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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.7 no.12 São Paulo  2002

 

FUNDAMENTOS

 

Descobrindo o encobrimento da descoberta freudiana: a psicanálise e a "Ego Psychology"

 

Discovering the covering of the freudian discovery: psychoanal ysis and Ego Psychology

 

 

Geselda Baratto

Psicanalista; Professora/supervisora da Universidade do Vale do Irajaí - UNIVALI - departamento de psicologia e da Universidade de Blumenau - FURB. Mestre pela Universidade Tuiuti em Psicologia Clínica

 

 


RESUMO

Neste artigo abordaremos o desenvolvimento do conceito de inconsciente, tal como este se encontra elaborado no pensamento de Freud. Procederemos à elaboração das formulações presentes no período relativo aos "Estudos sobre a Histeria", na primeira e na segunda tópica freudiana. Finalmente, abordaremos a particular leitura e interpretação efetuada pela "Ego Psychology" a respeito das formulações freudianas presentes na "segunda tópica".

Adaptação; ego; autonomia; inconsciente; recalque; id


ABSTRACT

In this article we have proceeded towards the development of the concept of unconsciousness, as it is specified in the Freudian thought.
We have proceeded towards the elaboration of the current formulations over the period related to the "studies on history", in the first and "second topics". In a final step, we will approach the reading and interpretation particle effected by Ego Psychology regarding the current Freudian formulations in the second topic.

Adaptation; ego; autonomy; unconscious; repression.


 

 

Abordaremos neste artigo a descoberta fundamental efetuada por Freud, que se situa na origem de uma tão nova quanto revolucionária concepção do sujeito humano: o sujeito do inconsciente.

A descoberta do inconsciente pelo mestre austríaco Freud deu lugar a uma nova abordagem dos processos psíquicos, do sofrimento mental, assim como também inaugurou uma técnica específica de abordá-los.

O conceito de inconsciente tem longa história na psicanálise, confundindo-se com sua própria história, na justa e estrita medida em que se encontra na base do seu surgimento. As primeiras elaborações concernentes ao inconsciente na obra freudiana datam do período relativo aos Estudos sobre a histeria. O que podemos denominar um segundo período tem lugar no momento em que o "método hipnótico", enquanto método de abordagem do inconsciente, é abandonado em favor do método da "livre associação". Este segundo período é entrevisto pelo próprio Freud como aquele no qual a psicanálise propriamente dita tem lugar (Freud, 1914, p. 17). De fato, no seu interior Freud procede à formalização conceituai do inconsciente, conferindo-lhe os contornos teóricos específicos que permitem demarcar a especificidade de elaboração que o inconsciente tem na psicanálise. Este segundo período coincide, portanto, com a introdução e a elaboração da "primeira tópica freudiana". Nesta, Freud concebe o aparelho psíquico sendo composto por três sistemas: o inconsciente, o pré-consciente e a consciência.

Na década de 20 tem lugar na obra freudiana o terceiro momento de síntese elaborativa sobre o inconsciente. No desenrolar deste período, temos a palavra decisiva de Freud no tocante a sua concepção do aparelho psíquico, fato este que constitui um momento decisivo e fundamental para a história do movimento psicanalítico, e no qual têm lugar às elaborações relativas à "segunda tópica freudiana". Nesta, Freud introduz as novas instâncias tópicas do id, ego e superego, estabelecendo ainda as relações que estas entretêm com o inconsciente, tal como formulado na primeira tópica.

Entretanto, a década de 20 é marcada por dois grandes eventos. O primeiro, a que já nos referimos, diz respeito ao movimento revolucionário interno à própria psicanálise, que deu lugar ao avanço freudiano que conduziu a elaboração da segunda tópica. O segundo à particular leitura e interpretação que ela sofreu nos Estados Unidos da América, o que deu lugar, por sua vez, a uma particular rota de desvio no que tange tanto aos princípios teóricos quanto aos princípios técnicos da psicanálise. E justamente a partir de uma certa interpretação conferida ao que Freud elabora na segunda tópica que surge uma neo-escola de psicanálise autodenominada: Psicologia Psicanalítica do Ego.

Nosso propósito é, por um lado, proceder ao desenvolvimento das teses freudianas fundamentais relativas ao inconsciente. Isto requer, a nosso ver, o atravessamento tanto da primeira quanto da segunda tópica. Por outro lado, argumentar que justamente em torno do entendimento que a Psicologia Psicanalítica do Ego efetuou a respeito da segunda tópica estabeleceu-se a rota de desvio por ela traçada e percorrida. Desvio este responsável pelo distanciamento que ela guarda com relação à psicanálise.

No intuito de demarcar pontos específicos em torno dos quais esse desvio se operou, procederemos ao desenvolvimento de alguns conceitos que se revelam fundamentais para a referida escola, pautando-os por aqueles que se revelam fundamentais no pensamento de Freud. Traçam-se, assim os delineamentos teóricos que distinguem e separam uma abordagem psicanalítica sobre o sujeito de uma abordagem psicológica sobre o indivíduo. Efetivamente, a Psicologia Psicanalítica do Ego, ao conferir um valor supremo aos processos racionais conscientes e à faculdade de síntese sua, oferece-nos uma concepção psicológica sobre o indivíduo.

 

DESCOBRINDO O INCONSCIENTE

Neste tópico versaremos sobre o percurso de evolução histórica do conceito de inconsciente, o que nos permitirá traçar o percurso teórico que vai da introdução da primeira à segunda tópica, estabelecendo as relações fundamentais que entre ambas se opera.

O conceito de inconsciente constitui o ponto em torno do qual se ordena e sustenta o edifício teórico e técnico da psicanálise. Isto justifica que nos detenhamos sobre as teses freudianas centrais acerca dele. Sobre a descoberta do inconsciente, pode-se afirmar que ele constitui um divisor de águas, no que à concepção de sujeito concerne. O conceito de inconsciente faz função de borda, demarcando a fronteira entre uma teoria do sujeito e uma teoria do indivíduo. Isto é, a fronteira entre, por um lado, a psicanálise e, por outro, a filosofia racionalista e as correntes psicológicas que dela se derivam.

