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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.5 no.9 São Paulo 2000
DOSSIÊ
Continuando a travessia pelo ponte1
Keep on going to the bridge crossing (following the school experience of a pervasive developmental disorders child)
Fernando Anthero Galvão ColliI ; Valéria AmâncioII
IPediatra, psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise, e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), coordenador do Grupo Ponte da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida do IPUSP
IIOrientadora educacional, psicóloga, membro do Grupo Ponte da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida do IPUSP
RESUMO
Este artigo discute uma prática de acompanhamento da escolarização de uma criança com distúrbio global do desenvolvimento (DGD). A proposta deste trabalho é mostrar como esse processo pôde promover mudanças importantes no tratamento dessa criança e também na maneira como ela passa a ser olhada pela professora e pela escola. Como, a partir desse novo e ampliado olhar que suporta a diferença, pôde-se evidenciar: a questão do reconhecimento da singularidade de cada um dos seus colegas da sala especial e uma demanda de mudanças na prática educacional dessa escola.
DGD; educação especial; psicose infantil; inclusão
ABSTRACT
This article discusses one practice of school experience assistance with pervasive developmental disorders child (PDD). The purpose of this work is to show how this process could promote important changes in the child's treatment and also the way she is watched by the teacher and school. How, from this new and enlarged view which sustains the difference, could it be highlighted: the question of recognizing the singularity of each one from her special class friends and one demand for changes in educational practice of this school.
PDD; special education; infantile psychosis; inclusion
ACOMPANHANDO A ESCOLARIZAÇÃO DA CRIANÇA COM DISTÚRBIO GLOBAL DO DESENVOLVIMENTO2
"Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, Desembrulhar-me e ser eu... É preciso esquecer a fim de lembrar, É preciso desaprender a fim de aprender de novo..."
Alberto Caeiro
Há cerca de cinco anos a Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, atendia a uma de suas próprias demandas institucionais (a de ter um de seus segmentos cuidando da inserção3 escolar de seus pacientes) ao criar um espaço para a formação do Grupo Ponte.
A luz da teoria psicanalítica lacaniana, e com o objetivo de ser mais um partícipe do tratamento da criança com distúrbio global do desenvolvimento, o Ponte iniciava o que se denominou "uma travessia", pela inserção dessa criança no processo de escolarização regular. O professor então surge, além de figura principal deste processo, como um coadjuvante fundamental do tratamento da criança. A ele é pedida, mais do que oferecida, uma parceria neste trabalho, e, em contrapartida, por meio da escuta psicanalítica busca-se possibilitar a relação com esse aluno, propiciando a sua inserção.
O Grupo hoje conta com a participação de sete psicólogos, duas psicopedagogas, seis estagiários e com a coordenação de um psicanalista.
A idéia de inserção escolar da criança com DGD, entendida como uma criança com necessidades educativas especiais4 , e a movimentação que a acompanha surgiram da luta antimanicomial dos anos 60. Uma das propostas era devolver o "doente mental" ao convívio social. Junto vem a proposta de fazer o mesmo com essa criança, mas esse convívio, sim, na forma de integração ao espaço escolar, como aquele que oferece os contornos e possibilita a existência da infância atual (Kupfer, 2000).
A história desses movimentos nos conta de seus muitos transtornos. Assim como os internos dos hospitais psiquiátricos, as crianças com DGD em processo de integração ou de inclusão na rede escolar vêm encontrando muitas dificuldades, resistências, dúvidas e conflitos desde o início.
A proposta deste trabalho é apresentar um caso de inserção escolar acompanhado pelo Ponte. E por ele mostrar como esse processo pôde promover mudanças significativas no tratamento dessa criança e também na maneira com que ela passa a ser olhada pela professora e pela escola. Como, a partir deste novo e ampliado olhar que suporta a diferença, pôde-se trazer à tona a questão do reconhecimento da singularidade de cada um dos seus colegas da sala especial - como sujeitos de uma aprendizagem não padronizada -, abrindo-lhes a possibilidade de ser devolvidos às salas regulares. Anunciando o que pode ser o início de um processo de transição de uma escola comum para uma escola inclusiva.
