Introdução
A violência por parceiro íntimo (VPI) é definida como todo comportamento que causa danos psicológicos, físicos ou sexuais, que são perpetrados por um parceiro(a) dentro de uma relação estável (WHO, 2021). A violência contra as mulheres é frequente em diversas culturas e compreende-se que reproduz as relações assimétricas de poder dos homens sobre as mulheres, se caracterizando como uma violação de direitos humanos (Moreira, Boris, & Venâncio, 2011). Segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 27% das mulheres casadas ou com parceiros fixos, entre 15 e 49 anos, já sofreu VPI ao menos uma vez no mundo. No Brasil, a estimativa é de 20% a 24% das mulheres (WHO, 2021). Em 2018 foram notificados 78.393 casos de violência perpetrados por parceiro íntimo da vítima no Brasil, 91,5% tendo mulheres como vítimas. A violência física totalizou 84,8% dos casos. A violência psicológica e violência sexual pelo parceiro íntimo foram mais notificadas por mulheres (Brasil, 2020). Observa-se um crescimento nos índices de assassinatos de mulheres nas últimas décadas no Brasil, sendo que em 1980 o país ocupava então a 7ª colocação entre 84 países. Atualmente a taxa de feminicídios no Brasil é registrada como a 5ª mais alta do mundo. Em 2019, 3.737 mulheres foram assassinadas no Brasil, uma redução de 17,3% em relação a 2018, mas que pode refletir uma alteração na forma de notificação, pois observou-se um crescimento de 35,2% nos registros de Mortes Violentas por Causa Indeterminada nesse mesmo período, totalizando 16.648 mortes em 2019 (IPEA, 2021). Partindo de uma perspectiva construcionista, considera-se que o fenômeno da violência contra a mulher é socialmente construído, relacionado à forma como se estabeleceram os papéis masculinos e femininos (Padilha & Antunes, 2015). Os papéis são conduta tipificadas e institucionalizadas, sendo socialmente construídos e internalizados através de uma relação dialética entre o indivíduo e seu meio social. A internalização dos papéis sociais se inicia na família (socialização primária) e continua a ocorrer durante toda a vida (na socialização secundária), em que o indivíduo entra em contato com pessoas de fora de seu círculo de relacionamento familiar. Novos papéis são integrados, colaborando para a produção da identidade e inserção do indivíduo em outros grupos sociais, atribuindo significados (Berger & Luckmann, 2014).
Pode ver-se facilmente que a construção de tipologias dos papéis é um correlato necessário da institucionalização da conduta. As instituições incorporam-se à experiência do indivíduo por meio dos papéis. Estes linguisticamente objetivados são um ingrediente essencial do mundo objetivamente acessível de qualquer sociedade. Ao desempenhar papéis, o indivíduo participa de um mundo social. Ao interiorizar estes papéis, o mesmo mundo torna-se subjetivamente real para ele (Berger & Luckmann, 2014, p.103).
O conceito de gênero refere-se essencialmente às diferenças dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres, e às diferenças de poder que caracterizam as relações assimétricas entre os sexos, em que a mulher ocupa sempre o papel de subordinação ao homem (Butler, 2008). De acordo com Scott (1995), o conceito de gênero tem como ponto de partida a estrutura social e a forma como as relações de poder se estabelecem na cultura do patriarcado, pois a mesma possibilita o controle e o acesso de maneira diferenciada de homens e mulheres às fontes materiais e simbólicas. Desta forma, o gênero atribui significados à relação de poder entre os sexos, e faz parte da concepção, bem como da construção das relações de poder (Alves & Antunes, 2021). Nas relações de gênero, está um dos núcleos do patriarcado, que dá ao homem a posse sobre a sexualidade feminina. Tal controle pode ser evidenciado na família tradicional, em que a esposa durante muito tempo pertencia ao domínio particular do marido (Saffioti, 2015). A discussão sobre as diferenças e semelhanças biológicas/sociais entre seres do sexo feminino e masculino existe há muito tempo na pauta da ciência social e “ao longo dos séculos, as pessoas utilizaram de forma figurada os termos gramaticais para evocar traços de caráter ou traços sexuais” (Scott,1995, p.2). Por meio do movimento feminista americano na década de 70, torna-se habitual o uso da palavra “gênero” no sentido em que é entendido mais recentemente, com o objetivo de trazer ao debate questões sobre as relações de poder, sobretudo na ótica do uso de convenções e aculturamentos como estratégia de dominação masculina sobre o sexo feminino. Nos últimos 50 anos, o movimento feminista tomou como um de suas principais bandeiras, modificar o cenário de vitimização de mulheres no relacionamento conjugal (Alves & Antunes, 2021). Por meio de denúncias de abusos e de maus-tratos, mas também por intermédio da denúncia das expressões que auxiliam a perpetuar a opressão, problemas que antes eram silenciados ou tratados como segredos do âmbito privado, passam a ter visibilidade social (Minayo, 2004). Reconhece-se, então, que a violência contra a mulher é uma problemática da esfera pública, que demanda política específica para seu enfrentamento, uma vez que se trata de um comportamento arraigado e naturalizado em inúmeras culturas e contextos sociais em que historicamente tem naturalizado aos masculinos atributos “naturais” de força e domínio e, ao feminino, de fragilidade e submissão. Nesse cenário social marcado pela desigualdade hierárquica entre os gêneros, em que o masculino está representado em posição superior ao feminino, enseja a naturalização e legitimação da violência exercida pelo parceiro em relação a sua companheira (Alves & Antunes, 2021; Ramos, 2012). Por sua complexidade, a violência por parceiro íntimo demanda um amplo olhar sobre seus múltiplos determinantes e para a busca de sua prevenção e tratamento (Carvalho-Barreto, Bucher-Maluschke, Almeida, & De