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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.10 n.19 São Paulo dez. 2005
DOSSIÊ
A mulher que não existe no laço social: um caso de paranóia
The woman who does not exist in the social: interchange: a case of paranoia
Beatriz Helena Martins de Almeida1
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum São Paulo
RESUMO
Neste artigo, a partir do recorte clínico de um caso de paranóia atendido em acompanhamento terapêutico, busquei, por meio do referencial teórico da Psicanálise de orientação lacaniana, localizar os mecanismos presentes no desencadeamento e saída da crise, com a finalidade de orientar o tratamento possível em direção ao laço social. Privilegiei a articulação teórica pela vertente da identificação. Procurei demonstrar como a identificação às insígnias paternas sustentou a paciente no laço social por um longo período. O evento traumático desencadeou a dissolução imaginária. O remanejamento imaginário dos significantes, enquanto identificação aos atributos maternos, possibilitou a saída da crise e a estabilização, no entanto foi insuficiente como sustentação ao laço social, indicando a necessidade de um passo a mais em direção ao laço social.
Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico, Psicanálise, Psicose, Paranóia, Identificação, Laço social.
ABSTRACT
In this article, revering to the clinical case of paranoia attended in therapeutic accompaniment, in consideration of the theoretical referential system of Lacans Psychoanalysis, I was locating the mechanisms that are present in the resolutions that lead to the exit of the crisis and like this, direct the treatment in direction of a social interchange. I emphasised the theoretical articulation of the identification. I tried to demonstrate like the identification to the paternal attributes supported the patient in the social interchange for a long period. The traumatic event then advanced the imaginary dissolution. The imaginary rehandling of the signifiers, ones identified to the motherly attributes, made the exit of the crisis possible and caused the stabilization. However, it was insufficient to sustain the social interchange and indicates the necessity of a step more towards it.
Keywords: Therapeutic accompaniment, Psychoanalysis, Psychosis, Identification, Social interchange.
O acompanhamento terapêutico é uma estratégia clínica que se presta ao atendimento de patologias mentais severas, dentre as quais podemos destacar as psicoses, em que, em geral, observa-se o constrangimento do laço social. Estratégia clínica que, nascida a partir dos pressupostos da Reforma Psiquiátrica, visa a reinserção social como alternativa às práticas asilares de tratamento da loucura. O caráter refratário da psicose ao laço social exige, para além de ações de cidadania no âmbito social, a atenção clínica como fundamento para emergência do sujeito na psicose.
Foi como acompanhante terapêutica, buscando respostas para os impasses da clínica com psicóticos, que me encontrei com a psicanálise.
Neste artigo, apresento um recorte clínico de um caso de paranóia, atendido em acompanhamento terapêutico, buscando, por meio do referencial teórico da Psicanálise, localizar os mecanismos presentes no desencadeamento e saída da crise, com a finalidade de tentar articular o seu tratamento possível em direção ao laço social. Devo salientar, que privilegiei nesse trabalho uma articulação pela vertente da identificação.
Carlota, em sua juventude, destacou-se por suas ações no Movimento Estudantil. Foi excelente musicista e uma professora inteiramente dedicada a entender como a criança aprende.
Suas teorias sobre a aprendizagem infantil tiveram um caráter de vanguarda para sua época. Carlota entendeu que "o ser é corpo e a aprendizagem é um processo total, que integra a cabeça e o corpo, que deve ser vivenciado pelas crianças por meio dos cinco órgãos do sentido e das sinapses decorrentes da percepção, preocupando-se com a respiração, a nutrição e o movimento". Preocupou-se em oferecer um ambiente propício para que as crianças experimentassem ativamente o processo de aprendizagem, não tolerando a palavra ensino, que localiza o professor como detentor do saber, "excluindo" a criança do processo. Pregou a transdisciplinaridade e combateu as práticas de avaliação que inibiam a aprendizagem.
Pesquisou, estudou, estabeleceu relações, demonstrou e aplicou suas idéias, porém nunca escreveu a respeito, incomodando-se sobremaneira com qualquer demanda que tenha recebido nesse sentido, reclamava: « - peçam aos doutos », indicando sua impossibilidade de responder a partir da posição de autora.
Carlota achava que seus pais foram "exemplares". O pai tinha uma personalidade muito forte e jamais levava "desaforo" para casa, sendo extremamente correto e eficiente em tudo o que fazia. A mãe era uma mulher perfeccionista e autoritária, que exigia das filhas a limpeza da casa em dias programados, fiscalizando minuciosamente a qualidade do serviço; era excelente dona de casa e fazia crochê com perfeição.
