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Boletim - Academia Paulista de Psicologia
versão impressa ISSN 1415-711X
Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.35 no.88 São Paulo jan. 2015
HISTÓRIA DA PSICOLOGIA
O aspecto pessoal (vivido) em Minkowski como fundamento diagnóstico e metodológico da Psicopatologia Fenômeno-Estrutural
The Minkowski's personal (lived) aspect as the diagnostical and methodological basis of the Phenomenon-Structural Psychopathology
El aspecto personal (vivido) en Minkowski como fundamento diagnóstico y metodológico de la Psicopatología fenómeno-estructural
Danilo Salles Faizibaioff1; Andrés Eduardo Aguirre Antúnez2
Instituto de Psicologia- Universidade de São Paulo
RESUMO
Recentes transformações nos campos da Psicopatologia e da Saúde Mental têm convocado os psicólogos a focalizarem sua atenção na questão do diagnóstico dos transtornos mentais. O objetivo deste artigo é o de apresentar a contribuição da Psicopatologia Fenômeno-Estrutural de Eugène Minkowski (1885-1972) ao problema. Visamos, aqui, explicitar sua concepção do aspecto pessoal (vivido) em Psicopatologia, ao (1) explorar alguns dados de sua biografia, (2) revelar suas principais influências e rupturas médico-filosóficas e (3) descrever duas vinhetas clínicas com pacientes esquizofrênicos por ele atendidos, em que se utiliza do aspecto pessoal como ferramenta diagnóstica, indo além do exame psíquico das funções mentais. Citações literais do autor são enfatizadas, dado que a psicopatologia fenômeno-estrutural prioriza a semântica pessoal da fenomenologia da linguagem e dos afetos a que se propõe. Conclui-se que a noção de diagnóstico por compenetração é o fundamento metodológico mais importante de Minkowski para a problemática apresentada, pois se constitui como seu produto tecnológico mais refinado e pessoal. Tal concepção é útil a todos os psicólogos que trabalham com pacientes psiquiátricos, sobretudo com os esquizofrênicos.
Palavras-chave: Psicopatologia Fenômeno-Estrutural, Afetividade, Tempo Vivido, Esquizofrenia.
ABSTRACT
Recent changes in the Psychopathology and Mental Health fields have been calling psychologists to focus on the mental disorders diagnostics issue. This paper's objective is to show the Eugène Minkowski's (1885-1972) Phenomeno-structural Psychopathology contribution to the problem. Here, we aimed to explain his conception of the personal (lived) aspect in Psychopathology, by (1) exploring some data of his biography, (2) revealing his main medical and philosophical influences and ruptures and (3) describing two clinical vignettes with schizophrenic patients of his own, in which he uses the personal aspect as a diagnostic tool, going beyond the psychiatric mental functions examination. Literal quotes of the author were here emphasized, since the phenomeno-structural psychopathology prizes the personal semantic of the phenomenology of the language and affections that are proposed. It has been found that the concept of interpenetration diagnostic is the Minkowski's most important methodological ground to the presented problem, as it is his most refined and personal technological product. This conception is useful to all psychologists working with psychiatric patients, especially with the schizophrenic ones.
Keywords: Phenomeno-Structural Psychopathology, Affectivity, Lived Time, Schizophrenia
RESUMEN
Los recientes cambios en los campos de la psicopatología y salud mental han llamado a los psicólogos a centrar su atención en el tema del diagnóstico de los trastornos mentales. El objetivo de este trabajo es presentar la contribución de Psicopatología fenómeno-estructural de Eugène Minkowski (1885-1972) a esta cuestión. Así como explicar su concepción sobre el aspecto personal (experiencial) en Psicopatología, al (1) explorar algunos datos de su biografía, (2) revelar sus principales influencias y las rupturas médico-filosóficas y (3) describir dos casos clínicos con pacientes esquizofrénicos atendidos por el autor, en los que utiliza el aspecto personal como herramienta de diagnóstico, yendo más allá del examen psiquiátrico de las funciones mentales. Referencias literales del autor sobre cómo la psicopatologíafenómeno estructural prioriza la semántica personal sobre la fenomenología del lenguaje y de los afectos que propuso. De ello se desprende que la noción de diagnóstico por compenetración como la base metodológica más importante de Minkowski para la problemática que se muestra, ya que constituye su producto más refinado y personal. Esta concepción es útil para todos los psicólogos que trabajan con pacientes psiquiátricos, sobre todo con los esquizofrénicos.
Palabras clave: Psicopatología fenómeno- estructural, afectividad, tiempo experienciado, esquizofrenia.
Introdução
Recentemente, importantes acontecimentos científicos e políticos no campo da Psicopatologia e da Saúde Mental têm reacendido a necessidade dos psicólogos clínicos abordarem, de forma crítica, a noção e o ato do diagnóstico das enfermidades mentais.
No âmbito internacional, o recente lançamento da quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais, o DSM-5 (APA, 2013), reafirma a influência anglo-saxônica que, desde a década de 1980, contribui para a emergência de cada vez mais numerosas e eminentemente descritivas categorias nosográficas das enfermidades mentais (Burkle, 2009). Cenário no qual se impõe a soberania do nosográfico sobre o nosológico, do fenomênico sobre o fenomenológico (Faizibaioff & Antúnez, 2014).
No que tange ao contexto brasileiro, o Projeto de Lei 7.703 (2006), conhecido como o Ato Médico, ocasionou intensa mobilização política dos profissionais da saúde não-médicos, tal qual o psicólogo. Através do exposto no inciso I do artigo 4º deste projeto, visava-se tornar atividade exclusiva do médico a formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica. Isto viria a atingir diretamente a autonomia dos psicólogos nos dispositivos da avaliação psicológica e do psicodiagnóstico, invalidando fundamentais procedimentos e documentos passíveis de por nós serem elaborados: o atestado e o relatório (ou laudo) psicológicos (CFP, 2003).
Nicaretta (2010) demonstrou, a este respeito, a "ameaça que o projeto de lei do ato médico representa para a saúde do povo brasileiro ao restringir o diagnóstico e a indicação terapêutica das psicopatologias ao médico" (p. 34). Para o tal, listou os periódicos nacionais e internacionais que atestam a íntima relação entre a Psicologia Clínica e a Psicopatologia, e comparou os currículos de graduação do profissional médico e do psicólogo brasileiros no que tange ao ensino desta, assinalando aspectos teóricos e metodológicos da ciência psicológica em sua totalidade.