Souza, 2009). A complexidade da temática das VPI exige considerar as condições estruturantes do tecido social brasileiro e da violência social, que se tornou uma questão pública tingida pelas desigualdades sociais. Exige, ao mesmo tempo, validar o enfoque no caldo cultural (re)produzido pelo sistema patriarcal, que é conhecido por gerar assimetria de poder nas interações humanas. O legado do patriarcado privilegia a dominação pelo gênero masculino e fertiliza as condições para o acirramento das violações de direitos humanos (Alves & Antunes, 2021; Batista, 2005; Connell, 2005). A violência por parceiro íntimo é um fenômeno complexo, que se institui a partir de uma dinâmica relacional violenta que mantém e perpetua a violência entre o casal. Esta violência ocorre de forma cíclica e progressiva, e vai paulatinamente aumentando em gravidade. O ciclo da violência ocorre em três fases: se inicia com uma fase de construção da tensão entre os parceiros, em que ocorrem pequenos incidentes como palavras agressivas que a princípio parecem estar sob controle e são socialmente aceitas. A seguir a tensão aumenta e as agressões passam a ser extremas. Na terceira fase, os parceiros entram numa espécie de “lua-de-mel”, em que a relação se reestrutura a partir de demonstrações de arrependimento do agressor, promessas de mudança e de nunca mais tornar a agredir, ocorrendo então o restabelecimento do relacionamento do casal. Este ciclo faz com que muitos casais permaneçam juntos apesar dos episódios graves de violência (Antunes & Padilha, 2015; Perrone & Nannini, 2007). Alguns fatores dificultam a integralidade do cuidado às mulheres vítimas de violência por parceiro íntimo. O primeiro fator é o silêncio das vítimas e dos diversos atores sociais é um dos principais agravantes para a falta de efetividade nos processos de denúncia e enfrentamento à violência contra a mulher. Fatores de diversas naturezas, que passam por variáveis emocionais, econômicas e sociais reforçam uma atitude de resignação das vítimas. Somente quando essa violência assume proporções insuportáveis é que finalmente a vítima parte para a denúncia e posteriormente faz o enfrentamento do problema. Em muitos casos, este período de silêncio é longo e pode culminar em fatalidades. A sociedade em modo geral inculca nas mulheres a tenacidade e resiliência para suportar o sofrimento, atribuindo-lhes a capacidade de perdão e compreensão. A dependência financeira e/ou emocional, o temor do julgamento, a falta de crédito e incompreensão por parte da família, amigos e comunidade, seriam alguns dos motivos deste silenciamento característico entre as vítimas (Nader & Amorim, 2017). Uma revisão (Arango et al., 2014) sobre prevenção à violência contra mulheres identificou 58 artigos de revisão sistemática usando métodos experimentais ou quase experimentais. Destes, 27 estudos obtiveram resultados positivos. Observa-se que 34 revisões eram especificamente sobre a prevenção à VPI e 15 apresentavam estudos com reduções estatisticamente significativas na ocorrência de VPI. Observou-se também uma ênfase maior na prevenção primária em países de baixa renda em comparação aos países mais ricos. No contexto brasileiro, observa-se que intervenções visando a prevenção da VPI com estudantes dentro do ambiente universitário são pouco exploradas, mesmo que a literatura internacional indique que podem reverter em resultados positivos para a minimização da violência (Webermann & Murphy, 2020). A Psicologia pode ter um papel fundamental nessas intervenções, bem como no treinamento e capacitação de futuros profissionais de diferentes áreas. A presente pesquisa teve por objetivo descrever o discurso das participantes de um programa de prevenção de violência contra a mulher por parceiros íntimos em uma universidade particular no sul do Brasil.
Método
Participantes
As intervenções foram realizadas com 30 mulheres, alunas de uma Universidade particular no sul do Brasil. A média de idade das participantes foi de 23 anos, 70% eram solteiras, 26,6% casadas e 3,3% divorciadas. A maioria afirmou que não trabalhava (80%). Dentre as que trabalhavam, a média da renda individual foi de R$ 1.300,00. A média da renda familiar foi de R$7.685,77. Com relação à cor/raça, 72,4% afirmaram que eram de cor branca, 17,2% amarela, 6,9% parda e 3,4% negra. Segundo a classificação socioeconômica do Critério Brasil, 23,3% das participantes pertenciam à classe A, 43,3% à classe B1, 26,7% à classe B2 e 6,7% à classe C1.
Procedimentos
As oficinas preventivas foram divulgadas na universidade e foram realizadas inscrições pelo site da própria instituição. Após as inscrições, foi realizado um contato com as participantes via e-mail para marcar o início das intervenções. A pesquisa teve um componente de avaliação, com a aplicação de um questionário antes e após as intervenções, mas esses dados não serão objeto de análise neste artigo. Apenas os dados sociodemográficos serão descritos, de forma a caracterizar o grupo que participou das intervenções. Os objetivos da pesquisa foram explicados e foi assinado o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) por todas as participantes. Após a assinatura do TCLE, todas foram convidadas a responder o questionário. A formação do grupo de intervenção se deu por meio da disponibilidade e interesse de cada integrante com relação as datas e horários propostos para as demais oficinas. As intervenções ocorreram semanalmente em seis encontros com duas horas de duração em cada encontro. As oficinas foram gravadas em áudio e as participantes foram orientadas que ao fazer comentários, utilizassem os seus códigos referentes aos questionários, para organizar a descrição dos dados e manter o sigilo de seus nomes. Na última oficina foi realizada uma avaliação de processo, em que foi utilizada a metodologia de grupo focal para discutir a repercussão da intervenção para as participantes.
