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Construção psicopedagógica
versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474
Constr. psicopedag. vol.27 no.28 São Paulo 2019
ARTIGO DE REVISÃO
A importância do jogo e da brincadeira na prática pedagógica
The importance of play in pedagogical practice
Larissy Alves CotonhotoI, 1; Claudia Broetto RossettiII, 2; Daniela Dadalto Ambrozine MissawaIII, 3
IInstituto Federal do Espírito Santo
IIUniversidade Federal do Espírito Santo
IIIUniversidade Federal do Espírito Santo
RESUMO
Os jogos e as brincadeiras vêm ganhando espaço e importância em todas as abordagens referentes à infância. Dessa forma, a proposta deste artigo de revisão é discutir as principais perspectivas teóricas que abordam o uso de jogos na escola, bem como a sua importância para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional da criança a partir de uma abordagem interacionista. Ensejamos estimular o profissional docente a refletir e compreender o jogo como elemento fundamental do trabalho pedagógico, sobretudo de alunos com manifestações de dificuldades de aprendizagem e demonstrar que o emprego de atividades lúdicas pode ajudar no desenvolvimento de várias capacidades, além de auxiliar na exploração e entendimento sobre a realidade, a cultura, as regras e os papéis sociais.
Palavras-chave: Jogo; Brincadeira; Infância; Prática Pedagógica; Aprendizagem.
ABSTRACT
Games and plays are gaining space and importance in all approaches to childhood. Thus, the purpose of this review article is to discuss the main theoretical perspectives that address the use of games in school, as well as its importance for the cognitive, social and emotional development of the child from an interactionist approach. We aim to stimulate the teaching profession to reflect and understand the game as a fundamental element of the pedagogical work, especially of students with manifestations of learning difficulties and to demonstrate that the use of play activities can help in the development of several capacities, besides helping in the exploration and understanding about reality, culture, rules and social roles.
Keywords: Game; Play; Childhood; Pedagogical Practice; Learning.
Introdução
O objetivo do presente artigo de revisão é discutir as principais perspectivas teóricas que abordam o uso de jogos e brincadeiras na escola, bem como a sua importância para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional da criança a partir de uma abordagem interacionista. A discussão torna-se pertinente em um momento que o papel da escola e da educação sofre questionamento e necessita de transformações.
Os jogos e as brincadeiras vêm ganhando espaço e importância em todas as abordagens referentes à infância, sobretudo como recurso para o desenvolvimento e a aprendizagem de habilidades cognitivas, sociais, afetivas e motoras. São considerados entre pedagogos, professores e psicólogos como importantes instrumentos de motivação para o desenvolvimento da linguagem oral, escrita, raciocínio lógico-matemático, entre outras capacidades.
As brincadeiras e jogos têm sido alvo de investigações científicas em áreas como a filosofia, a educação, a psicologia, a sociologia e mais recentemente, as engenharias. Obras como as de Piaget, Bruner, Vygotsky, Wallon e Elkonin apresentam discussões sobre os diversos elementos no jogo e na brincadeira que influenciam o desenvolvimento humano de maneira ampla e, em especial, o infantil.
As proposições sobre a importância do lúdico têm início na Grécia, com filósofos como Platão, que falava da formação moral do cidadão a partir da infância por meio de brincadeiras (CAMBI, 2001). Desde então, filósofos, psicólogos e educadores como Santo Agostinho, Pestallozi, Froebel, Piaget e Vygotsky empreenderam esforços teóricos e práticos para valorizar o papel dos jogos e brincadeiras no desenvolvimento humano, sobretudo na infância.
Na atualidade, observamos que uma diversidade de atividades lúdicas permeia a vida de nossas crianças, em casa e na escola. Diferente de décadas atrás, as crianças hoje possuem acesso aos mais diferentes tipos de brincadeiras e jogos, desde os tradicionais até os mais sofisticados tecnologicamente.
Alguns filósofos como São Tomás de Aquino (1225-1274) e Schiller (1759-1805) entendem o jogo como uma maneira de introduzir o homem na vida em sociedade. Por meio de atividades lúdicas, o homem desenvolve capacidades sociais, morais e estéticas necessárias à sua inserção social (KISHIMOTO, 1993).
