Introdução
O conceito de Deficiência Intelectual (DI) sofre constantes atualizações devido aos avanços das pesquisas científicas na área (American Association on Intellectual and Developmental Disabilities - AAIDD, 2016; Oliveira & Bueno, 2021). Atualmente, a Associação Americana de Psiquiatria, em seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (American Psychiatric Association - APA, 2014), apresenta a DI como uma série de déficits nas “capacidades mentais genéricas, como raciocínio, solução de problemas, planejamento, pensamento abstrato, juízo, aprendizagem acadêmica e aprendizagem pela experiência. Os déficits resultam em prejuízos no funcionamento adaptativo” (p. 73). Por sua vez, a AAIDD (2016, não paginado) a define como incapacidades caracterizadas “por limitações significativas tanto no funcionamento intelectual (raciocínio, aprendizagem, resolução de problemas), como no comportamento adaptativo, abrangendo habilidades sociais, cotidianas e práticas e originando-se antes dos 18 anos de idade”. Sabese que definições orientam práticas sociais, embasando as tratativas em relação às pessoas com DI, fundamentando representações e expectativas frente ao sujeito que se encontra nessa condição (Oliveira & Bueno, 2021). Considerando a definição apresentada pela AAIDD (2016) e reiterada pela APA (2014), nota-se a ênfase nas incapacidades, dificuldades e limitações, mais que isso, o foco recai sobre condições individuais, pouco apontando para ajustes contextuais, ou seja, parece acentuar comportamentos de padrões de desempenho que se afastam ao esperado por uma comunidade. Não obstante, essa forma de conceber a DI se fundamenta no modelo biomédico, que explica essa condição considerando-a como um problema da pessoa, causado diretamente por doença, trauma ou outro problema de saúde que requer assistência médica sob a forma de tratamento individual por profissionais (APA, 2014; AAIDD, 2016). Nessa perspectiva, existe a predominância no prejuízo dos fatores biológicos do desenvolvimento humano. Advoga-se que sejam impreteríveis os cuidados e o suporte médico, de reabilitação e de adaptação às rotinas cotidianas, porém, concepções assentadas num viés acabam muitas vezes por desconsiderar os aspectos históricos e sociais que envolvem a deficiência. Com isso, fertiliza-se o espaço para a produção de preconceitos e estigmas voltados a DI, atribuindo adjetivações de incapaz, de limitada, de retardada, entre outras. Como alternativa a esse modelo se busca em Vygotski (1999) respaldo teórico. Ao compreender o sujeito, o autor defende que existe a estrutura biológica, entretanto, as relações sociais e de apropriação das produções culturais reconfiguram todo o aparato orgânico, que passa a se sujeitar às condições de sociabilidade. Leontiev (1978) considera que o homem aprende a ser humano nesse processo, em que é direcionado nessa trajetória de aprendizagem, asseverando que seu desenvolvimento não está dado exclusivamente em sua base orgânica, mas nos determinantes históricos e sociais. Logo, para compreender a evolução do gênero humano, é indispensável considerar a dialeticidade entre os aspectos orgânicos e as condições concretas da vida em sociedade, com destaque aos contextos educacionais. Para Vygotski (1997) a pessoa com DI não é menos desenvolvida do que outra que não possui - o que acontece nesse caso é um funcionamento cerebral distinto que proporciona um modo de se comportar diferente. Porém, socialmente é convencionado que essa forma de ser alude a defeitos e incapacidades, o que estabelece um lugar de inferioridade na sociedade, num status de sujeito adoecido e de menos-valia. Ainda, segundo Vygotski (1997), a deficiência se dá em duas proporções, a primária e a secundária. A primária decorre das diferenças cromossômicas, físicas, sensoriais e/ ou comportamentais apresentadas pelo organismo, ou seja, não se nega uma condição diferenciada no funcionamento. Porém, o autor reflete que o sujeito também lida com a sociedade e, dependendo de como essa o representa, terá uma certa tratativa. Isso