Intervenções
1º Encontro
Objetivo: Apresentação dos Participantes e explicação sobre as intervenções.
A primeira oficina aconteceu em uma sala da universidade e contou com a presença de 30 mulheres. Ao dar início, a pesquisadora explicou quais os objetivos para essa intervenção de violência contra a mulher, leu o TCLE e entregou o termo e o questionário para serem respondidos pelas participantes. A primeira oficina foi somente para aplicação deste questionário e encerrou-se a partir do término de preenchimento do mesmo.
Quadro 1 Primeira Oficina.
| Momento | Conteúdo |
|---|---|
| Introdução | Apresentação das atividades: finalidades, objetivos e explicação do trabalho a ser desenvolvido. Leitura, assinatura e recolhimento do “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”. |
| Dinâmica de Apresentação | Dinâmica de integração dos participantes: Teia de barbantes. A primeira pega o barbante, diz nome e outros dados. Segura a ponta do barbante e passa para a próxima. Esta também se apresenta e segura uma parte do barbante e passa para a próxima, e assim sucessivamente, até que ao final forme uma teia. Ao final, colocar sobre a importância da teia e do trabalho que vai ser devolvido. |
| Desenvolvimento |
Escolha do grupo Intervenção. Aplicação do primeiro questionário. |
| Encerramento | Esclarecimentos e dúvidas sobre o funcionamento da intervenção. |
Fonte: os autores.
2º Encontro
Objetivo: Refletir sobre masculino e feminino - A Violência não faz meu gênero.
Inicialmente a partir da dinâmica da teia, procurou-se explanar sobre as conexões dos possíveis “teares da confiança”, do suporte e da importância de uma rede de apoio. Após a dinâmica, iniciou-se a abordagem no objetivo da oficina, que era discutir as concepções de gênero, e para tal a pesquisadora introduziu as perguntas quem sou eu? como me vejo?” Os debates sobre o assunto foram reforçados por um painel de imagens que ilustravam “coisas de homens e coisas de mulheres”. Cada participante escolheu uma imagem para debater em pequenos grupos, e num segundo momento o debate foi ampliado para o grupo todo. Apresentaram-se posteriormente os vídeos “Vida de Maria” e “O sonho possível”, que tiveram suas ideias discutidas pelas participantes e para finalizar a sessão foi utilizada a música “Maria Maria” de Elis Regina, e nesse momento aconteceu espontaneamente um abraço coletivo, demonstrando a integração daquele grupo.
Quadro 02 Segunda Oficina - Gênero.
| Momento | Conteúdo |
|---|---|
| Introdução | Retomar a sessão anterior: O quê ficou para mim? |
| Dinâmica | Dinâmica: Homem, Mulher: Quem sou eu? Como eu vejo? |
| Desenvolvimento |
Dividir em pequenos grupos para discutir sobre: o que se entende quando pensa em “mulher” e “homem”? • Utilizar recortes de revistas para representar “coisas de homem e mulher”, criando um mural. • Discutir as semelhanças e diferenças dos significados sobre homem e mulher; • Discutir sobre Gênero. |
| Desenvolvimento |
Diante do que foi apresentado sobre gênero, refletir sobre: “Quem sou eu? Como eu me vejo?” Video: • O sonho impossível? • Vida de Maria Música: Maria Maria - Elis Regina • Plenária para discussão sobre os vídeos e o que foi falando anteriormente sobre ser homem e mulher. |
| Encerramento |
Síntese da oficina; • Momento aberto para avaliar e discutir os conhecimentos adquiridos. |
Fonte: os autores.
3º Encontro
Objetivo: Discutir a sexualidade feminina.
Quadro 03 Terceira Oficina - Sexualidade.
| Momento | Conteúdo |
|---|---|
| Introdução | Retomar a sessão anterior: O quê ficou para mim da sessão anterior? |
| Dinâmica | Utilizar massa para modelar parte do corpo que remetem ao prazer. |
| Desenvolvimento |
• Modelar os órgãos eróticos ou reprodutivos. • Discutir sobre os signos modelados e sobre o conhecimento da mulher sobre seu próprio corpo. |
| Encerramento |
Síntese da oficina; • Momento aberto para avaliar e discutir os conhecimentos adquiridos. |
Fonte: os autores.
Iniciou-se esta sessão retomando o conteúdo do encontro anterior, sendo questionado “o que ficou para vocês da sessão anterior?” e “o que refletiram sobre o tema gênero?” Após a explanação das participantes, deu-se início ao tema da sexualidade. Com o uso de massa de modelar, as participantes representaram órgãos eróticos, erógenos e/ou reprodutivos. Todas as participantes realizaram a tarefa com naturalidade, denotando um bom grau de conhecimento sobre seus corpos e sexualidade. Ao fim da sessão, foi solicitado que as participantes refletissem sobre os conhecimentos adquiridos sobre sexualidade que seriam levados para casa.