Do ponto de vista psicológico, em específico a corrente psicanalítica, considera o brincar como uma forma de expressão da criança, que consegue, ao brincar, manifestar questões inconscientes, que ainda não podem ser expressas em palavras. Para Freud (1920/1996), a criança brinca ativamente com aquilo que ela vive passivamente. Por isso, a interpretação do brincar da criança é importante, podendo revelar os aspectos do desenvolvimento afetivo-emocional típicos da infância. Para Winnicot (1975), o jogo e a brincadeira são atos livres e criativos que emanam do sujeito e não da sociedade, por meio de regras estabelecidas ou de uma organização. Para o autor, na brincadeira o indivíduo encontra um lugar para operar no mundo. Esse espaço potencial é o espaço do imaginário, do jogo, o qual é preenchido, num primeiro momento, por um objeto transicional, seja ele outro sujeito ou um objeto, ou brinquedo.
Para a corrente psicológica interacionista-construtivista, sobretudo para autores como Piaget (1978) e Vygotsky (1988), o brincar pode ser definido como uma maneira de interpretar e assimilar o mundo. As crianças, durante os jogos e brincadeiras, estabelecem relações e representações, o que desencadeia o desenvolvimento de capacidades sociais, cognitivas e afetivas na medida em que elas "extrapolam" seu mundo habitual. Ao brincarem, as crianças planejam, criam hipóteses, desenvolvem a imaginação, constroem relações, tomam decisões e elaboram regras de convivência.
Para Piaget (1978), quando a criança brinca, ela assimila o mundo da sua maneira, não havendo compromisso com a realidade. A interação com o objeto independe da natureza deste, sua função advém do significado e sentido atribuído pela criança através do simbolismo. Inicialmente, o jogo se apresenta de maneira solitária, evoluindo para o estágio da representação de papéis, até chegar aos jogos de regras. O brinquedo e o ato de brincar, nesta perspectiva, constituem-se em vínculos importantes na construção do conhecimento. Piaget ainda sugere que a brincadeira livre, mesmo sendo não estruturada, possui regras que conduzem o comportamento das crianças em dados momentos.
Para a perspectiva pedagógica, o jogo ganhou um significado mais prático, metodológico. Ainda que carregue em si uma carga de prazer e ociosidade (DE MASI, 2000), o jogo surge na sociedade burguesa e industrial com a finalidade de introduzir as crianças no mundo capitalista, do conhecimento, a partir da realidade das mesmas. Ou seja, atividades e situações lúdicas típicas da infância são acolhidas e reestruturadas pela escola para facilitar a introdução de novos conhecimentos às crianças.
Kishimoto (1993) destaca que foi a partir do início do século XX que algumas instituições de educação infantil desenvolveram o jogo a partir de teorias pedagógicas influenciadas por Frobel, Claparède, Dewey, Decroly e Montessori. Com o passar do tempo foi se tornando mais visível a possibilidade de utilizar os jogos e brinquedos para desenvolver a aprendizagem de forma lúdica.
O alemão Frederico Froebel (1782-1852), criador do Kindergarten (Jardim da Infância) foi o primeiro pedagogo a sistematizar uma proposta pedagógica para a educação infantil, concebendo o jogo e os brinquedos como elementos centrais da sua teoria educativa. Assim como Froebel, Edouard Claparède (1873-1940) reconheceu o jogo como um recurso pedagógico privilegiado. Maria Montessori também foi uma das educadoras que atribuiu um valor pedagógico e educativo aos jogos infantis. Mas a associação entre jogo e trabalho, como na educação formal, nem sempre foi bem aceita entre educadores. Celestin Freinet se opôs às ideias de Froebel, Claparède e Montessori, afirmando que a pedagogia do jogo impõe atividades superficiais à criança, isto é, de fora para dentro.
Mais recentemente o sociólogo e educador Brougère (1998) procurou defender que é possível a conciliação entre o jogar e o aprender, no contexto educacional, desde que sejam respeitadas as características do jogo como atividade espontânea, não produtiva e incerta.
