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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.14 n.26 São Paulo  2009

 

DOSSIÊ

 

Abuso sexual infantil masculino: o gênero configura o sofrimento e o destino?

 

Male child sexual abuse: is the gender a sign of suffering and fate?

 

Abuso sexual infantil masculino: ¿el género configura el sufrimiento y el destino?

 

 

Tânia Mara Campos de AlmeidaI; Maria Aparecida PensoII; Liana Fortunato CostaIII

IAntropóloga, Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB). tmara@pos.ucb.br
IIPsicóloga, Terapeuta conjugal e familiar, Psicodramatista, Professora no Curso de Graduação e no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB). penso@ucb.br
IIIPsicóloga, Terapeuta conjugal e familiar, Psicodramatista, Docente Permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura (PCL/IP/UnB). lianaf@terra.com.br

 

 


RESUMO

O abuso sexual infantil masculino é estudado na perspectiva de gênero e transgeracional. Apresentamos um estudo de caso de um menino violentado desde os 10 anos. O contexto: Grupo Multifamiliar. Instrumentos: observações das interações, diálogos e entrevistas semiestruturadas. Informações: organizadas a partir da história transgeracional e de violência, da construção do Genograma e do Ciclo de Vida Familiar, dos dados dos atendimentos e da situação atual da família. Os resultados indicam um contexto de carências múltiplas, uma organização familiar com conflitos nas tarefas de proteção, bem como o alcoolismo e a violação sexual vistos como elementos configuradores da masculinidade privilegiada.

Descritores: violência sexual contra meninos; abuso sexual; gênero; transgeracionalidade.


ABSTRACT

Male child sexual abuse is hereby studied under the gender and transgenerational perspective. We present a case study of a boy who started to suffer sexual violence when he was ten years old. The context: Multifamiliar Group (MG). The instruments: observation of the interactions, dialogues and semi-structured interviews. Informations: organized as from the violence and transgenerational history, construction of the Genogram and of the Family Life Cycle, of the data of the attendances and of the present situation of the family. The results indicate a context of multiple needs; a familiar organization with conflicts regarding the protection duties as well as alcoholism and sexual rap seen as elements of a privileged malehood.

Index terms: sexual violence against boys; sexual abuse; gender; transgenerational.


RESUMEN

El abuso sexual infantil masculino es estudiado en la perspectiva del género y de la transgeracionalidad. Se trata de un estudio de caso de un niño violentado a los 10 años. El contexto: Grupo Multifamiliar. Los instrumentos: observación de las interacciones, diálogos y entrevistas semi-estructuradas. Las informaciones: historia transgeracional e del abuso, construcción del Genograma y del Ciclo de Vida Familiar, datos de los atendimientos y situación actual da familia. Los resultados indican un contexto de carencias múltiples; una organización familiar con conflictos en las tareas de protección; alcoholismo and violación sexual como elementos configuradores de una masculinidad privilegiada.

Palabras clave: violencia sexual contra niños; abuso sexual; género; transgeracionalidad.


 

 

A violência sexual contra crianças e adolescentes vem sendo estudada e discutida no país há décadas, levando-se em conta quase que exclusivamente a característica etária e socioeconômica desses sujeitos ou, ainda, o ferimento da honra familiar. Em geral, quando a violência ocorre dentro das famílias ou entre pessoas conhecidas, a ênfase das reflexões recai sobre os efeitos nocivos para as fases posteriores do desenvolvimento psíquico-emocional dos sujeitos, bem como sobre os reflexos nas suas interações sociais adultas, havendo inclusive uma série de estudos que indica a existência de uma dinâmica transgeracional, na qual se observa a reincidência desses atos abusivos junto aos próprios filhos ou crianças/adolescentes próximos daqueles que os sofreram no passado (por exemplo: Costa, Penso & Almeida, 2007; Penso & Neves, 2008).

Pouco se fala sobre a variação das repercussões psíquicas, sociais e familiares da violência sexual em relação à diferença de gênero dos sujeitos abusados (exceção: Saffioti, 1997, 2002; Segato, 2003). Afinal, dentro do arcabouço de nossa cultura machista-patriarcal, recaem olhares e sentimentos aos meninos abusados que os impedem de retornar à condição de "homens", restando-lhes o homossexualismo praticamente como um destino, ao mesmo tempo que prevalecem comandos socioafetivos às meninas de que teriam respondido à sua "natureza" precocemente, o que as levaria mais facilmente à prostituição ou à maior permissividade sexual.