é o que define o caráter secundário, que pode agravar a condição anterior, por exemplo, quando direciona preconceitos, exclui do convívio coletivo devido a essa condição ou deixando de ofertar caminhos alternativos ao seu desenvolvimento. Nas palavras do autor, “o desenvolvimento cultural é a principal esfera em que é possível compensar a deficiência. Onde não é possível avançar no desenvolvimento orgânico, abre-se um caminho sem limites para o desenvolvimento cultural” (Vygotsky, 2011, p. 869); com vistas a materialização de condições sociais que favoreçam o progresso de seu desenvolvimento, buscando sua autonomia. Nesse sentido, a questão é planejar e efetivar estratégias que estimulem o sujeito a superar possíveis dificuldades e interagir socialmente por meio de caminhos indiretos, ou seja, partindo do que ele consegue fazer mediado por alguém instrumentalizado e intencionado a guiá-lo por esse processo, cuja função é de compensar o que é considerado como seu déficit. Vygotski (1997), explica que a compensação não é um processo natural (espontâneo), pelo contrário, é intencional e mediado pelo outro com a oferta de recursos humanos/instrumentais que busquem alavancar o desenvolvimento das funções psicológicas. Pautados nos pressupostos discorridos acima, o objetivo deste artigo é apresentar os resultados obtidos com uma intervenção realizada na área da Educação Inclusiva, durante o decurso de um estágio curricular em Psicologia. Especificamente, o intento é discorrer sobre as estratégias adotadas ao longo dos atendimentos realizados na área da Psicologia da Educação com dois adolescentes diagnosticados com Deficiência Intelectual, visando auxiliar no desenvolvimento de funções psicológicas, com destaque à linguagem, à memória, ao raciocínio lógico e ao pensamento abstrato.
Contexto da intervenção
O trabalho foi realizado em um município paulista de médio porte, durante o ano de 2022, em uma organização não governamental de atendimento educacional especializado, especificamente no setor de Reabilitação Intelectual (RI). A referida instituição atua na promoção de atenção integral à pessoa com deficiência, com vistas ao favorecimento da participação social de seus usuários, por isso, conta com serviços da área da Saúde, da Educação e da Assistência Social. Crianças, adolescentes, adultos e idosos que integram o público da instituição realizam acompanhamento com médicas(os), psicólogas(os), pedagogas(os), assistentes sociais, fisioterapeutas(os), fonoaudiólogas(os). Os atendimentos seguem uma perspectiva interdisciplinar e estão fundamentados no Projeto Terapêutico Singular (PTS), compreendido como “um conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, para um sujeito individual ou coletivo, resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar” (Brasil, 2008, p. 40). O PTS é estruturado em quatro etapas: diagnóstico da condição biopsicossocial do usuário; definição de metas pelos profissionais; divisão de responsabilidades entre os participantes da equipe que atenderá o sujeito; reavaliação do caso após as intervenções. A Reabilitação Intelectual na instituição tem a finalidade de acompanhar pacientes com DI e Transtorno do Espectro Autista (TEA) que necessitam de estimulação neurocognitiva. Dentre as atividades realizadas nesse setor há avaliação psicológica, estudo de caso, orientações às famílias e professores, atendimentos individuais e grupais de reabilitação, habilitação e estimulação neurocognitiva - sendo esta última o local escolhido para a realização da intervenção retratada. O trabalho dos estagiários na RI iniciou-se com o estudo do PTS e os relatórios, elaborados anteriormente a sua entrada na instituição, que descreviam a evolução dos casos ao longo da permanência nela. Após essa fase, foram realizadas observações dos atendimentos que os(as) profissionais de Psicologia realizavam com os usuários. Na sequência, os estagiários elaboraram um projeto de intervenção o qual foi discutido coletivamente com o supervisor da instituição de ensino superior e com o coordenador da RI.
