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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo  1998

 

ARTIGOSS

 

Sujeito surdo e profissionais ouvintes: repensando esta relação

 

Rethinking relationships: deaf person and hearing professionals

 

 

Regina Maria de Souza

Atua nas áreas de Psicologia e de Lingüística do Centro de Estudos e Pesquisas Prof. Dr. Gabriel Porto da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Professora doutora do Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação da UNICAMP

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como meta rediscutir a natureza da relação clínica que, em geral, se estabelece entre especialistas ouvintes e sujeitos surdos. Ao problematizar a questão, traz à tona os fortes mecanismos de poder materializados nas ações desses especialistas. As práticas que engendram acabam por assujeitar a pessoa surda e lhe restringem os espaços reais para um desenvolvimento social e afetivo satisfatórios. Contrapondo-se a uma tal perspectiva, inscrevo a questão no âmbito da esfera educacional segundo uma abordagem bilíngüe, o que demanda a construção de uma nova concepção tanto da surdez como da pessoa surda.

Surdez; educação bilingüe; integração.


ABSTRACT

The objective of this paper is to discuss the nature of the clinical relationship which is often established between hearing specialists and deaf people. The analysis of this matter brings to light the deep mechanisms of control revealed in the actions of the specialists. In the final analysis, the practices they engender subjugate the deaf and restrict their possibilities for satisfactory social and emotional development. Countering such a perspective, I inscribe this matter in the realm of the educational sphere, according to the bilingual approach, which demands the construction of new conceptions, not only of deafness, but also of deafness, but also of the deaf person.

Psychology and deafness; bilingual education; globalization


 

 

Nos alvores deste século, os estudos psicométricos de Alfred Binet entusiasmaram os psicólogos pela possibilidade de se mensurar, objetivamente, os "desvios" psicológicos de um sujeito, ou de uma população inteira, em relação a uma norma.

Devido aos grandes bloqueios comunicacionais entre psicólogo ouvinte e aluno surdo os testes passaram a ser instrumentos quase únicos de acesso ao sujeito, a partir de cujos resultados se estruturavam programas remediativos de intervenção. A não compreensão do status bilíngüe (3) dos surdos pelo psicólogo se traduziu não só no reduzido empenho, por ele, na aprendizagem e fluência em língua de sinais (L.S.), como também, na tendência de interpretar como "desvio" os resultados que os surdos obtinham em contexto de testagem. Esta situação, infelizmente, ainda acontece em nossos dias.

Uma grande influência na Psicologia, sedimentadora de uma tal praxis, ocorreu na década de 60 quando Myklebust publicou um livro, Psicologia del Sordo, que haveria de se tornar um clássico para os psicólogos estudiosos da surdez. Naquele seu texto, Myklebust (1971) resenhou várias pesquisas psicométricas realizadas com surdos, comparando-as com seus próprios estudos. Assinalou um conjunto de problemas cognitivos que poderiam se associar à surdez por vinculação etiológica, e que abrangeriam características tais como problemas de memória, de utilização e compreensão das categorias de "espaço" e "tempo", certa rigidez nos processos de pensamento, com decorrente prejuízo no funcionamento mental, entre outros.

Outros trabalhos, que tinham como objetivo principal comparar as dificuldades entre pessoas surdas e aquelas ditas "normais", multiplicaram-se ao longo dos anos, como pode ser constatado em minha dissertação de mestrado (Souza, 1986). Apesar de oferecerem explicações diversas para as "diferenças" encontradas entre estes dois grupos (de surdos e de ouvintes), a maioria dos estudos na área da Psicologia acabou por enriquecer ainda mais os argumentos em prol de uma atuação pedagógica medicalizada bem como de uma prática psicológica corretiva. Estava instaurado um círculo vicioso: a privação lingüística, provocada pelos preconceitos da sociedade e dos profissionais em relação à L.S., acabava por condicionar graves comprometimentos afetivos e cognitivos no surdo, o que, por sua vez, compelia o psicólogo a adotar uma praxis "reabilitadora". Não havia, aparentemente, outra saída.

Na escola, esta situação harmonizava-se com a natureza reabilitadora que nutria o ensino.

Lane (1993), psicólogo e lingüista americano, tomando como um de seus temas favoritos a análise da relação psicólogo-sujeito surdo, criticou de modo muito interessante o que se costuma rotular na literatura de "Psicologia da surdez". A seguir, farei uma resenha comentada de suas idéias principais.

Em seu texto, e logo no início, Lane (1993) assinala as incríveis semelhanças entre as características atribuídas aos africanos pelos colonizadores europeus e aquelas usualmente conferidas aos surdos pelos psicólogos e outros especialistas. Para ele, este fato sugere que as descrições psicológicas produzidas pela "Psicologia da surdez" não refletem, de modo algum, o que se pretendia estabelecer como sendo os traços afetivos (inerentes) dos surdos mas os próprios interesses dos especialistas, fabricantes, eles próprios, de tais "traços". Portanto, a "Psicologia da surdez", constitui-se, enquanto praxis, em ato colonialista. Todavia, vamos por partes.

O colonialismo implica a submissão de um povo, do qual se retira o poder, ao qual se impõem uma língua e conduta estrangeiras, e para o qual se estrutura uma educação compatível com o viés do opressor. Partindo da premissa de que o colonizador constrói, em primeiro lugar, uma imagem negativa e depreciativa do colonizado, com o intuito de justificar intervenções político-culturais sobre ele, Lane se empenha em demonstrar que negros e surdos não foram exceções a tal prática. A partir da leitura de 350 artigos e livros, Lane elencou as características psicológicas mais freqüentemente atribuídas aos surdos. Da mesma forma, valendo-se de diferentes tipos de textos escritos sobre os africanos, construiu uma lista de qualificativos usualmente associados a eles. Depois, comparou os resultados.

