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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.20 no.20 São Paulo  2012

 

Reflexões sobre psicopedagogia em saúde a partir de um caso

 

 

Sonia Maria Colli de Souza

Universidade Paulista

 

 


RESUMO

Este artigo pretende trazer algumas reflexões pessoais sobre o Atendimento Psicopedagógico em Ambiente Hospitalar, especificamente neste caso, em ambulatório de gastropediatria, centrando tais reflexões na práxis psicopedagógica, valorizando a transcendência da subjetividade de todos os seus agentes, nesse tratamento. Procura mostrar através do relato de um caso a importância da adesão do sujeito aos seus tratamentos de Saúde como forma de autoria responsável no sucesso da busca pela própria saúde. Procura evidenciar a relação das modalidades de aprendizagem escolar com a modalidade de aprendizagem da própria vida.

Palavras-chave: Psicopedagogia em saúde, Mitos e crenças, Linguagem simbólica, Imagem corporal, Autoestima, Autonomia, Fundamentos teóricos.


 

 

Introdução

O caso abaixo, "Paulo, o menino que assustou sua mãe com sua autonomia" servirá de tela sobre a qual orientei minhas reflexões pessoais sobre o atendimento Psicopedagógico em contexto de Saúde. Como psicopedagoga clínica, atuando desde 1973, aceitei em 1996 o convite de Cristina Surani Mora Capobianco, psicóloga responsável pelo setor de psicoterapia do Ambulatório de Gastropediatria da UNIFESP, para fazer algumas avaliações Psicopedagógicas em crianças atendidas nesse ambulatório, para melhor compreensão de suas dificuldades escolares. Essas crianças eram atendidas pela clínica médica, nutricional e em psicoterapia. A partir desse convite bastante desafiador, uma vez que meus conhecimentos em psicopedagogia na época, se limitavam às questões da aprendizagem escolar com suas imbricações afetivas, familiares e sociais, de crianças e jovens com dificuldades e/ou distúrbios de aprendizagem escolar, iniciei minha trajetória em Saúde e passei a desenvolver atendimentos Psicopedagógicos à crianças e adolescentes portadores de problemas gastrointestinais e/ou outras questões de saúde, com dificuldades escolares consequentes e/ou concorrentes às questões de saúde.

Assim conheci Paulo, protagonista deste artigo, que me permitirá, a partir de um recorte de sua história, tecer meus pareceres sobre características do atendimento Psicopedagógico em Saúde: as crenças, mitos, símbolos envolvidos e um referencial teórico adotado.

 

Relato do caso: "Paulo, o menino que assustou sua mãe com sua autonomia"

Paulo, de 9 anos, era atendido no ambulatório de gastropediatria da UNIFESP por médicos e nutricionistas devido à uma constipação retentiva. Concomitantemente em psicoterapia de grupo em abordagem psicossomática como todos os pacientes desse ambulatório. Foi encaminhado para o atendimento psicopedagógico pelo setor de Psicologia por apresentar dificuldades de aprendizagem e baixo rendimento escolar. Cursava a terceira série do ensino fundamental de uma escola municipal e era descrito por sua professora como aluno educado, calado, de raciocínio lento, com dificuldade para resolver qualquer tipo de situação problema e dificuldades em linguagem escrita especialmente para produção e interpretação de textos. Paulo não apresentava dificuldade para copiar da lousa e tinha boa letra. A professora o classificara como bom copista. Paulo era o caçula de seis filhos do único casamento de dona Tereza, que engravidara de Paulo aos 46 anos, sem ter sido planejado, quando dona Tereza pensava estar na menopausa. Na ocasião do nascimento de Paulo, Dona Tereza tinha uma filha com 26 anos, casada, que tinha dois filhos, um com 4 anos e outro com 2 anos e estava grávida de quatro meses; um filho de 24 também casado pai de um menino de 2 anos; outro filho com 23 anos casado pai de uma menina de 1 ano; e um casal de filhos solteiros com 22 e 21 anos que ainda moravam com os pais. O pai de Paulo na ocasião de sua gestação estava com 52 anos e ficou muito "cheio de si, pois ainda fazia filho" (sic), mas dona Tereza ficou muito revoltada, pois se sentia velha para estar de barriga, afinal tinha netos e sua filha mais velha também estava grávida. Sentia vergonha dos filhos, especialmente das filhas e não se mostrava aos vizinhos. Dona Tereza relatou sem constrangimento que nunca aceitou essa gravidez, que provocou aborto, mas não deu "certo". Dona Tereza não permitia que Paulo a chamasse por mãe e sim por "vó". Ao pai Paulo chamava de pai, e este o mimava muito, segundo dona Tereza ele "tudo permitia, não era sério com o guri, brincava com ele e nunca chamava sua atenção". Paulo nasceu de parto normal, a termo, com bom peso, seu DNPM foi normal, e nada houve de relevante no desenvolvimento de Paulo (sic), que foi amamentado pela irmã que, na ocasião, tinha um bebê de dois meses. Dona Tereza, que amamentou os outros filhos, secou seu leite porque tinha vergonha de amamentar Paulo. Paulo sempre apresentou boa saúde, sua constipação "parece que sempre existiu" segundo dona Tereza, chegando há ficar vários dias sem evacuar e sangrando ao expelir as primeiras fezes após dias de retenção. Quanto às primeiras aprendizagens, a mãe de Paulo relatou que nunca viu nada de diferente no filho, apenas que era uma criança muito parada, que pouco chorava, também pouco ria ou brincava. A mãe não se lembrava de quando Paulo começou a sorrir, falar e a andar... "achava que havia sido igual a outras crianças", mas não disse igual aos seus outros filhos.