A morte acidental de um filho adolescente desencadeou uma crise, que se fez notar na escola em que ela trabalhava e levou a direção pedagógica a sugerir-lhe uma licença médica e a afastá-la de suas atribuições como professora.
Carlota não aceitou essa decisão, resistiu como pôde, procurou apoio no sindicato e em outras entidades, porém sem sucesso. Tentou fazer uma denúncia na imprensa, mas não lhe deram crédito.
Os anos seguintes foram marcados por alguns episódios alucinatórios e delirantes que acabaram restringindo paulatinamente sua circulação social, culminando num isolamento em seu apartamento, de onde não saía há 12 anos.
No momento em que comecei a atendê-la, permitia apenas a entrada do marido, das pessoas da família ou muito próximas, o que acarretava inúmeros desconfortos em termos da manutenção dos equipamentos da casa.
Mantinha todos os buracos de seu apartamento fechados. Colou papel kraft nas janelas, teceu cortinas de crochê, tapou as tomadas e os ralos e não atendia ao telefone, nem ao interfone.
Mostrou-me o banheiro e indicou o ralo coberto, contou-me baixinho que os "japoneses" faziam com que saísse um gás do ralo que lhe fazia muito mal. Sofreu com eles o que os judeus sofreram com os nazistas, e alertou-me que se eu contasse para alguém o que havia visto, eles me matariam.
Carlota contou que perdeu sua cidadania quando foi impedida de trabalhar, teve sua identidade e carteira de trabalho cassadas e por isso não podia sair à rua. Perguntou-me se eu sabia o que acontecia a uma pessoa que sai sem documentos: os policiais pediriam os documentos, e como ela não os possuía, sentenciariam: « recolham a vadia ». Ela preferiu ficar em casa, a passar por vadia, por vagabunda.
Ao longo dos atendimentos, relatava suas teorias sobre a aprendizagem e descrevia episódios em que fora perseguida, injustiçada e cerceada ao longo de toda a sua vida, o que atribuía ao fato de ser mulher e uma insignificante professorinha. Com freqüência dizia: _ « Beatriz, a mulher não existe, o mundo é dos homens », referindo-se ao poder econômico.
Carlota dirigiu a mim uma questão: _ « Qual você acha que é a relação entre o meu empenho na aprendizagem das crianças e as cacetadas e a homada? »
As cacetadas referiam-se a um episódio em que ela estava passando na rua e uma velha lhe deu uma cacetada na cabeça, e não contente ainda deu outra. Já a homada referia-se a um episódio em que, saindo de seu prédio, percebeu vários homens à sua volta, impedindo que ela passasse, a partir do que concluiu: _ « Se não posso sair, então é o confinamento, pois muito bem, eu prezo muito a vida, a vida é bela, o amor é lindo, confino-me ».
Ela deixou claro que o "confinamento" foi uma reação em defesa à própria vida, já que se viu em risco.
Passou a dedicar-se aos afazeres da casa e aos cuidados com uma alimentação saudável, de maneira a controlar a saúde e o metabolismo das pessoas que comiam em sua casa.
Carlota disse que passou a ser uma "mulher coisa", uma "mulher coisinha", e me perguntou: _ « O que você prefere: ser uma mulher vaquinha de presépio ou uma mulher coisinha? Para mulher não tem outra opção ».
Os "japoneses" apareciam freqüentemente como elemento perseguidor em seus delírios. Com medo, sempre fazia mímica para referir-se a eles, puxando o canto dos olhos. Dizia que os "japoneses" tramavam tudo na surdina e iriam dominar o mundo.
Constantemente reunia sinais que comprovavam seus receios. Tinha amigas que moravam em prédios construídos pelo "Takaoka", que sofreram, adoeceram e morreram. Notou que seus alunos que comiam Miojo ficavam com muito chulé. Tinha uma cunhada casada com japonês, que acreditava ter roubado seu apartamento. Entendeu que eles sofreram com a bomba atômica e que, portanto, queriam vingar-se do mundo; no entanto não entendia o que isso concernia a ela.
