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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.7 São Paulo  1999

 

DOSSIÊ

 

Autismos

 

Autisms

 

 

Nina Virginia de Araujo Leite

Professora doutora do Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas. Coordenadora do projeto Língua Materna e Instância Paterna

 

 


RESUMEN

O presente artigo tem como objetivo apresentar algumas das principais formas de se pensar os autismos na infância, à luz das teorizações de Jacques Lacan. Para tanto, retoma o ato de nomeação da síndrome do autismo infantil precoce por Kanner e a definição de Tustin. Enfatiza a necessidade de distinguir o plano em que se apresentam os fenômenos na clínica psicanalítica daquele de sua estruturação, crucial para uma possível direção do tratamento.

Autismos; estruturação subjetiva; psicopatologias da infância


ABSTRACT

This paper aims to discuss some of the present ways of conceiving the autisms in childhood, from the theoretical perspective inaugurated by facques Lacan. In order to do so, it reconsiders the nomination given by Kanner to the syndrome as well as the definition presented by Tustin. Emphasis is put on the need to distinguish between the phenomenological and the structural levels, in order to decide for a treatment direction.

Autisms; subjective structuration; psychopathologies in childhood


 

 

A recente publicação de um volume da coleção Psicanálise da Criança, sob o interessante título de Oqueaclínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas,revela a potência dessa forma extrema das relações do ser humano com a palavra para interrogar o saber e os limites da psicanálise. Há autores que sustentam ser esse um campo em que a teoria está em falta para com a clínica, e, embora seja possível questionar uma direção de tratamento sem sustentação em uma teoria fértil e rigorosa, não se pode deixar de reconhecer essa falta. O interesse do título do livro citado talvez resida, justamente, na indicação dessa dívida, que aqui retomo como interrogação.

O Projeto Língua Materna em Instância Paterna, sob minha coordenação, contextualiza meu atual interesse pelo tema. O trajeto vai da indagação teórica sobre a nomeação lalangue (alíngua) para a clínica dos estados autistas, e tem como objetivo elaborar a noção de língua materna para a psicanálise, enquanto ordem que interdita o objeto, inscrevendo o gozo do ser no Outro do significante.

Pensada no estatuto de causa do sujeito, a língua não se articula nem com a dimensão do sentido nem com a da comunicação, mas com a dimensão do gozo regrado pela ordem fálica. A tarefa em jogo resume-se em articular os mecanismos da ordem própria da língua com os efeitos de sua incidência sobre um corpo, teorizando as condições em que essa incidência se produz, o viés/brecha pelo qual a palavra e o olhar do outro materno ligam e inscrevem o corpo no simbólico, tornando-o falante. Partindo da hipótese de a língua materna apresentar-se como uma figuração possível de lalangue, trata-se, então, de tomá-la como a interdição do gozo do significante que não passa pelos significantes do Outro. Se podemos afirmar, com Lacan, que o significante faz alto ao gozo, é preciso não esquecer que o significante é, primeiro, gozo. E é justamente essa dupla relação do significante com o gozo que nos permite fazer ressoar no termo "materna", no sintagma "língua materna", tanto a instância que impõe a renúncia ao gozo, quanto o objeto aí interditado.

Para iniciar esta reflexão, parto da definição de autismo que abre o livro de F. Tustin e que me permitirá uma primeira aproximação das questões que pretendo indicar:

"Autismo significa literalmente que o sujeito vive em função de seu próprio 'self/si'. Para o observador, uma criança autista parece centrada sobre si mesma, uma vez que mostra poucas reações ao mundo externo. Entretanto, o que pode parecer paradoxal é que a criança que está em uma tal situação tem muito pouca consciência de serum 'self/si"' (Tustin, 1977, p. 11).

Penso que o relevante dessa definição está circunscrito à presença do termo "paradoxal", que aponta para a necessidade lógica de destacarmos dois planos: o da fenomenologia, ampla e minuciosamente descrito na literatura, e o da estrutura, a partir do qual é possível desfazer a aparente contradição aí implicada. Então, uma coisa é o que se dá a ver, o que se configura no campo de visibilidade de uma clínica que, no caso específico, é marcada por sua origem na psiquiatria (refiro-me à nomeação da síndrome); outra vertente é a que estrutura a relação sujeito-Outro na especificidade desta situação. O plano da fenomenologia, no qual os acontecimentos são capturados essencialmente pelo imaginário do dito observador, não deixa de ter as mais íntimas relações com o plano estrutural, sendo mesmo o guia fundamental para que uma construção simbólica/teórica possa aí se dar. O que estamos dizendo é que a forma como a criança é capturada pelo imaginário do outro é efeito da estrutura que ali opera. Nesse sentido, as descrições impressionistas têm aí o mais importante papel, desde que possamos dispor de uma teoria da estruturação do sujeito a partir da qual seja possível ler, agora de um outro lugar, esses fenômenos.