Em 2013, embora a Presidente da República haja sancionado o Ato Médico, vetou 10 de seus pontos, dentre eles esta demanda de pretender à Psiquiatria mater o monopólio dos diagnósticos das patologias mentais. Contudo, uma vez que até o momento não existem exames clínico-laboratoriais que auxiliem no diagnóstico das doenças mentais (Nicaretta, 2010, p. 29), e dada a simplificação do atual status da psicopatologia dominante (Messas, 2008), paira no ar uma importante inquietação: em quais fundamentos antropológicos e metodológicos podemos os psicólogos clínicos basearmo-nos para lidar com a complexa problemática da diagnose em Saúde Mental?
Objetivo e fundamentos metodológicos
Apresentamos aqui, através da exposição de facetas biográficas, metodológicas e de duas vinhetas clínicas descritas por Minkowski, a noção de pessoal (ou vivido) em sua Psicopatologia Fenômeno-estrutural. Visamos resgatar, com ela e através dela, a dimensão fenomenológica e interpessoal como ferramenta terapêutica e diagnóstica na clínica contemporânea.
Buscamos valorizar citações literais suas e daqueles que com ele trabalharam e conviveram, uma vez que uma fenomenologia da linguagem, proposta central da abordagem fenômeno-estrutural, implica a elevação da semântica pessoal a um patamar de relevância primordial (Barthélémy, 2012). Afinal, a linguagem não é um instrumento inerte, senão um organismo vivo (Minkowski, 1933/1973, p. 121).
Procuramos, como Minkowski, destacar as dimensões da temporalidade e da interpessoalidade nas vinhetas clínicas apresentadas. Antes, porém, percorreremos sucintamente a história do nascimento da Psicopatologia enquanto ciência autônoma e diferenciada da Psiquiatria (Moreira, 2011). Aquela aporta tanto ao psicólogo quanto ao psiquiatra, quem, "no fundo, sempre é mais psicólogo do que ele mesmo está disposto a admitir" (Minkowski, 1927/2000, p. 31).
Justificativa
Na virada do século XX para o XXI aconteceu, na França, a publicação de novas edições das obras clássicas de Minkowski, bem como a compilação de seus 250 raros artigos, produzidos e divulgados entre 1911 e 1972, data de seu falecimento (Abreu e Silva, 2004). Quarenta e três anos depois, a atualidade de sua obra traduz-se pelo seu incontestável valor heurístico em diferentes campos do saber, tais quais a Psicologia, a Psiquiatria, a Psicopatologia, a Educação e o Acompanhamento Terapêutico, para citar apenas alguns exemplos recentemente mapeados (Faizibaioff & Antúnez, 2014, p. 52-53). Neste mesmo ano aconteceu, na cidade de São Paulo, o Primeiro Simpósio Internacional de Psicopatologia Fenomenológica, origem da presente investigação.
Minkowski participou do próprio desenvolvimento do conceito de psicopatologia, compreendida eticamente como uma psicologia do pathos humano (Pereira, 2004). E, por haver se aproximado da dimensão essencial, estrutural, enfim, antropológica do sofrimento vivido (Barthélémy, 2012), sua extensa produção vem contribuindo consideravelmente para a clínica psiquiátrica e para a própria prática psicoterápica contemporâneas (Abreu e Silva, 2004). A tal ponto que a obra de Minkowski oferece uma sólida base para uma psicologia a ser desenvolvida no século XXI (p. 50).
Psiquiatria e Psicopatologia
Se adotarmos um referencial diagnóstico cuja base metodológica repouse, fundamentalmente, na análise estatística (APA, 2013), inversa e ideologicamente, estaremos pressupondo a subordinação da normatividade vital, enquanto faceta ontológica, ao conceito historicamente construído de média estatística (Canguilhem, 2011). Uma vez que "não existe fato que seja normal ou patológico em si" (p. 96), "se podemos falar em homem normal... é porque existem homens normativos, homens para quem é normal romper as normas e criar novas normas" (p. 112). Assim, na consideração daquilo que será identificado como patologia, é imprescindível contemplar a experiência vivente do sujeito (Kranksein), bem como atentar às representações culturais do binômio saúde-doença de dado período histórico (Jaspers, 1913/1987).
Este último ponto nos remete ao próprio nascimento das disciplinas psiquiátrica e psicopatológica, que só vieram a separar-se, a rigor, em 1913, com a publicação de Psicopatologia Geral de Jaspers (1883-1969) (Moreira, 2011). Ainda que, para satisfazer as exigências decorrentes dos casos particulares, o psiquiatra lance mão, como psicopatólogo, de conceitos e princípios gerais (Jaspers, 1913/1987, p. 11), a Psicopatologia constituiu-se como ciência essencialmente não-médica (Moreira, 2011).
Já o termo "psiquiatria" fora utilizado pela primeira vez em 1808 (Marneros, 2008). Contudo, somente 30 anos mais tarde, na França, uma legislação específica transformou o termo em tema disciplinar científico na administração de um problema fundamentalmente social, político e jurídico; a periculosidade do louco (Silva & Holanda, 2014, p. 128). Inicialmente alicerçado no tratamento moral de Pinel (1745-1826) e Esquirol (1772-1840), as bases psicodinâmicas implícitas no modelo psiquiátrico francês logo seriam abaladas pelo paradigma biomédico dos alemães Morel (1809-1873) e Kraepelin (1856-1926), que propuseram uma "teoria degeneracionista e localizacionista" para as doenças mentais (Silva & Holanda, 2014, p. 134). De forma que o paradigma biomédico kraepeliano presta-se como fundamento epistemológico dos atuais manuais estatísticos no campo da psicopatologia dominante (Messas, 2008).