4º Encontro
Objetivo: Discutir sobre os tipos de violência.
Quadro 04 Quarta Oficina - Tipos de Violência.
| Momento | Conteúdo |
|---|---|
| Introdução | Retomar a sessão anterior: o que ficou para mim? |
| Dinâmica | Montar um mural com os tipos de violência: Física, Psicológica, Sexual, Moral e Patrimonial. |
| Desenvolvimento |
Apresentar vídeos com temática sobre Violência, os tipos de violência e a Lei Maria da Penha. Vídeo: Como você reage à violência contra a mulher. Homens que agridem mulher seguem ciclo da violência. • Discutir: Tipos de violência e Ciclo da Violência. Construir mural com os comportamentos de cada tipo de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial. |
| Encerramento |
Síntese da oficina. • Momento aberto para avaliar e discutir os conhecimentos adquiridos. |
Fonte: os autores.
Inicialmente retomou-se a sessão anterior para que pudessem falar sobre o que refletiram sobre a sexualidade e como puderam trazer isso para o seu dia a dia. Logo após, iniciou-se o tema objetivo da sessão “violência e os tipos de violência”. De forma propositalmente insistente perguntou-se “o que é violência?” e para auxiliar nessa compreensão foi utilizado o vídeo: “Como você reage à violência contra a mulher”. Na sequência, foram montados murais sobre cada tipo de violência, a partir de subgrupos e em seguida, cada subgrupo apresentou um tipo de violência a partir das imagens por elas selecionadas. A apresentação do vídeo: “Homens que agridem mulher seguem o ciclo de violência”, trouxe novamente muita discussão no grupo, que se abriu para expor sobre suas histórias de vida e as violências sofridas.
5º Encontro
Objetivo: Apresentar as Instituições da rede de apoio.
Quadro 05 Quinta Oficina - Rede de Apoio.
| Momento | Conteúdo |
|---|---|
| Introdução | Retomar a sessão anterior: o que ficou para mim? |
| Desenvolvimento |
Apresentar os órgãos responsáveis pela rede de apoio a mulher; Despertar para a unidade do grupo, para que possa dar continuidade em atividades em conjunto; Como foram as oficinas preventivas - quais as sugestões? Vídeo: Quero me curar de mim /Empoderamento Feminino. |
| Encerramento |
Síntese da oficina; • Momento aberto para avaliar e discutir os conhecimentos adquiridos. |
Fonte: os autores.
Novamente iniciou-se a sessão retomando o que havia sido refletido durante a semana e novas dúvidas e comentários apareceram sobre os tipos de violência. Após esta discussão, iniciou-se a temática da quinta oficina que era apresentar a rede apoio à mulher. Foram apresentados os órgãos específicos da rede de proteção na cidade onde foi realizado o estudo: CRAS, CREAS, Casa da Mulher Brasileira e Delegacia da mulher. Apesar do elevado grau de instrução das participantes, muitas não tinham conhecimento sobre os órgãos e instituições que compõem a rede de proteção e cuidado à mulher vítima de violência. O encerramento da sessão se deu com a apresentação do vídeo “Quero me curar de mim” e sobre o que elas levariam para casa a partir do conteúdo proposto, para que pudessem refletir sobre o poder feminino.
6º Encontro
Objetivo: realizar a avaliação das intervenções.
Neste último encontro foi realizada uma avaliação de processo, em que foram discutidos o significado e a importância desses encontros para as participantes. A avaliação foi muito positiva e evidenciou-se a intenção dessas mulheres envolverem-se em novas atividades para discutir essas temáticas.
Quadro 06 Sexta Oficina - Avaliação.
| Momento | Conteúdo |
|---|---|
| Introdução | Avaliar de maneira geral a intervenção |
| Dinâmica | Mural com os temas apresentados nas sessões |
| Desenvolvimento |
Avaliar as atividades desenvolvidas durante o processo de intervenção • O que mudou a partir da Intervenção? • O que queremos a partir dessa intervenção? |
| Encerramento |
Síntese da oficina; • Avaliação • Encerramento |
Fonte: os autores.
Análise das intervenções
Diante da transcrição das gravações de áudio realizadas no decorrer das oficinas, utilizou-se o método de análise de conteúdo. Segundo Franco (2008), a criação de categorias é característica pontual da Análise de Conteúdo, tendo como base o conhecimento do pesquisador acerca do problema de pesquisa para classificar as respostas obtidas em suas entrevistas. Os dados serão discutidos a partir de duas categorias obtidas:
Quadro 07 Sexta Oficina - Avaliação.
| Categorias | Figura |
|---|---|
| Tradição e desinformação. | 08 |
| Fragilidades da rede de proteção. | 09 |
Fonte: os autores.
A partir das categorias obtidas, será realizada a seguir uma descrição densa, que é uma metodologia apresentada pela primeira vez pelo antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1926-2006) fundamentada basicamente em conclusões do educador J.C. Ryle (1816-1900), e que consiste em “proporcionar a compreensão das estruturas significantes implicadas em uma ação social” (Talamoni, 2014, p.54), entendendo-se como estruturas significantes os significados produzidos pelo indivíduo em interação com o seu meio, considerando questões históricas, culturais e sociais. Como uma das abordagens possíveis para o desenvolvimento desta metodologia, definiu-se um processo no qual os problemas de pesquisa são trazidos e priorizados pela própria população estudada, tendo o pesquisador o papel de identificar as estruturas significantes e estimular o seu debate, crendo na perspectiva que a própria população é o agente ativo desta construção, e somente como tentativa de manter a discussão dentro do tema abordado, seguir um roteiro semiestruturado de intervenções (Richardson, 2015). Segundo Talamoni (2014, p.6), “A descrição densa é produto de uma experiência intercultural vivida pelo observador e deriva, portanto, de percepções subjetivas e intersubjetivas”. Cabe ao pesquisador a procura de códigos de significação para enriquecer a sua interpretação dos eventos, objetivando muito mais o refinamento do debate, do que a obtenção de um consenso.