Uma vez que a condução de um tratamento está na dependência do lugar que o clínico pode ocupar numa dada configuração, e isto é viabilizado por uma localização na estrutura, a teoria que orienta o clínico passa a ser um requisito fundamental. Nesse caso, independente do tipo de estrutura clínica em jogo (em uma clínica psicanalítica), podemos afirmar que essa questão ganha relevância na clínica dos autismos, porque aí encontramos o que alguns autores têm denominado "o grau zero- de subjetividade/do ser humano", conforme apresentado por Silvestre (1997), "a recusa de ser", no dizer de Calligaris (1986), ou o que podemos denominar um sujeito inconstituído, um sujeito deslastrado de qualquer subjetivação.

Tomando a indicação de Lacan de que o sujeito é uma resposta do real ao significante, resposta que pode ser de aceitação ou de recusa, poderíamos dizer que, quando não há resposta, ou quando a resposta é feita de recusa, como parece ser o caso no autismo, o campo fica aberto a uma deriva imaginária constituída pelas projeções fantasmáticas do clínico. Poderíamos dizer que a ausência de apelo converte-se aqui na falta de resistência do lado do sujeito a advir? O imaginário é, certamente, fundamental na estruturação de qualquer sujeito, e sabemos mesmo que o imaginário materno é condição para o surgimento do sujeito no campo do Outro; entretanto, isso não pode significar, na situação clínica, que se possam tomar tais sujeitos como se eles não tivessem, além desse imaginário materno, uma história que os terá inscrito numa linhagem. Esses sujeitos não são destituídos de história.

Um outro modo de falar dos efeitos dessa não resposta ao significante, ou da recusa radical de responder ou mesmo entrar na demanda, é apontar para o insuportável de um olhar que não faz apelo ao Outro. Com isto, temos destacado os dois objetos fundamentais ao advento do sujeito: a voz e o olhar do Outro. Isto posto, se os olhos do autista podem ser descritos como ausentes de um olhar, se o olhar deles advindo atravessa o outro, será que isto não revela suficientemente que o seu corpo não é recortado pelo olhar do Outro no qual se encontrasse representado e investido? Se estamos nos referindo a sujeitos que não fizeram sua entrada no real, que não respondem ao- significante, que se recusam a entrar na demanda, de que modo pensar a possibilidade de um tratamento psicanalítico, uma vez que este se sustenta numa clínica subjetivada pela transferência? Se, no autismo, o que faz signo ao Outro é a recusa, se o que aí falta é a função da fala, de que modo pensar a sua abordagem pela psicanálise? Se definimos o sujeito como sujeito do significante e se, no caso do autismo, nada aí responde, e encontramos um muro no lugar da resposta, isso significa que a clínica deverá abordá-lo por uma outra vertente. Se, como diz Lacan (1973), "o corpo que se furta ao significante carrega a marca da recusa primordial", o problema que se põe, então, a partir dessa clínica, é o de articular as relações entre o significante e o objeto, ou seja, desdobrar as formas em que a ausência da captura do vivo pelo significante se impõe.

Não podemos deixar de comentar que o autismo, pondo-se como a recusa mais radical à alteridade, vem representar uma possibilidade de capturar o que se constituiria como o enigma do nascimento do sujeito, permitindo um deslocamento fácil para a questão das origens. Talvez parte do fascínio exercido pelo tema resulte do apelo imaginário que a questão das origens tem para o pensamento, bem como do horror que a não identificação imaginária instala. Afinal, deixamo-nos seduzir tanto pelo ideal de um saber apaziguador sobre o que teria sido nossa origem quanto pelo horror do encontro com o estranho.