Jogos e suas implicações psicopedagógicas
As pesquisas nas áreas de educação e psicologia apontam que os jogos e as brincadeiras são muito utilizados na educação infantil. Segundo Moylés (2006), no processo contínuo de reconhecimento, inserção, interação e ação da criança no mundo por meio do brincar, três fatores são determinantes: a qualidade de provisão de recursos para o brincar, o valor atribuído aos processos do brincar e o envolvimento dos adultos. Sendo assim, as práticas lúdicas constituem um recurso reconhecidamente capaz de conquistar as crianças e mediar o processo de ensino-aprendizagem.
Entendemos que não se esgotaram as possibilidades de se conhecer e compreender os jogos e as brincadeiras, mas nosso propósito é destacar, em especial, seu papel na educação. Concordamos com Macedo (2007) quando destaca "[...] a importância da dimensão lúdica nos processos de aprendizagem escolar como uma das condições para o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes e, quem sabe, para uma recuperação do sentido original da escola" (p. 09).
Segundo Kishimoto (1999), o jogo educativo utilizado em sala de aula na maioria das vezes vai além das brincadeiras e se torna uma ferramenta para o aprendizado. Para que o jogo seja um aprendizado e não uma obrigação para a criança, é interessante deixar que o aluno escolha com qual jogo queira brincar e que ele mesmo controle o desenvolvimento sem ser coagido pelas normas do professor. Para que o jogo tenha a função educativa não pode ser colocado como obrigação para a criança.
A incidência de problemas envolvendo a escola, o aprender e o ensinar nos leva a pensar como resgatar a escola como espaço de prazer, conhecimento e produção. As dificuldades enfrentadas por alunos e professores possivelmente são pistas de que a escola perdeu o elemento prazer e tornou-se uma obrigação enfadonha. A definição de um espaço de "divertimento, recreio" ou, em sua versão grega, de descanso, repouso, tempo livre, hora de estudo, ocupação de um homem com ócio, livre do trabalho servil foi substituída por cobrança, resultados e processos mecânicos e solitários. Dessa forma, aprendizagem e desenvolvimento se perdem em processos mecânicos e cada vez mais nossos alunos sentem-se confusos com relação a seu papel na educação e na escola. A estranheza com que nossas crianças lidam com a própria educação supõe que estas, as crianças, estão sendo ignoradas quando são construídas as propostas para sua formação.
Reiteramos a suposição de Macedo (2005) de que é preciso
(...) cuidar da dimensão lúdica das tarefas escolares e possibilitar que as crianças pudessem ser protagonistas, isto é, responsáveis por suas ações, nos limites de suas possibilidades de desenvolvimento e dos recursos mobilizados pelos processos de aprendizagem (p.15).
No âmbito da construção da aprendizagem, alguns jogos têm o propósito de auxiliar o aluno na aprendizagem e desenvolvimento do raciocínio matemático e conhecimentos linguísticos. Já em outros momentos, eles os auxiliam no desenvolvimento afetivo, físico-motor e social. No entanto, o professor precisa respeitar o processo de cada um, para que o jogo não se torne um momento obrigatório e sim que seja um momento prazeroso e com significado para o aluno. Quando o professor incentiva o interesse por pesquisas, pelo desenvolvimento de trabalhos em grupo, pela busca por respostas por meio do lúdico, o aluno estará aprendendo de uma forma prazerosa a atividade proposta e, consequentemente, ao assimilar esses novos conceitos terá uma aprendizagem significativa.
Macedo (2007) afirma que os jogos são importantes na vida da criança não só no presente, mas também no futuro. No presente a criança necessita do jogo, ou seja, um espaço e um tempo para pensar e se adaptar, por isso a atividade lúdica é importante para o desenvolvimento dela. Ao jogar, a criança desenvolve alguns aspectos sociais e cognitivos que serão úteis no futuro. Desse modo, dos jogos de exercício, a criança herda o prazer funcional, e a partir dele ela pode encarar o trabalho não como sacrifício, mas como algo prazeroso e satisfatório. Com o jogo simbólico a criança pode aprender as possibilidades de experimentar e criar, o que futuramente poderá ser útil em seu trabalho. No jogo de regra a criança é colocada em contato com as regras, auxiliando-a a lidar com limites e restrições um fator necessário para que haja solidariedade e compartilhamento.