Resultados e discussão
A seguir, contextualizam-se os encontros com as participantes das intervenções a partir dos conteúdos que foram surgindo de forma aleatória. Para a organização de tais conteúdos, foram divididos em duas categorias, que serão descritas a seguir.
Quadro 08 Categoria “Tradição e desinformação”.
| Categoria | Subcategorias |
|---|---|
| 1. Tradição e desinformação |
1. A limitação da identidade pela lógica sexista. 2. A responsabilidade exclusiva sobre as atividades domésticas. 3. O desmerecimento da mulher no ambiente de trabalho. |
Fonte: os autores.
A limitação da identidade pela lógica sexista
Segundo uma das participante (p10), “Os homens carregam um sentimento, de que nós mulheres já conseguimos muito, e a gente sabe que ainda tem muito a ser conquistado”, e neste contexto está a necessidade da quebra da “reprodução desta realidade discriminatória dentro da própria família, acabando com os ciclos e repetições de padrão”(p4). Logo nota-se que há consciência entre as participantes de que existe um ciclo, que é reproduzido pela tradição numa divisão sexista, que pode ser observada mesmo em brincadeiras de criança. Relatando sobre as experiências de sua infância, uma delas lembra que “as meninas tinham bonecas (filhos), vassouras e cozinhas, enquanto os meninos tinham carros, foguetes, etc. Eles podiam ter sonhos, já a menina aprende que tem que cuidar de casa, mesmo nos brinquedos” (p13). Segundo Fischer e Marques (2001), por meio dos brinquedos, vai sendo impressa a lógica da divisão dos papéis masculinos e femininos, de forma a associar o mundo público, a potência, a virilidade, o poder de decisão, a dominação aos meninos, e o mundo privado ao feminino, caracterizando a submissão, a emotividade, a sensibilidade, a fragilidade e a maternidade. A construção social dos tradicionais papéis masculinos e femininos também são discutidos por diversos autores (Alves & Antunes, 2021; Butler, 2008; Saffioti, 2015; Scott, 1995), descrevendo como se estabelecem as relações de poder na cultura do patriarcado. Neste caso, também cabe às mulheres a reflexão de seu papel na reprodução e manutenção de certas tradições, conforme indica uma participante “Até que ponto o homem vai abrir mão deste poder que ele tem, deste “patriarquismo” pra dar esta voz que a mulher tanto busca?” (p23). Para Saffioti (2015), o patriarcado admite a opressão utilizando-se da ideologia e violência como principais bases, subjugando as mulheres e concedendo ao homem poderes sobre ela. Segundo a autora, junto com o capitalismo e o racismo, este modelo de desenvolvimento social, forma as bases da hierarquia que constitui a sociedade contemporânea. Mas mesmo atualmente, com o advento do movimento feminista e com todas as mudanças tecnológicas e sociais ocorridas, os tradicionais papéis de gênero ainda são transmitidos intergeracionalmente, refletindo em práticas e valores desiguais (Alves & Antunes, 2021; Itaboraí, 2017; Picanço, Araujo, & Covre-Sussai, 2021). É importante salientar aqui, que dentre os discursos dessas mulheres, não existiu a preocupação de uma clara diferenciação entre os conceitos de machismo e de sexismo, embora o segundo conceito impacte na realidade das famílias de forma contundente. Apenas para fins de uma leitura mais fluida se discorrerá que o sexismo, diferentemente do machismo, agride pessoas de ambos os sexos biológicos pois dita estereótipos e crenças, limitando assim a vida de indivíduos que porventura almejarem realidades diferentes a tais expectativas (Nascimento, Amorin & Mota, 2016). Segundo as participantes existe “a aceitação da mulher diante da imposição de um papel que é a vontade dos outros” (p7) e por mais que a mulher tente fazer valer os seus desejos “essa tentativa de resgatar a sua identidade, é barrada pela família” (p3). A fala desta mulher reflete a tendência a repetir os padrões socialmente impostos e não enxergar o seu papel decisivo dentro da sua própria realidade, se colocando como refém de uma ameaça externa. Muitas vezes a própria mulher é agente ativa na continuidade das tradições patriarcais, ao educar seus filhos da mesma forma como foi educada, não se sentindo capaz de romper com os estereótipos sociais de gênero. Neste sentido apresenta-se o medo da decisão entre dois sofrimentos, o sofrimento cômodo da manutenção dos hábitos sociais e o sofrimento do desconhecido, conforme pode ser evidenciado pelo discurso de uma participante “é difícil romper com essa cultura patriarcal. Quem vem com essa ideia de rompimento, sofre” (p9). Neste caso as influências sofridas durante séculos pelo sexo feminino, seja pela escola, família, religião ou outras instituições, fortalecem uma autoimagem de inferioridade em que “a própria mulher reproduz a superioridade masculina através da educação familiar ou informal (Fischer & Marques, 2001). Em alguns casos a submissão aceita por estas mulheres podem ser legitimada pelas diferenças regionais e culturais, conforme evidenciado na fala da participante “a gente que mora em cidade grande, já é mais instruída a sair deste padrão, mas para aqueles que moram no interior pode ser mais difícil, pois eles não têm acesso a essa informação” (p15).