A marca de plural no título -Autismos-não deve passar despercebida. O que está indicando? O que seguramente podemos afirmar é que ela marca uma heterogeneidade na abordagem proposta do tema. Mas de que heterogeneidade se trata aqui? O plural argumentaria em favor de uma aproximação multidisciplinar demandada pela própria afetação aqui em causa? Não. Penso que a marca da pluralidade no título incide menos no desdobramento de enfoques disciplinares que podem eventualmente estar envolvidos no tratamento, do que na indicação de uma questão teórica importante para a psicanálise quanto às relações que se estabelecem entre a estrutura e as suas atualizações. Quando entramos nesse campo, é possível identificar uma estrutura específica, diferente daquela que responde pelas psicoses (esquizofrenia e paranóia), ou estamos em face de um de seus dialetos? Correlata a essa indagação, e de grande pertinência para a clínica com crianças, é a interrogação que encontramos na abordagem de Jerusalinsky:

"[A] quase completa superposição sintomática entre os quadros de isolamento e desconexão apresentados freqüentemente pelas crianças com problemas de desenvolvimento (deficiência mental, paralisia cerebral, deficiências sensoriais) e os quadros típicos de autismo infantil precoce remete a uma identidade de estrutura psíquica entre ambos ou a uma mera coincidência de características superficiais?" Jerusalinsky, 1984, p.19).

Parece que a escolha pelo plural, no título, revela um certo anseio por manter a questão no seu estatuto de interrogante. Deixo, portanto, essa indicação para marcar a incidência de uma questão relevante quando se estuda o tema. No escopo deste trabalho, não temos condições de responder a uma questão tão crucial e também tão complexa. O termo complexo, aliás, não vem aqui gratuitamente, mas marca uma posição com relação à causalidade pensada a partir da psicanálise: os fenômenos psíquicos são sobredeterminados, e uma abordagem metapsicológica não os reduz, conseqüentemente, a nenhuma dimensão simples (econômica, dinâmica ou topográfica); haveremos sempre de defrontar com a causação múltipla, desdobrada nos registros do simbólico, do imaginário e do real. Por esta razão, a noção de estrutura em psicanálise exige o enodamento desses registros, RSI, na constituição do sujeito1.

A adscrição de uma estrutura específica aos autismos nomearia o UM - traço que marca a especificidade do modo de presença/ausência dos registros, articulados ou em dispersão. A pergunta que pode já ser aqui antecipada refere-se à possibilidade de tomarmos um tempo lógico de estruturação como signo de uma estrutura psíquica, ponto bastante polêmico, pois sabemos que clinicamente são identificadas três estruturas: neuroses, psicoses e perversões. A que traço responderia a inclusão do autismo nessa série, uma vez que aquilo que o qualifica é justamente a ausência de estruturação subjetiva? É nesse sentido que pomos a pergunta anterior sobre a relação entre os autismos e as psicoses. No entanto, vários autores reconhecem que, no caso dos autismos, trata-se da não realização de algo que nas psicoses se atualiza, mesmo que encontremos, devido à forclusão do Nome-do-Pai, manifestações comuns às duas estruturas. Os Leforts (1997), por exemplo, identificam em ambas um ponto negativo comum: a não instalação do par S1-a como gozo prévio do significante, prévio à relação ao Outro, que conduziria no caso das psicoses à instalação de uma holófrase que confunde S1-S2, e em que não há intervalo que faça lugar para o objeto. No caso do autismo, na ausência do gozo prévio, o Outro permanece real. Seria a forclusão do Nome-do-Pai suficiente para dar conta das diferenças entre essas estruturas? Essa é uma questão que a clínica dos autismos apresenta com veemência.

A constituição do sujeito implica a incidência da linguagem no corpo, por meio do imaginário materno, que é sustentado pela palavra. Estamos, então, tratando da relação do corpo com a linguagem/significante, ponto em que surge talvez a questão mais importante que o tema desperta, uma vez que nessa condição psíquica o sujeito não advém no campo do Outro, enquanto marcado por uma inscrição significante no corpo. Para responder à questão sobre a forma como se dá essa inscrição, é preciso necessariamente considerar a libido do Outro. O sujeito de que tratamos está no campo da linguagem (dos significantes), mas a função da fala, nele, não se realiza. É necessário interrogar não apenas o que é a função da fala, mas também o que singulariza o campo da linguagem em psicanálise. Retomemos, para tanto, o termo "parlêtre", com o qual Lacan indica a especificidade do sujeito do desejo. Para tal sujeito, a fala é a morada do ser, entretanto, é preciso distinguir significante e fala: se o significante é o material da linguagem no qual o bebê está imerso desde antes de seu nascimento, a fala é o que atinge o corpo pela voz e pelo olhar. Podemos afirmar, com Lacan, que os autistas estão fora do discurso, tal como os psicóticos. Para sustentar tal afirmação, dois pontos importantes necessitam ser destacados:

1) "O gozo está interditado para aquele que fala como tal" (Lacan, 1966, p.836).