O jogo tem sido constantemente utilizado por psicólogos nas intervenções com crianças, pois possibilita o conhecimento da realidade deste tipo de paciente (BRENELLI, 2001). Por isso Macedo (2007) defende o valor psicopedagógico do jogo por dois motivos: primeiro porque pode representar uma experiência fundamental de entrar em contato com o conhecimento, de construir respostas em função de um trabalho que demande diferentes capacidades. Segundo porque pode significar para a criança que aprender é um jogo de investigação, de prazer, de acertos e erros, de diferentes caminhos, de cooperação, em que as situações de jogo são planejadas a partir das capacidades e expectativas dos alunos.
Em diversos espaços, os jogos e brincadeiras possibilitam às crianças a construção do seu próprio conhecimento, pois oferecem condições de vivenciar situações-problemas, a partir do desenvolvimento de jogos planejados e livres que permitam à criança uma vivência no tocante às experiências com a lógica e o raciocínio e permitindo atividades físicas e mentais que favoreçam a sociabilidade e estimulem as reações afetivas, cognitivas, sociais, morais, culturais e linguísticas.
De acordo com Souza (1996, p. 122) "Os jogos podem ser utilizados na escola ou na clínica com instrumentos que propiciam o estudo do pensamento da criança, de sua afetividade e de suas possibilidades de estabelecer relações sociais". O jogo pode ter um papel fundamental no processo de desenvolvimento (cognitivo e afetivo) do indivíduo, pois segundo Luna (2008, p.57)
(...) quando o sujeito se sente desafiado pela perturbação (no jogo, por exemplo, quando se vê diante de uma situação-problema) e tem como valor superá-la, ele age com disciplina (atenção, concentração, persistência, respeito) com o intuito de vencer. Nesta perspectiva o sujeito reage à perturbação, com disciplina, visando a reequilibração do seu sistema (regulação).
Segundo Dell'Agli & Brenelli (2010) no decorrer de atividades lúdicas é possível que existam menos pressões e tensões o que permite a livre expressão afetiva. Diante disso, o jogo pode ser considerado um importante instrumento na observação e análise de aspectos afetivos e cognitivos (Canal & Queiroz, 2012) de forma simultânea, pois direcionam o tratamento de crianças e adolescentes, sendo um instrumento favorável de intervenção em diversas áreas (psicoterapia, psicopedagogia e educação) (BRENELLI, 2001).
De acordo com Macedo (2010, p.146) o ócio digno está presente no contexto do jogo. Segundo o mesmo autor esse ócio constitui-se em um espaço e um tempo em que a criança pode pensar, o que é fundamental para a construção de um saber. Dessa maneira, os jogos promovem "... o desenvolvimento da ação física e mental da criança. Ao jogar a criança adquire gradativa autonomia e responsabilidade para tomar decisões e seguir regras com consciência (LUNA, 2008, p. 60)".
Segundo Macedo (2010) a socialização ocorre por meio da internalização das regras de uma determinada sociedade, que são impostas e muitas vezes incompreensíveis. "O jogo de regras é o produto da vida coletiva, e esse produto engendra essa nova realidade que é a regra (...)" (SALTINI & CAVENAGHI, 2014, p.329).
Ainda de acordo com Macedo (1994) o social tem uma importância fundamental para Piaget, pois as operações utilizadas para enfrentar as perturbações provenientes do ambiente e das trocas interindividuais são, simultaneamente, sociais e individuais.
Dessa forma,
(...) os jogos de regras não só servem aos interesses infantis como também aos dos adolescentes, ultrapassando as barreiras que, com o avanço da idade, são impostas ao brincar, constituindo um poderoso instrumento que não se encontra circunscrito somente a sujeitos que apresentam dificuldades, antes, vem contribuir para o desenvolvimento e a aprendizagem de maneira geral de sujeitos de diferentes idades e diferentes níveis evolutivos (BRENELLI, 2001, p.185).