Pretendemos, também, falar da constante, necessária, cautelosa e crítica reflexão que esse Grupo, em nome dessa instituição, faz em torno da idéia desse tipo de inclusão5 escolar - perguntando-se da entrada de crianças psicóticas nas escolas; do momento e do modo de fazê-la, para que esta não se reverta em uma exclusão ainda maior, mesmo que não mais respaldada pela lei.
Por fim, pretendemos iniciar uma reflexão acerca das maneiras pelas quais, o acompanhamento da escolarização da criança com DGD pode nos ajudar a pensar a articulação possível entre psicanálise e educação inclusiva. Como este acompanhamento pode promover os questionamentos necessários para que a escola reflita sobre a formação dos seus docentes e as competências necessárias para um ensino mais individualizado e a integração escolar da diversidade. Neste sentido, a partir desse tipo de escolarização, a questão do próprio fracasso escolar, um dos grandes sintomas da realidade brasileira atual, pode ser abordado.
Embora não pretenda ser um modelo a ser seguido, porque consideramos as peculiaridades próprias de cada experiência, este trabalho procura mostrar que ambientes inclusivos são uma maneira eficaz (se não a mais) de se obter uma educação de qualidade para todos, constituindo cidadãos mais capazes de suportar e fazer uso das diferenças.
A IDÉIA DE PONTE E TRAVESSIA
Quando este grupo é formado em 1995, surge com ele a idéia de um trabalho que fizesse uma interligação, uma "ponte", entre dois lados -a instituição terapêutica e a escola.
Não se trata de uma ponte, de um dispositivo institucional, que faça um simples leva-e-traz de informações entre os dois lados, mas sim de um lugar de êxtimo6. Um lugar que, de fora (das instituições), possibilite-nos bem ver o que está acontecendo dentro delas. E, porque podemos ver de uma maneira diferente, tornamo-nos mais aptos a interditar as instituições, para que não aprisionem seus pacientes (não gozem com eles), dificultando ou atrasando sua entrada na escola ou sua permanência nela. E, ao mesmo tempo, que formem uma parceria com a escola, de tal modo que atendam algumas de suas demandas e ajudem-na a perceber ou até a criar outras referentes a este processo.
Essa é a idéia da ponte, ou como queremos, o Ponte. A travessia viria por meio deste trabalho - servir de passagem para que essas crianças cheguem à escola e algum dia possam sair dela.
A TRAVESSIA
Esse caso começa a ser acompanhado por um dos autores no final de 1997, mas, para esta apresentação, o remontaremos com fatos que antecederam essa atuação.
Andressa7 é uma das crianças atendidas pela Lugar de Vida. No ano anterior ela freqüentou uma 1ª série de sala regular com um trabalho em sala de apoio à deficiência visual, na mesma escola. Alguns desencontros a seu respeito apareceram nos discursos das duas professoras -a primeira, que se referiu a ela como uma criança bastante difícil, devido às suas atitudes esquisitas, agressivas e ao fato de não conseguir falar; a segunda, que falou de uma criança interessada, colaboradora e participativa do processo de aprendizagem, ainda que não pudesse falar e tivesse a visão prejudicada.
A professora da classe de 1ª série, que chamaremos de Lilian, apontou a reprovação dessa criança como fato provável desde o começo do ano letivo, numa espécie de predição, e falou defensivamente da insatisfação com sua presença e da certeza de que ela deveria ser uma aluna da sala especial, se fosse o caso de ser aluna daquela escola. Enquanto isto, a professora do apoio, Lúcia, apontou para sua capacidade e os avanços que ela obtinha tanto em relação aos conteúdos conceituais como aos atitudinais. Eram dois olhares diferentes sobre a mesma criança, dois discursos: um que culpabilizou a criança e outro que se comprometeu com ela. O mais interessante era que Andressa gostava muito de Lilian, o que era facilmente observável para olhos que podiam ver - que viram, por exemplo, que, quase todos os dias, ela levou uma maçã para colocar sobre a mesa de sua professora.
O final do ano de 1996 marcou sua saída dessa escola, a professora não pareceu suportar uma mudança - não houve lugar para essa criança nessa instituição. A mãe, junto com a equipe do Ponte, optou pela transferência. Andressa iria para uma sala especial, numa outra escola da mesma rede, em que estudava um coleguinha da Lugar de Vida - os comentários sobre a nova professora eram animadores.