Tomando por base nossa experiência em intervenções psicossociais em casos de tal ordem, voltamo-nos para o aprofundamento teórico desses efeitos variados da violência sexual pela perspectiva de gênero e à indicação de ações distintas frente a eles. Portanto, este texto apresenta um estudo de caso de abuso sexual de um menino que começou a ser violentado aos 10 anos e tinha 13 anos na ocasião da pesquisa

Sabemos que o abuso sexual masculino é muito menos noticiado e observado e, consequentemente, menos compreendido. A literatura aponta para o fato de que o abuso sexual cometido contra meninos é menos relatado do que o cometido contra meninas, ou então que o abuso sexual dos meninos não tem recebido a mesma atenção pública que o abuso sexual das meninas (Sebold, 1987). Santos (2007), ao pesquisar pastas especiais na Vara da Infância e Juventude do DF, encontrou 47 denúncias de abuso sexual referentes ao segundo semestre de 2007. Desse total de denúncias, 41 se referiam a meninas e somente 6 a meninos. Martins e Ferriani (2003) fizeram um estudo de caso, em 1999, em um abrigo de Ribeirão Preto (SP) e verificaram que, entre 8 crianças abrigadas que haviam sofrido abuso sexual, 6 eram meninas e 2 meninos. Kristensen, Flores e Gomes (2001), ao utilizarem literatura norte-americana e resultados de uma pesquisa realizada em Porto Alegre (RS) em seu estudo, apontam a mesma proporção. Em outras pesquisas os resultados se repetem, o que torna desnecessário referirmo-nos a elas.

A literatura, de forma geral, apresenta muito mais títulos sobre o abuso sexual de meninas e é evidente a maior dificuldade em acessar publicações sobre o abuso sexual masculino infantil. Esta observação nos faz pensar que, nos casos que dizem respeito ao sexo masculino, o tema parece ser tratado com muito mais reserva do que quando ocorrem com meninas. Desde aí já temos uma perspectiva de gênero moldando até mesmo o acesso à informação. Sebold (1987) aponta que a associação entre abuso sexual de meninos e homossexualidade não apenas implica em vergonha e estigma social, mas também constitui outra razão para o número reduzido de denúncias e a pouca informação disponível. A causa mais dramática para o pouco conhecimento que se tem sobre a violência sexual contra meninos vem, segundo o autor, das preocupações homofóbicas sobre o futuro do menino. Por um lado, o próprio menino tenta convencer outros meninos de que não é gay ou que é extremamente másculo e assume muitas condutas de sedução de meninas. De acordo com nossas observações mais diretas, as mães tentam esconder da família e da vizinhança por medo da discriminação que o menino sofrerá e, em se tratando dos pais, há uma tentativa de negar o evento por meio da instalação de uma regra de não se falar sobre o assunto, nem mesmo com profissionais.

Sebold (1987) ainda nos aponta que questões de gênero configuram a visibilidade desse tipo de violência. Este autor afirma que o sexo masculino foi ensinado a ser "durão", suportando mais agressões sem pedir ajuda. Neste quesito "pedir ajuda", as meninas seriam vistas como frágeis e teriam acesso mais fácil a pessoas que se dispusessem em oferecer apoio. Assim, os meninos acabariam por esperar mais e as situações de abuso tenderiam a se agravar, vindo a chamar atenção somente na ocorrência de casos de extrema gravidade. Esta situação mostra que a concepção de masculino associada à força e à dominação nas relações sociais é construída de forma muito precoce.

 

1. Método

Nosso contexto de acesso às famílias e possibilidade de construção das informações é o Grupo Multifamiliar (GM), que tem lugar num centro universitário de formação de psicólogos clínicos, sociais e organizacionais. Este atendimento é configurado como intervenção psicossocial e fundamenta-se nos seguintes aportes teóricos: (a) da Psicologia Comunitária, visando o trabalho em equipe com diferentes saberes, científicos e populares (Santos, 1999) e o enfoque da Psicologia Social Crítica e Histórica (Lane & Sawaia, 1995), percebendo o ser humano em construção, que é constituído e constitui o meio em que se insere; (b) a Terapia Familiar, tendo a visão de família enquanto sistema, sendo a relação o ponto focal do trabalho, priorizando não o intrapsíquico, mas o interpsíquico, e utilizando os recursos sistêmicos como a circularização e a provocação (Minuchin, Colapinto & Minuchin, 1999); (c) o Sociodrama, em que o grupo é o protagonista e as famílias possuem objetivos comuns, além de se identificarem mutuamente (Moreno, 1993); e (d) a Teoria das Redes Sociais, que enfoca a interação humana com a troca de experiência, desenvolvendo a capacidade autorreflexiva e autocrítica (Sluzki, 1996).

Cada sessão do GM foi planejada numa perspectiva voltada para a intervenção dirigida a grupos, com ênfase nas relações sociais. A organização da reunião seguiu orientação metodológica da sessão psicodramática (Gonçalves, Wolff & Almeida, 1988), que indica três etapas: aquecimento, dramatização e compartilhamento. A adaptação dessa organização resultou em outras etapas: aquecimento, discussão e conclusão. A primeira delas teve por objetivo integrar o grupo e estimular a tarefa. A etapa "discussão" objetivou aprofundar a discussão sobre o tema, desenvolver a capacidade de reflexão sobre o assunto e acolher o sofrimento psicológico advindo das identificações com o tema. A etapa final sintetizou as opiniões sobre o tema discutido, avaliou a aprendizagem sobre ele e formulou sugestões práticas para as famílias. Este atendimento é contínuo e articulado com o encaminhamento judicial, realizado pelo setor psicossocial de vara cível ou criminal, a partir de denúncia de abuso sexual. Consideramos que esta proposta já está apresentada e consolidada em outros estudos (por exemplo, em Costa, Penso & Almeida, 2005).