É secular, no pensamento de algumas tradições filosóficas, a noção relativa à existência de processos mentais que se desenrolariam à margem da consciência. Não poucas correntes filosóficas postulam que, sob determinadas circunstâncias contingenciais, a própria consciência poderia submeter-se a um processo de divisão. Esta noção deu lastro à idéia segundo a qual importantes parcelas da atividade mental poderiam furtar-se ao controle das atividades conscientes racionais, vindo a formar, assim, a face obscura das paixões da alma, de todos os modos homologada aos processos irracionais da mente. A noção de uma "consciência inconsciente", isto é, a idéia segundo a qual a consciência poderia ser dividida em duas partes simetricamente opostas, passíveis, em todo caso, de integralização através da (re)união das partes separadas, porta em seu bojo a argumentação, tão clássica quanto contemporânea, de que o próprio e característico da atividade mental normal é funcionar de forma integrada. A consciência, compreendida como eixo central em torno do qual giram e ordenam-se todos os processos mentais, teria como função primordial levar a cabo os ditos processos de síntese e integralização da vida mental.

Tornou-se assim moeda corrente, aceita por muitos teóricos, a noção segundo a qual a característica da atividade consciente é apreender-se a si mesma através do movimento "reflexivo". O movimento reflexivo, em que a consciência refletiria a si própria, refletiria, em ato, o próprio eu. O sujeito racional é aquele capaz não somente de pensar, mas, sobretudo, é o que se mostra apto a apreender-se a si próprio como um ser pensante. Este foi o passo inaugural dado por Descartes na célebre formulação "Penso, logo sou". O passo cartesiano conduziu bem depressa a homologação do sujeito ao ato de pensar e deste à consciência. O próprio da atividade de pensamento, de acordo com este raciocínio, é ser consciente, logo, racional. O princípio segundo o qual o sujeito é uma "substância pensante" introduz, de um só golpe, a categoria de sujeito psicológico, aquele que tem na consciência, compreendida como sede de conhecimento imediato, sua morada e na racionalidade, intencionalidade, autonomia, seus atributos.

A teoria do inconsciente, tal como elaborada por Freud, nada deve às teorias filosóficas que se calcam na noção de "uma consciência inconsciente" (Freud, 1912). Freud, ao subverter, com a descoberta do inconsciente, a concepção clássica de sujeito do conhecimento, tal como inaugurada por Descartes, põe em cena uma dupla revolução. Primeiramente, ao afirmar que o inconsciente pensa, Freud desaloja a consciência como sede privilegiada do ato de pensar, alterando assim o privilégio concedido aos pensamentos racionais. Em segundo lugar, promove uma ruptura tópica ao asseverar que o ser e o pensar não se situam no mesmo lugar. A não-convergência tópica entre o ser e o pensar faz com que o sujeito freudiano seja marcado por uma irremediável cisão. O sujeito é, para Freud, o rachado, o dividido: o que está posto à margem de um centro ordenador central, como tal caracterizado por um descentramento radical. Para Freud, os processos de atividades mentais não se ordenam em torno da função da consciência, logo, esta não pode ser homologada ao psíquico. É verdade que a consciência faz parte do psíquico, contudo, não o totaliza (Freud, 1912, p. 327).

Freud introduz a concepção de uma ordem, de um sistema, perfeitamente capaz de instituir e elaborar pensamentos que subsistem à margem da consciência. Este sistema não é outro senão o próprio inconsciente. Freud infrige ao homem o terceiro grande golpe capaz de abalar o seu narcisismo, colocando em pauta a existência de uma ordem psíquica de estatuto inconsciente. Freud postula a presença, em cada sujeito, de processos de pensamentos que, ao se produzirem à margem da consciência, são regidos por leis lógicas que diferem daquelas que regem os processos racionais conscientes de pensamento. Conseqüência imediata e direta desta proposição segundo a qual o inconsciente pensa é o fato de que o estado de cisão psíquica ao qual o sujeito está atrelado não constitui uma contingência desafortunada. O conceito freudiano de sujeito remete à impossibilidade, desta vez estrutural, de qualquer forma de síntese harmônica, supostamente gerada e mantida pela consciência. O sujeito freudiano é habitado por pensamentos e desejos que nele operam à revelia de qualquer controle racional.

Entretanto, sabemos que essas elaborações relativas ao inconsciente têm, na obra freudiana, uma longa e laboriosa história de construção. Seu percurso histórico tem início no período relativo aos Estudos sobre a histeria, atravessa todas as elaborações conceituais constituintes da primeira tópica e culmina com a introdução da segunda. Abordaremos algumas idéias centrais desenvolvidas por Freud relativas a cada um destes três períodos. Este procedimento permitirá, na seqüência, estabelecer os pontos precisos em torno dos quais a Psicologia Psicanalítica do Ego operou uma rota de desvio sem precedentes em relação aos postulados freudianos.

No período relativo aos Estudos sobre a histeria, a técnica posta em curso por Freud era a da "sugestão hipnótica". O objetivo desta era conduzir à "catarse" através da "ab-reação". A "sugestão hipnótica" objetiva tornar consciente os eventos traumáticos que se encontravam subjacentes aos sintomas. Os acontecimentos traumáticos não ab-reagidos, deveriam receber expressão verbal, meio pelo qual se produzir-se-ia a catarse.

A "ab-reação", sabemos hoje, consistia essencialmente em nomear, simbolizar, pelo recurso à palavra, um real vivido não integrado ao sistema simbólico do sujeito.

Destacaremos alguns pontos teóricos, sustentáculos do método hipnótico, no intuito de apontarmos o quanto constituem os germens da futura teoria do inconsciente e do método da "livre associação".