Pressupostos teóricos da intervenção
A prática foi subsidiada pela abordagem da Psicologia Histórico-Cultural e pelos princípios da Psicologia da Educação. O Conselho Federal de Psicologia (2007; 2019), pontua que esse ramo da Psicologia reúne diferentes tipos de conhecimentos oriundos da área educacional e da saúde, com atuação nos fenômenos dirigidos ao ensinar e aprender, contribuindo com o desenvolvimento humano dos sujeitos que participam das intervenções. Efetivam-se, portanto, processos que medeiam a ampliação das capacidades psicológicas, o que por sua vez proporciona melhores condições aos sujeitos para participarem de suas relações sociais e atenderem suas necessidades que surgem em seu dia a dia (Acuna & Leite, 2022). Cabe destacar que a mediação está sendo compreendida como “uma instância que relaciona objetos, processos ou situações entre si; a partir daí, o conceito designará um elemento que viabiliza a realização de outro que, embora distinto dele, garante a sua efetivação, dando-lhe concretude” (Severino, 2002, p. 44). Considerando o conceituado, entende-se que o profissional de Psicologia planeja e promove situações direcionadas às pessoas que atende e, além disso, proporciona instrumentos com o intuito de guiá-las ao longo de uma prática visando sua autonomia com qualidade na sua participação social. Parte-se do princípio que a aprendizagem de novos comportamentos ocorre de maneira coletiva, quando alguém mais capaz desempenha o papel de mediador na relação com o outro, possibilitando a aprendizagem de conteúdo e/ou habilidade a serem desenvolvidas (Vygotski, 2011). No caso da pessoa com deficiência, ela necessita de meios que possam compensar suas limitações orgânicas para a execução de determinadas ações, ou seja, cabe ao mediador inserí-la em um processo de ensino intencional pautado na oferta de conhecimentos científicos, superando os conhecimentos espontâneos.
Participantes da intervenção
Os participantes foram dois adolescentes representados pelas letras G e J. A escolha por estas representações são arbitrárias e não correspondem às iniciais dos nomes dos sujeitos.
As características mencionadas foram elaboradas mediante as observações dos estagiários sobre o trabalho dos profissionais de Psicologia e a leitura das informações contidas nos prontuários dos dois participantes. Nesses documentos frisavam-se as dificuldades comunicacionais e cognitivas dos sujeitos. Um fato em comum a eles era que todos receberam queixas escolares acerca de seu desempenho educacional e comunicativo. Por isso, optou-se em observar justamente questões relacionadas à comunicação, à expressão de sentimentos e à realização de tarefas segundo comandos.
Estrutura da intervenção
G e J passaram previamente por processo de avaliação psicológica realizada por profissionais da instituição na deliberação das intervenções a serem realizadas - inclusive, fundamentou a elaboração do PTS. É oportuno ressaltar que os(as) estagiários(as) não aplicaram nenhum instrumento de avaliação psicológica, apenas se apropriaram das informações contidas nos prontuários de G e J, que apresentavam a evolução dos casos atendidos no setor de RI. Como é possível notar na descrição das características dos adolescentes participantes, eles têm algum impacto nas funções psicológicas atenção, linguagem, pensamento e memória. Portanto, o objetivo geral das intervenções promovidas pelos estagiários foi estimular e aprimorar essas funções. Para as intervenções foram considerados os gostos e hábitos do cotidiano dos adolescentes, de modo a aproximar o conteúdo trabalhado às suas realidades, com o intuito de motivá-los e iniciar a prática mediante ao que sabiam realizar sem o auxílio de um adulto. Nesse sentido, a complexidade das tarefas solicitadas aumentava no decorrer dos atendimentos e ao longo dos encontros. Quando apresentavam algum tipo de dificuldade, inicialmente busca-se nortear sua atenção para a estagiária e, na sequência, eram realizadas diferentes perguntas relacionadas à atividade proposta. Ao início e ao final de cada encontro, eram feitas perguntas sobre o cotidiano do adolescente a fim de incentivar o hábito de iniciar conversas espontâneas e de dialogar livremente sobre diferentes temáticas. Eram realizadas conversas sobre a importância das atividades e do desenvolvimento de sua comunicação para o alcance de maior autonomia em sua vida, utilizando-se de exemplos de sua vida pessoal. Destaca-se que era comum estimular a comunicação e a externalização das emoções durante essas interações. Optou-se por realizar quatro tipos de questionamentos: concordância ou discordância do participante; descrição do que era observado; relato de emoções perante algum tipo de situação; estabelecimento de contrastes (isso ou aquilo, por quê?). Foi estipulado uma sessão por semana entre os meses de março e novembro, com duração de 60 minutos com cada adolescente. Conforme a atuação acontecia nesse tempo, a dupla de estagiários(as) registrava em diário de campo as principais percepções sobre a situação e verbalizações dos adolescentes, no tocante à descrição de ações e de emoções. Ao final da prática do dia, eram elaboradas e descritas as perspectivas dos graduandos sobre os efeitos de seu trabalho junto aos participantes, especificamente no que tange à habilidade comunicacional, ao modo de operacionalizar as solicitações e aos padrões de interação social observados, ou seja, o que faziam, como e que tipo e quanto de ajuda, quando necessárias. Cabe destacar que, para efeitos de apresentação, optou-se por descrever as atividades selecionadas como aquelas com maior potencial no quesito desenvolvimento social e comunicacional, em detrimento do registro de cada sessão.