A conseqüência dessa afirmação, quando nos questionamos quanto ao "como tal" incluído na frase, e que impõe uma qualificação do estatuto de falante (parlêtre), é a possibilidade de destacar o universo gozoso em que vive o sujeito nessa condição. Entretanto, é necessário que nos perguntemos sobre o gozo de que se trata aqui. A fala é uma função que Lacan promoveu, em um primeiro momento, como a garantia da cura analítica, fundada no amor simbólico como princípio do laço social. É então um aparelho de gozo que faz repousar o laço social sobre a fala e o sentido.

O complexo de Édipo põe como princípio do laço social a função paterna. Nesse sentido, a função da fala está estreitamente ligada à função paterna, permitindo inscrever a castração em torno da qual se ordenará a sexualidade. A função paterna supõe que a linguagem precede o sujeito, está sempre já lá. O Outro, que é o parceiro simbólico do sujeito, é anterior ao seu advento; assim, para cernir a questão à qual se reduz seu ser, o sujeito deve passar pelo Outro. Quando dizemos que o autista não fala "como tal", é porque distinguimos a fenomenologia da falação de uma posição subjetiva que implica o exercício da função da fala, na qual o seu ser de gozo encontra-se alienado aos significantes do Outro. Entretanto, ainda é necessário dar conta das diferentes produções linguajeiras produzidas pelos autistas e de suas funções, especificamente no que denotam a especificidade da relação ao Outro aí implicada, como é o caso da ecolalia, por exemplo. Por que algumas crianças autistas apenas repetem as falas do Outro? Qual o estatuto da fala nessa situação?

2) O discurso é o que faz elo social.

O que do discurso permite ligação, se não o gozo aí produzido? Estamos aqui nos referindo ao gozo implicado por um corpo pulsional constituído pela incidência dos (e)feitos da linguagem sobre um organismo que é capturado pelo imaginário materno; um corpo, portanto, que encontrou nascimento no desejo do Outro, que lhe reservava um lugar. Se podemos afirmar que tais sujeitos estão fora do discurso, não seria justamente pela impossibilidade mesma de instalação do Discurso do Mestre, uma vez que podemos tomá-lo como a articulação logicamente prévia para que, com um giro de um quarto de volta, possa se dar o advento do falante na posição de agente do Discurso da Histérica? No entanto, a que corresponderia essa situação no que respeita aos mecanismos de alienação e separação que Lacan identificou como fundantes da subjetividade? Se o elo social supõe evidentemente a separação, estariam os autistas na alienação? Alguns autores argumentam que este seria o caso para os psicóticos, mas que, no autismo, trata-se de uma recusa a entrar na demanda, a alienar-se aos significantes do Outro. Podemos então afirmar que nos estados autistas os sujeitos encontram-se aquém da alienação? Ou se trataria de uma alienação ao real?

A marca de pluralidade no título Autismos também poderia nos remeter a diferenciações entre a apresentação do quadro na criança e no adulto. O que está em jogo aqui? Sabemos que, antes de Kanner propor o quadro do autismo infantil precoce, em 1943, o termo já existia na psiquiatria, usado pela primeira vez por Bleuler, em 1911, para designar a perda de contato com a realidade, que tinha como conseqüência uma impossibilidade para se comunicar. A que responde, então, a nomeação de Kanner? O que ela possibilita? Minimamente, a partir dessa nomeação, é possível tratar de forma diferente algo que, do real, até então se apresentava como indistinto. Um dos efeitos da nomeação não deixou de ser a atribuição de um traço de humanidade a tais sujeitos, conforme tem sido apontado por alguns autores. No entanto, essa nomeação é feita por um psiquiatra e neurologista, e é importante que nos lembremos de indicar esse fato, uma vez que sabemos que a linguagem é aí tomada como instrumento de comunicação e sem nenhuma relação de causalidade para com o sujeito. Retomando o texto de Kanner, no qual apresenta a Síndrome do Autismo Infantil Precoce a partir da análise de 11 casos, encontramos a seguinte afirmação:

"O excepcional, o patognomônico, a desordem fundamental é a inaptidão das crianças para estabelecer relações normais com as pessoas e para reagir normalmente a situações desde o início da vida" (Kanner, 1997, p.lll).