Nesse período, Freud sustentava que, entre os sintomas e o fator traumático que os presidia, havia uma relação associativa que obedecia a uma ordem de "conexão causal simbólica" e que esta encontrava-se perdida para o sujeito. Havia, por parte do sujeito, uma "perda de memória" destes laços simbólicos, de forma que ele era incapaz de relacionar a lembrança do trauma com seus sintomas. Isto conduziu Freud a concluir que "os histéricos sofrem de reminiscências" (Freud, 1893-5a, p. 48). Consoante ao que se elaborava teoricamente neste período, tornar consciente o fator traumático consistia precisamente em restabelecer estas conexões simbólicas perdidas, por meio do recurso à palavra. A despeito das múltiplas versões psicologizantes que circulam, tornar consciente o inconsciente sempre foi, para Freud, um trabalho levado a efeito pela "função da fala" (Freud, 1940a [1938], p. 187).

Contudo, Freud constata, nesse mesmo período, que para conduzir o paciente à verbalização das lembranças traumáticas, fazia-se necessário um certo esforço terapêutico. Este fato denotava que tinha se lutar contra uma força que se opunha à rememoração. Freud denominou-a resistência. A resistência era a força que se opunha aos esforços do tratamento, assim como também era ela que, desde o início, se havia oposto à penetração das idéias traumáticas na consciência, ou seja, que se encontrava na base do recalque.

Surge assim a teoria da defesa implicada no processo de recalque. Nesta, Freud desenvolve a concepção de um conflito psíquico posto entre idéias inconscientes e o ego. Um determinado grupo de idéias "antitéticas" ou "irreconciliáveis" com aquelas presentes no ego era, pela defesa envolvida no processo de recalque, afastado deste. A incompatibilidade do ego com tais idéias, e a conseqüente expulsão das mesmas de seu território, conduzia ao estado de cisão psíquica. O material expulso passava, desde então, a organizar-se numa "seqüência de pensamentos" (Freud, 1893-5, p. 345) regida por uma lógica associativa diversa daquela operante no ego e dele independente.

Essas elaborações relativas à teoria do recalque conduzem Freud ao centro das argumentações presentes no interior da primeira tópica. Nesta, o recalque se estabelece como o mecanismo constitutivo dos processos inconscientes. Na primeira tópica o inconsciente se define inteiramente pelo recalque. Ele é o operador necessário e suficiente pelo fato de que existam representações inconscientes; como tal é o responsável pela divisão psíquica em três sistemas: inconsciente, pré-consciente e consciência.

"Obtemos assim o nosso conceito de inconsciente a partir da teoria da repressão. O reprimido é, para nós, o protótipo do inconsciente" (Freud, 1923, p. 27).

Ao elaborar a primeira tópica, Freud procede à rigorosa distinção entre duas formas de conteúdos representacionais latentes: os latentes de momento, capazes de se tornar conscientes, e aquele outro grupo de representações latentes, em que o esforço de "atenção deliberada" em torná-los conscientes revela-se ineficaz e devem, portanto, permanecer latentes e inacessíveis de forma direta. Freud demarca assim a diferença entre o uso descritivo e o uso dinâmico do termo inconsciente. Razão pela qual ele é levado a designar o primeiro grupo de pré-consciente, reservando ao segundo grupo, exclusivamente, o termo inconsciente.

É no recalque que se encontra o elemento operacional que exerce função diferenciadora entre, por um lado, os processos conscientes e pré-conscientes e, por outro, os inconscientes. A propósito da temática do recalque, no texto metapsicológico de 1915 "O recalcamento", Freud introduz uma distinção essencial entre o recalque primário e o secundário.

O recalque primário introduz no registro da representação a pulsão, ou seja, a pulsão enquanto representada, pois, "mesmo no inconsciente, um instinto não pode ser representado de outra forma a não ser por uma idéia" (Freud, 1915a, p. 203). É, portanto, pelo recalcamento primário que a pulsão "encontra uma primeira expressão psíquica" (Freud, 1940 [1938], p. 170). Temos de considerar, portanto, que não é a pulsão, ela mesma, que ingressa no psíquico, mas sim seus representantes. O psíquico é o lugar que, por acolher os representantes da pulsão, inaugura os processos inconscientes, instaurando, por seu turno, a divisão do aparelho mental em três sistemas.

Lacan (1964, p. 206) assinala que para Freud: "o recalcamento cai sobre algo que é da ordem da representação, que ele denomina Vorstellungsrepräsen tanz ".

O fato de que é pela representação que a pulsão ingressa na ordem psíquica aponta toda a distância que separa o inconsciente freudiano de qualquer concepção que o assimile ao inato, ao orgânico, ao pólo instintivo da esfera mental. Esta foi em todo caso, como veremos, a interpretação conferida pela Psicologia Psicanalítica do Ego ao inconsciente freudiano.

Lacan, em seu "retorno" magistral à obra freudiana, interpretará o inconsciente freudiano à luz de sua teoria do significante. Para ele, o recalcamento primário corresponde ao momento de inscrição de um primeiro significante - o "significante mestre" -, assim denominado pelo fato de que ele tem função de comandar a cadeia significante, na justa e estrita medida em que a engendra. Lacan liga a emergência do inconsciente à inscrição no registro psíquico deste primeiro significante. Ele é o efeito da incidência da linguagem sobre o futuro sujeito, aquele que advém por ser banhado na estrutura simbólica da linguagem. O sujeito lacaniano é o que deriva da teoria do significante. Lacan faz a emergência do sujeito do inconsciente depender, de um lado, de uma alienação do vivente à linguagem e, de outro, do resultado de uma perda, que ele denomina objeto a dupla condição de emergência do sujeito. Sob o peso do significante, o sujeito surge como dividido, mas ele é ainda o efeito de uma perda, ela própria causada pelo signifícante.

Entretanto, o inconsciente, definido na primeira tópica como puro sistema dinâmico relacionai, requer necessariamente a articulação entre o recalcamento primário e o recalque propriamente dito. A filiação simbólica do sujeito depende do entrelaçamento que entre ambos se opera. O que se depreende, correlacionando a primeira tópica com a segunda, é que por meio do recalcamento primário tem origem a instância tópica do id (es); quanto ao recalque propriamente dito, ele incide sobre os derivados psíquicos da pulsão primitivamente recalcada, dando assim origem às instâncias tópicas narcísicas do ego e do superego.