Certa manhã, após o atendimento psicopedagógico de Paulo, encaminhei-o até sua mãe na sala de espera. Era uma sala bastante ampla onde ficavam aguardando por consultas médicas, psicológicas e nutricionais, várias crianças com seus acompanhantes. Vendo-nos, dona Tereza levantou-se veio ao nosso encontro e perguntou, num tom bastante incisivo, como estava Paulo no tratamento e quase sem escutar a minha resposta, que Paulo se desenvolvia bem, acrescentou "ele deu para mentir agora, isso não é melhora, ele está é aprendendo a mentir"... Paulo dizia que não mentia enquanto eu convidava dona Tereza para entrarmos na sala de atendimentos, pois a situação estava constrangedora, mas dona Tereza de súbito levantou a camiseta de Paulo e apontando para seu umbigo, pedia, quase ordenava, que eu visse como ele mentia (?). A atitude de dona Tereza despertou a curiosidade das crianças e mães que se encontravam na sala de espera, dirigindo seus olhares a Paulo que se mantinha impassível com sua camiseta erguida deixando seu corpo à mostra para que víssemos em seu umbigo, que ele mentia.

Dona Tereza dizia que Paulo não a deixava mais entrar no banheiro para verificar quando ele evacuava ou não. No inicio do atendimento fui informada pelo próprio Paulo que sua mãe entrava no banheiro após algum tempo em que ele lá permanecia (tempo determinado por sua mãe), para ver se havia evacuado, pois ele, Paulo não sabia informar (?). Sua mãe então decidia se ele podia ou não se levantar do vaso. "Agora, depois das aulas com a senhora, ele está mais esperto". Ao fazer essa afirmação dona Tereza usava um tom pejorativo, "quando vai ao banheiro dá logo a descarga dizendo que já defecou, mas não adianta eu sei que ele mente, pois seu umbigo sujo mostra que o intestino está carregado."

Mansamente, mas com segurança, Paulo afirmava que não mentia, pois estava de verdade conseguindo evacuar, mas admitia estar com o umbigo sujo e ficava em dúvida com a afirmação da mãe. Será que ela sabia mesmo o que falava? "Vó, não sei por que meu umbigo está sujo... eu sei que faço cocô". Na fala de Paulo parecia estar contida a dúvida sobre o conhecimento da sua mãe-vó, mas não havia mais dúvida sobre o próprio conhecimento, sobre o próprio organismo, mas ainda havia dúvida sobre a percepção de seu corpo, "eu não estou mentindo, eu faço cocô, mas a vó diz que meu umbigo está sujo"! A exclamação é da autora do texto pela emoção que lhe causou a autodefesa de Paulo, ele continuava na fala mansa, estava mais seguro de si.

Paulo foi atendido por mais um mês mais ou menos, depois desse período dona Tereza abandonou os tratamentos no ambulatório porque Paulo passou a morar com sua irmã mais velha, em Curitiba. Nosso último contato com dona Tereza foi por telefone e esta disse que havia feito com atraso o que sempre deveria ter sido feito, dar Paulo à filha que tinha idade para ser mãe de menino novo. Dona Tereza não aceitou ser cuidada em psicoterapia e perdeu-se o contato com a família.

