etc.).

Considerando, ainda, que há outras situações sociais que podem influenciar a formação individual – trabalho, clubes, sindicatos, grupos de escoteiros, instituições militares, instituições religiosas... –, pode-se avaliar a complexidade das determinações sócio-históricas da motricidade.

 

Motridade e Aprendizagem Escolar

A partir da caracterização apresentada acima, entende-se que a construção da motricidade é indissociável de processos de aprendizagem. Por um lado, a passagem da motilidade biológica (atributo de todos os animais e até de alguns vegetais) à motricidade (formação sócio-histórica tipicamente humana) pressupõe a aprendizagem de diversas habilidades motoras (com seus respectivos significados sociais e sentidos pessoais), com ou sem a mediação de um agente cultural (pais, irmãos, amigos, professores, livros, imagens no cinema e na televisão, etc.). Assim sendo, pode-se afirmar que a motricidade é produzida por processos de aprendizagem.

Por outro lado, como exemplificado anteriormente, a gradual construção da motricidade vai abrindo, para o indivíduo, novas possibilidades de interação com o mundo, das quais se originam novas oportunidades de aprendizagem. Em certa medida, a motricidade produz novas possibilidades de aprendizagem.

Entendida como produto e produtora de processos e experiências de aprendizagem, a motricidade representa um aspecto da construção do humano que deve interessar à escola – instituição centrada na promoção sistematizada de processos e experiências de aprendizagem.

A forma pela qual a chamada "pedagogia tradicional" tem considerado a motricidade fundamenta-se numa visão dualista do ser humano, que o divide em duas substâncias distintas: corpo e mente. Por esta razão, a escola tradicional tem separado o trabalho escolar em duas partes distintas: o trabalho em sala de aula, que envolve a mente e, para tal, deve restringir drasticamente a movimentação dos alunos; as atividades motoras na educação física, realizada fora da sala de aula, em espaços mais amplos, destinados ao exercício "físico", que deve educar, disciplinar, colocar sob controle o corpo. Para tanto, há permissão de movimentação mais vigorosa, também para "descarregar" as energias dos alunos, livrá-los (e também os professores) da indesejável tensão, da agitação, deixá-los mais "calmos" para as atividades intelectuais.

O tempo que a escola tradicional dedica à educação física, em comparação ao tempo dedicado às demais disciplinas, expressa e materializa a concepção segundo a qual o corpo é mero suporte da mente e/ou da alma, que representaria(m) a essência do ser humano.

A partir de uma perspectiva que considera o ser humano como totalidade complexa, na qual não é possível dissociar corpo e mente, cognição, afetividade e motricidade, cabe buscar outras formas de situar a motricidade em sua relação com o trabalho pedagógico e, por conseguinte, com o currículo escolar. Uma nova configuração da relação entre motricidade e aprendizagem, na escola, deve pautar-se em duas vertentes: (a) a contribuição da instituição escolar na construção da motricidade; e (b) as implicações da construção da motricidade para as experiências e os processos de aprendizagem escolar em geral – vale dizer, para a aprendizagem em todos os ambientes e conteúdos que a escola oferece aos alunos.

A primeira vertente mencionada refere-se ao modo pelo qual a escola, por meio de seu projeto e de seu fazer pedagógicos, oportuniza experiências de aprendizagem que possibilitem que os alunos:

• Dominem a própria motricidade, situando seu corpo no espaço-tempo, no sentido de que sejam capazes de articular seus movimentos para atingirem seus objetivos, com eficiência e economia de esforço; isso significa propiciar aos alunos a realização de uma grande variedade de movimentos (andar, correr, saltar, jogar capoeira, futebol, basquetebol, dançar, etc.), que resultem também em uma melhoria de suas capacidades gerais de movimento (força, resistência, flexibilidade, coordenação motora, etc.).

• Apropriem-se de um conjunto de conceitos que lhes permitam uma compreensão abrangente e crítica da motricidade humana em geral e da sua motricidade individual; tais conceitos incluem aspectos biológicos (fisiologia, cinesiologia, anatomia, etc.) e psicossociais (elementos culturais, influências político-econômicas nas manifestações motrícias) da motricidade.