Depois de vários anos do início dos atendimentos, Carlota recordou-se de uma cena, que parece conferir uma nova significação em sua construção delirante. Exclamou surpresa: _ « Agora entendi, nunca tinha pensado nisso antes ». Uma aluna sua, pequena e "japonesa", precisou ir ao banheiro, mas como tinha medo de ir sozinha, Carlota precisou acompanhá-la. No banheiro, a menina disse que não conseguia subir a calcinha e Carlota precisou ajudá-la. Nesse momento, entrou a encarregada da limpeza. Carlota entendeu que essa mulher "de cabeça suja" achou que ela estava abusando sexualmente da menina e relacionou que algumas perseguições que sofrera na escola onde dava aulas foram devido às acusações que essa mulher deveria ter feito. Sentiu-se pega numa armadilha, que fora tramada pelos pais"japoneses" da menina. Entendeu que a menina fora instruída a agir daquela forma para que ela fosse acusada de depravação sexual.
Muitas vezes entendeu que as pessoas insinuavam que tivesse comportamentos sexualmente duvidosos, o que a ofendia sobremaneira, fazendo questão de salientar seu caráter moral inquestionável.
Depois de vários anos, recontou o episódio da "homada", inferindo um conteúdo sexual: _ « Homens cercando na rua, onde já se viu? Eu nunca provoquei, não me comportei de uma forma que eles se sentissem convidados a vir para cima de mim; nunca na minha vida, eu, uma senhora, eu já era avó. Veio um, e outro, e outro, e eu não podia passar, se eu fosse para um lado, um ia, se eu fosse para outro lado, outro ia ».
Perguntei o que ela fez: _ « Eu parei e encarei; então eles abriram passagem. Não dá para aceitar um negócio desses. Eles me confinaram, estou confinada ». Contou que em seguida vieram as cacetadas e o dia em que tropeçou na rua e que, na mesma época, sua irmã morrera internada num hospital psiquiátrico.
Sobre o abuso sexual dos homens sobre as mulheres, ela esclareceu que na puberdade começa a ejaculação para os meninos e a menstruação para as meninas, inferindo uma equivalência entre esses fenômenos. Acrescentou que esses acontecimentos são naturais e sem problemas, mas que a indústria alimentícia fabrica alimentos afrodisíacos, causando excesso de libido, de maneira a provocar que os meninos abusem das meninas.
Ao mesmo tempo em que foi reconstruindo sua história, Carlota empenhou a árdua tarefa de limpeza de armários e estantes, jogando fora muitas coisas significativas. Fez todo um trabalho de rememoração por meio das lembranças que essas coisas iam lhe trazendo. Contou histórias sobre sua vida, construiu algumas respostas para alguns enigmas, estabeleceu relações entre fatos e, ao final de alguns encontros, dizia: _ « Hoje você me conheceu melhor ».
Foi nesse contexto, decorridos alguns anos em seu tratamento, que Carlota passou a falar sobre as mortes em sua família: do pai, das irmãs e do filho. Contou que seu pai morrera de maneira trágica, atropelado, na época em que ela participava ativamente do Diretório Acadêmico em sua juventude. Um dirigente da faculdade, "japonês", alertara seu pai sobre as atividades políticas que ela desempenhava; o pai revidou dizendo que "ela era filha de um homem que já havia afastado um diretor de faculdade". Carlota entendeu que a morte do pai foi provocada por esse "japones". Sentindo-se culpada, entendeu que ela era concernida no "assassinato do pai", assim como no "assassinato das irmãs", e também no "assassinato do filho", embora não encontre motivos justificados para tais fatos.
Depois de sete anos de tratamento, ainda não saía de seu apartamento, mas melhorou a relação interpessoal com os familiares, voltou a falar ao telefone, passou a permitir a entrada de técnicos para pequenos reparos, deixou instalar o fogão, trocou a geladeira, tirou o papel kraft das janelas, destapou alguns ralos e mantinha a casa mais aberta.
Para designar a transferência no caso, tomo o neologismo "inimigona". Destaco o significante "inimigona" com o valor de neologismo porque condensa inimiga e amiga: « Você é minha inimigona! », dito num tom muito afável e amistoso, como se dissesse: "continue vindo como minha inimiga, para que eu possa recebê-la". É possível estabelecer uma relação com o significante que permitiu a instalação da transferência no início do tratamento. Ela considerou que minha presença em sua casa era uma "imposição" e eu concordei, tomando o cuidado de tranqüilizá-la quanto às minhas intenções, assim ela pôde consentir minha presença em encontros regulares, para os quais sempre fui esperada. Ou seja, ela não pôde assumir uma posição de sujeito, mas de assujeitada à imposição de gozo do Outro.
O caso demonstra que a consistente identificação com "A Professora", sustentou Carlota no laço social por muito tempo, e que o evento traumático "morte do filho" desencadeou uma crise, incrementada pelo afastamento de seu cargo. Que mecanismos e qual indicação clínica é possível deduzir daí?