O inconsciente da primeira tópica é apresentado por Freud como inteiramente constituído pelo processo de recalcamento, ou seja, inteiramente constituído por representações tramadas em cadeia. O deslocamento e a condensação, leis que regem os processos inconscientes, determinam o modo de associação destas representações entre si.

Essa noção de representações recalcadas, formando uma verdadeira cadeia de acordo com leis que ordenam a forma de laço que elas entretêm-se entre si, isto é, que determinam que seu modo de arranjo e composição não é obra do acaso, é a noção mesma de dinâmica inconsciente. O inconsciente é puro jogo combinatório, puro processo de sintaxe entre seus elementos representacionais. Sublinhamos, portanto, que o inconsciente freudiano é um sistema ordenado e organizado de acordo com as leis do deslocamento e da condensação; leis universais que operam sobre representações singulares. Universalidade das leis estruturais da sintaxe inconsciente, singularidade dos elementos sobre os quais elas incidem. Esta concepção do inconsciente presente em Freud conduziu Lacan a afirmar que "O inconsciente é estruturado como uma linguagem" (Lacan, 1964, p. 25), e que:

"Com Freud faz irrupção uma nova perspectiva que revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente que o sujeito não se confunde com o indivíduo [...]. Freud nos diz - o sujeito não é sua inteligência, não está no mesmo eixo, é excêntrico. O sujeito como tal, funcionando como um sujeito, é diferente de um organismo que se adapta. O sujeito está descentrado com relação ao indivíduo" (Lacan, 1954-5, p. 16)

Na primeira tópica Freud estabelece que o inconsciente é um domínio particular, funcionando à margem da consciência, composto essencialmente por representações de desejo indestrutíveis originadas na mais tenra infância. Estas representações encontram no recalque o operador que as promovem, instituem e possuem, no deslocamento e na condensação, as leis determinantes de seus sucessivos encadeamentos. Freud introduz, portanto, a noção de um sistema organizado e caracterizado por modos próprios de expressão, capaz de subsistir de forma autônoma em relação à consciência, fazendo desta mero efeito de superfície, tão fugaz quanto ilusória.

 

O INCONSCIENTE E A SEGUNDA TÓPICA FREUDIANA

Na primeira tópica, inconsciente e recalque são elaborados por Freud como conceitos correlatos e interdependentes. O inconsciente, na sua concepção dinâmica, alude exclusivamente ao material recalcado. O inconsciente da primeira tópica define-se inteiramente pelo conjunto de representações submetidas ao processo de recalque.

Ao elaborar a primeira tópica, Freud estabelece a distinção entre duas formas de uso do termo inconsciente: a descritiva e a dinâmica. A segunda tópica é o resultado de uma revisão teórica das elaborações efetuadas até então. No seu interior Freud introduz uma "terceira acepção" do termo inconsciente, aquela que se encontrava esboçada na introdução de seu texto metapsicológico de 1915, "O inconsciente", definido como não participante.

Doravante, temos de considerar que o recalcado não totaliza tudo aquilo que podemos abrigar sob a qualificação de inconsciente. A terceira forma de uso do termo inconsciente, introduzida por Freud leva-nos a concluir que o mesmo vai além do material recalcado.

O recalcado constitui-se na borda do que, das pulsões, pode ser capturado pelo aparelho psíquico. Aquém do inconsciente recalcado, lugar da ordem em oposição ao caos pulsional, temos as puras intensidades pulsionais dispersas. Esta forma da pulsão num aquém de toda e qualquer forma de representação e, portanto, de toda e qualquer forma de organização, Freud denominou "pulsão de morte". Portanto, o salto revolucionário, desta vez interno à própria psicanálise, praticado por Freud no tocante à segunda tópica reside na introdução do conceito de "pulsão de morte". De acordo com Chemama (s.d., p. 180), o avanço efetuado por Freud em Além do princípio do prazer, com a introdução do conceito de pulsão de morte, "forneceu a Lacan o melhor ponto de partida possível para introduzir o seu próprio conceito de real."

A partir da segunda tópica, temos de conceber, portanto, que o inconsciente não coincide mais com o sistema de representações recalcadas.

As "noções suplementares" introduzidas por Freud nos anos 20, constituem um marco decisivo para a história do desenvolvimento da psicanálise. No seu interior somos surpreendidos por uma série de remanejamentos teóricos e técnicos, como também por importantes alterações no que tange à concepção freudiana do aparelho psíquico.

No tocante à concepção sempre dualista de Freud, a supremacia do conflito intersistêmico cede lugar ao conflito da dualidade de forças opostas entre pulsões de vida e pulsões de morte. A conseqüência inevitável desta descoberta conduz Freud a postular que o "princípio do prazer" não regula mais de forma exclusiva a economia do aparelho psíquico. Permanece verdadeira a proposição que assevera que o "princípio do prazer" constitui um princípio de regulação psíquica, que visa manter a tensão no aparelho no nível mais baixo possível. Entretanto, o conceito de "pulsão de morte" aponta que ele não reina mais de forma absoluta: o "além do princípio do prazer" com ele concorre e a ele se opõe.

As elaborações da segunda tópica conduzem Freud a asseverar ainda que as leis do "processo primário", leis que definem o modo característico de funcionamento do inconsciente na primeira tópica, passam agora a caracterizar as novas instâncias tópicas do isso, eu e supereu. O inconsciente torna-se, doravante, um atributo adjetivo capaz de qualificar cada uma destas novas instâncias.

A segunda tópica, longe de constituir um abandono do que Freud elaborara no tocante à primeira, consiste em uma série de elaborações que reafirmam a supremacia conferida aos processos inconscientes. Tudo o que Freud afirmara sobre eles nos anos anteriores se mantém, acrescido agora do fato de que, ao lado dos representantes da pulsão presentes no isso, o inconsciente abriga ainda um conjunto de representações provenientes de identificações constitutivas das instâncias narcísicas. A descoberta de que o atributo de ser inconsciente não é mais exclusivo do pólo pulsional conduz Freud a designar o lugar da pulsão com o nome de isso (es). De acordo com Pommier (1990, p. 24) o isso vem ocupar o lugar do que na primeira tópica correspondia ao recalcamento originário.