Do ponto de vista das palavras utilizadas para adjetivar os dois grupos, verificou que surdos e negros são considerados semelhantes entre si, e inferiores, nos planos social, cognitivo, comportamental e emocional, quando comparados com ouvintes ou com brancos, respectivamente.

Apesar de os aspectos levantados a respeito dos surdos serem contraditórios (por exemplo, são rotulados ao mesmo tempo de "agressivos" e "submissos", "frios" e "passionais", "explosivos" e "tímidos"), têm em comum o fato de serem negativos. As incoerências fazem suspeitar da validade das contribuições que, até agora, a "Psicologia da surdez" vem produzindo. Lane opta por inscrevê-las, e eu concordo com ele, no interior da ideologia audista.

O termo audismo foi utilizado pela primeira vez em 1977 por Tom Humphries, educador e autor surdo americano, para designar o empreendimento opressivo, sobre os surdos, conduzidos por especialistas que afirmam servi-los. Refere-se ao sistema educacional que, detendo os saberes de "especialistas", ocupa-se em produzir e legitimar julgamentos sobre a "surdez" e os "surdos". Uma instituição audista, por exemplo, descreve, avalia, estabelece qual a escola que melhor convém ao surdo e, às vezes, até mesmo, onde é mais apropriado que resida. Ela inclui profissionais como administradores, supervisores, conselheiros e reeducadores de surdos, professores, certos intérpretes, fonoaudiólogos, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. Ou seja, qualquer categoria profissional que ofereça serviço a uma instituição audista compartilhando, assim, com os pressupostos da ideologia audista. E quais são estes pressupostos?

(1º) A surdez é fruto de uma enfermidade, ou de um acidente genético que, enquanto tal, se associa freqüentemente a outros distúrbios. Não é incomum se ouvir, por exemplo, que as características de comportamento identificadas como típicas do surdo são, amiúde, conseqüência dos efeitos interacionais entre a perda auditiva e as lesões do sistema nervoso central ligadas ao fator etiológico provocador da surdez. Colocado de outra forma, a idéia de que o surdo é constitucionalmente inferior funda a ideologia audista.

(2º) Sustenta-se que a L. S. é prejudicial para a aquisição da fala; que, devido à facilidade com que é aprendida, desmotiva o surdo a se empenhar nos árduos exercícios de voz ou dos órgãos fonoarticulatórios; que interfere negativamente na escrita; que provoca isolamento do surdo ou, mais recentemente, que o impede de adquirir uma "língua materna" (entendida, literalmente, como língua da mãe que, na grande maioria das vezes, é ouvinte). Quando se é mais condescendente, é franqueado ao surdo o uso dos sinais mas não sem antes submetê-los à gramática da língua majoritária. Os audistas tendem a negar o status lingüístico da L. S. e, por isto, acabam por reduzi-la a um mero instrumento para a imposição de uma política educacional monolingüe que, aliás, não vem trazendo resultados minimamente satisfatórios. Veja, por exemplo, as discussões feitas por Perelló e Tortosa (1972) sobre o assunto. Em seu texto equiparam a L. S., que é, do ponto de vista lingüístico, uma língua, à mímica, que é definida, segundo nossos dicionários, ou como uma arte ou como ato de se de expressar por meio de gestos.

Para sustentar os pressupostos (1) e (2) acima descritos, o audismo constrói e/ou se vale de teorizações médico-biológicas que procuram sustentar a (pseudo) inferioridade dos surdos. É em tal horizonte discursivo que as academias formam uma população anual de alunos audistas nas mais diversas áreas. Com o psicólogo não é diferente.

Estes alunos, quando profissionais, reproduzem os discursos aos quais foram assujeitados, isto é, acreditam, embriagados por um idealismo tolo, que o melhor que têm a fazer pelos surdos é avaliá-los para diagnosticar os "desvios associados" (que certamente deverão ter) e, obviamente, elaborar estratégias e/ou programas corretivos com o intuito de minimizá-los ou preveni-los. Os pais também não são esquecidos pois contam com eles para a perpetuação da ideologia audista. Dão-lhes suporte para que elaborem e consigam conviver com a idéia de terem procriado um organismo portador de uma seqüela patológica crônica. Ensinam a eles a qualificar suas crianças como deficientes e a tratá-las enquanto tais. Transformam em "casos" os surdos e os seus pais.

Na escola, ou nos centros de reabilitação, via de regra, os surdos são cuidadosamente divididos segundo a perda auditiva, o comprometimento motor e/ou psicológico. A instituição audista propõe-se a oferecer atenção individualizada a cada tipo de caso e não a cada indivíduo real. O aluno é transformado em uma entidade "a-histórica", tratado como sendo um ser sem passado mas cujo futuro deve ser definido pela e na própria instituição.

A atenção e os cuidados que os profissionais audistas têm em relação ao "deficiente auditivo" constituem os ingredientes a partir dos quais tecem a imagem de "benfeitores" perante a sociedade, a família do "deficiente" e, lamentavelmente, perante o próprio surdo. A sofisticação material e os recursos para a formação de especialistas de que dispõem, transformam todos os envolvidos em reprodutores de novas gerações de aliados. Está fechado o círculo! Imerso numa poderosa trama discursiva, legitimada pelos detentores de saber, o surdo constrói a identidade de deficiente; estrutura uma auto-imagem negativa, com fortes traços de dependência de seus "benfeitores" a quem, não raro, serve voluntariamente. Ao mesmo tempo, evita contato com surdos "não reabilitados" e desenvolve vergonha de si próprio ou da linguagem de sinais (Kannapel, 1978).

Em tal quadro de referência, o processo de dominação é inconsciente aos profissionais. É oportuno dizer aqui que as relações estruturais de opressão, como diz Foucault (199D, são resultantes de forças históricas e discursivamente determinadas, provavelmente as mesmas que condicionaram a apropriação dos corpos pelo Estado, o ganho de poder pela medicina, o darwinismo social, a eugenia, a escalada da aplicação indiscriminada de testes, o etnocentrismo, a inegável separação entre ricos e pobres.