Para avançar em relação a essa questão, proponho distinguir a identificação com "A Professora" localizada no momento anterior à crise, da identificação observada no momento após a crise, em que Carlota assume o papel de dona de casa dedicada. O percurso acadêmico e profissional converge à identificação com "A Professora" e refere-se à identifi cação às insígnias paternas, portanto, identificação aos significantes do pólo do Ideal de eu. E a identificação com a dona de casa refere-se à identificação aos atributos maternos, como uma identificação do tipo eu ideal.
Se considerarmos que a passagem pelo complexo do Édipo implica a ordenação do Ideal do eu e do supereu, enquanto função no sujeito, como é possível articularmos a identificação às insígnias paternas presentes no Ideal de eu, numa estrutura psicótica?
Observa-se, na clínica das psicoses, especialmente da melancolia e da paranóia, a manifestação dos significantes do supereu, que comparecem como delírio de injúria e delírio de perseguição. Notamos a presença maciça, sobretudo nas crises, de um supereu imediato, percebido pelo psicótico como estranho, vindo de fora, situado nos outros, ou ainda, comparecendo enquanto alucinação verbal.
Na paranóia, a experiência clínica permite observar a manifestação da identificação aos atributos paternos em termos de significantes, que comparecem como significantes encarnados, não dialetizáveis, diferente do que ocorre na neurose. Não basta que haja significantes para que haja simbólico. Daí Carlota acreditar-se "A Professora" que falta aos homens, a única que detém o saber pedagógico necessário à Humanidade.
O Ideal do eu nas neuroses permite a assunção da posição sexual na partilha entre os sexos. Posicionar-se como homem ou mulher. Reconhecer a diferença, ou seja, reconhecer o feminino enquanto Outro sexo e consentir a castração.
Para que isso ocorra, é necessário que o significante Nome-do-Pai _ não um significante qualquer _, se inscreva no campo do Outro, significando o enigma do Desejo da Mãe, produzindo como efeito a significação fálica; operação essa, metafórica: um significante no lugar de outro produzindo uma significação nova. A significação fálica rearranja o imaginário em termos da identificação ao pai: ter o falo. O falo enquanto significante da falta, o que falta na imagem do Outro, pode ser substituído, representado, funciona como um significante intercambiável. O pai que entra em função nessa operação é o pai simbólico. Há uma reorganização psíquica em torno da significação fálica que estrutura o sujeito enquanto dividido, organiza um discurso e possibilita o laço social.
A identificação ao pai tem sua matriz no imaginário, mas se efetiva em termos significantes, trata-se de uma identificação aos significantes do pai, que Lacan (1957-1958) chama de"insígnias do pai".
Sabemos que nas psicoses, ocorre a foraclusão do significante Nome-do-Pai no campo do Outro. Podemos dizer que há insígnias do pai _ enquanto identificação a atributos paternos _ nos psicóticos?
Nas psicoses, quando o sujeito é interpelado a responder a partir de uma posição simbólica e a metáfora paterna não operou, há o desencadeamento da crise e o sujeito se encontra com o nada, nada de significação, é a perplexidade, momento de extrema angústia. O que foi foracluído no simbólico retorna no real, um significante faz-se ouvir no real e daí a conseqüente inundação do imaginário e o remanejamento dos significantes. No surto psicótico, o Nome-do-Pai foracluído no simbólico retorna como emergência de pai real.
É necessário agarrar-se aos significantes enquanto tentativa de saída da crise. De onde vêm os significantes? Os significantes disponíveis para o sujeito são os significantes de sua história, os mesmos que fazem o tecido do supereu e do Ideal do eu, porém não mediados, ou seja, não ordenados pela significação fálica. Do lado do supereu, os significantes comparecem nos fenômenos de injúria e do lado do Ideal do eu, ocorre uma identificação aos atributos paternos, uma identificação total, encarnada, colada ao significante, uma identificação ao mesmo tempo total e frágil, que carece de efeito metafórico. Aqui se trata de agarrar-se ao pai imaginário para se fazer ser.
Se nas neuroses o que possibilita o efeito metafórico é a inscrição do significante Nome-do-Pai no campo do Outro, o que possibilita o efeito metafórico nas psicoses como suplência ao Nome-do-Pai na metáfora delirante?
O pai enquanto simbólico barra o gozo da mãe _ primeiro representante do Outro (lugar dos significantes). Nas psicoses trata-se, também de barrar o Outro. Barrar no sentido de desinflar o gozo do Outro absoluto e localizar no Outro os significantes que permitem a identificação às insígnias paternas que possam conferir significação à existência do paranóico, ainda que seja uma significação unívoca.