Pelo recalcamento originário a pulsão ingressa no registro psíquico sob a forma de um primeiro "representante psíquico", dando assim origem a um primeiro símbolo inconsciente encarregado de celebrar, por sua presença, a perda do objeto absoluto, instaurando-o como "objeto perdido".

O "objeto perdido" não faz referência a nenhum objeto da realidade mundana. Não é tampouco um objeto de necessidade. Ele não é de fato um objeto, no sentido de objeto comum existente no mundo, deste modo ele jamais foi um objeto que participou um dia das posses do sujeito. Paradoxalmente, o "objeto perdido" é o nome dado a uma "falta", a um "vazio" alojado no centro do inconsciente e em torno do qual se tramam as representações.

O preço a ser pago pelo sujeito para ex-sistir é uma perda radical, instituída pela sua dependência e assujeitamento à linguagem. De fato, o que deriva da proposição lacaniana segundo a qual "o significante representa o sujeito para outro significante" (Lacan, 1964, p. 150) é que um significante não opera senão pela sua relação a outro. O mínimo do significante sendo dois, não faz senão instituir o sujeito como rachado entre dois significantes, sujeito que, por não constituir nenhuma entidade substancial, não pode apreender-se e nem mesmo definir-se a si próprio. Pode tão-somente ser representando nesta remetência de um a outro significante. O sujeito do inconsciente está fadado a fazer de seus sucessivos deslocamentos ao longo da cadeia sua morada habitual, já que tem nela adscrita a sua tópica.

O sujeito em sua origem, sob o peso e como suporte da estrutura da linguagem, caracteriza-se por sua posição objetai indeterminada no fantasma. O fantasma fundamental aponta-nos que o corte que separa o sujeito de seu objeto tem por efeito imediato escavar uma abertura que ressoa, em cada sujeito, como causa de seu desejo, e que recebe na álgebra lacaniana a denominação de "objeto a causa do desejo" (Lacan, 1964, p. 63), a respeito do qual Lacan nos adverte que é não especular.

O recalcamento primário tem como efeito imediato introduzir o sujeito como falta na estrutura, engendrando assim o desejo que é, por seu turno, ocasião para o estabelecimento do fantasma. O que tomamos como nosso ser, de ordem fantasmática sempre, é o que se produz, por efeito de identificações narcísicas, no lugar desta falta. Temos, portanto, que aquilo que denominamos o nosso ser é o efeito de uma construção, que não visa outra coisa senão paliar nossa irremediável "falta a ser". Toda e qualquer representação, enquanto dimensão imaginária, não ocupa senão simbolicamante o lugar desta falta originária. É, portanto, com representantes substitutos do objeto para sempre perdido que o inconsciente engendra-se e tece sua trama. No lugar do objeto absoluto, que é falta radical, um significante o representa, instaurando assim a instância tópica do isso e introduzindo o sujeito numa dimensão inercial de gozo, cuja característica é ser aberto, infinito, isto é, indeterminado quanto ao objeto, como tal, fadado ao fracasso de sua consumação, causa, por sua vez, de sua inexorável repetição. No que a visada da pulsão, sob a dominância do princípio do prazer, é reencontrar o "objeto perdido", "o programa de tornar-se feliz que o princípio do prazer nos impõe não pode ser realizado" (Freud, 1930[1929], p. 102).

As características atribuídas à pulsão na primeira tópica vêm caracterizar agora a instância do isso na segunda. O isso remete à noção de uma instância impessoal, sem sujeito. Ele é pura exigência de gozo que não pode ser enunciado em nome próprio. Razão pela qual ele ressoa no sujeito como o Outro do desejo. Se o isso determina-se pela sua indeterminação quanto ao objeto, é num espaço imaginário que seu objeto se edifica. Sua construção depende, portanto, de representações advindas das identificações narcísicas. É, pois, no tempo do recalque secundário que se constrói um objeto que se solda à pulsão. É na trama do fantasma que o objeto da pulsão se arma e determina. É ele, portanto, que impõe a esta um limite ordenador à deriva de seu percurso.

O objeto do fantasma é um objeto metafórico. Ele é construído com a missão de ocupar o lugar do "objeto perdido", propondo-se em seu lugar. É no interior das malhas tecidas pelas representações fantasmáticas que se traça a rota que a pulsão trilhará na busca de seu gozo, marcando assim, a rota mesma da repetição.

O fantasma é, por definição, o lugar em que se edifica para o sujeito uma certa versão matafórica do "objeto perdido". É pois no interior de sua trama que uma certa imagem de eu (moi) surge. Deste modo compreendemos que o eu (moi) constitui o objeto substituto privilegiado ofertado ao gozo da pulsão, ocupando de fato o lugar deixado vago pelo "objeto perdido". Na segunda tópica Freud faz do processo identificatório o mecanismo pelo qual opera-se a instauração de representações inconscientes portadoras de um certo ideal de gozo para o sujeito.

De maneira cabal as formulações alçadas por Freud na segunda tópica conduziram-no à descoberta de que "o ego é idêntico ao id sendo apenas uma parte especialmente diferenciada do mesmo" (Freud, 1926 [1925], p. 119), de sorte que apenas uma ínfima parcela do eu acha-se abrangida pela consciência. O ego é, na sua maior parte, inconsciente, funcionando de acordo com as leis que nele imperam. O estudo da segunda tópica fornece a formalização cabal e precisa da indissolúvel relação da pulsão com o eu, conferindo a este seu estatuto de objeto libidinal na economia psíquica.