A responsabilidade exclusiva sobre as atividades domésticas
Uma das questões fundamentais dos debates realizados durante as intervenções pôde ser evidenciada no relato de uma das participantes: “passa por gerações esta questão do trabalho doméstico como papel da mulher. A menina não pode perder tempo, enquanto os irmãos podem” (p9). A atribuição das responsabilidades domésticas exclusivamente ao sexo feminino, e por outro lado a supervalorização cultural de homens que contribuem na realização destas tarefas foram levantadas pela participante.
“porque que essas tarefas são da mulher e quando o homem está fazendo é vangloriado. Não é uma questão de estar ajudando, é dividir tarefas, não é ajudar. Não é papel de um só” (p2).
A supervalorização dada aos homens que contribuem de forma mínima com os trabalhos domésticos é ainda ironizada pelas participantes:
“Dá uma estrelinha pro homem porque ele buscou a criança na creche, buscou a criança na escola.” (p2).
“Teria que ser normal um homem fazendo isso, sendo que os dois são capazes de fazer, e não é uma obrigação da mulher” (p15).
Mesmo quando a mulher cumpre com uma jornada de trabalho remunerado, a responsabilidade do cuidar da família recai sobre ela, conforme afirmam as participantes:
“por que a mulher pode ter o emprego dela, mas a família vem em primeiro lugar. Onde já se viu a mulher não colocar a família em primeiro lugar? ” (p30).
“a mulher tem essa obrigação de cuidar da casa e muitas vezes de trabalhar, e o homem muitas vezes chega em casa e não faz nada” (p15).
Sobre os discursos acima, a questão sobre a divisão dos cuidados domésticos e da desigualdade de tarefas domésticas, recaindo sobre a mulher muitas vezes o cuidado dos filhos e da casa, configurando uma dupla ou até tripla jornada de trabalho tem sido explorada na literatura (Alves & Antunes, 2021; Galvane, Salavro, & Morais, 2015; Souza & Guedes, 2016). As participantes relatam que também existe preconceito dos homens com relação às mulheres que dedicam integralmente o seu tempo aos cuidados domésticos. Uma das participantes relata que seu parceiro passou a realizar os serviços domésticos e a depender financeiramente dela:
ele largou o emprego e foi cuidar dos filhos... e ele disse o quanto foi penoso, que ele teve que lavar a casa o tempo inteiro e que ele se sentia super desvalorizado. Ele contou que os amigos dele falavam “nossa, que vida boa, porque eu queria ficar em casa no bem bom, só fazendo compra no shopping” (p54).
Segundo uma participante “eu sou dona de casa, e não me desmereço por causa disso. Se meu marido me desrespeita em casa eu pontuo, eu mostro, eu não aceito” (p14), ao que complementa outra participante “eu acho que é justamente você pode ser dona de casa, você pode escolher. Acho que o feminismo vem para que você possa fazer esta escolha” (p27). Corroborando esta ideia, as mulheres conquistaram os espaços públicos em nossa sociedade, tendo maior autonomia e escolha, o que foi proporcionado pelos movimentos sociais e pelo desenvolvimento social, cultural e tecnológico (Alves & Antunes, 2021; Braga, Miranda e Correio, 2018).
O desmerecimento da mulher no ambiente de trabalho
Desmerecer a mulher no trabalho pode se considerar um movimento previsível da reação dos homens na tentativa de preservação de uma hegemonia historicamente masculina, que hoje encontra-se ameaçada pelo recente acesso das mulheres ao mundo do trabalho e à esfera pública. À mulher se delimitava o mundo privado e ao homem o mundo público (Alves & Antunes; Souza & Guedes, 2016). Também é claro que a diferenciação de oportunidades profissionais entre homens e mulheres é uma das variáveis mais observadas e resultam da perspectiva patriarcal de gênero e, de certa forma, de uma aceitação e naturalização desses papéis. Entre as participantes observou-se uma crença na existência de profissões destinadas a homens e mulheres. Segundo uma participante:
“a gente tem a tendência de acabar segregando estas situações e colocando sempre que existem profissões para o homem e profissões para mulher” (p1).