Desse modo, a ludicidade pode surgir como uma possibilidade, como força pedagógica motivadora, para auxiliar na promoção da aprendizagem e da inclusão (MOTA, 2010). Se soubermos observar a presença - maior ou menor - do lúdico, poderemos compreender resistências, desinteresses e toda a sorte de limitações que tornam a escola sem sentido para as crianças. Além disso, nosso objetivo é desfazer certos mal-entendidos de que lúdico significa necessariamente algo agradável na perspectiva daquele que realiza a atividade. Se fosse só assim, poderíamos, por exemplo, vir a ser reféns das crianças ou condenados a praticar coisas engraçadas, mesmo que sem sentido.
A prática pedagógica e o resgate do lúdico
Ainda que a temática "jogos e brincadeiras" tenha sido bastante explorada em diferentes áreas do conhecimento, cada vez mais na escola de educação básica não prestamos atenção e nem valorizamos os esquemas lúdicos das crianças. Temos o que Macedo, Petty e Passos (2005) chamaram de "escola seletiva". Nela, autoritária e rapidamente impomos a principal ferramenta de conhecimento e domínio do mundo da pedagogia tradicional: os conceitos científicos, a linguagem das convenções e os signos arbitrários, com seus poderes de generalidade e abstração.
Constatamos frequentemente que a finalidade do lúdico, do ponto de vista da escola e de seus componentes, é utilitarista. De acordo com Muniz (2005), a percepção utilitarista do lúdico e a dicotomização entre interações lúdicas e educativas acontece devido ao entendimento de professores e profissionais da educação de que a brincadeira não possui conteúdo nem objetivo. Contrário a essa percepção, Macedo (2005) assevera e defende que a brincadeira é informativa, porque a criança pode aprender sobre as propriedades dos objetos, sobre os conteúdos imaginados ou pensados. É envolvente, porque coloca a criança em situação interativa; é interessante, porque dá um sentido de atividade ou ocupação, ao canalizar, orientar e organizar suas energias. Quando ela brinca, objetivos, meios e resultados se sincronizam e inserem a criança numa atividade prazerosa por si mesma, por aquilo que oferece durante sua realização. Conforme o mesmo autor, a criança aprende consigo, com os objetos e com as pessoas, enquanto brinca, pois esses aspectos se organizam de diversas maneiras, cunham conflitos e projeções, concebem conversações, exercitam argumentações, resolvem ou permitem o enfrentamento de problemas, fundamentais ao desenvolvimento infantil.
Muniz (2005) pontua que "[...] quando nossa percepção sobre o brincar se aprofunda, o lúdico vai deixando de ser utilizado como recurso e ganha valor em si, como uma linguagem peculiar do mundo infantil". Então, como resgatar o sentido lúdico nas atividades escolares para as crianças? Como ampliar a compreensão da escola e seus professores acerca da amplitude de experiências e significados que os jogos podem adquirir?
Concordamos com Macedo, Petty e Passos (2005), que valorizar o lúdico nos processos de aprendizagem significa, entre outras coisas, considerá-lo na perspectiva das crianças. Para elas, apenas o que é lúdico faz sentido. Assim como em seu cotidiano familiar, na escola o aluno-criança procura resgatar e se apoiar no lúdico para lidar com as exigências tradicionais do processo ensino-aprendizagem. Muitas vezes não encontra espaço na prática pedagógica do professor elementos de prazer, desafio e satisfação que poderiam estar envolvidos no aprender.
Ao enveredarmos nas questões sobre a prática pedagógica, destacamos como essa se constitui no cotidiano da escola, por meio de diferentes situações e sujeitos, sobretudo em relação ao professor e o espaço do jogo nesse contexto. Como exemplo pode-se citar um estudo conduzido por Lanes et al (2012) cujos resultados demonstraram a eficácia do lúdico como ferramenta para potencializar a educação nutricional e o conhecimento sobre hábitos alimentares saudáveis de crianças da Educação Infantil.
Romera et al (2007) desenvolveu um estudo com o intuito de observar e analisar a questão do lúdico no fazer educacional de professoras de escolas infantis na cidade de São José do Rio Preto. Os resultados desse estudo demonstraram algumas contradições entre o falar e o fazer pedagógico das professoras entrevistadas e uma dificuldade em interligar o lúdico com as atividades programadas, pois, de acordo com a visão apresentada, ambos não poderiam ocorrer de forma simultânea. Portanto, apesar do reconhecimento de que o lúdico é importante e potencializador de aprendizagens há ainda dificuldade por parte de muitos educadores de compreenderem como isso poderá ser implementado em sua prática pedagógica. Esses resultados apontam ainda para a necessidade de aprofundar os estudos acerca do lúdico nos cursos de formação de professores.