Se o ego é, com Freud, mero prolongamento do isso, constituindo parte integrante do próprio recalcado, ele "não é nem unificado e nem unificador" (Garcia-Rosa, 1990, p. 111). O ego é, em última instância, referido à realidade psíquica, tal como definida por Lacan: entrelaçamento dos registros real, simbólico e imaginário. É com a realidade fantasma que o ego entretém a mais íntima relação, e não com alguma realidade tida por objetiva. As elaborações referentes ao eu (moi) na segunda tópica permitiram uma saída resolutiva em relação às dificuldades de situar sua posição tópica no aparelho psíquico.

Com relação ainda à temática da segunda tópica, podemos concluir que ela assenta a estrutura do inconsciente sobre a pulsão, estabelecendo de forma precisa a função que no inconsciente cumprem as representações. O inconsciente passa a ser entrevisto como o lugar que, por abrigar as representantes da pulsão, confere à esta sua quota de organização. São as representações as responsáveis por promover a captura e ligação das intensidades pulsionais. A pulsão, enquanto pura potência dispersa, exige a ação do recalque. O inconsciente recalcado se estabelece assim como lugar da ordem, em oposição à pulsão, entrevista como lugar do caos e do acaso.

 

A PSICOLOGIA PSICANALÍTICA DO EGO

Muitos foram os autores que pretenderam encontrar na psicanálise o suporte e inspiração a partir da qual poderiam alçar suas próprias teses. Isto deu lugar à proliferação de "escolas" ditas neopsicanalíticas, no interior destas a psicanálise passou a sofrer toda sorte de ecletismo. Contemporaneamente assiste-se a uma multiplicidade de interpretações da obra freudiana. Estas, no mais das vezes, partilham uma mesma marca característica: o desvio praticado em relação ao conceito originário da psicanálise - o inconsciente.

O inconsciente é o nome dessa ferida produzida no narcisismo do homem. É o nome dado ao sujeito tal como este é formulado no campo psicanalítico originado em Freud - o sujeito dividido. O inconsciente é, para Freud, como vimos, o lugar privilegiado em que o pensamento se formula e institui enquanto pensamento organizado e organizador do mundo e da subjetividade. Entretanto, um desconhecimento completo desta noção de inconsciente conduziu a uma verdadeira vulgarização e, até mesmo, à mais completa degradação teórica e técnica da psicanálise.

Foi em torno do escamoteamento de todo campo fundado e sustentado por Freud que teve origem nos Estados Unidos, nos anos 20, período que coincide com a introdução da segunda tópica freudiana, uma neo-escola de psicanálise. A nosso ver, ela apresenta-se como modelo padrão exemplar dos desvios a que esteve sujeita a psicanálise nas mãos de teóricos afeitos ao ecletismo. A importância desta escola reside, por um lado, no fato de que a disseminação da psicanálise esteve por longo tempo sob seu comando e, por outro, no fato de que no seu interior praticou-se uma particular rota de desvio e conseqüente distanciamento em relação à psicanálise.

Sob o peso dos novos rumos impressos à psicanálise por essa escola, ela passou a ser apresentada sob novas e múltiplas facetas, tanto no que tange à teoria quanto no que tange à técnica. A psicanálise passou, desde então, a ordenar-se em torno de novos objetivos, novos métodos de investigação da atividade mental (como, por exemplo, o empírico), novos conceitos, novas técnicas terapêuticas. Em função desta pluralidade de "inovações", marcadas todas por uma galopante psicologização da psicanálise, surge uma neo-escola de psicanálise: a Psicologia Psicanalítica do Ego. Como veremos, esta nova denominação faz jus tanto às teorizações quanto ao arsenal técnico que no seu interior se originaram.

Esclarecemos que o desvio e o distanciamento operados pelos teóricos do ego em relação à psicanálise ordenaram-se precisamente em torno do escamoteamento do inconsciente e do recalque que lhe dá lugar. O desvio posto em prática radica precisamente em torno de uma minimização do inconsciente, em favor de um privilégio conferido ao ego. Para essa escola, o ego é, por um lado, compreendido como sede dos processos racionais conscientes e, por outro, definido como eixo ordenador central dos processos psíquicos. Sua função essencial: promover a adaptação do indivíduo ao seu meio ambiente.

Entretanto, o conceito de inconsciente freudiano e de divisão psíquica que lhe é correlato responde, em psicanálise, à noção de que não há centro ordenador central no psiquismo. Responde, portanto, à noção de um descentramento radical que afeta o sujeito.

Referimo-nos nas páginas precedentes ao fato de que a noção de sujeito inaugurada por Freud tinha por intenção subverter a noção clássica de indivíduo, aquela segundo a qual os processos racionais conscientes constituiriam o centro em torno do qual gravitaria a subjetividade. Isto é, Freud subverte a noção de que a personalidade seja uma unidade coesa gestada e mantida pelo eu consciente.

A recolocação em cena da homologação do eu à função de consciência, por toda uma geração de analistas que sucederam Freud, foi o maior paradoxo efetuado em relação aos pressupostos psicanalíticos freudianos, convertendo-se numa rota de desvio cujos rumores fazem-se ainda ouvir em nossos dias, sobremaneira em não poucos círculos acadêmicos. Efetivamente, não são poucos os teó- ricos que, imbuindo-se do espírito americano e de suas teses impressas sobre a psicanálise, até o ponto de encobri-la por completo, dão a suas próprias formulações a denominação de teorias de "base" ou de "inspiração" psicanalítica, reivindicando assim uma filiação ao campo freudiano.

O fato mais notável é que no interior da Psicologia Psicanalítica do Ego, assim como na proliferação de teorias marginais a que esta deu lugar, o conceito e até mesmo a própria menção do inconsciente foi, pouco a pouco, sendo abolido do seu arcabouço teórico e técnico. Quando a ele fazem menção, é para homologá-lo aos ditos processos mentais irracionais, opostos, por sua vez, à racionalidade do ego. A rota de desvio praticada pela Psicologia Psicanalítica do Ego encontra-se no justo ponto em que o conceito de inconsciente é abandonado, em favor do conceito de ego consciente. Há, portanto, um deslocamento e uma substituição conceitual.