 

O Tratamento Psicopedagógico desenvolvido com Paulo.

O tratamento psicopedagógico de Paulo foi breve. Foi atendido do mês de agosto a dezembro do mesmo ano, em sessões individuais semanais de cinquenta minutos. O projeto de intervenção contemplou a queixa escolar, mas o foco foram os aspectos de saúde de Paulo, sua constipação. Foram mostrados e explicados a Paulo todos os seus exames, RX, ultrassons, as necessidades de seu organismo para o bom funcionamento e de como ele poderia colaborar para que seu tratamento fosse bem sucedido. Paulo conheceu melhor seu organismo, suas particularidades de funcionamento, a constipação que não fazia parte de sua estrutura física, suas necessidades de higiene alimentar. Conheceu melhor seu corpo, suas falas, desenvolveu postura de questionador e foi seu próprio interlocutor. Os instrumentos utilizados foram relativos a diferentes experiências de linguagens, raciocínio e aspectos percepto-motores, apoiadas em variadas atividades expressivas. A todo o momento procurou-se estabelecer uma relação de ajuda a Paulo e sua família, acolhendo-os e procurando entender o sentido que cada um atribuía aos fatos que se imbricavam na história de Paulo. O sentido da vida é absolutamente subjetivo, não há um sentido único, cada um lhe dá o seu sentido, mesmo que não o explicite ou mesmo que nem o conheça, ele é revelado em seus sentimentos e ações.

Nos tratamentos psicopedagógicos de forma geral, o profissional é um mediador na busca e na revelação das possibilidades de aprender, procurando responder sempre ao conteúdo e aos sentimentos. Responder ao conteúdo em Psicopedagogia é organizar e sintetizar os elementos da aprendizagem, é favorecer a expressão ou refazer a expressão resumindo os elementos relevantes do conhecimento. Responder aos sentimentos é buscar com o sujeito aprendente e/ou com todos os aprendentes envolvidos no fato recortado para e da aprendizagem, o sentido atribuído àquela vivencia, ou seja, favorecer a percepção e expressão dos sentimentos. Os sentimentos negados à consciência distorcem a percepção das experiências e dificultam o desenvolvimento harmonioso do ser.

 

Minhas reflexões

O caso de Paulo é o disparador que trago para refletir sobre a transcendência da subjetividade no tratamento psicopedagógico, dos fatores sócio históricos imbricados nos conhecimentos, da ideia de autonomia e autoria de conhecimento, do corpo, lugar de aprisionamentos e de aprendizagens e da necessidade de uma práxis apoiada em conhecimentos teóricos que sustentem esse fazer.

O que havia na fala de dona Tereza sobre "estar velha para ficar de barriga", "ter vergonha dos filhos e vizinhos por estar grávida"? Parece que deixar explícito que tinha vida sexual aos 46 anos, era vergonhoso. Negar o direito à sexualidade é um mito cultural? Um valor moral? E em relação ao seu conhecimento ou crença sobre "umbigo sujo"? Por que dona Tereza, que se negou ser mãe de Paulo, procura ligar-se a ele pelo fantasma do cordão umbilical? O que representava nesse momento para dona Tereza o umbigo de seu filho... Quanto há de simbólico nessa ação. Seria um resgate ainda necessário à dona Tereza? E Paulo, nesse recorte, porque se acomodou expondo seu corpo aos olhares curiosos? Como Paulo lidava com seu corpo que já era mais conhecido e controlado por ele e desacreditado por sua mãe? Como Paulo aprendia sobre si? Como eu ouvi a fala daquela mãe que mostrava um umbigo como uma janela do corpo, através da qual ela podia ver uma alma mentirosa de seu filho (neto)? O que representava nesse momento para dona Tereza, o umbigo de Paulo que um dia os ligara, mas fora negado por ela, ao só permitir-se ser avó de Paulo? Como olhar a semelhança de funcionamentos cognitivo e digestivo de Paulo? Nas duas dimensões Paulo buscava, assimilava, mas pouco transformava, havia dificuldade para devolver o assimilado... Paulo era aluno copista, era sobreadaptado às normas da classe e da mãe, não participando de exposições às aulas, não se contrapondo às determinações da mãe, tendo dificuldade para interpretar textos (interpretar é mais que compreender, é atribuir valores, significados...) escolares como também os textos da sua vida.