Meirieu (2005) é um autor que nos ajuda a problematizar os desafios das instituições escolares hoje. O autor sinaliza as tensões e as contradições que estruturam a experiência educativa. Evidenciam as demandas dos alunos e as intenções dos professores. E sugere que se possa, diante dos embates existentes, compreender e empreender transformações em suas práticas para lograrem êxito na sua tarefa de educar/formar. Tal fato é essencial quando falamos em incorporar na prática pedagógica do professor os jogos como recursos lúdicos capazes de auxiliarem no processo de aprendizagem e desenvolvimento dos alunos.
Concordamos com Meirieu (2002, 2005) que por meio da educação as crianças experimentam o mundo, fazem suas primeiras aproximações, leituras e releituras, e isso pode acontecer ou ser mediado a partir da relação professor-aluno-conhecimento. Por meio dessa relação pedagógica, o professor tem o papel significativo de escuta da criança, bem como de potencializar as experiências e os possíveis caminhos entre criança e conhecimento, sendo que alguns caminhos utilizam o lúdico na sala de aula como referência de aprendizagem. Segundo o autor educar, nessa perspectiva
(...) supõe o reconhecimento do sujeito na criança, sem pré-requisitos, sem esperar que ela tenha acesso à palavra, à 'idade da razão' ou à maioridade civil. A educação consiste em estabelecer uma relação de escuta sem nenhum tipo de condição, em supor sistematicamente a intencionalidade, em atribuir sentido ao que se troca, ao menor gesto, ao menor grito, à menor transação afetiva e cognitiva [...] é esse encontro que permite o acesso à cultura, a toda forma de cultura (MEIRIEU, 2002, p. 112).
Meirieu afirma que na prática pedagógica o professor pode transformar a experiência de se sentir paralisado ao se deparar com a resistência da criança a ele e ao conhecimento que ele representa. O autor diz que o momento sugere "a irrupção da materialidade aleatória do outro [...]" (MEIRIEU, 2002, p. 58) e provoca uma nova oportunidade de repensar seu saber e seu fazer, em um desafio de exercitar a "pedagogia da coragem". Pressupõe que o professor deva rever suas práticas, metodologias e ajustar seu olhar para enxergar o aluno e suas necessidades.
O autor citado também nos lembra de que cabe ao professor e seus colaboradores reconhecerem o momento pedagógico, ou seja, o instante em que o professor sente a presença do outro em toda sua potência e, ao mesmo tempo, toda sua responsabilidade em transmitir os conteúdos de uma determinada cultura a esse sujeito em formação, e que para tanto necessita buscar novas formas de alcançar seus objetivos pedagógicos. Uma busca que requer a compreensão do processo de aprendizagem e desenvolvimento do aluno, assim como das diferentes estratégias para se aproximar e envolvê-lo com os conhecimentos relevantes para sua formação.
Impossível entender o processo de aprendizagem da criança sem observar o processo de ensino do professor, dificílimo pensar esse processo sem perceber como o professor o constitui a partir de suas ideias de aprender e conhecer, impossível pensar o não-aprender da criança sem olhar seu processo de conhecer o mundo, de lidar com seus desafios, sem olhar como sua família significa também o aprender e o não-aprender. Assim, vivemos num mundo onde cada vez mais precisamos estabelecer ligações entre as coisas, uma urgência em perceber que há uma circularidade no mundo da vida que exige outras formas de compreensão ao mundo da escola, muitas vezes fazendo-se necessário olhar e compreender o que o aluno deseja e precisa para se envolver com sua aprendizagem.
Ainda apoiados em Meirieu somos convocados a prestar atenção às diferentes manifestações dos alunos em sala de aula, aos "vínculos, às articulações, às transições sutis e às projeções brutais que permitem ao aluno construir para si uma história amplamente imprevisível e que os instituem como sujeito" (MEIRIEU, 2002, p. 219). Convém indagar com Meirieu (2002, p. 145) "como fazer da sala de aula um lugar de invenção, de imaginação e de encontros, um lugar distanciado das mortíferas transmissões miméticas, sem, com isso, perder-se na divagação"? Como "encontrar um meio de situar-se fora dos eixos, beneficiando-se da existência de referências"?