O Outro pode ser suportado pelo analista. O analista se oferece como corpo na clínica das psicoses, num momento preciso que é o da saída da crise. Oferece-se como corpo especular, onde o psicótico pode apoiar-se no sentido da integração imaginária do eu e oferece-se como corpo de significantes, de onde, após o rompimento da cadeia significante, o psicótico pode emprestar as insígnias que favorecem a saída da crise. Num momento posterior, quando o acesso aos significantes foi retomado, o analista posiciona-se como secretário, como testemunha que pode avalizar a significação em que o psicótico está tentando se sustentar, no sentido de orientar uma metaforização que funcione como suplência para a significação fálica que não se inscreveu, permitindo um basteamento na imaginarização incessante.
A afirmação de Carlota que "a mulher não existe", inversamente a Lacan (1975), denota literalmente a não inscrição do feminino enquanto diferença entre os sexos. Ao afirmar que "a mulher não existe e que o mundo é dos Homens", Carlota afirma a relação sexual, ou seja, a mulher existe para completar o Homem, formando o casal: explorador/explorada, perseguidor/perseguida. Ela faz par com a criança, enquanto excluídos do acesso à economia do gozo fálico.
A crise de Carlota foi desencadeada pela morte do filho, por não possuir recursos simbólicos para significar tal evento, lançando Carlota no encontro com o nada de significação, com a perplexidade. A conseqüência foi o retorno no real do que foi fo racluído no simbólico, que se manifestou em fenômenos alucinatórios verificados nos episódios das "cacetadas" e da "homada", dentre outros.
O afastamento do cargo de professora fez vacilar a identificação às insígnias paternas que sustentavam a existência de Carlota, exigindo um remanejamento significante em termos de identificação. Confinada em seu apartamento, caçada em sua cidadania, anulou sua existência e concluiu que a mulher não existe. É nesse panorama que surgiu a assunção da "mulher coisinha", como mulher domesticada pelo homem, denotando a posição de gozo, objeto de gozo do Outro, daí a feminização, presente no efeito de "empuxo a mulher". O empuxo a mulher é equivalente à ausência da significação fálica.
É curioso notarmos que a saída da crise como "mulher coisinha", fez recurso aos emblemas maternos: fazer crochê (para tapar buracos), costurar, cozinhar, limpar; no entanto, observa-se no caso que essa identificação aos atributos maternos enquanto eu ideal, contribuíram para mantê-la fora do laço social. Embora tenha sido de vital importância para retirá-la da crise e instalá-la num lugar frente ao Outro, o "empuxo a mulher" parece insuficiente para dar conta da questão do laço social no tratamento possível da paranóia. Será necessário investir em algo da ordem da identificação às insígnias paternas, como professora e musicista, para orientá-la na direção de um laço social possível?
É curioso notarmos que o recurso à identificação com "A Professora" traz em seu bojo, "a vadia, a puta, a mulher vaquinha". Também na paranóia, a identificação às insígnias paternas comparece tanto no pólo do Ideal do eu quanto no pólo do supereu.
Podemos localizar "A Professora" como identificação às insígnias paternas no pólo do ideal do eu, a "mulher doméstica e submetida aos caprichos do homem" como identificação aos emblemas maternos no pólo do eu ideal e a "vadia acusada de comportamentos duvidosos"como presentificação dos significantes paternos do pólo do supereu.
Apostar na identificação às insígnias paternas como professora e musicista na vertente do ideal de eu, e procurar deflacionar a importância da emergência dos significantes do supereu que comparecem como exigência de comportamento moral, pode ser uma estratégia para re-abrir caminho em direção ao laço social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Lacan, J. (1955-1956). O Seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1988. [ Links ]
Lacan, J. (1957-1958). O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1999. [ Links ]
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Soler, C. (2004). Estabilización de la psicosis. In El inconciente a cielo abierto de la psicosis. Buenos Aires: JVE ediciones. [ Links ]
Tenório, F. (2001). A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro, RJ: Rios Ambiciosos. [ Links ]
Recebido em agosto/2005
Aceito em novembro/2005
1 Psicóloga, psicanalista e acompanhante terapêutica. Membro fundadora da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum São Paulo. Supervisora clínica do Departamento de Acompanhamento Terapêutico do Instituto de Desenvolvimento e Pesquisa da Saúde Mental e Psicossocial A Casa.