O profissional, uma vez que aceite se ocupar dos oprimidos, não encontra espaço para refutar as condições vinculadas a tal engajamento, anteriores ao seu próprio nascimento e que se manterão, possivelmente, após sua morte (Memmi, 1984).

Entretanto, novas possibilidades na educação de surdos têm sido vislumbradas atualmente pelo conjunto de idéias que tecem e estruturam uma nova perspectiva em se considerar o sujeito surdo; possível pelo deslocamento do enfoque sobre a patologia para a consideração das diferenças sociolingüísticas que caracterizam as relações surdos e ouvintes. Dito de outro modo, trata-se de entender o surdo como sujeito que construirá sua identidade nas tensões discursivas promovidas por "falantes" de duas línguas diferentes: a língua majoritária e a de sinais. Trata-se de colocar em foco a condição bilíngüe da pessoa surda.

O bilingüismo, no campo da surdez, teve suas raízes na mesma época (1960-1970) em que floresceu a sociolingüística, disciplina cuja preocupação central é estudar os fenômenos de linguagem em seu contexto social de ocorrência (Labov, 1977). Os estudos de Labov, entre eles um de 1968 (Labov, Cohen, Robins e Lewis, 1968), chamavam a atenção para a existência de variações sistemáticas dentro de uma mesma comunidade majoritária de fala. Uma das contribuições mais importantes destes trabalhos foi ter demonstrado a inexistência da "pureza" lingüística, ou seja, que a heterogeneidade, a evolução da língua, as mudanças eram fenômenos esperados e, em grande parte, estavam intimamente relacionadas com variáveis sociais.

O paradigma de grande prestígio da época era o chomskiniano. Autores como Weinreich, Labov e Herzog (1968), coerentes com esta abordagem, explicavam que a heterogeneidade refletia uma parte inerente da competência lingüística unilíngüe. Para eles, não era a presença mas a ausência de variação que deveria ser considerada como disfuncional.

A década de 60, que deu abrigo às idéias de Weinreich e Labov, caracterizou-se por movimentos político-sociais patrocinados pelas ou em prol das minorias. O mundo acompanhava com interesse, estranhamento ou perplexidade as passeatas feministas, as reivindicações dos negros Black Power, Woodstock e as idéias hippies, para citar alguns exemplos. O marxismo, que questionava a ideologia capitalista e propunha uma transformação radical na natureza das relações econômicas e sociais, tomava força, penetrava nos meios acadêmicos e fazia um número cada vez maior de seguidores.

Observava-se, ainda, sensível aumento no interesse e na produtividade de pesquisas em antropologia, com uma preferência marcada pela etnografia como método de estudo de culturas diferentes ou de grupos sociais minoritários. Ligada à antropologia e à sociologia qualitativa, a etnografia constituía-se em uma importante oposição ao modo quantitativo e positivista de se fazer ciência. Seus princípios fundantes entravam em choque, por exemplo, com a idéia vigente de "neutralidade científica", explicitavam o fenômeno da diversidade possível na interpretação dos dados, relativizavam e problematizavam conceitos como os de "normalidade" (Lüdke e André, 1986; Ezpeleta e Rockwell, 1989). Na década de 60, ganhava prestígio também a Psicologia social.

Foi nesta época, e talvez não por acaso, do ponto de vista do Zeitgeist, que Stokoe, docente e lingüista do Gallaudet College, notou que atrás da multiplicidade e diversidade dos gestos empregados pelos surdos havia semelhanças estruturais cabíveis de serem analisadas de modo similar ao fonológico. Concentrando sua atenção neste aspecto, demonstrou que os sinais eram formados por um número limitado e pequeno de unidades que por elas mesmas nada significavam, como os fonemas nas línguas orais. Propôs que cada palavra em sinal tinha pelo menos 3 partes independentes: locação, formato de mão e movimento, e que cada uma destas partes possuía um número limitado de combinações. Constatou 19 formas de mãos diferentes, 12 locações, 24 tipos de movimentos e inventou uma notação para representá-los. Em Sign Language Structure, Stokoe (I960) demonstrou que a estrutura da língua de sinais possuía aspectos similares à estrutura de todas as línguas. Portanto, era, de fato, uma língua.

Nos anos seguintes, houve um pipocar de trabalhos que demonstravam que crianças surdas, filhas de pais surdos e sinalizadores, tinham um melhor desempenho acadêmico e construíam uma auto-imagem mais positiva quando comparadas com crianças surdas, filhas de pais ouvintes. Citam-se, por exemplo, os estudos de Meadow (1968 el969), Stuckless e Birch (1966) entre outros. Poucos anos depois, já por volta de 1980, alguns pesquisadores começaram a assinalar as dificuldades, no contexto de ensino de língua, do uso concomitante - pelo professor - da língua oral e da de sinais. Trabalhos como os de Kluwin (1981), Strong e Charlson (1987) ou o de Woodward e Allen (1988) apontavam inconsistência gramatical e, mesmo, agramaticalidade nos enunciados realizados em prática bimodal (fala mais sinal). As questões que começaram a ser colocadas eram: em tal contexto, os alunos conseguiriam aprender uma língua, qualquer que fosse? Não seria sobrecarregá-los demais, expô-los, ao mesmo tempo, à língua oral e a uma língua sinalizada artificial?

A que levaria essa dupla exposição?

Além destas questões, outras, de natureza ética, impuseram-se. Para ilustrar, vários autores como Bouvet (1979), começaram a aderir à tese de ser a L. S. a língua natural e materna da pessoa surda. Os trabalhos começaram a se multiplicar em todas as áreas e ofereceram argumentos fortes para a germinação da proposta de ensino bilíngüe. A Suécia toma a dianteira, reconhece a Língua de Sinais Sueca como língua oficial e instaura o ensino bilíngüe para surdos em todo o país. E o que vem a ser, afinal, o ensino bilíngüe?