Resultados e discussão
Intervenção com G
O estudo dos relatórios e das observações feitas durante os atendimentos com os(as) psicólogos(as) da instituição permitiram verificar que G pouco estabelecia conversas e, quando perguntado sobre seus dias, seu cotidiano, suas novidades, respondia com frases curtas, normalmente compostas por somente uma palavra. A comunicação verbal de G apresentava pouca espontaneidade, não conseguia pontuar assuntos e temas diferenciados nos encontros, sendo os seus diálogos restritos às perguntas da estagiária com respostas curtas. O adolescente apresentava dificuldade para a retenção verbal por instruções faladas, como em jogos ou passo a passo em atividades. Ademais, G utilizava-se do apoio de gestos e expressões faciais como comunicação alternativa para expressar-se, apontava para os objetos, mexia as mãos em descontentamento ou contentamento e balançava a cabeça. Neste caso, entendeu-se ser necessário ampliar padrões de interação, logo, habilidades relacionadas ao campo linguístico.Uma das atividades consistiu na descrição de imagens do cotidiano, apresentadas na forma de slides, procedendo-se à apresentação de figura seguida por perguntas acerca de seus pontos centrais - características das pessoas envolvidas, lugar onde se passava a cena, e ação ou sentimento expressos pelos personagens - e finalizada com a solicitação ao participante G que descrevesse a imagem como um todo, como se contasse para alguém uma cena que presenciou. A estagiária guiava o olhar de G com o dedo, chamando a atenção para partes da imagem. O adolescente identificou características, expressões das pessoas presentes nas fotos e respondeu corretamente a todas as perguntas feitas. Quando solicitado que descrevesse as imagens, demonstrou dificuldade para a realização de síntese descritiva da cena em sua totalidade, apontando seus elementos isoladamente. Neste momento, conduzia-se a verbalização de G de forma a estabelecer conexões, por exemplo: essa pessoa está com... no lugar…
Foi proposto o jogo Pictureka, em que os jogadores devem encontrar, entre suas cartas, que apresentam imagens lúdicas variadas, figuras que tenham um dos dois elementos informados na carta escrita virada em cada jogada, que era lida e enunciada verbalmente pela estagiária. Além das regras gerais do jogo, a cada rodada era solicitado que o adolescente descrevesse a cena presente na carta de imagem selecionada por ele. Durante o jogo, G conseguiu seguir as orientações desde que essas fossem apresentadas em um ritmo compassado, com comandos verbais simples e frases curtas, também era solicitado que apresentasse seu entendimento após a fala da estagiária. Foi possível notar que G demonstrou habilidade para reconhecer os elementos das imagens e descrevê-los pontualmente, mas dessa vez de forma menos isolada que na atividade apresentada anteriormente. Buscou-se realizar uma prática de correlação entre imagens, o que consistia em apresentar uma figura central e, logo na sequência, outras menores. Esse procedimento era realizado repetidamente ao passo em que se perguntava para G se conseguia identificar semelhanças ou diferenças entre essas figuras. Além do mais, perguntava-se o motivo desse posicionamento. O adolescente apresentou iniciativa e seguiu corretamente as regras postas. Teve dificuldade para informar espontaneamente os motivos pela escolha da relação entre as imagens, o que impeliu a estagiária a proporcionar opções a G, as quais representariam possíveis justificativas da relação entre as imagens. Notou-se o uso de palavras que outrora não tinha usado. A última atividade que se relata é a leitura de Histórias em Quadrinhos - HQ, nas quais constavam balões vazios de falas dos personagens para posterior preenchimento com outras propostas de falas dadas pelo adolescente. Foi necessário realizar perguntas externas a G para realizar o proposto, por exemplo: o que o personagem está sentindo? O que ele está fazendo? O que ele fez? O que poderá fazer?