Psicopatologia fenômeno-estrutural
A psicopatologia descritiva de Jaspers (1913/1987) inaugurou-se a partir da adoção do método fenomenológico do primeiro Husserl (Moreira, 2011). Foi, logo adiante, ampliando seu escopo metodológico e de objetos de estudo, ao beber das profundas pesquisas ontológicas e das experiências clínicas revolucionárias com pacientes psiquiátricos empreendidas por nomes como Eugène Minkowski (1885-1972). Este psiquiatra, psicopatólogo e fenomenólogo de origem russo-polonesa contribuiu na humanização da forma de compreender e tratar os transtornos psiquiátricos (Abreu e Silva, 2004; Antúnez & Santantonio, 2008), questionando o paradigma estritamente biomédico. Afinal, a Psicopatologia proposta por Minkowski (e também por Bleuler), "diferentemente da ênfase descritiva e classificatória de Kraepelin, fundava-se na busca da delimitação precisa do 'transtorno gerador' do distúrbio mental" (Pereira, 2004, p. 126).
A noção de transtorno gerador colocava em segundo plano os sinais e sintomas observáveis a partir dos quais se pretendia diagnosticar uma enfermidade mental. Isto implicava ver a patologia como uma verdadeira modificação estrutural do sujeito em sua totalidade antropológica. Diz o psicopatólogo: a síndrome mental não é mais para nós uma simples associação de sintomas, mas a expressão de uma modificação profunda e característica da personalidade humana, citado por Barthélémy, 2012, p. 96). A configuração sindrômica que se apresenta à observação no exame psíquico, então, acontece secundariamente, como consequência dos mecanismos de compensação fenomenológica (Minkowski, 1927/2000).
As compensações fenomenológicas, no exemplo da esquizofrenia, "longe de serem mecanismos psicológicos que podem chegar, ao hipertrofiarem-se, à desagregação esquizofrênica, não encerram mais do que tentativas de compensação que pretendem atenuar dita desagregação" (Minkowski, 1927/2000, p. 207). Neste caso, elas podem resultar na compensação por uma temporalidade espacializada ao extremo, marcada pelo racionalismo mórbido, no êxodo do sujeito para um passado idealizado ou para um futuro previsto igualmente inconsistente ou no "autismo pobre" (p. 206). Ditas possibilidades compensatórias, assim, "podem transformar-se, por si mesmas, em um perigo para o indivíduo. Tais são o papel e os perigos da febre nas enfermidades infecciosas" [itálicos nossos] (p. 208).
Além da valorização essencial, na Psicopatologia Fenômeno-Estrutural de Minkowski (1966/1999), das alterações estruturais do tempo vivido e da interpessoalidade nas diferentes manifestações mórbidas, a analogia acima destacada destas com as enfermidades infecciosas revela sua concepção pessoal do binômio saúde-doença. Nela, opera-se uma indistinção entre o mental e o físico, não isenta de consequências diagnósticas, terapêuticas e, até, políticas. Segundo Canguilhem (2011):
Achamos, em resumo, que considerar a vida como uma potência dinâmica de superação, como Minkowski, cujas simpatias pela filosofia bergsoniana se manifestam em obras como La schizophrénie e Le temps vécu, é obrigarse a tratar de modo idêntico a anomalia somática e a anomalia psíquica. (p.74)
A psicopatologia fenômeno-estrutural abre, assim, a necessidade de abordagem diagnóstica (e terapêutica) do homem em sua totalidade estrutural, na qual incidem a experiência temporal e a relação interpessoal (ou a impossibilidade de acontecimento destas) como facetas inalienáveis de sua existência (Antúnez, 2006). Como buscaremos explicitar em seguida, ao compreendermos o paciente no âmbito de um diagnóstico, ainda que situacional, fazemo-no, segundo Minkowski (1938), "como homens, e não como especialistas" (p. 77). Afinal, "o homem está feito para buscar o humano" (Minkowski, 1997a, p. 232).
Facetas biográficas, influências e rupturas médico-filosóficas
Tudo em Eugène Minkowski é excepcional: sua vida, sua obra social, sua obra intelectual, seus talentos de clínico, sua coragem diante das adversidades de duas guerras mundiais, enfim e sobretudo, seus próximos, sua esposa Françoise, seu filho Alexandre e sua filha Jeannine. (GRANGER, 2009, p. 7)
Assim começa o prefácio de Bernard Granger ao único livro existente sobre a biografia de Eugène Minkowski e Françoise Minkowska, escrito por Jeaninne Pilliard, filha do casal Minkowski, aos 90 anos de idade (Pilliard-Minkowski, 2009).
Eugène Minkowski é um dos grandes nomes da psiquiatria francesa do século XX. Já na década de 1910, lá introduziu o pensamento de Husserl, até então desconhecido em solo francês (Abreu e Silva, 2004). O método fenomenológico e a filosofia de Bergson abriram-lhe o concreto e mais direto caminho, rumo às essências, as quais concebeu, posteriormente, como estruturas da vivência (Barthélémy, 2012).
Seu maior trabalho é A esquizofrenia (Minkowski, 1927/2000), onde encontramos sua concepção pessoal desta psicopatologia. Segundo seu amigo Binswanger (1973), "ao nomear E. Minkowski, temos que reconhecer, com gratidão, que foi o primeiro a introduzir praticamente a fenomenologia na psiquiatria, precisamente na esfera da esquizofrenia, e valorizou-a frutuosamente neste âmbito" (p. 185). É a perda do contato vital com a realidade, o transtorno gerador dessa afecção, de tal forma que seus sintomas constituem-se, tão somente, como manifestações secundárias ou periféricas. A obra de Minkowski, assim, não é em nada próxima a um manual, mas, antes, um presente para o espírito humano (Antúnez, 2006).
Sua esposa, Françoise Minkowska, também realizou, à esteira do método fenômeno-estrutural inaugurado por Eugène, um trabalho pessoal sobre o método elaborado por Hermann Rorschach: Le Rorschach, à la recherche du monde des formes (Minkowska, 1956/1978). Por meio da linguagem e dos estudos de Minkowski, ela observava e colocava em primeiro plano os mecanismos essenciais de ligação (lien), na epilepsia, e de corte (spaltung), na esquizofrenia, buscando, para além do trabalho estatístico e das classificações padronizadas, o que era vivo e morto na percepção de si, do outro e do mundo.
Jeannine Pilliard nos presenteia com dados preciosos sobre a personalidade e vida cotidiana de seus pais. Ela nos conta que, no testamento de Eugène, ele indicara o Professor Lanteri Laura para continuar seu trabalho, quem o fez com dedicação e fidelidade, inclusive dando o nome "Eugène Minkowski" a uma sala do Departamento de Psiquiatria do Hospital Esquirol (Pilliard-Minkowski, 2009).