O ano de 1997 começou bem. Quando ela chegou à nova escola, aos 11 anos de idade, Celina, a nova professora estava de licença, o que não a impediu de ser recebida lá. As pessoas a estranharam, sim, mas algo insinuou que não recuariam diante do diferente que ela representava. Como a outra adaptação, esta foi marcada por estranhamentos na convivência inicial entre ela, os adultos e as crianças, mas sua permanência na escola foi bem possível. Diferentemente de outras experiências nossas, dessa vez não houve a solicitação escolar do laudo psicológico de encaminhamento para sala especial, como tentativa de impedir a entrada de Andressa (o que evidenciou a capacidade dessa escola de suportar melhor a angústia de receber a criança diferente); isto só veio a ocorrer tempos depois, em resposta à exigência da delegacia de ensino, mera formalidade.
A volta da professora marcou um período de intenso investimento na sua adaptação, na sua inserção naquele grupo-classe, na aceitação de seus coleguinhas, um diferente do outro. De fato, aquela sala começou a nos parecer bastante especial. Aos poucos estabeleceu-se e fortaleceu-se um vínculo entre professora e aluna, entre esta e os demais da classe. Com Celina ela perdia as atitudes entendidas como agressivas e estranhas, permanecia tranqüilamente em sala de aula e fazia algumas atividades.
A inserção do Ponte esteve garantida desde o início desse trabalho pelos convites dessa professora para que estivéssemos de perto acompanhando seu dia-a-dia com Andressa. Acompanhamento feito com visitas periódicas à escola. Pareceu também priorizar sua adaptação em detrimento dos conteúdos programáticos da série. Esse primeiro ano nessa escola terminou bem, ela pôde beneficiar-se com essa inserção: participou dos horários de recreio, ainda que como observadora, permaneceu em sala de aula, submeteu-se à possibilidade de ouvir sugestões dos coleguinhas e a cumprir alguns trabalhos. A professora, no entanto, chamou nossa atenção para o fato de que ela mesma não havia conseguido modificar a produção dessa aluna, a fim de que ela obtivesse outros avanços, agora claramente de conteúdos escolares.
O ano seguinte começou com boas novas. O período de readaptação de Andressa na escola foi tranqüilo, ao contrário das outras crianças da Lugar de Vida que necessitaram de maiores cuidados nesse momento de volta às aulas. Celina falou de saudade de todos os seus alunos. Novas crianças entraram na sala.
Enquanto na escola o reinicio ocorreu tranqüilamente, na Lugar de Vida, Andressa voltou agitada, negando-se a cumprir com os combinados do grupo, o que deixou a equipe terapêutica angustiada. Os profissionais não estavam conseguindo dar significado à mudança de Andressa. Isso só foi possível mais tarde.
O grande pedido da professora em relação a nosso trabalho era que pudéssemos ajudá-la a alfabetizar Andressa, aliás, outras crianças da sala também, se fosse possível. Celina começou a deparar com suas próprias dificuldades como educadora de uma classe em que assumidamente a diversidade estava presente, em uma escola que inseria, mas que não era ainda inclusiva.
Queremos dizer com isso que o desafio da escola que quer ser inclusiva, embora apaixonante, implica muito trabalho, pois trata-se de revisar concepções e práticas que pressupõem que a educação só é proveitosa se realizada com grupos homogêneos. Queremos dizer também que é preciso que a escola reflita sobre o aprender a mover-se em uma realidade heterogênea, que pode ser muito mais rica e sem dúvida mais justa para as crianças.
Ainda que os tais avanços conteudistas, demandados por Celina em relação a Andressa, não acontecessem, a inserção dessa criança caminhou bem. Cada vez mais ela garantiu um espaço de acolhimento, de integração ao grupo da escola, de construção de laços sociais.
Ao final desse ano a equipe da Lugar de Vida decidiu pela alta de Andressa das montagens de trabalho em grupo na instituição terapêutica. Após a observação do Ponte sobre a escola, a equipe pôde, então, dar significado à agitação dela como um pedido de alta. Os grupos terapêuticos de que Andressa participava não despertavam mais interesse. Ela não queria mais ser paciente da instituição, queria ser uma aluna da escola. Ela continuaria sendo atendida por seu analista e por uma fonoaudiólo-ga. O acompanhamento do Ponte também continuaria.