Ainda existe estranhamento da sociedade ao perceber que as mulheres estão tomando cada vez mais espaço nas profissões anteriormente consideradas como masculinas, é o que se nota na afirmação de uma participante “quando a gente vê uma mulher tomando frente, que profissões são livres para quaisquer pessoas, ou choca ou surpreende” (p1). Neste sentido, a necessidade de um estereótipo feminino aparece no discurso das participantes: “a mulher guerreira que sabe bem o que quer da vida e está rompendo com preconceitos” (p22), mas que é contraposto pelo medo de possíveis sanções sociais, considerando-se que ao mesmo tempo em que esta nova mulher se sobressai profissionalmente, fica vulnerável, é julgada e estigmatizada, o que é confirmado pela literatura da área (Antunes, Neto, Lima-Souza & Santos, 2018; Coelho, Beck, Fernandes, Machado, & Camponogara, (2016). Dentre as participantes, a preocupação com essa dicotomia entre o perfil de uma “ mulher guerreira” e as consequências negativas deste empoderamento está representada no relato de uma das participantes, que ao mesmo tempo descreve a sua mãe enfermeira com orgulho, dizendo que como outras colegas profissionais “carregam pacientes de 180kg nos braços” (p26), e por outro lado relata a reação das pessoas a este perfil profissional “é bem engraçado isso de como é enraizada essa cultura e as pessoas desmerecem ela por esse quesito”. (p26). Uma das dificuldades encontradas pelas mulheres no mundo profissional é o estigma da masculinização, da perda da feminilidade e de questões subjetivas atreladas à mulher (Abrahão & Viel, 2018; Alves & Antunes, 2021). Um aspecto importante da desvalorização profissional da mulher pode estar oculto na objetificação do sexo feminino. Nessa condição, alguns homens tendem a agir de forma desrespeitosa com relação ao corpo da mulher, com o objetivo de atingi-la psicologicamente. Esta ideia encontra-se no relato de uma das participantes, que comenta sobre uma entrevista concedida por uma repórter a um programa de televisão:
“A repórter entrevistava políticos (dando incertas). Alguns homens também faziam isso, mas ela notava que a reação dos políticos era diferente com ela por ser mulher. Eles também tentavam desmoralizar os homens, mas com ela a desmoralização era diferente. Tentavam diminuí-la falando do corpo... havia sempre uma conotação sexual.” (p12)
Por outro lado, se existe a percepção de uma agressão de cunho moral em objetificações do sexo feminino que se assemelham a assédios sexuais, pode ser percebida também a tentativa de uma desvalorização da mulher por meio de um controle moralista, que tenta ditar regras de comportamento, sobretudo no que diz respeito a forma de se vestir. Tal percepção pode ser interpretada nos relatos de uma das participantes, quando explica os motivos pelos quais deixou de exercer um cargo importante em uma empresa multinacional e passou a dedicar-se integralmente aos cuidados domésticos:
“Eu não me importo de sentar a uma mesa de reunião com diversos homens e discutir por menor preço, condições melhores e tal, mas eu me nego a sentar numa mesa de reunião e ter que me defender pela blusa que eu uso, pela saia que eu uso.” (p14)
As participantes também relataram que são vítimas de outro preconceito, relacionado à subestimação da sua inteligência e na crença sobre a superioridade intelectual masculina, conforme destacado por uma delas “A pretensão do homem de querer saber tudo e nos ensinar, como se a gente fosse burra” (p19). Para Fischer e Marques (2001), essa desvalorização está ligada à hegemonia masculina que vem sendo sustentada pela maioria dos formadores de opinião ao longo do desenvolvimento da humanidade. Segundo uma participante “o uso do tom de voz mais alto numa discussão, como meio de intimidar a mulher... é uma forma de machismo tão disfarçado que nem eles percebem” (p20). Nota-se aqui o uso da violência psicológica e /ou moral dentro do ambiente de trabalho também ocorre de forma intimidatória. Outro fator agravante no desequilíbrio das relações de trabalho entre homens e mulheres está na alienação de chefes masculinos com relação à dupla jornada de trabalho feminina, que pode ser fator determinante para desqualificações da mulher em um processo de ascensão profissional (Alves & Antunes, 2021), conforme o exemplo citado de uma participante:
“Quando ele era chefe na empresa dele ele só promovia homem, pois quando dava o final do expediente ele constatava que só os homens ainda estavam no escritório...depois que ele teve que passar um tempo em casa, cuidando das atividades domésticas, ele percebeu que as mulheres saiam mais cedo por causa das suas tarefas domésticas. O homem pode ficar mais tempo no trabalho porque tem uma mulher cobrindo estas tarefas, já a mulher não.” (p24)
O despreparo e/ou descaso dos órgãos oficiais
Quadro 09 Categoria “Fragilidades da rede de proteção”.
| Categoria | Subcategorias |
|---|---|
| 2. Fragilidades da rede de proteção; | 1. O despreparo e/ou descaso dos órgãos oficiais. |
Fonte: os autores.
Há um sentimento entre as participantes de que existe despreparo ou descaso por parte de alguns órgãos oficiais, quanto ao atendimento dado às vítimas de violência. Isto pode ser percebido nas falas “A gente ligou para a polícia, e a polícia não foi...então eu não sei assim, até que ponto dá pra confiar nisso... porque o processo é lento, tudo demora, e é um sentimento angustiante” (p26). “Os policiais militares são homens...que tipo de homens são estes policiais? O que eles aprenderam para serem policiais?” (p29). A postura de impotência de alguns policiais também é relatada: “falavam assim... ninguém morreu eu não tenho o que fazer... minha mãe teve um dia que ela ficou muito puta...disse assim, tá se a mulher tiver morta aqui na frente da minha casa vocês vão vir buscar?” (p6).
