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Boletim - Academia Paulista de Psicologia
versão impressa ISSN 1415-711X
Bol. - Acad. Paul. Psicol. v.28 n.1 São Paulo jun. 2008
TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS
Abstinência e a redução de danos no processo de recuperação dos dependentes de substâncias psicoativas
Abstinence and the reduction of damages in the recovery process of dependents on psychoactive substances
Celenita CoelhoI, 1; Aidyl M. de Queiroz e Pérez-RamosII, 2
I Instituição de prevenção de drogas e de reabilitação
II Cad. 30 "Geraldo Paula Souza"
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
RESUMO
O artigo analisa dois procedimentos na recuperação dos dependentes de substâncias psicoativas: os períodos de abstinência e a redução de danos, entendida esta como dependência moderada não prejudicando a vida normal. Os trabalhos disponíveis não chegam a resultados conclusivos, sendo também escassos na comunidade científica. A presente contribuição tem por finalidade auxiliar no esclarecimento sobre o valor desses procedimentos. Estudam-se os dados obtidos do Livro de Matrícula e dos prontuários de 43 recuperandos internos de uma instituição em prol da prevenção e da recuperação desses dependentes. Os resultados mostram expressiva freqüência na abstinência no programa de mútua ajuda, como follow-up após tratamento, e menor incidência na prática da redução de danos. São eles surpreendentes, no primeiro caso, e esperançosos no segundo, uma vez que este último é considerado como estratégia para alcançar abstinência estabilizada. A metodologia utilizada tanto no tratamento quanto no período de follow-up é tida como fator de grande influência nesses resultados.
Palavras-chave: Drogaditos, Abstinência, Redução de danos.
ABSTRACT
This essay analyses two procedures in the recovery of dependents on psychoactive substances: the abstinence periods and the reduction of damages, thus understood as moderate dependency with no harm to normal life. The materials available do not reach conclusive results, which are also scarce in the scientific community. The present contribution intends to assist in clarifying on the value of these procedures. Data obtained from the enrollment book and from the records of 43 interns under treatment of an institution of prevention and recuperation of these dependents are being studied. Results show an expressive frequency in abstinence in the program of mutual help, as a follow-up after the treatment, and a lower incidence in the the practice of the reduction of damages. They are surprising, in the first case, and very hopeful, in the second, once the latter is considered as a strategy to reach a stable abstinence. The methodology utilized not only in the treatment, but also in the follow-up period, is understood as a factor of great influence in these results.
Keywords: Drug addicts, Abstinence, Reduction of damages.
1. Introdução
Na última década, as pesquisas e práticas clínicas evidenciaram avanços, ainda que de forma bem limitada, na recuperação dos dependentes de substâncias psicoativas. Hoje se sabe que vários fatores são responsáveis pelo aparecimento dessa síndrome, como os que aqui são citados: características psicológicas, vulnerabilidade genética, gênero, padrão de consumo e aspectos sociais. Além disso, cerca da metade dos clientes que sofrem da síndrome de dependência, como a de álcool, recaem após curto prazo de desintoxicação, indicando a necessidade do desenvolvimento de estratégias mais efetivas (Bertozzi, 1993). É, portanto, um grande desafio o restabelecimento da saúde mental das pessoas acometidas dessa síndrome.
O interesse para desenvolver a presente pesquisa na área é devido à precariedade de trabalhos congêneres e, principalmente, à importância que se concebe aos períodos de abstinência e à redução de danos na habituação às substâncias psicoativas. Alguns estudos esclarecedores podem fundamentar o presente trabalho como os que são sintetizados a seguir. Investigações realizadas na Unidade de Dependência de Drogas do Centro de Pesquisa em Psicopatologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, com 103 pacientes alocados em dois grupos grupo não recaída e grupo recaída mostram resultados importantes. No grupo recaída, dependência grave e no grupo não recaída, dependência leve. Os pacientes que recaíram apresentaram maior intensidade nos sentimentos de abandono do que aqueles que não recaíram. Além disso, os autores indicaram que os determinantes intrapessoais foram diferentes em um grupo em comparação com o outro. Assim, no do não recaída prevaleceram os estados emocionais negativos, acompanhados de impulsos e tentações e, no referente à recaída, incidiram mais a pressão social e os conflitos interpessoais recentes (Cummings, Gordon & Mariatt, 1980). Tais resultados, embora limitados, apresentam claras diferenças no comportamento do grupo abstinente daquele que voltou à droga.
A reabilitação, segundo alguns autores, parece estar ligada ao redimensionamento dos objetivos pessoais (Edwards, Marshall & Cook, 1999), à habilidade de lidar com situação de risco (Mariatt & Gordon, 1993) e com a mobilização de recursos apropriados (Gossop, 1997). São indicadores que poderão explicar a manutenção da abstinência e o emprego da redução de danos.
Para se ter uma idéia da complexidade da aquisição da abstinência, citam se os cinco estágios apresentados por Prochaska e Di Clemente: a de précontemplação (interesse, mas inconsistente pela abstinência); contemplação (tomada de consciência e pensamentos voltados à desistência da droga); preparação (prontidão para a abstinência e compromisso com ela); ação (ocorrência da abstinência e tomada de consciência do problema); e estabilização (evitação da recaída e consolidação da auto-eficácia) (Edwards, Marshall & Cook, 1999).