O ano de 1999 marcou a vinda de Celina para as reuniões de professores de crianças com DGD atendidas pela Lugar de Vida, oferecidas mensalmente pelo Grupo Ponte, o que até então não fora possível para ela.
A partir desse espaço de escuta psicanalítica e de troca com outros colegas educadores, ela começou a questionar o papel de professor de sala especial, conseguindo pensar algumas das dificuldades da relação professor/aluno, da relação com seus colegas de instituição e do papel que lhe fora atribuído nesta sala por eles e pela direção: "...algumas crianças não deveriam estar comigo, só porque dão trabalho em outra sala, mandam pra cá", disse ela.
Celina entrou claramente num período de questionamento do que considerava definido, levantando timidamente novas idéias, começando a se olhar de outra maneira em sua função de professora. Era o início de um longo processo de questionamento, diga-se que sem fim, mas que já deixava claro que uma mudança de posição dessa professora começava a acontecer.
Mais uma vez podíamos cumprir com um de nossos papéis (Colli et al., 1997). Ao oferecermos a esse professor um espaço de escuta sem avaliação do seu trabalho, ele tem garantido respeito, reconhecimento e valor pela sua ação, o que o deixa à vontade para trazer o que observa como importante, do modo que julga ser correto. E é daí que pode surgir sua implicação com o seu próprio desejo - então a possibilidade do giro do seu discurso, da mudança de olhar em relação a seus alunos, e até de si mesmo.
O trabalho foi nos mostrando como é grande a hesitação de uma escola diante não só dos obstáculos com seus alunos (crianças ou não, com necessidades educativas especiais), como a agressividade, desinteresse por aprender ou a falta de limites, entre muitos outros; como também diante da angústia dos seus professores e do pessoal operacional pelas ações tomadas em relação aos problemas citados aqui. Diríamos ainda que foi ficando mais claro como é difícil para a escola assimilar grandes mudanças, que a ajudem na (re)construção de novos processos de educação. Difícil, mas não impossível.
Celina atendia ao que podemos chamar de uma atual demanda educacional, pois sempre foi capaz de suportar as diferenças e especificidades dos seus alunos, propiciando-lhes espaço de expressão de suas subjetividades; faltou-lhe, como a muitos outros colegas seus, saber o que fazer com as idiossincrasias que irrompem em sala de aula durante os processos de ensino e aprendizagem. A isto é inevitável supor que, sob um olhar e uma escuta psicanalítica, poder-se-ia- ajudá-la.
Aos poucos fomos percebendo que, como muitos outros professores, ela prendia-se a determinados conceitos que ainda dão sustentação a um projeto educacional. Conceitos um tanto normativos, levando o professor a se sujeitar a modelos transformáveis conforme o modismo pedagógico. Conceitos um tanto lineares, fazendo-o crer que seja possível não haver conflitos na construção do conhecimento. E, finalmente, conceitos reguláveis, uma vez que o fazem supor que, como ensinante, deve dominar o processo de seus alunos que aprendem, tamponando a falta que os leva à busca do conhecimento. Pensando assim, teríamos um aluno que, em vez de buscar o conhecimento, recebe-o pronto daquele que é considerado um bom professor.
Nosso trabalho foi nos mostrando o quanto é preciso (des)construir esses conceitos, e o saber psicanalítico pode ajudar muito nesse processo.
Consideramos esses conceitos, cristalizados, que atrelam um significante a um único significado e que não podem dar conta das produções dos alunos. Atribuímos à teoria psicanalítica lacaniana um saber que pode fertilizar o campo da educação.
Enquanto isso, Andressa seguiu muito bem. Mais um ano letivo terminou. Nele, desta vez, ela garantiu um espaço de laços sociais e de trocas mais efetivas; participou do recreio brincando com os amigos (não mais coleguinhas); perdeu um pouco mais o que chamavam de estranho em suas atitudes, pois esse grupo deu-lhe outro significado: "...não é que ela não fala, ela fala diferente da gente, quer ver como dá pra entender? Andressa, você quer dançar com a gente?" Ao que ela fez entender que sim. Nem professor, nem alunos, nem a comunidade escolar recuaram diante do que poderíamos chamar de Real. Aprender a ler e a escrever continuava um desafio para todos.