• Discutam as relações humanas pelas óticas ética e estética, tendo como referência a interação concreta entre os homens e destes com a natureza, interação esta que envolve o corpo e a motricidade; nesta perspectiva, por exemplo, todas as atitudes dos alunos em jogos (colaboração, solidariedade, violência, desrespeito) devem ser discutidas pelo seu sentido ético, assim como se deve chamar a atenção para a beleza dos movimentos individuais e grupais, não só para os resultados.

• Construam valores como respeito mútuo, solidariedade, aceitação das diferenças e busca de desenvolvimento coletivo.

O componente curricular que centraliza tal abordagem, em nosso sistema escolar, é a educação física. Entretanto, o tempo e as condições destinadas à educação física, em geral, não são suficientes para viabilizar tal projeto pedagógico. Para tanto, é fundamental que o trabalho de outros componentes curriculares – ciências naturais, ciências humanas, artes, matemática, filosofia – possa agregar-se ao trabalho do professor de educação física, no que se refere a um autêntico trabalho de promoção da motricidade. Isso, contudo, só é possível a partir de um projeto pedagógico que contemple, de fato, a motricidade como dimensão constitutiva do ser humano e da própria educação. Tal condição remete a segunda vertente anunciada acima, pois a valorização da motricidade depende, também, da compreensão de sua relação com os processos de aprendizagem em geral.

Como a construção da motricidade influi sobre os processos de aprendizagem em geral? A resposta a esta questão é importante para uma efetiva inclusão da motricidade na pauta de discussões e definições de um projeto pedagógico.

Em face do espaço disponível para este texto, cabe apresentar, de forma muito sucinta, alguns aportes teóricos que subsidiam a compreensão da importância da construção da motricidade e da sua repercussão sobre os mais diversos processos de aprendizagem.

A - Segundo a abordagem do desenvolvimento proposta por Henri Wallon, os aspectos afetivo, motor e cognitivo são indissociáveis, no processo de construção individual. Cabe lembrar que Wallon (cf. NADEL-BRUFERT & WEREBE, 1986) sublinha a importância da motricidade no desenvolvimento humano, situando-a na origem do pensamento.

B - Diferentes abordagens no campo da psicomotricidade, dentre as quais se podem inserir alguns dos trabalhos de Wallon, evidenciam a indissociabilidade entre motricidade e processos cognitivos. Como elaboração mais recente, temos os trabalhos de Vitor da Fonseca (1995, 1998), que estabelecem relações entre o desenvolvimento dos chamados fatores psicomotores e as funções do cérebro, tal como sistematizadas por A. R. Luria (1981).

Segundo o modelo de Luria, a primeira unidade funcional, que compreende a medula espinhal (especialmente a formação reticulada), o tronco cerebral, o tálamo, o hipotálamo e o cerebelo, responde pela regulação do tônus muscular e dos estados de atenção e alerta, sendo o seu funcionamento essencial para toda a troca de informação entre os receptores nervosos, o sistema nervoso central e os músculos. Em outras palavras, é a primeira unidade funcional que regula os processos de aferência (movimento dos estímulos nervosos em direção ao sistema nervoso central) e eferência (movimento dos estímulos nervosos que partem do sistema nervoso central). Fonseca (1995) associa as estruturas da primeira unidade funcional à regulação dos seguintes fatores psicomotores:

Tonicidade, definida como estado de tensão (contração) básica dos músculos, que possibilita o acionamento de um músculo ou grupo muscular.

Equilibração, entendida como capacidade de manutenção da postura bípede, tanto em imobilidade quanto em deslocamento.

A segunda unidade funcional, que inclui as áreas corticais dos lobos occipital, temporal e parietal, responde pela recepção, análise e armazenamento de informações. Assim, todas as informações provenientes dos sentidos voltados para o exterior (visão, audição, tato, olfato e gustação) e para o interior (propriocepção, que inclui informação proveniente dos músculos, articulações e órgãos) são passíveis de tratamento e armazenamento (como memória) na segunda unidade funcional. O tratamento da informação inclui a associação entre diversas informações, provenientes de diferentes campos perceptuais (visão, audição, cinestesia, etc.).

Esta unidade funcional, segundo Fonseca (1995), tem suas estruturas relacionadas a três fatores psicomotores:

Lateralização, que é o processo de integração entre ambos os lados do corpo, tanto no que diz respeito às sensações provenientes dos telerreceptores (órgãos sensoriais) e dos proprioceptores (receptores nervosos localizados no interior do corpo), como no que se refere à emissão de respostas motoras.