Notemos, primeiramente, a expressão "desde o início da vida", que indica a causalidade biológica em jogo na atribuição de uma incapacidade inata de constituir o contato afetivo habitual com as pessoas. Além disto, se consideramos que as aptidões "normais" estão na mais estreita dependência da linguagem, podemos ter uma idéia das limitações que sua abordagem encontra no enfoque médico. Quando o autor afirma que.a síndrome em questão se diferencia da esquizofrenia quer infantil ou adulta - na medida em que estas têm como característica o retraimento da participação no mundo, a partir de uma relação inicial presente, enquanto no autismo infantil precoce trata-se, desde o início, de uma extrema solidão autística que desdenha, ignora e exclui tudo o que vem do exterior até a criança -, de alguma forma permite-nos circunscrever a novidade da nomeação ao termo precoce.

O fato de aparecer em um tempo em que ainda não se constituiu como tal a relação ao Outro, no sentido em que aí o Outro é real, configura, no quadro, o elemento de distinção real apontado pela nomeação proposta. Não se trata, então, em Kanner, de algo que, uma vez constituído, tenha sido perdido. Não se trata de um déficit, mas de uma impossibilidade de constituição, algo que não se realiza, algo que é justamente a ausência da perda que a incidência da fala/voz e do olhar do Outro impõem para o sujeito a advir. Fala-se, então, de um sujeito inconstituído, situado em um tempo logicamente primeiro, tempo inaugural das relações com a alteridade.

Embora as conclusões acima sejam correlativas às próprias afirmações de Kanner, observa-se que é principalmente na via da recuperação de um déficit que se dirigem as terapêuticas derivadas das elaborações dos diagnósticos médicos. A razão para tal "direção de tratamento" assenta na objetivação da dimensão subjetiva empreendida pelo discurso da ciência, no qual o sujeito entra como fato de um dito, articulado em função de um significantemestre - justamente a nomeação da síndrome - que responderia pela verdade que o saber oferece sobre o sujeito. O significantemestre não envia a um outro significante que pudesse dialetizar a ausência de posição subjetiva aí implicada, mas toma o saber como significado da verdade do sujeito. Sabemos que na psicanálise, diferentemente dessa posição, o saber está sempre em lugar da verdade. Além disto, se tomamos o autismo dentro de uma abordagem estrutural, fica afastada qualquer consideração pela via do desenvolvimento. A definição do sujeito pelo significante não implica nenhum dado de desenvolvimento, uma vez que se trata de pensá-lo fora do organismo, não havendo nenhuma coincidência entre um e outro. No entanto, pensá-lo fora do organismo não significa desconsiderar os efeitos de déficits sensoriais ou motores na abordagem do sujeito, mas a sua consideração fica sempre subordinada às incidências imaginárias e simbólicas desse real na configuração psíquica do Outro. Nessa perspectiva, o nascimento do sujeito não fica atrelado a uma fase de desenvolvimento, mas remete a um tempo lógico no qual se presentifica a ruptura que a função paterna exerce, limitando o gozo ao falo e localizando-o fora do corpo.

Importa ressaltar que a definição de Kanner supõe que se saiba responder ao que é a "normalidade", ou seja, toma como assentada uma teoria da constituição do sujeito "normal" e como respondidas as questões sobre o que é um pai, o que é a função materna. Ora, tais questões inscrevem-se justamente no domínio de indagação da teoria psicanalítica.