O caso de Paulo, "o menino que assustou sua mãe com sua autonomia", serviu de "flash" para reflexões sobre a intervenção psicopedagógica em Saúde, cujas queixas de dificuldades de aprendizagem estão sempre antecedidas de queixas ou motivos de saúde. O corpo do sujeito é um corpo que tem sofrimentos em seu organismo, é um lugar de doenças, alvo de tratamentos. O corpo nos atendimentos psicopedagógicos em Saúde é sem dúvida tema nas intervenções procurando-se promover o seu conhecimento, sua estrutura física e subjetiva, seu desenvolvimento, suas peculiaridades, a partir de um corpo não só vivido, mas sofrido, percebido e informado, permitindo a reconstrução de sua representação. Um corpo como totalidade sistêmica.

A intervenção Psicopedagógica em Saúde busca promover o autoconhecimento, a autonomia de cada sujeito para sua aprendizagem e desenvolvimento inclusive de saúde, investigando as condições individuais numa dimensão particularizada de possibilidades e importância. Viver e aprender sadiamente depende de um substrato orgânico e também das relações individuais, sociais e da aprendizagem sobre o ambiente num processo de interação.

O projeto do tratamento psicopedagógico de Paulo partiu da demanda, dificuldades escolares, mas considerado o sujeito social e sua saúde. O referencial fenomenológico existencial tem me permitido adentrar no mundo de crianças doentes e de suas famílias, possibilitando-me compreender as experiências vividas por elas, com suas doenças, tratamentos muitas vezes invasivos na busca de saúde, suas vontades explícitas e encobertas, até ainda não reconhecidas. Cada criança, ser único na sua história, dá o sentido a cada intervenção que terá seu curso próprio. A ótica fenomenológica permite maior liberdade prática em relação a outros posicionamentos teóricos, privilegiando sempre o fenômeno, ou seja, a pessoa e os fatos como se apresentam, seja a criança sujeito da intervenção como seus pais ou responsáveis.

A construção das intervenções Psicopedagógicas em Saúde acontece paulatinamente, como toda a trajetória da Psicopedagogia no Brasil. É um novo fazer, talvez o mais novo entre nós, sua identidade está alicerçada na identidade dos profissionais e numa identidade coletiva que envolve outras classes de profissionais como médicos, nutricionistas, enfermeiros, que lhe atribuem credibilidade ou não. No meu percurso em Saúde vi e vivi as intervenções psicopedagógicas sofrerem interrupções dependentes do momento político da instituição e do credo de seus gestores. A construção da Psicopedagogia em Saúde é tão delicada e engendrada quanto foram e até ainda são outros fazes como na escola, a empresa e até na clínica. Um dos fatores complicadores está na formação e até informação do profissional da Psicopedagogia. A pluralidade de cursos de formação com grades disciplinares de diferentes ordens e diferentes enfoques nem sempre contempla o necessário referencial teórico que embasa a práxis psicopedagógica, tornando cada fazer uma especialidade dentro da especialização psicopedagógica.

O profissional da psicopedagogia em saúde, como todos os que atuam em outras áreas da Psicopedagogia, tem que se submeter a trabalho terapêutico pessoal. Porém, reforço tal necessidade, pois em Saúde estreitamos nossos contatos com a doença, com a dor, e com a morte. A questão da busca pelo desenvolvimento das próprias possibilidades de aprender, da transformação de estilo de conhecimento, objeto de todo tratamento psicopedagógico, em Saúde tange a busca de desenvolver as próprias fortalezas, na capacidade resiliente de cada ser, do aprender sobre si e de buscar através da aprendizagem e autoconhecimento as suas melhores formas de bem viver. O trabalho terapêutico pessoal favorece que se resignifique olhares, valores e principalmente metas nesta existência. O homem, ser único de sua vida e de sua aprendizagem, pode planejar e buscar sua existência, até por reconhecer sua finitude.

 

Agradecimentos

Sou inicialmente grata ao Paulo, que me permitiu ainda que por curto tempo, ter contribuído para suas autodescobertas e encorajamento para que pudesse falar sobre si com autonomia e autoridade.

Sou grata à dona Tereza que corajosamente manifestou suas crenças para eu pudesse melhor compreendê-la e acolhê-la em seus atos sofridos, ainda que não tenha se permitido receber toda ajuda merecida.

Sou grata à Eloisa Fagali que me deu a oportunidade de compartilhar meus conhecimentos, construídos com crença e entusiasmo sobre a Psicopedagogia em Saúde.

Meu respeito a todos.