Noção do corpo, que representa a síntese psíquica de um amplo conjunto de informações provenientes do próprio corpo (tônus muscular, sensações de movimento, reflexos labirínticos, sensações de dor, calor, prazer, etc.) e do contato com o meio (impressões táteis e visuais), integradas em imagens no córtex do lobo parietal. A noção de corpo integra, ainda, afetos e conceitos, sendo influenciada pela linguagem e pelas interações sociais.

Estruturação espaço-temporal, que diz respeito à localização do corpo no espaço-tempo, possibilitando a relação do sujeito com o meio físico, em movimentos de locomoção e manipulação, que implicam ajustes da posição, da trajetória e da velocidade do corpo, no seu todo ou em partes.

A terceira unidade funcional envolve o córtex do lobo frontal. Esta unidade comanda a programação, a regulação e a verificação da atividade, ou seja, é a unidade responsável pela atividade intencional, deliberada, que envolve a movimentação dirigida para finalidades específicas, com objetivos de curto, médio e longo prazos. Para Fonseca (1995), as estruturas desta unidade funcional são utilizadas também para as seguintes funções:

Praxia global, definida como capacidade de realizar movimentos intencionais com finalidades preestabelecidas e definidas, envolvendo o corpo como um todo ou vários segmentos em ações articuladas. Implica a consciência de objetivos a atingir, portanto, envolve múltiplas funções cerebrais: o planejamento das ações a realizar, a memória que fornece os dados sobre os objetivos e as condições (internas e externas) do corpo, a tomada de informações sobre o estado atual do ambiente e do corpo, a imaginação de soluções para atingir os objetivos, etc., assim como a avaliação dos resultados das ações realizadas.

Praxia fina, que é a capacidade de realizar movimentos intencionais e controlados com as mãos e com a língua – estruturas com inervação motora altamente especializada e complexa.

Entendendo as relações caracterizadas por Fonseca (1995), pode-se inferir que, ao aprender e exercer uma variedade de habilidades motoras, o aluno exercita os fatores psicomotores elencados e, correlativamente, as estruturas funcionais que servem também a funções mais gerais (atenção, concentração, memorização, formação de conceitos, raciocínio, antecipação e planejamento, imaginação, etc.).

C – O conhecimento do desenvolvimento e do funcionamento do sistema nervoso central, abarcado pelas neurociências, tem sido potencializado pelos avanços tecnológicos que permitem estudar os processos neurológicos in vivo. Esse avanço tem evidenciado a interdependência funcional entre diferentes estruturas do cérebro e de outras estruturas encefálicas. Tal interdependência reflete-se na determinação recíproca entre funções psíquicas consideradas distintas, como, por exemplo, memória e afetividade.

Um exemplo desta interdependência é a relação entre o hipocampo – estrutura considerada importante para os processos de memorização de informações – e outros componentes do chamado sistema límbico – conjunto de estruturas que estão associadas às experiências afetivo-emocionais (giro do cíngulo, fórnice, amígdala...). Um funcionamento adequado do hipocampo (e, portanto, do processo de memorização de novas informações) depende de um estado ótimo de ativação do sistema límbico como um todo. Em outras palavras, quando o sistema límbico está ativo, mas não hiperativado (isso acontece quando o sujeito experimenta sentimentos e emoções intensas, como raiva, medo, ansiedade, euforia), o hipocampo tem as melhores condições de processar as informações a serem memorizadas. No caso de uma subativação do sistema límbico (estado de apatia), o hipocampo fica menos ativo e processa as informações de forma mais lenta. A hiperativação do sistema límbico, por sua vez, gera uma sobrecarga de estímulos que tende a desorganizar o fluxo de informações no hipocampo, confundindo o processo de memorização.

A partir das referências teóricas pontuadas acima, podemos apontar elementos que sugerem uma influência geral da construção da motricidade nos processos de aprendizagem escolar:

Em primeiro lugar, a construção e o exercício de habilidades motoras implicam a formação de múltiplas sinapses, tanto nas áreas pré-motora e motora suplementar do córtex frontal, como nas conexões destas áreas com outras (áreas sensoriais terciárias dos lobos occipital, parietal e temporal, hipotálamo, etc.). Tais sinapses podem ser utilizadas em outras funções gerais, como planejamento, imaginação, associação de informações, memória.