 

A ABORDAGEM BILÍNGÜE, E NÃO REABILITADORA, COMO FUNDANTE DAS RELAÇÕES ESPECIALISTA OUVINTE-ALUNO SURDO:

Como apropriadamente escreve Skliar (1997), "a educação bilíngüe é um reflexo cristalino de uma situação e de uma condição sóciolingüística dos próprios surdos; um reflexo coerente que tem que encontrar seus modelos pedagógicos adequados" (p.53).

Esta situação, conforme Skliar (1997), é o ponto de partida para se repensar uma transformação radical da arquitetura escolar e da filosofia educacional que deverá nutri-la.

Apesar de podermos elencar alguns pontos que poderiam ser levados em conta nesse processo transformador, há de se deixar claro que o termo modelo não significa, aqui, "receita". Reduzir uma postura ética e ideológica, em relação à pessoa surda, a um conjunto de praxis pedagógicas prescritivas não seria disfarçar, com uma nova roupagem, um conjunto de velhas idéias? As mesmas idéias que postulam que todos os alunos são iguais, porque membros de uma mesma espécie biológica; que todas as comunidades escolares, independendo do país e de sua história, são idênticas; e que os sistemas de referências partilhados por todos os professores, direção e alunos são exatamente os mesmos. Pelo contrário, convivemos com a diversidade cultural e lingüística dentro de um mesmo país, dentro de uma mesma região, numa mesma escola.

Daí porque o absurdo de se falar em método de ensino bilíngüe ou de se preconizar um modelo de ensino bilíngüe. Nosso maior desafio é, ao contrário, saber derivar de nossas convicções téorico-ideológicas a construção de uma arquitetura escolar compatível com o atendimento das necessidades da comunidade escolar da qual fazemos parte. Mesmo que houvesse uma boa fórmula, nenhuma receita é, de fato, repetível. Como diz Paulo Freire (1992), porque a praxis pedagógica é histórica, cultural e política, nenhuma ação educacional se materializa da mesma forma em contextos políticos e sociais diversos. Ou seja, nenhum modelo é transferível ou passível de ser exportado, nem há patentes a serem vendidas, muito menos uma fórmula mágica que se aplique a todas as realidades e comunidades surdas existentes no planeta. Dito de outro modo, assumir uma perspectiva bilíngüe demanda ter a coragem de atuar como elemento transformador de realidades; em ocupar o lugar do sujeito que se transforma com seus próprios atos de transformação.

Pressupostos subjacentes a uma educação bilíngüe:

O bilingüismo parte do pressuposto de que o surdo deve ser exposto à língua de sinais o mais cedo possível. Defende que os conhecimentos lingüísticos, construídos por ele nesta linguagem, serão ativados em seu processo de construção da língua majoritária. Advoga a importância do conhecimento das duas línguas pelo surdo e reconhece que, em tal situação, o surdo poderá ter, dependendo da situação histórica e social na qual estiver inscrito, uma identidade bicultural.

Os argumentos mais comuns que os bilingüistas utilizam, via de regra, para sustentar suas convicções são os seguintes:

1- A linguagem tem papel crucial na construção e organização dos processos psicológicos superiores, como a leitura, a escrita e, principalmente, da própria subjetividade.

2- A linguagem "natural" para o surdo é a gestual dado que, em situações livres, onde não haja restrições lingüísticas, a pessoa surda se vale principalmente de sinais em suas interações dialógicas (Moura, Lodi e Pereira, 1993).

3- Existe um período ótimo para a aquisição da linguagem. Esta idéia é respaldada pela noção, proveniente da neurologia, da existência de "horários biológicos críticos" que regulam as diferentes aprendizagens. Estando o organismo fora deste "horário", deste momento biológico "crítico", a aquisição de linguagem é, senão impedida, pelo menos seriamente prejudicada (Rodrigues, 1993).

4- Toda língua deve ser respeitada enquanto tal, em suas regras próprias de construção e realização. Neste sentido, a língua de sinais é tão rica quanto qualquer outra, e pode "expressar" qualquer tipo de pensamento ou sentimento (Ferreira Brito, 1985; Amaral, Coutinho e Martins, 1994). Porque é facilmente adquirida pelo surdo, o seu uso na escola pelo professor evita retardos desnecessários no cumprimento do currículo. Por meio dela, o mestre pode realizar efetivamente seu papel pedagógico deixando ao fonoaudiólogo, ou ao logoterapeuta, a função de trabalhar com a oralidade.

A partir de tais premissas, a escola passa a ser compreendida como uma comunidade bilíngüe, onde profissionais surdos e ouvintes atuam como pessoas que participam efetivamente da construção do conhecimento pelo educando surdo. Neste contexto, professores ouvintes devem ser bilíngües e os necessários educadores surdos, fluentes em língua de sinais.

Numa abordagem bilíngüe não há, portanto, deficiência a ser reabilitada nem há sentido em se avaliar o desempenho da criança surda confrontando-o com aquele de crianças ouvintes.

Nesta direção, Carlos Skliar (1997) adverte para o fato de que, como são ouvintes que organizam e administram a estrutura escolar, a escola deveria ter a preocupação de promover reflexões críticas constantes envolvendo todo o corpo docente. Ainda mais porque, como estes profissionais foram formados no fluxo de discursos audistas, podem se tornar presa fácil da ideologia a que pretendem, honestamente, resistir.

Alguns indicadores de se estar caindo em uma tal armadilha são elencados por Skliar (1997); aos indicativos que sugere, acrescento novos tecendo meu texto numa íntima intertextualidade com o dele.

Uma arquitetura educacional que se auto-denomine bilíngüe pode estar apenas conferindo uma nova roupagem ao discurso audista se:

■ Subordina todo o objetivo escolar à aquisição da língua oral, da escrita e a produtos culturais da comunidade ouvinte.