Percebeu-se que G relatava alegremente os acontecimentos de cada história com poucas dificuldades, demonstrando compreensão das situações, verbalizando algumas novas palavras, que eram completas pela estagiária caso percebesse que o adolescente não estava conseguindo terminar seu relato. De modo geral, no decorrer dos atendimentos, G passou a responder com frases mais longas, com mais conteúdo e com temas mais variados. Começou a levar assuntos de sua vida cotidiana com espontaneidade, contando suas experiências e expectativas mesmo quando não solicitado. Contou espontaneamente sobre: uma festa de aniversário que aconteceu em sua casa; uma noite em que sua mãe fez pastéis; uma possível viagem que faria com seu pai; um relógio novo que ganhou; expectativas em beber Coca-Cola. As mensagens construídas por G tornaram-se gradualmente mais inteligíveis, assim como seus gestos e expressões. Nos últimos atendimentos, percebeu-se intensa motivação e participação nas atividades, além de maior destreza para seguir instruções faladas que exigiam memorização dos comandos.
Intervenção com J
As dificuldades de J, quando comparadas com G, eram menos acentuadas, logo, conseguia se comunicar com maior facilidade e seguir comandos verbais. O estudo dos relatórios e das observações feitas durante os atendimentos com os(as) psicólogos(as) da instituição permitiram verificar que J tinha dificuldade em identificar emoções em si e nos outros, inclusive, nomeá-las e verbalizá-las de forma pacifica e lógica. A primeira atividade desenvolvida com a adolescente pela estagiária foi o jogo das emoções, que basicamente consistiu no sorteio de cartões que representavam reações emocionais ou atitudes, e J deveria identificar o que representava cada ficha sorteada. Dessa forma, quando um cartão era selecionado, a estagiária perguntava à adolescente o que estava acontecendo na ilustração. Notou-se que a maior dificuldade da participante era a compreensão da emoção raiva e de suas expressões. Foi necessário questionar se J se lembrava de algum momento em que se comportou de modo enraivecido - inicialmente respondia que não, mas hesitava a falar a respeito. Mediante a essa constatação, foi proposto o jogo dos cartões, utilizado em três sessões, com figuras que representassem reações emocionais e comportamentos baseados na raiva. Justifica-se o posicionamento adotado pois, ao longo da relação com J, discutiam-se formas de expressar tal emoção em diferentes contextos. Inicialmente, a adolescente se mostrou relutante e resistente em assumir que vivenciou a raiva, porém, conforme o desenvolvimento da atividade, ela se apresentava mais motivada e confiante em falar sobre isso, uma vez que foi trabalhado que tal sentimento faz parte das nossas relações e era importante discutir a respeito. Também relatou que se sentia mal ao estar com raiva e gostaria de não sentir mais isso. Em outra sessão foi proposta a tarefa de analisar uma cena de novela onde crianças se expressavam calorosamente utilizando gestos, expressões faciais e palavras no contexto escolar, propício à realidade de J. Foi possível observar como a adolescente conseguiu aproximar cada recorte da cena às emoções expressas e também trazer as situações para suas próprias experiências, tornando oportuno a reflexão sobre formas alternativas de se expressar e comunicar algo de forma compassada. Observou-se que J conseguiu identificar uma situação conflitante em que a reação emocional raiva existia, além de apresentar uma alternativa para seu enfrentamento. Aproveitando da oportunidade, foi solicitado que a adolescente verbalizasse outras possibilidades de atitudes frente ao contexto exposto, de forma a elaborar uma lista de possíveis modos de agir. Outra atividade foi o jogo da memória de emoções, representados pelas expressões faciais características em cada emoção com o par análogo da palavra escrita. Apesar de J ter grandes dificuldades na leitura e escrita, essa estratégia foi adotada propositalmente para uma inserção significativa da adolescente em um sistema de registros, com o objetivo de desenvolver essa necessidade da leitura e da escrita. Basicamente, era exigido que J associasse a palavra escrita com uma figura de um personagem que estava vivenciando e representando uma emoção. Um ponto interessante a se destacar é que durante a tarefa J verbalizava ações que representavam as emoções, inclusive, descreveu experiências pessoais de forma entusiasmada. Esse contexto permitiu aprofundar os relatos da adolescente, solicitando detalhamento e especificação das