Segundo Allen (1927/2000), Minkowski, originário de uma tradicional família judaico-polonesa, nasceu em 17 de Abril de 1885, no seio do então império moscovita, São-Petersburgo. Lá, seu pai Augustes estabeleceu-se e enriqueceu com o comércio de sementes. Mas é em Varsóvia, aonde a família retorna em 1892, refugiando-se da sanguinária onda de pogroms promulgada pelo tsar Alexandre II (Margulies, 1971), que ele passa sua juventude, com seus três irmãos e seus pais. Havendo, inicialmente, planejado estudar matemática e filosofia, inscreve-se na Faculdade de Medicina, onde o curso estava sendo emitido em russo. Após sua participação em uma manifestação que reclamava o retorno da língua polonesa na universidade, ele é levado pela polícia e preso. Em seguida a esta revolta, as autoridades fecham a faculdade de Varsóvia e, em 1908, Eugène é forçado a terminar seus estudos em Munique. Ele, então, junta-se a seus três irmãos - Michel (Miecyslaw), Paul e Anatole (Tolek) - que também estudavam em cursos superiores.
Pilliard-Minkowski (2009) conta que seus pais, ainda amigos, viajaram à Kazan (Ucrânia) para validar seus diplomas de medicina. Depois, Françoise trabalhou em uma casa de saúde para doentes mentais, próximo a Varsóvia, e, em seguida, partiu para Munique. É lá, no palco do reencontro com Eugène, que segue com seus cursos de matemática e filosofia. Naquele momento, ele pensava seriamente em abandonar a medicina para se dedicar unicamente à filosofia, sob influência do Essai sur les données immédiates de la conscience, de Henri Bergson (Bergson, 1888), e da Fenomenologia dos Sentimentos da Simpatia de Max Scheler (Scheler, 1923/2005).
No âmbito médico, as noções bleulerianas de fechado e aberto - traduzidas ontologicamente pelas de esquizoidia e sintonia enquanto dois princípios elementares da vida -serão sempre, para Minkowski, uma inesgotável fonte de inspiração. Permanece, assim, fiel à medicina, e nele enraíza-se, para toda sua vida, uma dupla paixão: a psiquiatria e a filosofia, que convivem em harmônica retroalimentação em sua obra pessoal (Faizibaioff & Antúnez, 2014).
Em 1913, Françoise retorna a Zurique e, por intermédio dela, Eugène entra como assistente na clínica Burghözli, sob supervisão do professor Bleuler. No mesmo ano, ela casa-se com Eugène, em uma cerimônia simples, acompanhado de seus poucos, mas significativos amigos (Pilliard-Minkowski, 2009).
"A mão esticada, eu a vejo sempre!"
Sua filha, Janinne, informa-nos a respeito de uma vivência marcante de seu pai, quando ele relatou o período de convocação para o exército francês enquanto soldado, em um raríssimo manuscrito intitulado Do tempo da estrela amarela:
Eu ignorava ainda tudo sobre a guerra, tudo das forças armadas, quase tudo da França. Era durante a batalha de Champagne (leste) que o regimento estava alinhado. Em Saint-Hilaire, eu fui acolhido na direção do serviço de saúde do corpo das forças armadas por um jovem médico que tinha uma medalha de nível de coronel, condecorado já na legião de honra e da cruz de guerra com palmas, o doutor Fribourg-blanc, médico geral, tendo ele também, ao longo desses últimos anos, "sido um bom soldado". Com ele fui à linha de frente, nós tínhamos que cumprir uma parte do trajeto juntos. Jovem, não sabendo nada ainda da técnica da vida nas trincheiras, eu não me sentia à vontade. O tempo era cinza, úmido; uma garoazinha, o solo estava escorregadio. Na hora de pular por cima de um buraco mais largo e mais profundo que os outros, eu hesitei, tropecei e quase caí. De repente, do fundo da trincheira, mão se estendeu na minha direção, uma mão larga e vigorosa, coberta de lama. No início, eu só vi a mão; em seguida, atrás da mão, descobri um barbudo coberto de lama ele também, com uma capa nos ombros para se preservar da chuva, ele estava cavando a trincheira. Eu não me lembro mais do rosto dele, mas a mão esticada, eu a vejo sempre. Largamente aberta, ela me impedia de cair, reequilibrou-me permitiu-me continuar meu caminho. Um pacto foi selado (Minkowski, 1945, citado por Pilliard-Minkowski, 2009, p. 21).
Para Minkowski (1966/1999), podemos conhecer muito de uma pessoa apenas pelo aperto de mão. Outro acontecimento que marcou sua vida deu-se enquanto estudava Os dados imediatos (Bergson, 1888). Ele diz: "caiu em minhas mãos o livro de Max Scheler, A fenomenologia dos sentimentos de simpatia. Foi por isso que eu penetrei na fenomenologia" (Minkowski, 1997b, p. 193). A porta de entrada à Fenomenologia foi-lhe a marca originária que é nossa vida afetiva, e não tanto a "percepção com a intencionalidade, que, na sua essência, ela revelou. Em psicopatologia é a afetividade que, conforme as tendências contemporâneas, é vinda a situar-se em primeiro plano de nossas preocupações" (p. 194). Se a afetividade é a porta de entrada para a fenomenologia, ao invés da percepção, é porque a vida precisa ser vivida, e não meramente resolvida. Nesta empreitada, "o homem não só se adapta; cria, e, neste incessante esforço criador... tenta imprimir sua marca pessoal ao ambiente" (Minkowski, 1927/2000, p. 60). Finda uma obra pessoal, ela de nós se destaca e integra-se ao devir circundante, permitindo-nos ser visitados pela experiência temporal da eternidade (Minkowski, 1933/1973).