■ Atribui tratamento diferenciado aos profissionais surdos, postos fora do âmbito administrativo e dos conselhos deliberativos da escola.

■ Atrela o processo de escrita à aquisição da oralidade, sem considerá-lo como sendo distinto daquele da fala, tanto em estrutura como em função.

■ Os professores desvalorizam ou desconsideram os textos produzidos em sinais pelos alunos, reduzindo-os a meras "formas de comunicação" de segunda ordem ou qualitativamente inferiores, do ponto de vista lingüístico, às produções escritas e orais. Agindo desta forma, negam ao surdo a constituição, por ele, dos papéis de autor e de leitor do mundo em sua língua "natural".

■ Os educadores transformam o bilingüismo, situação socio-lingüística real, em mais um método ou modismo pedagógico, convertendo-o em uma espécie de fórmula mágica para fazer (sapos virarem príncipes?) a educação da pessoa surda (finalmente) dar certo. Como se bastasse franquear o "uso" da língua de sinais na escola, submetendo o aluno, contudo, à mesma escola velha e ao mesmo ensino empirista anteriormente adotado (ênfase na memorização do vocabulário, na reprodução, no reforço da atenção, na cópia, na escrita sem destinatário e sem desejo, na leitura do nada para nada etc).

■ A escola acredita que apenas a presença de profissionais surdos, fluentes em sinais, é suficiente para "promover o desenvolvimento lingüístico-cognitivo" do aluno surdo e que, paradoxalmente, os ouvintes podem continuar sendo monolíngües. Se a construção do conhecimento se faz nos interstícios de interações verbais (verbais mas não necessariamente orais), a relação de ensino é altamente obstaculizada se professor ouvinte-aluno surdo não se aproximarem por uma língua comum e passível de ser partilhada por ambos: a de sinais.

É óbvio que um tempo para isto há de se fazer necessário, mas é uma meta crucial que não deve ser perdida de vista.

■ Se os orientadores pedagógicos e os burocratas da educação consideram a integração como uma via de mão única (como ocorre, aliás, em situações de colonização), sem o reconhecimento social e político da língua de sinais, como língua legítima de um grupo social que compõe, com outros, o tecido heterogêneo do corpo social.

■ Se a escola mantém-se distanciada das comunidades surdas, como se fossem organismos sociais absolutamente estranhos um ao outro.

■ Se a avaliação do desempenho escolar dos surdos se perpetua seguindo o mesmo molde daquele utilizado com ouvintes, esperando-se portanto que os surdos tenham que neles se espelhar como cidadãos e alunos.

Cabe ponderar que foram atitudes similares a estas que patrocinaram e mantêm o insucesso escolar do surdo, seja em escolas especiais seja em programas educativos regulares. Na verdade, apenas materializam uma certa representação da surdez e da pessoa surda: a de que são problemas a serem superados.

Segundo Skliar (1997), deveríamos pensar, ao contrário, "...como seria possível alcançar, desenvolver e aprofundar um modelo sócio-antropológico da surdez e não somente nas discussões acadêmicas ou nas reuniões formais de aperfeiçoamento educativo. Pois não basta afirmar que os surdos são sujeitos íntegros se, por outro lado, se age a partir do pressuposto de que a deficiência auditiva os impede de se desenvolverem como pessoas; não basta em entender que os surdos possuem direito à língua de sinais se, por outro lado, se lhes exige, no concreto, que deixem de ser surdos a partir da fala e de uma melhor articulação (...).

Se estamos diante de uma nova proposta educativa, também deveríamos estar frente a novos mestres, ainda que sejam os mesmos, e sobretudo, frente a novos surdos, quer dizer, diante de sujeitos que agora consideramos, conceitualizamos e avaliamos de uma maneira diametralmente oposta ao passado." (p.56).

 

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE POSSÍVEIS OBSTÁCULOS À EFETIVAÇÃO DO ENSINO BILÍNGÜE:

A tarefa desafiadora de se repensar a educação para surdos, possibilitando-lhes o exercício efetivo da cidadania, não é fácil. Ainda sofremos os efeitos das profundas discrepâncias sociais, uma distribuição de renda díspar que condiciona profundas desigualdades nas oportunidades educacionais. Por maiores que sejam os esforços, o ensino público ainda não prima pela qualidade. Esta situação não ocorre só no Brasil mas em, pelo menos, 1/2 de nosso planeta. Entretanto, paradoxalmente, na grande maioria dos países vem se observando uma forte tendência política de se defender a integração do surdo na escola comum, uma estrutura de ensino que não vem satisfazendo as necessidades educativas nem de crianças ouvintes. Os argumentos utilizados revelam total desconhecimento a respeito das particularidades lingüísticas da criança surda. Acabam convencendo, pois são travestidos por um discurso idealista que prega a igualdade de condições e de oportunidades a todas as pessoas, sejam surdas, cegas, mongolóides etc. Um discurso que condena a reclusão e a discriminação e que defende a tese de que os surdos podem e devem ser tratados como os demais.

À primeira vista pareceria insanidade se opor a tão nobres propósitos. Na verdade não me oponho ao princípio universal de igualdade entre os povos, mas sim, como este princípio vem sendo interpretado para legitimar o literal, e perverso, ajuntamento de crianças com necessidades e particularidades lingüísticas e sociais tão diversas. A meu ver, esta interpretação é fortemente determinada pelas grandes transformações econômicas que vêm condicionando uma radical alteração na forma de se considerar o ser humano e seu papel social. Talvez, estejamos sendo testemunhas de um acontecimento muito mais forte do que o foi a revolução industrial (séc. XVIII-XIX), embora pareça, ao menos à primeira vista, que a natureza social de seus efeitos não sejam diferentes.