A análise das recaídas ao longo do tempo tem mostrado, segundo alguns autores, que a estabilização da abstinência na dependência de substâncias psicoativas (DSPA) começa a acontecer quando da sua instalação (Hunt, Barbet & Brauch, 1971). Por outro lado, outros trabalhos mais recentes como o DSM-IV (American Psychiatric Association, 1994) levam em conta que ainda os primeiros doze meses de abstinência são considerados de alto risco na reincidência ao uso das drogas. Portanto, há divergências quanto à estabilização desse comportamento em estudo.
Através de entrevistas, observações e a aplicação de intrumentos psicológicos a esses dependentes, determinados estudiosos apresentaram os benefícios ocasionados pela abstinência como: tomada de consciência do problema aditivo, resgate dos vínculos familiares, desenvolvimento de autoestima, afastamento de ambientes favorecedores da adição e envolvimento em práticas religiosas. Esses benefícios em parte são resultantes do apoio prestado aos dependentes por profissionais, familiares e novos amigos, como também do seu envolvimento na ajuda a outros dependentes para libertarem-se dessas drogas. Esses resultados são apresentados por Gomes & Rigotto (2002) derivados de suas pesquisas realizadas em Caxias do Sul RS.
Por outro lado, determinados especialistas apontam diversas conseqüências problemáticas causadas pelo período da abstinência que necessitam de um acompanhamento multiprofissional a fim de possibilitar ao recuperando maior extensão possível da fase da ausência do uso das drogas. Apontam, como sintomas, forte sentimento de angústia, medo da solidão, intensa sensação de abandono e desejo ou autoflagelação (Silveira Filho, 2002). Outros estudiosos ainda apontam, como recurso para a manutenção da abstinência, a utilização das técnicas de natureza cognitivo-comportamental, o que foi comprovado por um trabalho efetuado no Hospital Mãe de Deus em Porto Alegre (Karkov & Caminha, 2005).
A abstinência e a redução de danos têm sido estudadas como recursos importantes na reabilitação dos adictos, especialmente no uso de drogas injetáveis. Os resultados mostraram maior preferência dos dependentes no uso dos modelos baseados na abstinência, defendidos pelos Narcóticos Anônimos (Peterson, Mitchell & Hong, 2006). Contudo esse resultado parece ser algo novo porquanto percebe-se maior freqüência de recuperandos da dependência dessas drogas que conseguem viver vida normal com a redução de danos do que aqueles que utilizam da abstinência, a qual tende a reincidir com maior freqüência (Mariatt et al., 1999 e Peterson, Mitchel & Hong, 2006).
Diante da complexidade do problema não se pode adotar uma posição reducionista seja ela biológica, social, moral ou psicológica. A breve revisão da literatura comprova que prevalecem dúvidas e divergências. No entanto é consenso geral que as drogas constituem atualmente fator importante na desorganização social, familiar e individual. O presente estudo não prioriza formas específicas de tratamento, mas a apresentação de índices quantitativos de recuperação do DSPA e sua repercussão no período de abstinência em comparação com o uso da redução de danos.
2. Métodos
O material e método utilizados na pesquisa derivaram dos dados obtidos do Livro de Matrícula e também dos prontuários de 43 recuperandos da dependência das citadas drogas.
Constituíram-se de usuários internos, do sexo masculino, procedentes de um centro de prevenção e tratamento da drogadição, que se submeteram ao tratamento completo e prosseguiram, após a alta, durante seis meses, no grupo de mútua ajuda. Há de considerar-se que esse grupo integra os mais graves dos casos em reabilitação na entidade, por isso o seu tratamento é feito via internação. O período etário para o levantamento foi de 2002 a 2005. Foram coletados dados demográficos e também referentes à abstinência e à redução de danos dos referidos recuperandos.
A instituição utiliza-se, para reabilitação, do Método de Comunidades Terapêuticas (Método Minesota), tendo como referencial os Doze Passos de Alcoólicos Anônimos e outras abordagens terapêuticas como: aconselhamento psicológico, prevenção de recaída, treinamento de habilidades, farmacoterapia e algumas estratégias da Terapia Cognitiva. O programa inclui a participação da família e acompanhamento pós-tratamento dos recuperandos através de grupo de mútua-ajuda.
3. Resultados
Foram selecionados 43 prontuários desses participantes, na faixa etária de 18 a 60 anos (Tabela 01). Deles, 19 eram solteiros e 24 casados, sendo que 39, podendo-se considerar que são pertencentes à classe média e 04, à média alta. Quanto à escolaridade, 35 não completaram o Ensino Fundamental e 08 concluíram o Ensino Médio.
Conforme os dados da tabela 01, verifica-se que a incidência maior dos participantes está nas faixas etárias de 24 a 35 anos, totalizando 23 prontuários. Além disso, há maior concentração deles no primeiro ano de estudo, isto é, em 2002. São constatações que servirão de estímulos para estudos futuros.