MAIS SOBRE A TRAVESSIA
O ano 2000 começou com um certo ar de angústia para nós do Ponte e para Celina. A dificuldade de alfabetizar Andressa já era compartilhada com sua própria dificuldade de promover mudanças, avanços nas outras crianças. Percebíamos que todos os alunos da sala, apesar dos aparentes esforços da professora estavam presos numa espécie de predição do fracasso, e mais: parecia que nenhum outro professor da escola abria a possibilidade de acolhê-los na tentativa de fazê-los avançar. Celina nos fazia crer que esta passagem requeria um avanço concreto da criança, algo que garantisse a promoção para a série seguinte.
Depois de séculos de exclusão, devido a políticas de saúde mental, os movimentos de desinstitucionalização do doente mental e da educação para todos e, conseqüentemente, a inclusão do aluno diferente permitiram que crianças com distúrbios emocionais graves chegassem à escola. Este momento não muito usual cria resistências na instituição escolar - a mesma que ainda insiste em perseguir um ideal de classes homogêneas -, que acaba por perder-se, enfraquecida e angustiada diante desta desconhecida. Uma criança vista como perigosa, que chega à escola ao mesmo tempo em que esta enfrenta o fracasso da prática pedagógica causado imaginariamente pela ineficácia metodológica ou incapacidade psicológica dos alunos em geral (Cufaro, 2000). Era justamente isto que acontecia nessa escola.
Vale dizer que a escola vem apresentando, pelo menos nos últimos quarenta anos, uma queixa recorrente de fracasso escolar e indisciplina, e que a chegada de uma criança diferente, como no caso de uma criança com um diagnóstico de distúrbio global do desenvolvimento, oportunamente acelera e detona o processo inevitável de revisão teórica da educação. Um caso como esse que descrevemos aqui nos diz que é essa criança que mais põe a instituição escolar diante do não-saber, daquilo que irrompe do real, e do qual o imaginário escolar não consegue dar conta, instaurando-se a falta, a angústia, o buraco que o discurso (psico)pedagógico não consegue tamponar, apesar de todas as teorias cognitivistas, construtivistas, sócio-interacionistas (Cufaro, 2000).
O que se chama de psicologização da educação criou no cotidiano escolar a ilusão de que os métodos e técnicas possibilitam desenvolver as capacidades maturacionais e as potencialidades do aluno, para que venham a ocupar seu lugar na sociedade, como cidadão. Mas é justamente este imaginário escolar que não dá conta do aluno pedagogicamente correto (sem problemas econômicos, familiares, biológicos, entre outros), que dirá do aluno diferente (aquele com necessidades educativas especiais ou com distúrbios de aprendizagem). Uma vez que o que se idealiza do ponto de vista pedagógico é da ordem do impossível.
A entrada de uma criança com distúrbio global do desenvolvimento na escola causa muita angústia a todos. Angústia que, em alguns momentos, pode ser desafiadora e em outros paralisante, assustadora, desestruturante. Desta vez, parecia-nos que esta criança deflagrava um processo dentro dessa instituição que incluía a todos os seus colegas da sala especial.
A diferença de cada um deles já parecera mais desafiadora para Celina, mas agora ela deparava com sua própria incapacidade diante da necessidade de criar novas estratégias de ensino que pudessem dar conta de Andressa e de seus colegas. Em parte reflexo do trabalho do Ponte, que estava o tempo todo demandando um objetivo da professora. Estamos sempre questionando se este objetivo é atingido em seu trabalho com a criança com DGD, e de algum modo isto repercutia no trabalho dessa professora com os demais alunos também.
Foi diante dessa demanda que pudemos refletir melhor sobre a atuação de Celina sobre seus alunos. Ao mesmo tempo em que ela os recebeu e os assumiu como seus desafios e assim o fez com Andressa, foi justamente da relação com esta criança que o Ponte pôde desvelar algo precioso para esse caso. Assim como as crianças com distúrbios globais do desenvolvimento estabelecem com suas mães uma relação de superdependência (e estas, sobre seus filhos, uma relação de onipotência), também favorecem a ocorrência disso na relação com seus professores (que sejam eles os únicos a possuir um saber sobre elas e que as capturem de algum modo). O Ponte veio quebrar este processo repetitivo de Celina.