É, assim, a afetividade-pulsão e a afetividade-contato (Minkowski, 1997b, p. 194), a solidariedade humana ou a falta dela, que estão na essência de seus interesses, mais do que a intencionalidade da consciência. "Bom ou mal contato com a realidade-ambiente" (p. 195), avaliados por uma personalidade vivente (personalité vivante), visando compreender, em seu meio, as deficiências globais de dito contato. Longe de descrever os sintomas, o método fenômeno-estrutural volta-se à pessoa, ao pessoal, ao vivido. Considera, portanto, todas as manifestações psíquicas como uma unidade: os vários fenômenos têm um fundo comum, estrutural e dinâmico, ancorado na personalidade (Barthélémy, 2012). Viàla (1998), a respeito da perspectiva fenômeno-estrutural, afirma que, em contraste com a atitude explicativa, ela adota no campo psicopatológico uma atitude compreensiva (p. 143), cujos fundamentos Minkowski foi um dos primeiros a identificar. Em suas próprias palavras:
A fenomenologia nos convida a demorarmo-nos sobre os fenômenos a fim de precisar suas características fundamentais. Antes de conhecer a origem, nós devemos saber o que eles são, quais são os elementos que aportam, cada um em sua especificidade, ao contexto geral da existência. (Minkowski, 1966/1999, p. 456)
Se "ir rapidamente não é suficiente" (Minkowski, 1933/1973, p. 7), no método fenômeno-estrutural elege-se a observação prolongada e compenetrada como seu fundamento basilar. É o homem deteriorado que nos interessa, mais do que a deterioração propriamente dita (Vialá, 1998). A crítica à noção kraepliana de demência acontece na medida em que, ao que esta encerra a ideia de "perda irreparável das funções psíquicas", estaria feita "para paralisar toda tentativa de tratamento" (Minkowski, 1927/2000, p. 216). Sobre o alcance terapêutico da noção de Esquizofrenia, o autor sintetiza:
Já não abordaremos o esquizofrênico como um demente, para assistir, como espectadores inabaláveis, à evolução fatal de seu mal; agora, vemos nele, justamente, um "esquizofrênico", quer dizer, um indivíduo que rompe os laços com o ambiente e cuja atitude perturbada pode ser combatida. (p. 226)
Barthélémy (2012) esclarece que a análise fenômeno-estrutural implica um método de apreciação da linguagem no qual a atenção volta-se às qualidades expressivas do espaço e, sobretudo, do tempo vividos, os quais passam a ser apreciados nas características psicopatológicas e psicológicas da personalidade. Este foi, aliás, um ponto de ruptura com a filosofia bergsoniana, quando Minkowski criticou o "descrédito lançado por Bergson sobre uma linguagem considerada como intermediário confiável na restituição da realidade vivida" (p. 95). Pois,
lá onde Bergson sustentava que o pensamento discursivo, que a linguagem, se mostrava incapaz de reproduzir estes 'dados imediatos da consciência', Minkowski demonstra que se pode, pelo contrário, apoiar-se sobre ela para acessá-los; considera, assim, a linguagem como um dos mediadores essenciais de nossa função expressiva, e executará uma fenomenologia da linguagem, permitindo atingir principalmente as alterações do tempo vivido nos seus pacientes e, mais amplamente, as grandes linhas de abordagem desta no seio de cada uma de nossas individualidades. (Barthélémy, 2012, p. 96)
A perspectiva fenômeno-estrutural aparece primeiramente denominada num artigo de 1923, em que Minkowski (1923/1970) empreende uma "Análise psicológica e fenomenológica de um caso de melancolia esquizofrênica". Mas é em 1927, em "A Esquizofrenia", que Eugène explicita claramente em que consiste sua concepção pessoal deste novo método psicopatológico:
A esquizofrenia envelheceu desde seu nascimento, envelheci com ela, talvez até mais rápido que ela. E por isso, ao propor-me escrever este livro, tive que admitir rapidamente que minha idade psiquiátrica levava-me irresistivelmente a dar não uma exposição histórica e objetiva, senão minha concepção pessoal do problema. Desde então, pessoal não quer dizer "totalmente nova"; esta palavra só quer dizer "vivida". Ao inspirar-me nas ideias dos demais, ao estudar e observar meus doentes, ao refletir acerca dos dados obtidos, encontrei-me um dia - sem dar-me conta eu mesmo - em presença de uma concepção da esquizofrenia que tomava corpo em todo o meu pensamento científico, que era incapaz de separar de minha pessoa, e em referência à qual já não podia dizer o que é meu e o que não me pertence. Entendamo-nos. Nada é meu já que tudo, felizmente, vincula-se com os trabalhos dos demais; mas, por outro lado, parece-me que tudo é meu posto que não aceitei mais que aquilo que pôde passar pela peneira de minha própria experiência e voltar a fundir-se no crisol de meu próprio pensamento. Equivale a dizer que aqui apresento uma obra subjetiva a qual, ainda assim, tende com todas as suas forças em direção à objetividade. [itálicos nossos] (Minkowski, 1927/2000, p. 29-30)
Para além dos sinais e sintomas típicos que ele, evidentemente, não negava existirem, deu-se conta da perda do contato vital e dinâmico com a realidade, com o ambiente circundante, por parte dos esquizofrênicos. Elevou-a à categoria essencial, ou melhor, estrutural desta afecção. Nós, clínicos, fazemos parte deste ambiente e desta realidade, essencialmente comunitários, no qual "não só temos o paciente, senão todo o ser humano diante de nós" (Minkowski, 1927/2000, p. 217). Ele, enfim, desenvolveu seu modo pessoal de abordar a Psicopatologia, e especulava sobre a interdisciplinaridade potencial de seus achados:
Espero que... possam tirar algum proveito de minhas investigações... tanto o psicólogo como o pedagogo ou o homem de letras, até o psiquiatra quem, ao mesmo tempo em que se protege atrás da clínica, no fundo sempre é mais psicólogo do que ele mesmo está disposto a admitir (p. 31).
Segundo Minkowski (1927/2000), sua obra parte das "origens espirituais" de Bleuler e Bergson: o primeiro ensinou-lhe a psiquiatria, enquanto o segundo mostrou-lhe como tinha que abordar os fenômenos essenciais de nossa vida (p. 32). Não bastava para Minkowski, contudo, simplesmente adaptar-se aos novos conhecimentos advindos da concepção de Esquizofrenia através de seus mestres. Pois, frisemos, "o homem não só se adapta; cria e, e nesse incessante esforço criador, arrasta com ele todo o universo e o faz progredir constantemente" (p. 60).