É no ponto em que uma certa "tradição desviante" da obra e, portanto, do dizer freudiano passou a ser dominante no cenário psicanalítico, no justo ponto em que a relevância conferida por Freud aos processos inconscientes e ao mecanismo do recalque que o institui sofre uma minimização, que tem lugar o deslocamento do eixo em torno do qual a "nova" psicanálise passa a ordenar-se. O inconsciente é abandonado, em seu lugar surge a noção de ego forte, consciente, racional, autônomo, "esfera livre de conflito".

No interior das elaborações teóricas cunhadas pela Psicologia do Ego, os ditos "progressos" por ela impressos à psicanálise ordenaram-se justamente em torno do modo próprio e característico de conceberem o ego. É isto, aliás, que caracteriza esta escola como neo. Nesta escola, o ego, tal como é concebido, está enraizado na função consciência e, portanto, calcado na função racional.

Essa virada teórica veio refletir-se de maneira pontual no manejo técnico, posta a íntima relação que os une. A elevação do ego à categoria de órgão executivo central de todos os processos psíquicos; sua elevação à função de centro organizador da assim denominada "personalidade total", resultou na criação de uma técnica centrada na função da consciência, com vistas a promover o fortalecimento do ego contra as "forças instintivas do id". Abriram-se assim as vias por onde a psicanálise teve que curvar-se aos novos objetivos e finalidades terapêuticas: os ortopédicos.

O modo pelo qual todo o arcabouço conceituai e técnico foi forjado, na referida escola, deveu-se a sua particular interpretação do que Freud elaborara com respeito à segunda tópica. Nesta, como já tivemos oportunidade de demonstrar, Freud introduz as novas categorias conceituais relativas às instâncias tópicas do isso, ego e superego, cada uma delas atravessada pelo atributo de pertencer ao sistema inconsciente. É fato que, ao elaborar sua segunda tópica, Freud volta a dedicar uma particular atenção à instância tópica do ego, visando estabelecer de forma precisa e sistemática sobre o lugar que o mesmo ocupa relativamente ao sistema inconsciente, assim como estabelecer as relações de dependência que o mesmo entretém com o isso e o superego.

Entretanto, um desconhecimento completo de que em Freud o ego é, precisamente na segunda tópica, tributário do isso na medida em que dele deriva, não sendo, portanto, outra coisa que um mero prolongamento do mesmo e, como tal, atrelado ao sistema inconsciente, conduziu os teóricos do ego a levarem a efeito um reducionismo dos fundamentos da psicanálise, que tomou a forma de uma supremacia conferida ao ego.

A comunidade de analistas defensores da Psicologia do Ego, ao fazerem do mesmo e das múltiplas funções que o integram o núcleo central de suas teses, alçaram um sistema teórico veiculador de uma crença inabalável conferida aos ditos processos racionais.

De acordo com Lacan:

"Freud introduz a partir de 1920 as noções suplementares, então necessárias para manter o princípio de descentramento do sujeito. Mas, longe de ser entendido como devia, houve uma abalada geral, verdadeira libertação dos escolares - há! Ei-lo de volta, esse euzinho boa praça! Ei-nos de novo norteados - Voltamos para as trilhas da psicologia geral" (1954-5, p. 19).

No dizer de Hartmann, Rapaport, Ernest Kris, Loewestein, Franz Alexander, principais expoentes e mentores da Ego Psychology, embora na década de 20 Freud tenha introduzido um impulso inteiramente renovador sobre a teoria do ego, ela teria sofrido de enormes limitações, sobretudo no que diria respeito às relações privilegiadas estabelecidas pelo ego com a consciência, a razão e a realidade. Para estes teóricos, o ego é entrevisto como constituído por múltiplas funções, entre as quais destaca-se sua função de adaptação. Ele é, por excelência, o órgão encarregado de promover a adaptação do organismo ao seu meio ambiente físico e social. A tese central defendida pelos teóricos do ego é que o indivíduo é capaz de estabelecer sólidas e dinâmicas relações com o meio em que está inserido.

As inúmeras funções integrantes do sistema egóico fazem dele um aparato de adaptação por excelência. E a este mesmo ego que compete ainda a tarefa de, no decurso do processo de desenvolvimento e maturação, submeter as forças "impulsivas instintivas" do id ao seu poder de comando e controle. Requisito prévio necessário a toda adaptação bem-sucedida. No dizer de Hartmann: "A submissão social é uma forma especial de obediência ao meio ambiente e implica o conceito de adaptação" (1962, pp. 47-8).

O conceito de funções autônomas primárias e secundárias do ego figura como central na obra de Hartmann, tendo sido retomado por todos os teóricos afiliados a este ramo americano de psicanálise, funções estas postas a serviço da adaptação e, portanto, a serviço de controle do id.

O inconsciente, à luz de uma primazia conferida aos processos racionais, ficou convertido em reduto de tendências instintivas irracionais desajustadas. Lugar da des-razão, do caótico, do sem governo e sem lei. Em outras palavras, o inconsciente ficou reduzido ao patológico, já que identificado ao irracional.

Para os teóricos adoradores do ego, foi absolutamente inalcançável supor um lugar de ordem e de organização que não fosse levado a cabo pelo ego consciente. Isto os conduziu a lançar o inconsciente no campo do real orgânico, na justa medida em que, para estes mesmos teóricos, o id corresponde à parte tanto inata quanto irracional da personalidade.

De acordo com essa concepção segundo a qual o ego é um órgão de adaptação, a escola americana de psicanálise desenvolveu a noção de que o recalque é uma função que se desenvolve em obediência às determinações sociais, entrevistas como tão imperiosas quanto necessárias. Nesta linha de pensamento, o recalque é definido como um mecanismo funcional do ego; uma entre tantas outras de suas funções postas em curso contra as tendências primitivas do id, objetivando pôr em marcha as tendências adaptativas requeridas pela relação do indivíduo com a sociedade.

O recalque é, pois, o resultado da relação do indivíduo com o seu meio social, constituindo um fator, ainda que precário, de adaptação. Ele é, portanto, uma função utilitária do ego na sua missão de promover o progressivo ajustamento do indivíduo ao meio.