Se no século passado profundas e estruturais mudanças nas condições de produção levaram à revolução industrial, nos últimos anos, o avanço nas comunicações entre os povos (a TV a cabo, a INTERNET, os satélites de telecomunicações, as antenas parabólicas, maior sofisticação e eficiência das telecomunicações), um progresso tecnológico notável, com o desenvolvimento de maquinarias reguladas por computadores ou robôs, um crescente desenvolvimento da ciência, entre outros, vêm constituindo o meio de cultura para a fermentação de um fenômeno de alcance mundial, que tem sido chamado de globalização.

Todos estes avanços permitem que quaisquer mudanças, no plano político, social, científico ou educacional, estejam à disposição da humanidade quase ao mesmo tempo em que ocorrem. Pode-se ver ao vivo um tornado em ação, a ocupação da embaixada do Peru, ter-se notícias sobre um novo medicamento contra a AIDS etc. O mundo torna-se uma aldeia global, como apropriadamente previu Herbert Marshall MacLuhan há quase 40 anos atrás.

Entretanto, as novas tecnologias continuam, quase sempre, nas mãos de capitalistas e, obviamente, acabam sendo instrumentos para a produção de capital. Do ponto de vista econômico, as parcerias entre fábricas permitem que um mesmo carro, ou um computador, tenha suas peças fabricadas em meia dúzia de países para, finalmente, ser montado num sétimo que o distribui. Ou seja, cada vez mais tem-se, cada vez menos, produtos nacionais. A idéia parece boa: pode-se produzir um equipamento a baixo custo, com a produção em alta escala de suas partes, em pólos fabris distintos, além de haver maior cooperação entre os parceiros comerciais no tocante à partilha de informações tecnológicas.

Todavia, acaba-se tendo acirradas competições entre conglomerados empresariais, e aí a regra, quando a meta é a geração de capital, é o barateamento máximo do custo de produção. Muitos patrões chineses, indianos, paquistaneses têm dado o exemplo: conseguem produzir bens de consumo a um preço impraticável para a maioria dos países, ainda preocupados com os direitos do trabalhador.

De fato, são bem conhecidos os efeitos desta prática de mercado sobre o homem. O dumping social é uma de suas mais graves conseqüências: o empresário põe o custo da mão de obra em níveis extremamente baixos com a apropriação do trabalho infantil, com a instauração do subemprego e ao converter o trabalhador em semi-escravo. Todas estas estratégias são artifícios barateadores de mão-de-obra para tornar o preço do produto artificialmente baixo.

O desemprego é inexorável: (1) pelos usos que fazem os capitalistas da evolução tecnológica, que acaba promovendo não a melhora da qualidade das condições de trabalho, mas sua própria redução; (2) pela necessidade crescente de profissionais multifuncionais, que exclui os velhos especialistas e privilegia a nova geração. Uma nova geração formada em escolas de altíssimo custo, muitas fora do país. Estes jovens são preparados para exercer as funções que antes eram realizadas por uma equipe. (3) A competição acirrada entre grupos econômicos impõe a redução de custos como uma das regras cruciais de sobrevivência, via parcerias e/ou via dumping social.

Governos neoliberais, defensores de maior produtividade a baixo custo, incitam a competitividade como política reguladora de preços. O protecionismo é considerado uma prática ultrapassada e, para estimular a competição, abrem suas portas ao mercado mundial e à importação de bens desnecessários. O resultado é que as empresas nacionais, que cumprem acordos trabalhistas, acabam não tendo como competir com os produtos gerados às custas de dumping social. Acabam por falir.

Por outro lado, incentiva-se a privatização de bens do Estado, como se esta fosse "a" saída. Por trás dela, nota-se o mesmo discurso que defende a importância da categoria do trabalhador polivalente, da diminuição de custos e da maior racionalidade das despesas.

Este é um cenário que já conhecemos bem. Pois bem, em que estes discursos, materializados nestas novas formas de produção, afetam a organização do ensino público?

Em primeiro lugar, com a defesa da tese de que qualquer criança, deficiente ou não, pode ser convertida em trabalhadora. Quer dizer, todas são iguais, possuem as mesmas necessidades e devem ser preparadas para o mesmo fim: integrarem-se na sociedade como força produtiva. Em segundo lugar, postula-se que o professor deve saber lidar com as "aparentes" diferenças existentes entre um cego, um surdo, um favelado ou uma criança da classe média. Deve ser multifuncional, aliás, como qualquer trabalhador do terceiro milênio. Aqui também o trabalho especializado e o ensino, que respeite diferenças constitutivas, são praticamente descartados como se fossem marcas de um tempo definitivamente enterrado. O professor de classe, orientado por alguns profissionais, que têm a pretensão de ser polivalentes (aqui falamos de professores itinerantes), deve dar conta da pluralidade constitutiva de uma sala de aula (na qual, na grande maioria das vezes, o surdo torna-se mudo).

Mas a escola continua a mesma: com seus poucos recursos materiais, com professores mal remunerados e, conseqüentemente, sem muitas oportunidades de buscar maior e melhor qualificação profissional.

Nesse cenário, a integração do deficiente com a criança dita "normal" passa a ser um dos objetivos em si mesmo da pseudotransformação do ensino, e não, como deveria ser, conseqüência de um real processo transformador da Educação como um todo.

No caso da criança surda, e por conta de suas particularidades lingüísticas, a situação torna-se surrealista e perversa.

Se no século passado, os avanços tecnológicos, o encantamento pelo darwinismo social e pela eugenia, o desenvolvimento notável da lingüística estrutural ("vocal") e da fonologia subsidiaram a tese da oralização do surdo como único caminho para sua "normalização", em nossos dias as novas tecnologias, instauradoras de novos modos de produção de saber e de capital, alimentam o discurso integracionista: ninguém tem o direito de ficar fora da aldeia global.