Nosso trabalho encontra-se nessa fase. Celina vive a angústia de não deter mais seus alunos. E o Ponte, mais uma vez do seu lugar de êxtimo, barrando, agora, a instituição escola, impedindo-a de reter seus alunos mais do que deve, neste caso, na sala especial e mandando-os para as salas regulares; ou seja, barrando não só a instituição terapêutica, mas também a escolar, ao impedi-la de gozar com esse(s) aluno(s). Apelamos para um terceiro, para a autoridade da coordenadora pedagógica, que intercedeu prontamente a favor da saída dessas crianças da sala especial.
Estrategicamente, o Ponte e a coordenação propuseram que Celina começasse esse processo de separação com alguns de seus alunos, numa parceria com outras professoras da escola. Logo um, dois, três, quatro crianças recolocadas, inseridas e em pleno processo de aprendizagem em novas salas de aula. Algo como um "Adeus à loucura"8 começa a acontecer com estes alunos - um certo ar de constrangimento por terem pertencido à sala especial. É a escola fertilizada por um saber psicanalítico podendo pensar mais como articular a transmissão formal do conhecimento e a construção do conhecimento como a maneira singular de ensinar cada sujeito. E a entrada de uma criança com DGD na escola promovendo mudanças em alguns conceitos cristalizados.
Mais uma vez apontamos em nossas reflexões que há que se percorrer mais que uma travessia para garantir a inclusão de crianças com transtornos graves em escolas regulares. Sabe-se que uma escola regular pode ser fundamental para o desenvolvimento destas crianças, não só como espaço do aprender, mas como aquele que lhes oferece as regras que possibilitam as relações sociais. Mesmo que essa escola não esteja conseguindo sustentar sua tradição de ensinante, ela é ainda uma instituição que pode conferir à criança que a freqüenta um lugar de criança, uma identidade de criança. Como disse a inspetora de alunos: "Quem diria, hein? Pensar que no começo a Andressa parecia mais 'um filhote de não sei quê'. Vê agora? Nem dá pra perceber tanta diferença nela quando está no meio das outras crianças, você não acha?"
Por conta do que já foi descrito, percebe-se o quanto é importante a permanência do Ponte na instituição escolar para garantir minimamente que essa criança prossiga até que saia dela. Garantir o tratamento dessa criança e ser parceiro dessa escola nesse percurso também.
CONCLUINDO OU CONTINUANDO EM UMA NOVA TRAVESSIA
A primeira parte do trabalho com Andressa, que foi inseri-la na escola, ajudá-la a construir uma identidade de criança, de aluno, educá-la, ensinando-lhe as regras que permitem o convívio social, terminou. Este trabalho começa a nos apontar outros rumos que, certamente, demandarão novas estratégias, talvez outros(as) Pontes. O desafio que se impõe agora é como ensinar essa criança com DGD.
Esse novo desafio nos obrigará a pensar sobre as ligações possíveis entre as contribuições da psicanálise lacaniana, as propostas da educação inclusiva e os cruzamentos entre as propostas da educação especial contemporânea e a educação comum, entre vários outros aspectos.
Sabe-se que as idéias em torno da educação inclusiva fazem parte de um processo maior que é o da inclusão social. Na década de 60 surge a constatação de que a sociedade não agia de modo integrador. Alguns segmentos sociais eram muito excluídos, principalmente os que não tinham a mesma cultura do segmento dominante. Eram postos aqui os loucos e os deficientes, por exemplo. Tal exclusão social fazia com que essas pessoas diferentes não tivessem acesso e direito aos mesmos benefícios das chamadas normais. A cultura da normalidade excluía aqueles que não se enquadrassem nos padrões socialmente propostos (Mrech, 1998).
Mrech conta que uma luta nem sempre pacífica pela derrubada desses estereótipos sociais se seguiu. Nesse período emergem quatro tendências fundamentais no centro das grandes discussões da época: a psicanálise lacaniana, a luta pelos direitos humanos, a pedagogia institucional e o movimento de desinstitucionalização manicomial.