Temporalidade e interpessoalidade no âmbito diagnóstico
Em 1933, foi publicado O Tempo Vivido, obra clássica que compreende dois livros. Minkowski (1933/1973), no primeiro deles, une o aspecto pessoal ao fenômeno do tempo, mas não àquele estritamente cronológico, elevado à categoria de primazia pela moderna cultura industrial, senão ao tempo-qualidade de Bergson (1888). Ali, defendeu que, em essência, não se tratava de "ter tempo livre, senão de aprender a viver e a avançar livre e espontaneamente no tempo. O problema do tempo... convertia-se, assim, no problema mais vivo, o mais pessoal para cada um de nós"(p.9). Já a barbárie vivida na primeira guerra mundial "modificou profundamente minha vida"(p. 11). Não podia ele, assim como outra importante fenomenóloga discípula de Husserl, Edith Stein (Stein, 2005), apenas filosofar naquelas condições...
Já no livro II, Minkowski (1933/1973) discorre sobre a estrutura espaçotemporal das perturbações mentais. Em suas orientações gerais, indica-nos que estão "os dados fenomenológicos e psicopatológicos... tão entrelaçados" que, a não ser para fins didáticos, são "inseparáveis", como "os membros de uma família" (p. 161). Esta obra, na totalidade, opera uma verdadeira "retroalimentação entre os campos da Filosofia e da Psicopatologia" (Faizibaioff & Antúnez, p. 50). Afinal, se,
de um lado, as considerações fenomenológicas, às vezes demasiado abstratas em si, faziam-se, por assim dizer, mais "palpáveis" pelo feito de aplicá-las à psicopatologia.... pelo outro, as investigações psicopatológicas empreendidas neste sentido ajudaram, mais de uma vez, a revisar os dados fenomenológicos, a completá-los. (Minkowski, 1933/1973, p. 161)
E assim passa aos exemplos clínicos, que nos interessam aqui especialmente. Como primeira vinheta clínica, Minkowski (1933/1973) traz o caso de um antigo coronel do exército russo, de 49 anos, já indicando, no título desta seção, a perspectiva pessoal que destacamos neste artigo: "Nossas próprias reações em presença do paciente como meio de investigação dos transtornos mentais" (p. 162). Afetado por perturbações mentais já há muitos anos, fechado em si mesmo, este senhor vinha afastando-se de sua família e amigos. Participara da I Grande Guerra entre 1914 e 1918. Após a revolução bolchevista russa, em 1917, fugiu e refugiou-se na França, passando a levar uma miserável vida de operário. Na ocasião do acompanhamento, o paciente havia se internado em uma instituição psiquiátrica.
Seu comportamento, a princípio, é adequado, atento e educado. Queixase, apenas, de dores no corpo, as quais atribui à fadiga dos últimos anos. Contudo, "tão somente alguns dias depois, já em confiança, nos fala de seu delírio"(Minkowski, 1933/1973, p. 163), o qual vinha guardando para si, sem demonstrar desconfiança ou agressividade. O paciente, então, passa a apresentar pensamentos delirantes de grandeza e perseguição, além de ideias místicas e de suposta adivinhação dos pensamentos alhures, notando-se intenso trabalho imaginativo ao menos atento exame psíquico. Minkowski dá-se conta, aí, de "toda miséria de sua vida atual; a fome, as privações, o duro labor entrelaçam-se com ideias delirantes" (p. 164). No contato interpessoal, em determinado momento, ele é surpreendido por um acontecimento em si:
Um dia, a força de escutá-lo no desenvolvimento das mesmas ideias, sinto surgir em mim um sentimento particular, sentimento que mentalmente traduzo com as palavras "sei tudo dele". Este sentimento faz-me refletir. O que ele quer dizer no fundo? Certo que não podia concernir-me enquanto clínico; eu poderia haver enumerado os sintomas e dado o diagnóstico desde o segundo ou terceiro exame clínico do doente.... (mas) ignorava quase tudo do passado de meu doente. O que queria dizer, então, o "sei tudo dele"? Deixo por um momento o paciente e dirijo meu olhar em direção a mim mesmo. Um detalhe me surpreende. O "sei tudo dele" não me é acompanhado de um sentimento de satisfação, como acontece quando se trata da aquisição de novos conhecimentos completos relativos a um tema preciso. Pelo contrário, sentiame presa de um certo mal-estar, como se ao contato com meu doente algo se rompesse em mim. Deste modo, o "sei tudo dele", em lugar de traduzir-se em algo positivo, soava para mim, ao contrário, como uma perda, um empobrecimento, como uma brecha aberta nas relações habituais de homem a homem. [parênteses e itálicos nossos] (Minkowski, 1933/1973, p. 165)
Esta vivência peculiar chama-lhe a atenção, uma vez que, "na presença de indivíduos normais, nunca experimentamos um sentimento deste tipo"(Minkowski, 1933/1973, p. 166). Em sua antropologia, "este 'desconhecido' que parece constituir o fundo mesmo do ser humano" (p. 166), nosso "'foro interno'" (p. 53), "está sempre presente por detrás dos fenômenos ideoafetivos que vêm a formar, na vida diária, a esfera de interação com nossos semelhantes" (p. 166). Nossos conhecimentos sobre alguém, por mais extensos que sejam, jamais tocam esta "fonte vital poderosa e inacessível" (Faizibaioff & Antúnez, 2014, p. 68); antes, deixam intacto este fundo desconhecido, tão indispensável à vida. Num contato interpessoal normal, então, não deveria surgir nada análogo ao "sei tudo dele". Até se poderia dizer: "posso conhecer alguém, mas no fundo nada sei dele. Isto constitui o valor da vida" (Minkowski, 1933/1973, p. 166).
Minkowski (1933/1973) percebeu que, se ao contato interpessoal falta esta vivência do desconhecido proveniente do fundo comum com nossos semelhantes, estamos diante de um alienado. Por isso que, ao classificarmos um paciente como tal, fazemo-no "como homens, e não como especialistas" (Minkowski, 1938, p. 77). Tudo neste paciente encontra-se como uma projeção racional no plano discursivo do pensamento, o que "cria em nós a impressão de algo imóvel, morto". Nele, "as forças vitais parecem esgotadas; chegaram a ser presas dos fatores racionais, que se infiltraram nos mais profundos rincões de seu ser, reduzindoos ao nada" (Minkowski, 1933/1973, p. 167).