Só que, ainda que pesem críticas ao oralismo, a arquitetura médico-educacional que propunha era sofisticada: falava-se em equipe interdisciplinar composta por especialistas, falava-se em reabilitação, em aparatos eletrônicos disponíveis em sala de aula, em logoterapeutas atuando com a criança extra-classe etc. Dito de outro modo, reconheciam-se certas particularidades e necessidades da criança surda e propunham-se formas de atendê-la. Ainda que, vale repetir, discorde profundamente das necessidades que o oralismo atribuía à criança surda, além de condenar o fato de tê-lo promovido, é bom que se lembre o fracasso escolar de populações inteiras de surdos em todo o planeta.

Entretanto, atualmente, tornam-se esmaecidas as diferenças entre ouvintes e surdos, talvez para que custos possam ser reduzidos pela escola com a exclusão do especialista e dos profissionais surdos. Se, de um lado, não se fala em reabilitação nem se atribui à escola função reabilitadora, por outro, a língua de sinais, embora aparentemente reconhecida como língua de fato, não serve mais aos anseios do movimento globalizante, uma vez que é a língua de poucos (nem ao menos universal é). A pressão agora é feita para a aprendizagem do português, esmaecendo-se a importância de um outro fato, a saber, o de que a língua falada pela aldeia global é o inglês (e aí tem-se, também, a exclusão das crianças ouvintes socialmente desfavorecidas).

Na educação de surdos, ganha força novamente o oralismo, mas com uma roupagem mais adaptada aos novos tempos. Os sinais passam a ser tolerados desde que sirvam como mero instrumento de acesso à cultura e à língua majoritárias. Mas a que língua e a que cultura?

A alienação da criança surda passa a ser produto da própria escola, que nega sua diferença, que promove uma integração apenas física com as crianças ouvintes, ignorando que, na maioria das vezes, o aluno surdo estará à margem dos diálogos produzidos em língua oral e das discussões dos textos escritos aos quais não teve oportunidade de conferir nem significado nem sentido. Dito de outro modo, a escola estará promovendo deliberadamente seu isolamento social, lingüístico e cognitivo.

Carlos Skliar (1997a) chama a atenção para o fato de que está sendo cada vez mais comum a publicação de trabalhos europeus que defendem que a integração do surdo com crianças ouvintes possui possibilidades concretas de efetivação. Entretanto, estes estudos apenas discorrem sobre modelos ou experiências iniciais, pouco falando do processo ou dos resultados finais. Cita, para ilustrar, os dados levantados pelo Departamento de Neuropsicofisiologia do Instituto de Psicologia do Conselho Nacional de Investigações da Itália, país que vem adotando, sistematicamente, a integração monolíngüe por mais de 20 anos (4). São eles:

■ somente 50% das crianças surdas integradas foram diagnosticadas nos primeiros anos de vida;

■ em 45% dos casos o trabalho escolar havia se iniciado entre os 3 e os 6 anos de idade;

■ em 67% dos casos, os alunos surdos não tinham tido contato com adultos surdos;

■ 85% dos alunos desconheciam a Língua Italiana de Sinais;

■ A maioria dos alunos surdos adolescentes e adultos avaliados não possuíam competência lingüística básica na língua italiana, escrita ou oral, situação que facilmente desnuda outra: o não acompanhamento escolar destes alunos.

■ mais de cem professores entrevistados admitem simplificar o conteúdo escolar, e em conseqüência, como se pode inferir, a avaliação que realizam do surdo é igualmente "simplificada". Isto quer dizer que, no papel, podem estar nesta ou naquela série mas será que estariam lá se fossem ouvintes? Ou estão sendo "empurrados" ?

■ que esta realidade anuncia é a alienação e a prática impossibilidade do aluno surdo desenvolver uma identidade sadia, a identidade de quem é Surdo e não um deficiente.

Neste ponto, acho interessante relatar um episódio que presenciei no programa de alfabetização de adultos surdos que coordeno. Os alunos tinham tido alguma experiência escolar, durante a infância, em classes comuns ou especiais. Um deles havia estado sentado 10 anos em diferentes bancos escolares. Independendo de suas origens ou de seus percursos particulares, chegaram até nós analfabetos. Em uma das aulas de língua de sinais, o professor surdo perguntou a eles quem se achava um ser humano inteligente. Todos, sem exceção, disseram que não eram "burros" mas que também não eram inteligentes. Inteligentes eram as professoras, seus pais, seus irmãos etc. Ora, suas respostas ocultam o sujeito, idealizado, com quem se comparavam: o ouvinte.

Em outubro deste ano, no Rio de Janeiro, participei de uma classe de quarta série composta por surdos, todos cariocas. Apresentei-me em sinais e, ao perceberem que podíamos conversar, me fizeram uma série de perguntas. Uma delas, a que mais me surpreendeu, foi formulada por um rapaz que deveria ter por volta de 17 anos. Ele era extremamente cordato, inteligente e perspicaz em suas perguntas. A última que me fez foi, volto a repetir, surpreendente. Usando a L.S. questionou-me: "Em São Paulo há surdos inteligentes?" Respondi-lhe que sim e lhe perguntei o porquê de sua pergunta. Sem o menor constrangimento em ofender os colegas surdos presentes, respondeu-me que os surdos "dali" eram "cabeças duras". Os colegas, por sua vez, concordaram e não se sentiram ofendidos.