Em segundo lugar, o exercício de atividades motoras como o jogo, os diferentes métodos de exercitação (flexibilidade, agilidade, velocidade, etc.), o relaxamento, a massagem, a dança, as atividades rítmicas em geral, pode contribuir para um melhor equilíbrio afetivo-emocional, na medida em que propicia experiências prazerosas aos alunos, eleva sua auto-estima e favorece a sociabilidade. Tais benefícios, entretanto, dependem de uma adequada orientação das atividades motoras – competência fundamental para os professores de educação física e necessária, também, para outros professores que venham a atuar na construção da motricidade dos alunos.

Em terceiro lugar, a prática de atividades motoras promove uma ativação cortical, elevando o nível geral de atividade cerebral. Isto ocorre tanto pela promoção de uma melhor irrigação sanguínea geral, quanto pelo acionamento das múltiplas estruturas corticais e subcorticais que atuam no planejamento, execução e controle das atividades motoras. Dessa forma, o sistema nervoso, como um todo, fica mais preparado para desempenhar todas as funções psicológicas exigidas no trabalho escolar.

 

Conclusão: Implicações Pedagógicas

O reconhecimento das relações entre motricidade e aprendizagem, apontadas anteriormente, aponta para a necessidade de considerar, na organização do trabalho escolar, aspectos como os que seguem:

1. Cumpre à escola discutir a importância da construção da motricidade, na elaboração e contínua revisão de seu projeto político-pedagógico.

2. No âmbito do projeto pedagógico é fundamental dimensionar claramente o papel da educação física como componente curricular, articulado a outros componentes.

3. É necessário que todos os professores possam incluir, em suas estratégias de ensino, elementos que possibilitem aos alunos exercer suas funções psicológicas de forma integrada à motricidade, evitando a rígida segmentação entre atividades mentais e atividades motoras. Em outras palavras, a movimentação dos alunos deve estar presente em diversos momentos de construção do conhecimento na escola, não apenas nas aulas de educação física e artes.

4. A contribuição do processo de construção da motricidade para os processos de aprendizagem dos diferentes componentes curriculares não se dá de forma automática. Não basta, por exemplo, que as estruturas cerebrais, que possibilitam o pensamento matemático, estejam devidamente ativadas pela prática de atividades motoras, para que o aluno aprenda matemática. Isto depende da mediação pedagógica especializada para a aprendizagem da matemática. Portanto, a realização do potencial pedagógico das implicações recíprocas entre motricidade e aprendizagem depende de articulação entre todos os professores, envolvendo todos os componentes curriculares.

5. Na abordagem das dificuldades de aprendizagem, em busca de sua superação, na perspectiva da educação inclusiva, é fundamental a consideração das relações entre motricidade e aprendizagem. Esta referência conceitual pode inspirar enfoques metodológicos que favoreçam a superação de dificuldades como a dislexia e a discalculia, ao aportar à utilização de atividades motoras no processo de ensino da linguagem e da matemática.

6. É indispensável que a escola construa e organize seus recursos materiais – espaço físico, equipamento e material pedagógico – de modo a favorecer o exercício amplo e sistemático da motricidade em articulação com todos os componentes curriculares.

 

Referências

FONSECA, Vitor da. Manual de observação psicomotora: significação psiconeurológica dos fatores psicomotores. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.         [ Links ]

__________. Psicomotricidade: filogênese, ontogênese e retrogênese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.         [ Links ]

KOLYNIAK FILHO, Carol. Contribuições para o ensino em motricidade humana. In: Discorpo, revista do Departamento de Educação Física e Esportes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2002, n°13, p. 27-39.         [ Links ]

LURIA, A. R. Fundamentos de neuropsicologia. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: EDUSP, 1981.         [ Links ]

SÉRGIO, Manuel. Epistemologia da motricidade humana. Lisboa: Edições FMH, 1996.         [ Links ]

NADEL-BRULFERT, Jacqueline; WEREBE, Maria J. G. Henri Wallon. São Paulo: Ática, 1986.         [ Links ]

VYGOTSKI, L.S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.         [ Links ]

 

 

*Doutor em Psicologia da Educação - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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