A vivência de saber tudo sobre alguém, continua o psicopatólogo, é um sentimento doloroso para nós. Experimentamo-la de forma penosa, enquanto o paciente, em seu delírio de grandeza e adivinhação do pensamento alheio, enxergava-a como uma superioridade: "ele, em tudo, substitui o vivo pelo imóvel,
o irracional pelo racional, a intuição do infinito pelo conhecimento do finito"(Minkowski, 1933/1973, p. 168). É assim que, em suma, este paciente não ansiava ser alguém, senão cria que já o era. Encontrava-se, em essência, "alienado brutalmente do devir", fora do escopo do tempo vivido em sua totalidade fenomenológica (p. 168).
Em seguida, Minkowski (1933/1973) descreve o caso de outro paciente, quem acompanhou durante seis semanas, dia e noite, em seu ambiente cotidiano. Esta "Análise psicológica e fenomenológica de um caso de melancolia esquizofrênica" já havia por ele sido publicada uma década antes (Minkowski, 1923/1970), sendo considerada o início da psicopatologia fenômeno-estrutural (Minkowski, 1997a). Quando acompanhara este senhor de 66 anos de idade, em condições clínicas tão radicais, Minkowski (1923/1970) atentou, sobretudo, às vicissitudes da relação estabelecida entre eles. E a este respeito sintetizou:
onde Bergson sustentava que o pensamento discursivo, que a linguagem, se mostrava incapaz de reproduzir estes 'dados imediatos da consciência', Minkowski demonstra que se pode, pelo contrário, apoiar-se sobre ela para acessá-los; considera, assim, a linguagem como um dos mediadores essenciais de nossa função expressiva, e executará uma fenomenologia da linguagem, permitindo atingir principalmente as alterações do tempo vivido nos seus pacientes e, mais amplamente, as grandes linhas de abordagem desta no seio de cada uma de nossas individualidades. (Barthélémy, 2012, p. 96)
Através desta complicada relação interpessoal sustentada, revelou-se uma diferença em relação à vivência temporal entre eles. No clínico, o devir estava em aberto, descortinando-lhe "um futuro infinito de possibilidades, indefiníveis e imprevisíveis por essência" (Faizibaioff & Antúnez, 2014, p. 63). Já para o paciente, o devir encontrava-se fechado, na medida em que lhe era impossível experimentar o futuro vivido como este mar de possibilidades infinitas. Muito pelo contrário, ao alienado todas estas potencialidades reduziram-se a apenas uma, da qual não conseguia livrar-se em hipótese alguma: uma punição mortal e humilhante estavalhe reservada num futuro imediato, certeza esta que determinava toda a sua sintomatologia esquizofrênica. Analisou Minkowski (1923/1970): "tal propulsão em direção ao porvir falta completamente em nosso enfermo" (p. 23).
Apesar de dois semelhantes que, às vezes, faziam algum contato sintônico ("certa equivalência entre as notas de uma e outra"), na maior parte do tempo era a separação e a ruptura que reinavam entre clínico e paciente ("duas melodias radicalmente desarmônicas"). A este lhe era furtada a vivacidade que palpitava no então jovem residente de psiquiatria, sendo que mal distinguia um objeto de uma pessoa: "não são homens vivos que o perseguem; os homens transformaramse em perseguidores e somente nisto" (Minkowski, 1923/1970, p. 28).
Tratando de priorizar e suportar os "inconvenientes que pode apresentar uma simbiose deste tipo", Minkowski (1923/1970, p. 15) pôde, em registro pessoal, compreender o caso em questão de maneira mais profunda do que aquela permitida apenas pelo exame psíquico das funções mentais. Ele reconheceu a contribuição não só diagnóstica, mas também terapêutica de haver se disposto a penetrar a tal ponto no ambiente cotidiano do paciente: "minha companhia lhe serve de certa ajuda" (Minkowski, 1933/1973, p. 179). Mais vale "um laço frágil e pouco profundo" do que "o vazio absoluto" (Minkowski, 1927/2000, p. 193).
Diagnóstico por Compenetração
Foi, em suma, pela análise das relações compenetradas, estabelecidas com seus pacientes, que Minkowski (1927/2000) constatou as alterações do tempo vivido nos transtornos mentais, buscando "o essencial, a alma do alienado" (p. 71). Assim, por exemplo, observou que "o ritmo do maníaco é demasiado rápido com respeito ao nosso", embora ele permaneça "em contato permanente com seu entorno" (p. 43). Também "o depressivo melancólico jamais se desinteressa por completo de seu entorno" (p. 43). Atento a este último, é na relação mesma que ele encontrou uma outra perspectiva em relação aos esquizofrênicos,
apesar de sua monotonia e da pobreza de seu pensamento, da persistência de seu estado de tristeza, encontramos facilmente uma porta de entrada a seu psiquismo. Seu sofrimento moral, seu desânimo, sua tristeza, conservam um aspecto humano, parecido ao nosso... A atitude do esquizofrênico é totalmente diferente. O ambiente já não parece afetá-los..., nos parecem impenetráveis. Não compreendemos esses enfermos, não temos com eles contato afetivo (affecktiver Rapport de Bleuler). [itálicos nossos] (p. 43)
As próprias vivências e comportamentos do clínico, seus aspectos pessoais, vividos, constituem-se, então, como importante ferramenta diagnóstica. E isto quase 30 anos antes de o conceito psicanalítico de contratransferência - o qual versa sobre a fenomenalidade do psiquismo do analista quando do encontro clínico com seus pacientes - superar seu estado originário de potencial e perigoso "obstáculo à análise" (Minerbo, 2012, p. 44), quando então era identificado como "reações imprevistas", indesejáveis, fruto de "erros de manipulação" (p. 45).
Subordinando "a simples enumeração dos sintomas às novas noções de esquizoidia e sintonia", as quais "se referem, frente a tudo, à afetividade e à atividade do sujeito", Minkowski (1927/2000, p. 78-79) esclarece que,
para apreciá-las, levamos em nós um instrumento infalível. É nossa própria esfera afetiva, nossa própria personalidade. Na vida, quando se trata de apreciar a um de nossos semelhantes, não nos contentamos com a enumeração de suas reações, analisando-as e classificando-as à luz, unicamente, de nossa razão. Nos deixamos guiar, também, por nossa intuição, que tenta penetrar a personalidade do outro, por meio das sensações de frio e de calor que experimentamos em sua presença, por nossa faculdade de fazer nossos seus sentimentos e suas reações, de colocarmo-nos em seu diapasão, de "compreendê-lo", no sentido "sentimental" ou, melhor, irracional da palavra"... Observar como um espectador inabalável, como se faz quando olha-se um corte ao microscópio, enumerar e classificar sintomas... não nos bastará. Também colocaremos em jogo nossa personalidade viva, e avaliaremos, confrontando-a com ela, o caráter particular da maneira de ser do nosso doente. Apesar de nossa razão, faremos intervir nosso sentimento [itálicos nossos] (p. 79-80).