Um ponto importante a destacar quando trazemos esses elementos da história do conceito de autismo é a inversão que a nomeação da síndrome por Kanner provoca com relação ao uso do termo em Bleuler, fazendo-o passar de condição secundária, efeito da dissociação psíquica característica da esquizofrenia, à condição de causa primeira da impossibilidade da entrada da criança autista na realidade humana. No interior mesmo de algumas abordagens psicanalíticas - quando se distingue, por exemplo, um autismo secundário de um que se supõe primário -, podemos encontrar uma distinção paralela. Para além dessa distinção, há autores, como Frances Tustin, que propuseram estender o uso do termo para indicar, além de um estado patológico, também um estágio primário do desenvolvimento, a fim de sustentar a hipótese de uma parada do desenvolvimento ou uma regressão a um estágio anterior, incluindo os quadros de autismo no interior de uma estruturação psicótica. Essa posição foi posteriormente modificada a partir dos resultados de trabalhos de observação de bebês na Clínica Tavistok, que demonstraram que não havia um estágio de autismo primário normal na infância, uma vez que os bebês são ativos, e respondem à voz do outro desde muito cedo. Como conseqüência, não se podia mais supor que o chamado mundo externo se apresentasse totalmente indiferente para o bebê, e abandonou-se a explicação do autismo patológico como uma regressão a um estado normal anterior ou em função de uma parada no desenvolvimento.

Retornando à definição de Tustin, da qual partimos, podemos nos perguntar qual o referente desse "si mesmo" de cuja ausência o autista é testemunha. Estivemos supondo, até aqui, que nos estados autistas a criança encontra-se em um tempo primeiro da constituição, tempo logicamente anterior ao estádio do espelho, tempo pré-especular, portanto. Ao falar desse tempo de fragmentação anterior ao espelho, Lacan conclui:

"É a isto que responde o verdadeiro sentido, o sentido mais profundo que se deve dar ao termo auto-erotismo, é que se tem falta de si mesmo, completamente. Não é do mundo exterior que se tem falta, como se exprime impropriamente, mas de si mesmo" (Lacan, 1962-63, p.127).

Embora sejam encontradas no campo psicanalítico diferentes vertentes teóricas de aproximação à clínica dos autismos, poderíamos afirmar, junto com alguns autores, que todas caracterizam-se pela referência ao conceito freudiano de auto-erotismo, no que inclui a sexualidade, ausente do termo na psiquiatria. A condição mesma de inclusão dos autismos na psicanálise parece estar na dependência da elaboração desse e de outros conceitos correlatos. Refiro-me aqui à passagem do auto-erotismo para o narcisismo tal como elaborada por Lacan com o auxílio da distinção entre a imagem real e especular.

A contribuição de Colette Soler quanto à caracterização da (não)relação do autista com o Outro, a partir dos traços atestados nas elaborações de casos que encontramos na literatura psicanalítica, pode nos auxiliar a marcar alguns pontos já assentados teoricamente.

Em primeiro lugar, a autora refere-se ao fato de que as crianças autistas são perseguidas pelos signos da presença do Outro e, muito especialmente, por dois objetos: a voz e o olhar. Retira daí o fato de muitos clínicos, por pura experiência, compreenderem que é melhor abordar essas crianças de costas, escondendo-se um pouco, falando de forma tal, que pareça mais um barulho do que uma voz. A clínica de Margaret Mahler é rica em situações desse tipo, mostrando como o analista tenta se confundir com o mundo dos objetos, como se fosse um objeto qualquer do ambiente. Essa estratégia faz acorde com a constatação de que ao encontro com o olhar e a voz do outro a criança responde de forma paroxística (gritando, tripudiando, arrancando os cabelos). Outro traço correlativo dessa persecutoriedade liga-se ao que alguns autores nomeiam tendência ao ritual, cujo objetivo é fazer com que nada se modifique; a presença do outro é, para tais crianças, intrusiva.

Uma segunda característica, que agrupa algumas observações, é nomeada anulação do Outro. Por um lado, somos freqüentemente levados a pensar que essas crianças são surdas, para logo depois verificarmos que não é esse o caso. É como se elas se descartassem de tudo que se relaciona com a voz. Por outro lado, também é freqüente que apresentem problemas no olhar: ou bem elas não olham ou apresentam estrabismos. Não é à toa que, em um tratamento, o momento em que a criança olha pela primeira vez é um momento que se destaca, que conta. Esse traço -"não olhar" - completa o primeiro -"não ouvir" -, uma vez que releva/realiza a evitação, a recusa e a anulação dos signos da presença do Outro.