À questão de qual é a relação que o indivíduo entretém com a sociedade, a teoria do ego responde: uma relação, em princípio, de choque e antagonismo, posta a presença no indivíduo de fortes tendências irracionais ainda não submetidas ao poder de controle e síntese do ego, portanto, não submetidas, ainda, ao processo de adaptação. Concepção esta que recoloca em cena a velha fórmula de uma oposição indivíduo e sociedade. Na seqüência, tratou-se de abrir as vias redentoras resolutivas do conflito, por meio de uma bem fundada e calcada alienação do indivíduo às regras e imperativos presentes no imaginário social.

Não resulta demasiado difícil depreender que se trata de uma teoria do indivíduo, e não do sujeito! De uma teoria da adaptação, e não do desejo! Enfim, de uma teoria que versa sobre universais, e não sobre o singular.

A nova teoria posta em marcha pela corrente americana de psicanálise passou a versar sobre a noção de que o ego, diante do poderio das ditas forças irracionais do id, encontra-se enfraquecido. O ego, quando colocado sob o jugo do id, torna o indivíduo doente, na medida em que este subjugamento assinala a ruptura de seus vínculos com a realidade objetiva, a que se torna inadaptado. A técnica originada e calcada neste suposto passou a consistir no fortalecimento do ego por meio de sua aliança terapêutica com o analista, tido na ocasião como representante legítimo da realidade, como tal, mestre e modelo a ser seguido. O resultado desta técnica, segundo os defensores desta teoria, conduziria ao fortalecimento do ego, tornando-o forte perante o id e colocando-o em posição de exercer seu poder de controle e comando sobre ele. Modo pelo qual o ego passaria de dominado a dominador, de servo a senhor soberano na esfera psíquica.

Sob os auspícios dessa nova escola, pareceria que o ego teria chegado a curar-se da ferida narcísica a ele infligida pelo mestre da psicanálise. Sua chaga aberta teria se fechado. Sob o enfoque que lhe confere a Psicologia Psicanalítica, o ego volta, mais uma vez, a ocupar, como legítimo dono, ao que parece, o lugar de supremacia e de mestre absoluto na atividade mental. A empresa a que os teóricos do ego dedicaram-se, não poupando nenhum esforço, foi restabelecer o ego no lugar do qual a descoberta freudiana o havia desalojado, fazendo-o retornar a seu posto de comando e em perfeita sintonia com a realidade circundante.

Esses são, em síntese, os postulados teóricos norteadores desta neo-escola de psicanálise. Sua versão impressa sobre a psicanálise teve por resultado imediato encobrir a descoberta freudiana, cabendo a Lacan redescobri-la.

Lacan, procedendo à crítica da teoria da autonomia do ego, lembra-nos de que em Freud o inconsciente é uma ordem autônoma em relação ao sistema consciente, sustentando que "a teoria do ego não passa de um enorme contra-senso: o retorno ao que a própria psicologia intuitiva vomitou" (Lacana, 1978, p. 203).

 

CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho procuramos levantar alguns pontos essenciais à teoria freudiana. Num primeiro momento, percorremos os caminhos trilhados por Freud e que o conduziram à descoberta do inconsciente. Isto nos conduziu ao centro das elaborações presentes na primeira tópica. Num segundo momento, detivemo-nos no exame da posição que a segunda tópica ocupa em relação à primeira, estabelecendo o entrelaçamento que entre ambas se opera. Procuramos ainda estabelecer as relações do eu (moi) com a pulsão e com o inconsciente. Isto nos conduziu ao cerne da proposta freudiana contida na segunda tópica e ao modo como nesta o ego se apresenta. Isto é, procuramos proceder à elaboração relativa à posição e estatuto do ego no interior da segunda tópica, pautando-os, posteriormente, pelo modo com que este foi vertido na Psicologia Psicanalítica do Ego

Vimos como Freud foi conduzido a tomar uma posição definida sobre o lugar e estatuto do ego. Sua posição, a nosso ver, não deixa margens para dúvidas. Freud reafirma seu caráter de objeto libidinal narcísico. Em Freud, o ego define-se como um objeto investido pela pulsão sexual, constituindo o objeto privilegiado ofertado ao seu gozo. Cremos ter minimamente estabelecido como a pulsão, na busca de seu gozo, acaba por encontrar um objeto imaginário no qual se ancora: este objeto não é outro senão o próprio eu (moi).

Somos, portanto, remetidos a concluir que a segunda tópica não implica em absoluto um abandono da primeira. Este foi, em todo caso, o posicionamento equivocado tomado pelos teóricos do ego, o que os conduziu a um afastamento progressivo da psicanálise.

A particular leitura efetuada pela Psicologia do Ego a respeito da segunda tópica, conduziu-os a pôr no centro do debate teórico e técnico a categoria conceituai de ego consciente, cuja função última consiste em mediar a adaptação do indivíduo ao meio. Modo pelo qual o ego foi elevado à dignidade de conceito fundamental em torno de que passou a se ordenar tanto a transmissão quanto a técnica da psicanálise, que, calcada na aliança identificatória do ego do paciente ao ego do analista, passou a constituir uma técnica instrumental.

O "escamoteamento" produzido pela Psicologia do Ego com relação ao inconsciente conduziu a uma retomada de definições tão clássicas quanto arcaicas a respeito do ego. Contrária e diversamente à versão cunhada por essa teoria sobre a psicanálise, recolocando em cena a célebre noção de ego unitário, o cerne da descoberta freudiana consistiu numa subversão operada em relação à ordem vigente, situando-se na contramão das teorias que faziam da consciência o centro dos processos subjetivos.

Foi no contexto histórico em que uma certa tradição desviante do dizer freudiano passou a ser dominante no cenário psicanalítico, firmando-se no realojamento do ego como senhor soberano na vida mental e no conseqüente desalojamento do dizer freudiano, que surgiu a figura marcante de Jacques Lacan com o movimento de "Retorno a Freud".

 

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Recebido em março/2001