ações quando estava sob influência de determinada emoção. Um quarto tipo de atividade realizada foi a elaboração de uma receita culinária a partir da análise de folhetos de supermercado. Auxiliou-se J a ler um folhetim com figura e preços de alimentos. Ao longo desse procedimento, a participante deveria escolher mantimentos e explicar o motivo, porque gostava desse ingrediente e, na sequência, listar o nome em um papel. O próximo passo foi organizar a feitura da receita. Durante a atividade a adolescente se apresentava em estado de tensão e respondia de forma ríspida. A estagiária orientou a participante a lembrar de vivências anteriores na cozinha de sua casa, além de acalmá-la quando tinha dificuldade em escrever os ingredientes na folha. Ao passo que isso acontecia, J desenvolveu um ritmo de escrita e perguntava se as ações que estava realizando eram corretas. Por fim, a adolescente mencionou que ensinaria sua irmã a fazer a receita elaborada. Quando as sessões se iniciaram a partir da intervenção dos estagiários, a participante apresentava dificuldades no tocante a expressar emoções, especialmente a raiva que exigia um maior controle da conduta - além disso, evitava a escrita. Conforme o andamento da intervenção, após dois meses de atendimento, J trazia informações de maneira espontânea, clara e com a vocalização mais compassada, identificava e assumia emoções do tipo raiva. Após quatro meses, relatava experiências de reprodução das atividades realizadas na instituição em sua casa e conseguia propor atitudes alternativas para o enfrentamento da raiva. Por fim, conseguia copiar e escrever algumas palavras simples e curtas. Recorda-se que J ainda estava num processo inicial da alfabetização. As intervenções realizadas com G e J partiram do princípio de que as funções psíquicas se desenvolvem no processo de interação com as pessoas (Vygotski, 1999). Quando existem contextos sociais possibilitadores de apropriação de elementos culturais semióticos, componentes da linguagem, é possível ao sujeito internalizar esses elementos, o que por sua vez engendra a reconfiguração do próprio funcionamento psicológico. Logo, proporciona a participação e interação em seu contexto próximo de uma outra forma, inclusive, efetivando práticas que até então não eram possíveis. Nesse sentido, foram organizadas sistematicamente atividades em que os participantes eram estimulados a interagir com os estagiários. Ao retomar a descrição das tarefas, é possível notar que a todo momento se exigia de G e J a participação e comunicação. Entretanto, esse ato comunicativo era mediado, particularmente, havia orientações ao que se atentar e responder. Ou seja, criavam-se necessidades nesses participantes e os auxiliavam a atendê-las, por exemplo, complementando frases verbalizadas, chamando a atenção para certos tópicos e a própria escrita das palavras, ou seja, estabelecendo em conjunto motivos para a execução das tarefas. Assim, ao passo que as demandas eram solucionadas por G e J, eram criadas outras com maior nível de dificuldade. Isso requeria deles maior objetivação na tarefa, o que significou prestar mais atenção, persistência e retomada de conteúdos (palavras) utilizados em sessões anteriores. Os adolescentes colocavam em prática o que lhes era possível e os estagiários os conduziam na tarefa com questionamentos e orientações que estimulavam à busca de recursos pessoais para realizar o que era solicitado. Dessa forma, nota-se um movimento bidirecional: os participantes objetivavam-se na tarefa, a estagiária analisava o produto dessas ações o que permitia estabelecer estratégias e procedimentos que mobilizavam os adolescentes a se objetivarem novamente, criando um círculo de produção pessoal. Vygotski (1999) explica que o desenvolvimento humano acontece mediante a um processo dialético de apropriação e objetivação orientado ao atendimento das necessidades dos sujeitos. Segundo o autor, quando existe uma demanda real, o sujeito orienta suas forças psicológicas de forma a se comportar na realidade e suprir o que está sendo requerido. Durante essa atividade o sujeito retoma o que sabe e se comporta de maneira autônoma. Todavia, algumas vezes, ainda é preciso o apoio de alguém com mais experiência e saber para que de fato concretize sua finalidade. É nessa interação com o outro em que existe a possibilidade em se avançar no desenvolvimento, uma vez em que são dispensados conteúdos a serem apreendidos e utilizados no processo de atendimento dos objetivos propostos. A proposição de Vygotski (1999) pode ser compreendida