A psicanálise lacaniana trouxe uma nova forma de se posicionar diante da loucura e da deficiência mental. Ela iniciou um novo modo de se olhar a criança portadora de deficiência mental e com distúrbios emocionais. Sem dúvida foi Maud Mannoni quem mais se destacou nisto. De seu trabalho com portadores de deficiência mental e com distúrbios emocionais, ficou revelado que apresentavam um potencial muito maior do que se supunha: "Emergiu, a partir daí, pela primeira vez, a luta pelos direitos de a criança portadora de deficiência mental e distúrbios emocionais ter acesso à sua9 palavra e às suas idéias; pois até então elas eram apenas faladas pelos adultos. O que importava era apenas o olhar que o adulto tinha desses sujeitos" (Mrech, 1998, p.2).
Essa mesma psicanálise propõe a importância do resgate do sujeito, e, segundo Lacan, estamos sempre na ordem do um por um. Não há casos iguais entre si, assim como não se podem estabelecer categorias prévias de procedimentos e relacionamentos que se deverá ter com cada criança com necessidades educativas especiais. Aqui se opõe a plasticidade de cada criança aos quadros tradicionalmente propostos pelas teorias psicológicas e pedagógicas.
Além disso, é ainda essa autora que diz que "(...) a psicanálise revela que o sujeito não é tecido apenas no plano da cognição e da afetividade, no nível da consciência. Há processos inconscientes que atuam nos sujeitos de uma tal forma, que muitas vezes eles ficam presos em cadeias de repetição das quais não conseguem sair. O que a ideologia psicanalítica revela é que somos tecidos pelo social à nossa revelia. Nós não temos o controle de tudo aquilo que acontece conosco. O que faz com que muitas vezes a gente fique preso no pior e não consiga sair disso" (Mrech, 1998).
Para um professor que trabalhe sob essa vertente, importa não confundir seus desejos com os da criança; é necessário ceder espaço para que a criança se coloque e estruture seu próprio desejo, para ela não se alienar naquilo que o professor achar que é melhor para ela.
Se a psicanálise pode contribuir, de algum modo, com o campo da educação, e referimo-nos aqui à educação inclusiva como uma nova ordem, poderia também o fazer apontando para a necessidade de uma postura reflexiva sobre a tarefa educativa, que supõe uma resignificação, a ser feita pelo professor, de sua atuação junto aos alunos. Pontuar então os efeitos das metas idealizadas e grandiosas que sugerem o ato de educar, pois elas negam a realidade do desejo e, por conseguinte, negam também a criança como sujeito. Assinalar para o professor que a mediação do conhecimento e sua possibilidade de significação, pelo aluno, passam pela via da linguagem e da fala, que é sempre endereçada a um Outro. Apontar, ainda, que a posição subjetiva do professor, diante da castração, determina as suas modalidades discursivas e que estas têm efeitos de diferente natureza no processo relacionai de transmissão e aquisição do conhecimento.
A psicanálise pode também promover o deslocamento do professor do lugar daquele que ensina para o lugar daquele que aprende, fazendo-o perceber seu estilo de aprendizagem bem como suas dificuldades. Ao se promover a explicitação disto dentro da escola poder-se-á ter a implicação do sujeito professor diante do sujeito aluno na construção do conhecimento. O professor terá a possibilidade de se confrontar com as impossibilidades no processo de aprendizagem, uma das condições para que haja uma resignificação desse lugar de dono do saber.
Assim como a psicanálise propõe que se olhe para o sujeito numa ordem do um por um, cada situação na educação inclusiva também é singular e montada considerando isto. Deste modo podemos pensar que é condição para que a inclusão ocorra ela ser atravessada pela psicanálise.
Um caminho primeiro quando se pensa em inclusão é ajudar o professor a perceber-se como sujeito, para que, então, possa ver seu aluno em sua subjetividade. Ajudá-lo a tecer um saber, a pensar sobre sua metodologia, sobre seu aluno, é outro. Mediante o saber psicanalítico possibilita-se uma quebra no que está posto, e remetem-se as pessoas a tecer outras e novas idéias.
Mas este é apenas um esboço, o início de um novo período, aqui no Ponte, que promete ser de intensa investigação e reflexão acerca dessas idéias.