Analisa-se também a freqüência dos indivíduos abstinentes das substâncias psicoativas, excetuando o tabaco, dos reincidentes ao uso contínuo dessas substâncias, e da adesão à redução do consumo. Considera-se como redução de danos os que são dependentes moderados que mantêm a vida ativa, normal e, como reincidentes, os que mantêm o uso em detrimento da sua inclusão nas atividades laborais e sociais. (Tabela 02).
A principal dependência apresentada nos prontuários é de cocaína, crack
Na tabela 02, observa-se que um grupo bastante expressivo dos recuperandos manteve a abstinência de substâncias psicoativas desde o início do tratamento até o período após a alta, isto é, no período auto-ajuda (6 meses); poucos deles reincidiram no uso dessas substâncias, retornando à abstinência e permanecendo nela até o fim da pesquisa; em número também expressivo são os que permaneceram consumindo substâncias psicoativas em grau moderado e mantendo-se nas atividades laborais e sociais; poucos reincidiram no uso dessas substâncias; e três deles faleceram em conseqüência do uso abusivo de tais drogas.
4. Discussão
Mariatt & Gordon (1993) consideram a importância da utilização de várias estratégias terapêuticas, visando auxiliar o DSPA na manutenção da abstinência e, assim, fornecerem possibilidades para lidar com as situações que configuram riscos para recaídas. Indicam também que, nos EUA, 90% dos tratamentos para dependência de drogas psicoativas estão relacionados aos Alcoólicos Anônimos modelo de Minesota. Além disso, a terapia cognitiva, a prevenção de recaída e treinamento de habilidades vêm igualmente mostrando sua eficácia, tornandose necessário o estímulo à pesquisa que vise à análise das referidas abordagens.
Esses resultados são coerentes com as estratégias de tratamento utilizadas no centro de onde provêm os participantes em estudoym, reforçando a idéia de que se estaria no caminho certo. Além disso, observa-se, pelo levantamento dos dados nos prontuários, um bom relacionamento do usuário com a instituição, o que possibilita um follow-up adequado e, em conseqüência, a identificação do que se configura como sendo risco para recaídas. Apesar da utilização dos procedimentos apenas semelhantes dos empregados por Mariatt & Gordon (1993), os presentes dados também puderam identificar tais situações de risco.
Quanto aos dados demográficos, observa-se maior freqüência nas idades de 24 a 33 anos. Informação que concorda com Bucher (1996) o qual afirma que, apesar da tendência do uso de substâncias de teor tóxico ser cada vez mais elevado e em população cada vez mais jovem, a procura ao tratamento permanece em uma faixa etária mais elevada.
Quando se analizam os dados quanto à abstinência e à redução de danos, encontra-se certa relação com o que afirmam Mariatt et al. (1999). Esses estudiosos relatam que o uso da redução de danos estimula os indivíduos a diminuírem gradualmente as conseqüências prejudiciais do emprego dessas substâncias e caminharem para a abstinência. Inferência promissora para os resultados deste trabalho, o que leva a pressupor uma diminuição dos usuários da redução de danos e um aumento dos abstinentes preservados.
5. Conclusão
A comparação do presente resultado com as fontes bibliográficas estudadas mostra certa coincidência entre si, embora estas últimas sejam mais esclarecedoras. No entanto a expressiva freqüência de abstinentes sem reincidência nos seis meses de seguimento após alta é algo bastante expressivo e promissor, indicando a possibilidade de evidenciar o valor do método de tratamento utilizado e atenção individual prestada a cada recuperando. Note-se que, ao entrar para a instituição, não são chamados de dependentes, mas de recuperandos, o que é um estímulo para o aumento de sua auto-estima. A tendência prevalente, em tempos passados, era a de que os que se envolviam nas drogas psicoativas tinham o futuro sem volta; morte ou cadeia.
Deduz-se que a manutenção em grupo de auto-ajuda, enriquecido de mudança de ambientes e de aquisição de redes saudáveis nas relações interpessoais, após término do tratamento, é de suma importância para garantir aos recuperandos um período considerável de abstinência. Em suma, neste período de follow-up, apresentam-se-lhes condições para que novos projetos de vida consolidem-se, não necessitando, com isso, de “muletas” de apoio como são as drogas.
Finalmente, é importante enfatizar que, embora os resultados obtidos não possam conduzir a generalizações devido à utilização de um pequeno grupo de participantes e ainda provenientes de apenas uma instituição, eles são altamente expressivos, face aos resultados limitados que se apresentam ultimamente. Apontam pistas promissoras que podem apoiar a continuidade de pesquisas no gênero e aprofundar outras tantas que possibilitem pareamento das diferenças individuais e o tratamento apropriado para prevenção das recaídas e a manutenção da abstinência.
Referências
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Recebido em: 12/11/2007
Aceito em: 10/03/2008
1Diretora do centro. Contato - E-mail: celenitacoelho@yahoo.com.br / dedeia.coelho@ig.com.br
2Professor Titular. Contato: R.Pelágio Lobo 107 - 05009-020, São Paulo, SP. E-mail:
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