como uma lei do funcionamento humano, logo, pode ser aplicada a todas as pessoas, independente de suas condições biopsicossociais. O que acontece no caso de uma pessoa considerada com deficiência é que ela apresenta um conjunto de comportamentos, de emoções e uma dinâmica psicológica diferente de outra que não se encontra nessa condição. Sendo assim, é preciso analisar as particularidades individuais e como elas se expressam nas interações e, a partir disso, criar estratégias e promover ações baseadas nessas especificidades com o intuito de avançar no desenvolvimento do sujeito com deficiência. Por isso, ao ler os relatórios de avaliação e observar atendimentos realizados pelos profissionais com G e J, foi possível identificar as condições reais e possibilidades de desempenho para que assim fosse elaborado um plano de intervenção adequado ao que se apresentava. Isso requereu uma análise minuciosa do repertório linguístico dos adolescentes, como eles se expressavam, quais suas dificuldades e principalmente o que conseguiam realizar com e sem apoio algum. O estudo desses determinantes orientou as atitudes implementadas na intervenção. Quando G tinha dificuldades em manter a atenção focada, buscava-se trazê-lo para a tarefa chamando-o pelo nome, solicitando que seguisse o movimento da mão e verbalizasse o que estava observando. Quando tinha dificuldades em relatar, era auxiliado em complementar as suas palavras. Ou seja, foi aproveitada a função visual que estava preservada em G, o que pode ser entendido como um canal para efetivar a comunicação oral exigida na tarefa. Foi considerada a velocidade de processamento cognitivo do participante, que se desdobrava no ritmo de execução dos comandos solicitados. Notou-se que era preciso repetir várias vezes as orientações para a realização de uma mesma tarefa, era comum a dificuldade para iniciá-las e, quando o fazia, necessitava estender o tempo para concluí-las. Reconhecendo essa particularidade, os estagiários o motivavam constantemente e trabalhavam segundo as condições do adolescente, o foco não era terminar a tarefa em tempo reduzido, mas sim aprimorar vocabulário e comportamentos proativos. Ao passo que conseguia concluir as atividades, G começou a utilizar o que fora aprendido em outros contextos, o que por sua vez contribui para a destreza de certas habilidades, por exemplo, descrição de situações. É oportuno mencionar que, tanto na elaboração quanto na execução das intervenções, consideraram-se os desejos, as vontades, as inclinações e as preferências dos participantes - inclusive, isso foi decisivo para manter o interesse e sua motivação nas tarefas. Acuna e Leite (2022) sugerem que, quando o profissional de Psicologia promove práticas profissionais dirigidas às pessoas com deficiência, deve observar a sua afetividade no tocante aos hábitos que as fazem sentir prazer porque são fatores potencializadores de suas ações, no sentido de que falar sobre e fazer tarefas prazerosas e costumeiras facilitam o engajamento e realização. Por isso, uma das estratégias utilizadas foi trazer e solicitar exemplos do cotidiano de G e J ao longo de seu trabalho. Outra condição levada em conta é que os participantes eram adolescentes, isso implica reconhecer que passam por um período específico do desenvolvimento humano, logo, com características peculiares. Elkonin (1987) pontua que é na adolescência que o sujeito tem uma intensa experiência individual acerca de suas emoções, vontades e desejos sobre seu futuro, começando a frequentar novos espaços e interações, além de vivenciar expectativas de diferentes grupos sociais acerca de sua conduta. Com essa nova etapa do desenvolvimento, há amplo potencial de reatividade em relação a essas novas circunstâncias, uma vez que vivencia novos contextos - o que pode engendrar dificuldades na lida com as próprias emoções e com as dos demais. Devido a própria condição da Deficiência Intelectual de G e J, atrelada ao período pandêmico, as suas relações sociais eram bem restritas à família nuclear, entretanto, notava-se que os adolescentes almejavam ampliar seu círculo social. Porém, relatavam que tinham dificuldades em saber se dirigir aos outros e/ ou compreender sentimentos, emoções e conflitos interpessoais - sendo a autorregulação um tema recorrente trabalhado nas intervenções. Para Luria (1991), as reações emocionais estão estruturadas sob a base orgânica do ser humano - reflexos, impulsos elétricos etc. Todavia, conforme o sujeito trilha sua história, aprende as regras de convívio coletivo e participa