Uma experiência como essa encontra sempre os que contestam a eficácia do que já está sendo conseguido. É normal que essa reação ocorra. O diferente abala o conservadorismo dos conceitos e das práticas tradicionais e com isto retardamos a compreensão e aceitação de novidades, como as que propomos na Lugar de Vida e outras instituições comprometidas com uma educação para todos e com o direito de que essas crianças sejam respeitadas e valorizadas independentemente de suas particularidades.
A vez de Andressa sair da sala especial ainda não chegou, mas está um pouco mais próxima.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Associação Americana de Psiquiatria (1994). Manual de diagnósticos e estatísticas de distúrbios mentais - DSM-IV. São Paulo, SP: Manole, 3ª ed. [ Links ]
Colli, F. et at. (1997). Começando uma travessia pelo Ponte. Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, 2 (II). [ Links ]
Cufaro, A. C. .(2000). Quando a loucura vai à escola... Discursos de uma história. In Kupfer, M. C. (org.). Tratamento e escolarização de crianças com distúrbios globais do desenvolvimento. Salvador, BA: Ágalma. [ Links ]
Kupfer, M. C. M. (org.) (2000). Tratamento e escolarização de crianças com distúrbios globais do desenvolvimento. Salvador, BA: Ágalma. [ Links ]
Mrech, L. M. (1998). A formação dos docentes: quais competências para o ensino individualizado e a integração escolar da diversidade. Trabalho apresentado no IV Seminário Internacional de Reabilitação da Criança Portadora de Deficiência Mental e/ou Sensório-Motora (Sirec), 13 e 14 de agosto de 1998, APAE de São Paulo. [ Links ]
Sassaki, K. R. (1997). Inclusão. Construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro, RJ: WVA. [ Links ]
Recebido em novembro/2000
NOTAS
1 O nome deste artigo laz uma alusão ao primeiro texto publicado pelo Grupo Ponte, um artigo intitulado "Começando uma travessia pelo Ponte", que saiu em 1997 aqui na Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, ano 2, nº 2.
2 Termo atribuído pelo Manual de diagnósticos e estatísticas de distúrbios mentais (DSM-IV), da Associação Americana de Psiquiatria, para classificar crianças anteriormente diagnosticadas como psicóticas ou autistas como portadores de distúrbios globais do desenvolvimento (DGD).
3 Inserção é um termo usado aqui a partir das seguintes definições de inclusão e integração (termos utilizados em diversos sentidos): "Integração significando 'inserção da pessoa deficiente preparada para conviver na sociedade' e inclusão significando 'modificação da sociedade como pré-requisito para a pessoa com necessidades especiais buscar seu desenvolvimento e exercer sua cidadania'" (Sassaki, 1997, p.43).
4 Entendemos este conceito como o que remete ao processo de cada criança, e não ao de um grupo ou categoria específica. Revelando também a importância de não se reduzir o processo de ensino-aprendizagem de uma criança àquele apresentado por outra.
5 A idéia de inclusão aqui se baseia no conceito maior de "inclusão social entendida como o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e, simultaneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos" (Sassaki, 1997).
6 Sobre a palavra "êxtimo": "A última lição clínica do cartel do passe. A delicada prudência de suas intervenções, o destaque de um detalhe clínico ajudam a precisar melhor o signo da sentença encaminhada à Secretaria do Passe para transmiti-la ao passante" (Mário Almeida, Correio - revista da Escola Brasileira de Psicanálise, abril de 2000). "Quando tivermos falado o bastante sobre o êxtimo, não teremos mais que defini-lo, a discussão será a definição. Terá havido mal-entendidos suficientes para que nos entendamos sobre o êxtimo. É somente quando há uma massa cristalizada de mal-entendidos, formando alicerce, que se diz que se sabe o que uma palavra quer dizer" (Jacques - Alain Miller, Correio, julho de 2000).
7 Os nomes aqui mencionados foram mudados a fim de garantir o sigilo às pessoas a quem se referem.
8 O termo aqui é usado em alusão ao artigo de Odelis Basile e Simone Al Behy André "Adeus à loucura - Hospital-dia para crianças: experiência de uma instituição desapassivadora", publicado na revista Percurso, 16, de 1/1996.
9 O destaque em negrito é da própria autora.