É relevante destacar que muitas participantes relataram que presenciaram algum tipo de violência na infância/adolescência e que posteriormente sofreram algum tipo de violência de seus parceiros. A violência psicológica foi a forma mais predominante relatada por elas, seguida de violência física (cerca de um terço delas relatou ter sofrido), e em menor proporção a violência sexual (cerca de 21%). Muitas participantes relataram que não conseguiam perceber a violência psicológica sofrida e algumas delas só perceberam após as discussões ocorridas durante as oficinas. Diante da violência sofrida, uma boa parte delas (cerca de 40%) relatou que enfrentaram seus agressores. Segundo elas, o enfrentamento das situações de violência foi resultado de mudanças nas suas concepções de gênero, desafiando o paradigma patriarcal de forma a não se submeterem ao poder do homem. A rede de proteção, os serviços especializados e as leis específicas têm um papel fundamental para a interrupção do ciclo da violência, inclusive para a diminuição de homicídios, como ocorreu nos EUA e Canadá. A mulher vítima de violência doméstica está em situação de vulnerabilidade e não são apenas os aspectos individuais ou sociais que deixam essas mulheres mais ou menos vulneráveis. Isso também depende das políticas públicas (Bigliardi, Antunes, Wanderbroocke, 2016; Padilha & Antunes, 2015). As vítimas de violência não podem ser culpabilizadas ou desprezadas. No relato das participantes era comum o descaso de algumas pessoas que trabalhavam nos serviços de proteção. A mulher não deve ser novamente vitimizada, especialmente em serviços especializados a vítimas de violência. Isso pode ocasionar um sentimento de desamparo e dificultar a denúncia, que tem um papel fundamental para interromper o ciclo da violência. A dimensão de gênero e a violência devem ser tratadas como fenômenos intersubjetivos, a partir de uma de uma perspectiva das relações de poder e da opressão às mulheres (Guimarães & Pedroza, 2015, Padilha & Antunes, 2015). Dessa forma, a violência de gênero institucionalizada também deve ser alvo de trabalhos de prevenção, através da capacitação dos profissionais que atuam na rede de proteção. A Lei Maria da Penha é um marco importante no combate à violência contra a mulher, mas é fundamental realizar pesquisas para avaliar a efetividade de programas de acolhimento das mulheres vítimas de violência no Brasil (Padilha & Antunes, 2015).
Considerações finais
A presente pesquisa teve por objetivo descrever o discurso das participantes de um programa de prevenção de violência contra a mulher por parceiros íntimos em uma universidade particular. A análise de conteúdo das intervenções demonstrou que o discurso foi permeado por duas categorias: Tradição e desinformação, Fragilidade da rede de proteção. Na primeira categoria, foram descritas as subcategorias limitação da identidade pela lógica sexista, a responsabilidade exclusiva sobre as atividades domésticas e o desmerecimento da mulher no ambiente de trabalho. Observa-se que o discurso das participantes foi permeado pela cultura do patriarcado, pelas diferenças de poder institucionalizadas pela na construção social dos papéis masculinos e femininos desde a infância. Nesse sentido, definem seus papéis femininos por interferência do contexto social que estão inseridas, inclusive relatando o forte apelo familiar para a manutenção de comportamentos e atitudes tradicionais. A cultura patriarcal, que é fruto de um momento histórico e social, interfere nas interações sociais e na forma como violência é perpetuada. A tradição e a cultura estão intrinsicamente relacionadas ao poder e à dominação, repleta de dimensões psicológicas e sociais, determinando formas de agir e interagir. As participantes tinham em seu repertório noções sobre o empoderamento da mulher. Nas oficinas ficou evidente que essas concepções estavam presentes em seus relacionamentos e em suas posturas de enfrentamento à violência, ao homem agressor, se contrapondo à superioridade masculina perante a invisibilidade feminina. Esse grupo foi composto por alunas universitárias, de estratos sociais mais altos (classe média ou alta), que certamente tinham mais repertório para o enfrentamento da violência. Mas, mesmo assim, observa-se uma frequência alta de vitimização, em especial de violência psicológica. As crenças sobre a violência estão perpetuadas nos aspectos interrelacionais e sociais, permeadas pelas noções tradicionais de gênero e do patriarcado, do poder do homem sobre a mulher. Mas a transformação desses papéis vem ocorrendo, com o advento do movimento feminista, com a inserção das mulheres no mundo do trabalho, com o questionamento da assimetria de poder entre homens e mulheres. É importante frisar que, apesar de toda transformação ocorrida, observam-se diferentes discursos vigentes, que causam ambuiguidades e sofrimento, tanto para as mulheres como para os homens. É fundamental falar sobre gênero para as novas gerações e combater os discursos conservadores, que tentam impedir esse tipo de debate no ambiente escolar, por exemplo. Através do diálogo e da construção de relações mais simétricas de poder, é que será possível prevenir a perpetuação da violência de gênero. Prova dessa mudança social são os programas de combate à violência e políticas públicas, tais como a lei Maria da Penha e a Casa da Mulher Brasileira. Muito ainda precisa ser feito, no sentido de implementar políticas de prevenção à violência, capacitar adequadamente as equipes da rede proteção e ofertar serviços em todo território nacional, e não apenas nas capitais e grandes cidades. Também urge a necessidade de financiamento de pesquisas na área de Ciências Humanas, para o desenvolvimento de estudos longitudinais e com amostragens maiores, para avaliar o impacto de intervenções de prevenção à violência a médio e longo prazo. A intervenção se mostrou importante para discutir as questões de gênero, aumentar o conhecimento dessas mulheres sobre as formas de violência e sobre a rede de proteção. Nesse sentido denota-se a importância da intervenção grupal enquanto um instrumento de prevenção à violência. Cabe então aos órgãos governamentais implementarem programas voltados à discussão sobre gênero, sexualidade e violência, de forma a minimizar a vulnerabilidade individual, social e programática. A psicologia, nesse sentido, possui instrumentos para a apoio e incentivo de intervenções no que tange o desenvolvimento de uma maior consciência social e cultural sobre a violência contra a mulher.