Não se trata, aqui, de sentimentalismo, mas de propor-se a sentir com o paciente e apreender como ele se sente. Tal é o método que Minkowski (1927/ 2000), próximo a Binswanger, mas também imprimindo-lhe sua marca pessoal, denominada de diagnóstico por compenetração. Eis o fundamento de sua psicopatologia fenômeno-estrutural. Trata-se do mesmo patamar de importância do "diagnóstico por razão" (p. 80), isto é, daquele que consiste na clássica descrição fenomênica das alterações quantitativas e qualitativas das funções psíquicas. Minkowski (1927/2000) eleva o da interpenetração. O diagnóstico por compenetração, inclusive, será "muito frequentemente o mais importante" (p. 80). É justamente o que temos visto quando nos propomos a compreender e acompanhar pacientes graves (Faizibaioff & Antúnez, 2014; Faizibaioff, 2014; Antúnez, Barreto, & Safra, 2011), em condições de enquadre tão desafiadoras como aquelas quando Minkowski (1923/1970) inaugurou o Método Fenômeno-Estrutural.
A familiaridade com tal método adquire-se com larga experiência, no plano (inter)pessoal, vivido, quando nos dispomos à relação com as diferentes pessoas e suas diversas estruturas psicopatológicas. Estas repousam, antropologicamente, nas mesmas bases ontológicas que nos sustentam, neste mundo, enquanto semelhantes. Afinal, "não só temos o paciente, senão todo ser humano diante de nós. Nós mesmos formamos parte do ambiente no qual o paciente está destinado a viver e a evoluir" (Minkowski, 1927/2000, p. 217). O psicopatólogo não estuda um caso, mas sim O caso, na medida em que, agregando ao exame mental o diagnóstico por compenetração, "penetra na personalidade do outro em sua totalidade", percebendo-a, "em um só ato..., em tudo o que existe de vivo e morto nela" (p. 82).
No plano terapêutico, Minkowski (1927/2000) ressaltou que o fato de abordarmos o paciente integralmente, como um indivíduo dotado de um potencial endógeno para se curar, influi em toda a nossa atitude diante dele. Se não se trata de cura como, necessariamente, a busca pela total reversão do quadro mórbido (Messas, 2008), nossa postura "influi no pessoal, na família, em todo o entorno e tende, assim, a diminuir essa força hostil que é para o doente a realidade, da qual se afasta cada vez mais" (Minkowski, 1927/2000, p. 217). É no estabelecimento e manutenção de algum vínculo terapêutico, em sua faceta estrutural, que reside o coração da intervenção. Afinal, como já destacamos, "um laço frágil e pouco profundo" vale-nos mais do que "o vazio absoluto" (p. 193). Aqui, não mais nos encontramos no terreno da interpretação, senão, antes, no da interpenetração.
Considerações finais
Expusemos, ao longo deste artigo, como o pessoal, sinônimo de vivência afetiva ou fenômeno subjetivo, é pilar do método diagnóstico e terapêutico construído por Minkowski. A partir da análise de suas vivências pessoais na relação com os pacientes, o campo da psicopatologia enriqueceu-se com uma nova compreensão, fenomenologicamente fundamentada, ainda que por muitos não compreendida ou mesmo rechaçada. E isto tanto na sua como em nossa época. Tal é a resultante de tendências políticas, econômicas e científicas daquilo que, hoje, é objetivamente reproduzível como a boa ciência baseada em evidências
Mesmo quando da utilização dos instrumentos de testagem e avaliação psicológicas, ou mesmo no processo psicodiagnóstico, é possível e útil adotar uma postura compenetrada, embasada pelo método de Minkowski aqui apresentado. Assim o demonstraram, a título de exemplo, Barthélémy (2013) e Antúnez e Santantonio (2008) em relação aos dispositivos do Rorschach, TAT e WAIS-III.
Minkowski, como se pode depreender, não viveu apenas para reproduzir, senão para criar, transformar, propor e acessar as essências da vida. Chamou a atenção à afetividade e ao sentimento do clínico-examinador, não como produto que pode deturpar a compreensão do fenômeno, mas, inversamente, enquanto um meio de acesso privilegiado à compreensão do humano. Este humano quem, mesmo no âmbito da investigação científica, está feito para buscar o humano.
O pessoal só se manifesta porque houve uma relação, na e através da qual podemos conhecer algo desse alguém misterioso que se apresenta, diante de nós, com um pedido de ajuda.
Na medida em que pôde basear-se em, mas também diferenciar-se de seus mestres Husserl, Bergson, Bleuler e do amigo Binswanger, sua obra encontra-se na base de uma "fenomenologia psiquiátrica extremamente pessoal" (Granger, 2009, p. 7). Eis sua contribuição, relembrada e reavivada, para a presente problemática, tão difícil de ser cuidada e compreendida como a própria esquizofrenia ou qualquer outra psicopatologia.
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Recebido: 16/03/2015 / Corrigido: 02/04/2015 / Aceito: 06/04/2015.
1 Psicólogo clínico, especialista em Psicologia Hospitalar (HCFMUSP), Mestre do Depto de Psicologia Clínica do IPUSP e membro do Núcleo de Pesquisa e Laboratório PROSOPON (faizibaioff@usp.br). Contato: R. Capote Valente, 989 (Pinheiros). São Paulo (SP), CEP: 05409-022. Telefone: (11) 97126 6667, Brasil.
2 Professor Livre docente do Depto de Psicologia Clínica do IPUSP e vice-coordenador do Núcleo de Pesquisa e Laboratório PROSOPON (antunez@usp.br). Contato: Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Bloco F (Cidade Universitária). São Paulo (SP). CEP: 05508-030. Telefone: (11) 3091 4173, Brasil. 3
1 Todas as citações diretas de Minkowski foram por nós traduzidas para o presente trabalho.