de diferentes espaços sociais, onde ocorrem possibilidades de humanização. Isso significa que as emoções tendem a ser controladas pelo sujeito e responder às exigências de uma cultura. Ou seja, de uma reação reflexa e automática, a emoção passa a ser pensada e estruturada de acordo com a vontade pessoal. Nesse sentido, refletiu-se que era preciso trabalhar com J a sua participação nas relações sociais, analisando criticamente seu comportamento de raiva. Por isso, requereu-se da adolescente a identificação das emoções em contextos externos, o que significou reconhecer no outro atitudes e expressões que representavam a raiva, ao passo que aprimorou essa habilidade e levou a considerar que também vivenciara tal emoção em determinados momentos. Logo, foi necessário estabelecer outras atividades em que era solicitado a J pensar em alternativas sobre como se comportar quando estava sob influência desse estado emocional. A tarefa de elaborar uma receita culinária exigiu atenção focada na organização das suas ações, uma vez que deveria escrever a palavra que representava o mantimento escolhido, respeitando sua ordem na receita. J foi auxiliada a permanecer concentrada e tranquila quando encontrava algum tipo de dificuldade, proporcionando maior segurança caso surgisse algum tipo de dúvida sobre a ortografia das palavras - fato que gerava nela muita angústia. Era sempre solicitado que tentasse realizar tarefa semelhante em casa. Considerando o andamento e produtos das intervenções, ressalta-se a necessidade da superação da visão centrada nas limitações da pessoa com deficiência. Apesar de não ser possível negar que exista um impacto da formação neurológica no comportamento humano, isso não se constitui como uma sentença vitalícia que alude à imutabilidade das características humanas. O desenvolvimento humano deve ser considerado como produto social em constante movimento.
Considerações finais
Nas linhas anteriores procurou-se demonstrar os passos percorridos numa proposta de intervenção voltado ao atendimento de necessidades específicas de adolescentes com Deficiência Intelectual, realizada durante o estágio curricular em Psicologia da Educação. A intervenção aconteceu com dois adolescentes, designados por G e J, que tinham um padrão de interação social restrito a poucas palavras e expressões emocionais, além da dificuldade em escrita. Vale dizer que na época em que a intervenção foi realizada a frequência dos adolescentes na escola comum era bastante restrita em virtude da pandemia da Covid-19. Porém, em função dos atendimentos institucionais serem realizados junto ao setor da saúde, na reabilitação intelectual, havia permissão para a sua realização, desde que os devidos cuidados pronunciados pelas agências de saúde fossem mantidos (paramentação especial dos estagiários, distanciamento social, uso de máscaras pelos participantes, dentre outros).
Considerando alguns princípios da Psicologia Histórico-Cultural como instrumental para abordar o trato com pessoas com deficiência, tomou-se como norte que existem impactos da estrutura orgânica sob o comportamento do sujeito. Todavia, essa é uma condição a ser refletida e superada por práticas sociais sistematizadas. Dessa forma, foram promovidas atividades com o intuito de ampliar a qualidade das interações mantidas pelos adolescentes. A partir da mediação estabelecida com os adolescentes, que considerou o desenvolvimento real, isto é, aspectos cognitivos, sensoriais, linguagem, preferências e outras particularidades de G e J, foi possível estabelecer relações sociais que os motivaram a permanecer nas tarefas e buscar recursos pessoais para superar os desafios postos pelas exigências contextuais. Com isso, observaram-se outras formas de interação participanteestagiária, o que significou o uso de novas palavras, a identificação e a expressão de emoções. Por fim, é oportuno dizer que a intervenção proposta foi pontual, trabalhando alguns aspectos sociais, educacionais e emocionais dos participantes. Ressalta-se que muito já tinha sido trabalhado pelos profissionais da instituição, uma vez que os adolescentes lá estavam desde 2015 e, pela leitura dos prontuários e pelas demais informações obtidas, percebe-se que eles já tinham se apropriado de conhecimentos e desenvolvido várias habilidades anteriores ao início do estágio. Com isso, percebe-se que a atuação com pessoas com Deficiência Intelectual muitas vezes requer intervenções de longo percurso, mas que podem ser subdivididas em pequenas etapas para que se possa ir alavancando o desenvolvimento.