Esses episódios são perfeitamente explicáveis se considerarmos o que foi escrito até aqui. Esses surdos, e muitos outros, foram feitos e lembrados continuamente de que eram deficientes. Foram dominados pelos discursos audistas, dos quais fizeram parte, cada vez que técnicos, pais e amigos os chamavam de "deficientes auditivos". Foram feitos deficientes quando tiveram os conteúdos disciplinares simplificados, tornados "acessíveis" pela ignorância da escola comum ou especial, que lhes pretendeu ensinar sem uma língua compartilhada. Ou antes, que lhes pretendeu "ensinar" uma língua de um espaço exterior à própria língua. Foram feitos deficientes quando foram empurrados caritativamente de uma série escolar a outra, como se deles não se pudesse esperar nada além do ponto a que chegaram. Foram feitos deficientes quando especialistas lhes proibiram de compartilhar a companhia de outros surdos numa mesma classe, com o hipócrita propósito de evitar a formação de guetos e a disseminação de uma língua inútil, segundo eles, para a integração social. Foram feitos deficientes quando foram tratados como débeis mentais e rodeados por todo um aparato clínico-médico de acompanhamento escolar que infalivelmente lhes dizia, de forma muda, que não eram tão capazes quanto seus colegas ouvintes. Foram feitos "não burros" mas "cabeças duras", por nós, ouvintes.

Se fiz esta longa digressão, justamente na seção de finalização deste texto, é porque não desvinculo as condições sociais e econômicas da produção do ensino com as relações de ensino. E também porque vejo nestes determinantes econômicos, adequadamente dourados pelo discurso idealista de igualdade, uma perigosa armadilha para projetos educacionais bilíngües e/ou biculturais, sejam eles dirigidos a surdos, sejam destinados a índios, a negros e/ou aos chamados desfavorecidos etc. A globalização, interpretada segundo um viés perverso, com os rumos que vem tomando, poderá atuar como um rolo compressor ao pasteurizar as diversidades sociais.

Diante do exposto, cabe a quem se aventure pelo ensino bilíngüe transformar a escola por dentro e não apenas na aparência. Pouco adianta a presença de profissionais surdos na escola se eles são mantidos subservientes aos desígnios de especialistas ouvintes, preocupados em facilitar o acesso à língua majoritária. Pouco adianta a presença de professores surdos se a escola ignora seus saberes, construídos em sinais no confronto com outros surdos, e os impede de agir de acordo com eles na relação com seus alunos.

Este panorama é gerador da prática impossibilidade de construção de uma identidade sadia pelo aluno surdo. A base desta construção é simbólica, portanto, efeito da língua.

O respeito que devemos ao surdo não se traduz pela aceitação de seu direito de ser deficiente, mas, ao contrário, por nossa profunda consideração por sua língua e pelas particulares visões de mundo que esta língua engendra. Se a língua constitui a subjetividade (Bakhtin, 1992), num contexto bilíngüe o "eu" do aluno surdo irá ser marcado tanto pelas vozes dos adultos surdos, com os quais significará o mundo, como por aquelas dos ouvintes. Se não houver conflitos de interesses, a criança surda se constituirá saudavelmente nesta diversidade com suficiente amparo psicológico para se relacionar com ambos os grupos sociais.

Espera-se do ensino bilíngüe não respostas mágicas, mas autênticos esforços patrocinadores de uma verdadeira revolução educativa (ainda que pacífica). E, como dissemos, cada comunidade escolar deve buscar sua própria arquitetura.

Qualquer obra se constrói com relativa facilidade se os princípios norteadores de sua construção estiverem claramente definidos e compreendidos por quem irá realizá-la. Neste aspecto, é da responsabilidade de todos os personagens em cena e não apenas do diretor da obra. Igualmente, não deve ser apenas conseqüência do esforço solitário de um grupo, mas deve refletir a política de um Estado que se proponha a cumprir, efetivamente, seu dever também com o aluno e cidadão surdo. E uma das medidas que refletiria o interesse autêntico do Estado pelas questões aqui levantadas seria o reconhecimento oficial da língua de sinais em todo o território nacional. Uma língua que, vale lembrar, não foi fruto da inventiva de ouvintes mas do trabalho social, muitas vezes clandestino, de comunidades surdas por mais de dois séculos e que os gmpos atuais, apesar de todas as forças contrárias, persistem em mantê-la viva, enriquecendo-a.

 

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NOTAS

2 Na tecedura desta seção vali-me de trechos de um artigo já publicado. O trabalho na íntegra pode ser lido em: SOUZA, R.M. (1995) Educação especial, psicologia do surdo e bilingüismo: bases históricas e perspectivas atuais. Temas em Psicologia, nº 2, 71-87.
3 Ao longo da história, surdos, de quase todos os países, se associaram em diferentes comunidades (em escolas, em organizações, em grupos de convívio etc). Essas associações acabaram por prover o "meio de cultura" necessário para a constituição das línguas de sinais. Diferentemente da fala, a língua de sinais é de natureza viso-gestual e não auditivo-oral (como a fala). Como a língua é fruto do trabalho de sujeitos social e historicamente determinados, cada país possui sua própria língua de sinais. Mesmo em épocas de repressão educacional severa ao uso dos sinais, crianças surdas em contato com surdos adultos acabavam por adquiri-la e utilizá-la clandestinamente. Por esta razão é que se diz que, em geral, as pessoas surdas tendem a ser bilíngües, uma vez que são educadas na língua majoritária (em sua modalidade oral e/ou escrita) e acabam por "aprender", de algum modo, a língua de sinais, mais utilizada nas relações entre eles e em situações informais. A desconsideração dos sinais pelos educadores e por outros profissionais ligados aos surdos, como os psicólogos, teve que ser revista após Stokoe, pesquisador e lingüista americano, que demonstrou, na década de sessenta, que os sinais compunham uma complexa organização lingüística, presente, aliás, em qualquer língua. Dito de outro modo, Stokoe demonstrou que a língua de sinais era de fato língua; antes dele era considerada pantomima, mímica, gestos universais etc. Mais adiante tratarei deste assunto.
4 Caselli, C; Rampelli, L. (1989) II bambino sordo nella scuola materna: integrazione e competenza lingüística. Etá Evolutiva, 34, 51-62.
Rampelli, L (1986) II bambino sordo a scuola: integrazione e didattica. Roma: Dossier del Istituo di Psicologia del Consiglio Nazionale delle Ricerche.