Ao se referir à escola como espaço em que todos podem e devem aprender, Meirieu (2005) afirma que esta deve ser organizada como um espaço "livre de ameaça." As questões referentes ao fazer pedagógico precisam ser repensadas, pois estas nos remetem ao aspecto educativo-pedagógico. Neste sentido, importa não apenas pensar os significados voltados ao processo pedagógico, sobretudo, refletir acerca da prática pedagógica tendo como eixo norteador dessa prática educativa, formas de encaminhar e direcionar a ação pedagógica.
Meirieu (2005) aposta na sala de aula como um ambiente de aprendizagens e de construção de novos conhecimentos, para alunos e professores. Dessa forma, é inevitável o surgimento das dificuldades e a necessidade de enfrentá-las, sabendo que é possível rompê-la e alcançarmos o êxito esperado.
Para Meirieu, (2005), é necessário que pedagogo e professores busquem promover uma análise apurada acerca do ambiente escolar. Compreendendo que esta análise diz respeito aos problemas enfrentados no interior da sala de aula e ao processo de aprendizagem. Acompanhar e analisar os elementos que influenciam nos processos de aprendizagem dos alunos, seus modos de ser e estar no cotidiano da escola e entender a avaliação como representativa das potencialidades e entraves de diferentes dispositivos na experiência de aquisição e construção do conhecimento por parte dos alunos.
Considerações finais
Concordamos com Macedo (1996, p. 10) que afirma a necessidade de se recuperar o sentido do jogo na escola e na vida, propondo que a escola adote uma postura menos rígida, menos instrumental. Ressalta a necessidade de permitir que na escola, por algum tempo, os meios sejam os próprios fins das atividades, que se permita que professores e alunos sejam criativos, que tenham prazer estético e sintam o gozo da construção do conhecimento.
Na educação básica entendemos que é essencial "fazer com os alunos", não por eles, mas com eles. As crianças até os seis anos, independentemente de suas condições físicas, psíquicas, sensoriais e cognitivas, estão fazendo suas primeiras aproximações com o mundo, com o conhecimento, com a cultura, aprendendo sobre si, sobre os outros e sobre o mundo. É tarefa do professor auxiliar a criança a experimentar o mundo, a traduzi-lo de uma forma compreensível, oportunizando a elas a ampliação de conhecimentos e experiências, bem como disponibilizando e potencializando espaço-tempo para elas usarem a inventividade, para criarem e transformarem, com suas produções e desejos, suas experiências e existências.
Na ação pedagógica Meirieu (2005) prevê que o papel do professor é fazer com que nasça o desejo de aprender, sua tarefa é desafiar o aluno, seduzi-lo, despertar-lhe o desejo de aprender. Mas alerta ao professor que neste processo de tradução do mundo, de mediação, ele preste atenção para não praticar uma pedagogia sem objetivos. Cabe a ele, por meio de jogos e estratégias diversificadas, suspender a explicação e fazer com que nasça o desejo de aprender, construir, produzir.
No cotidiano da escola e no frenesi da prática pedagógica, sabemos o quanto é mais fácil responder às perguntas dos alunos rapidamente, eliminando o desejo em sua gênese, do que transformar essa pergunta em um desafio a ser administrado com auxílio do professor, das crianças do grupo e até mesmo da manipulação de objetos e jogos. Dessa forma, torna-se importante que professor e alunos sejam parceiros na condução e administração dos desejos a fim de descobrir e ultrapassar as dificuldades. Inventivamente essa parceria pode ser pensada e construída de diferentes maneiras.
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WINNICOTT, D.W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. [ Links ]
1 Psicóloga e Pedagoga, Doutora em Educação - larissyac@yahoo.com.br
2 Psicóloga, Doutora em Psicologia - cbroetto.ufes@gmail.com
3 Psicóloga, Doutora em Psicologia/ Rodovia Norte Sul, 4905, Torre 1 Ap 101, CEP 29.165-752, Santa Luzia, Serra, Espírito Santo, dani@missawa.com.br