Um terceiro traço é o que a autora denomina recusa da intimação do Outro, recusa do que o Outro pode intimar por sua fala, recobrindo o que se descreve freqüentemente como crianças que não fazem apelo, não demandam. A ausência da dimensão do apelo é o complemento simétrico da recusa de ser interpelado pelo Outro. Reencontramos aqui a importância da voz e do olhar, uma vez que o apelo se realiza, justamente, pela voz e o olhar. Essas crianças não estão na demanda, e é preciso lembrar que é pela demanda que a criança pode fazer sua entrada no real.

O estatuto puramente real do Outro, nos casos de autismo, pode ser depreendido do fato de que, em tal situação, não se dá o acesso a uma simbolização primeira que pudesse dar conta da presença-ausência da mãe, tomada aqui como objeto primordial. Portanto, os fenômenos de perturbação que se constatam no nível da presença e da ausência são significativos da falta de um lugar vazio em que o sujeito pudesse se alojar. Fica ainda por esclarecer a impossibilidade dessa simbolização, na referência ao desejo e gozo do Outro.

Vemos, então, que a partir de uma abordagem estrutural (estrutura da linguagem da qual se depreende o objeto, que, no entanto, aí não se reintegra) é possível precisar algumas descrições que encontramos na fenomenologia clínica, referidas como "ausência de corpo" e "buraco negro", por exemplo. Este último é um conceito fundamental na obra de Tustin, e se articula com a depressão psicótica, conceito que ela toma de Winnicott. Para a autora, a depressão psicótica consiste em um tipo muito primitivo de depressão que se caracteriza por vivências bucais de "buraco", freqüentemente associadas a sentimentos de terror e de incapacidade de bastar-se a si mesmo. Essa depressão é experimentada como buraco corporal, derivada das projeções que não foram modificadas pelas respostas de uma figura nutridora. Citando Winnicott, a autora afirma.- "Essas crianças vivenciam o 'cair sem fim' que acontece quando a situação contensora não se materializa, levando-as a um estado de deterioração irreversível que precede a morte".

Sabemos que o recém-nascido interessa-se particularmente pelo que entra no seu campo de percepção. Portanto, longe de se tratar de uma indiferença em relação aos objetos, trata-se, sim, no auto-erotismo, de uma experiência de surgimento e repartição dos objetos em relação à regra soberana do princípio de prazer. Para o bebê, o mundo exterior está lá desde o nascimento, fazendo parte da constituição do sujeito na sua relação com o Outro, por intermédio da satisfação das necessidades, pela relação com o objeto. Este, entretanto, encontra-se no mundo do significante, uma vez que o alimento está acompanhado das palavras e do olhar da mãe (o imaginário materno é sustentado por palavras). Assim, a mãe vem encarnar o Outro do significante, pondo em jogo seu corpo e os objetos de seu desejo, especialmente a voz e o olhar.

A recusa que o autismo evidencia parece testemunhar uma posição subjetiva (?) tomada desde muito cedo nessa relação: uma posição de impossibilidade de ceder ao gozo que ele toma dessa posição, para então passar pelo Outro. Assim, o autista não tem acesso ao Outro. Para ele, podemos dizer que o Outro permanece no estatuto de real, não podendo atingir o estatuto de corpo de significantes, que depende dos significantes que o Outro lhe oferece; significantes que lhe permitiriam constituir uma imagem, assumir uma posição subjetiva como corpo separado do Outro. Sem a consistência de um corpo, ele é tomado no "buraco negro". Segundo Soler, não tendo podido constituir um esboço de eu, a cada separação do Outro, ele exige -como diz uma mãe de autista - minha presença, como se eu fosse ele mesmo. O Outro é ele.

Uma possibilidade de leitura da pluralidade marcada no título nos remete a uma regra que a clínica analítica cedo nos ensina: tomar cada caso como se ele fosse o primeiro, o que o qualifica como tendo sido único, sempre um a um singular. Nesse sentido, a marca de pluralidade não pode ser tomada como uma marca identificatória, que permitisse reunir em um conjunto os sujeitos que aí possam se inscrever. Trata-se justamente de inventar um elo social capaz de se enganchar no semblant de gozo do autista. Será isto possível?

 

NOTA

1 Para uma apresentação cuidadosa e bem fundamentada dos processos de estruturação do sujeito falante, ver Capítulo 3 do livro de A. Vorcaro, A criança na clínica psicanalítica, Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud, 1997.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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