Nosso estudo de caso constitui-se na história de Lucio1, a qual tivemos acesso por meio de seis situações de coleta de informações: observações realizadas durante um GM; a história transgeracional da família; a construção do ciclo de vida familiar juntamente com o genograma; a história do abuso sofrido pela criança; a narrativa da situação atual da família.

Os instrumentos foram: (a) as observações das interações e os diálogos ocorridos durante o GM; e (b) entrevista semiestruturada que foi realizada durante visita domiciliar, na qual também foram obtidas as informações para a construção da história familiar e subsequente Genograma. O Genograma é definido por Miermont et al. (1994) como um mapa que estrutura graficamente a família ao longo de várias gerações, oferece visualização das etapas do ciclo de vida familiar e os movimentos emocionais ligados a estas etapas.

Procedimentos - os primeiros contatos com a família ocorreram ainda no âmbito da justiça, na perspectiva dos encaminhamentos realizados diretamente pelo setor psicossocial forense local. Os responsáveis pelo projeto de pesquisa, juntamente com auxiliares (alunos de Iniciação Científica, IC), cuidaram dos contatos iniciais. Em seguida, foram realizados os GMs, coordenados por professores e auxiliares. As entrevistas no domicílio se seguiram aos grupos e foram realizadas pelos auxiliares de pesquisa. Tanto as atividades do GM como as entrevistas foram gravadas e transcritas. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da universidade que sediava os GMs, e recebeu o registro nº 027/2005. Foram seguidos todos os preceitos éticos de anonimato e voluntariedade, tendo sido obtida a adesão aos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido por parte dos sujeitos integrantes dos GMs e entrevistados.

A análise das informações seguiu uma proposta de González Rey (2005), numa perspectiva de análise de conteúdo que contém três aspectos essenciais: o processo de construção e o caráter interpretativo das informações, a ênfase no aspecto relacional entre a subjetividade do pesquisador e a produção do conhecimento. Esta proposta configuracional entre os sujeitos envolvidos na pesquisa, assim como a produção de ideias e reflexões, apoia-se na expressão de indicadores, os quais revelam os fenômenos e são unidades processuais que abrangem recortes e ajustes epistemológicos, de acordo com o problema proposto. Os indicadores são produzidos durante o próprio processo de investigação e análise, constituindo-se em ferramentas essenciais para a definição das zonas de sentido. As zonas de sentido são a integração dos indicadores, produzindo sentidos e compondo conjuntos de interpretação. Em termos práticos, consideramos os indicadores como as falas, os diálogos, as observações e as informações contidas no Genograma.

Para a finalidade de possibilitar uma discussão numa perspectiva interacional e transgeracional, as informações foram primeiramente organizadas da seguinte forma: (a) história transgeracional, (b) construção do Genograma, (c) construção do Ciclo de Vida Familiar, (d) história do abuso, (e) dados dos atendimentos realizados e (f) situação atual da família. Após esta primeira organização é que se procedeu à interpretação da história do abuso sexual de Lúcio, numa perspectiva transgeracional e de gênero, resultando em zonas de sentido apresentadas adiante. A seguir, descrevemos as observações e informações obtidas, sobre as quais construímos as zonas de sentido.

 

2. Observações ocorridas durante o grupo multifamiliar

No primeiro encontro, cujo tema era "cuidado", compareceram Lúcio e a mãe. Lúcio escreveu sobre o tema, citando que falta de cuidado é deixar o filho com uma pessoa estranha ou, até mesmo, com uma pessoa conhecida sem saber o que está acontecendo.

No segundo encontro, Lúcio e a mãe retornaram. Nesse dia, o aprofundamento do caso foi realizado com base no tema "proteção". A mãe de Lúcio disse que não deixa mais o filho jogar bola na quadra porque tem medo que algo lhe aconteça devido à família do abusador morar perto de sua casa. Disse que o marido acha importante e natural que Lúcio siga com suas atividades cotidianas e normais para a idade, mas que ela sente muita dificuldade para confiar no filho novamente, pois acha que ele está mentindo. Emocionada, disse que, às vezes, sente raiva ao olhar para o filho, pelo fato de ele ter escondido por tanto tempo fatos graves. Disse também que não gosta de contar sobre o ocorrido a qualquer pessoa: "Eu só conto para as pessoas que sabem guardar segredo". Poucas pessoas da família e apenas uma amiga sabem o que aconteceu.

No terceiro encontro, o tema proposto foi a proteção numa dimensão transgeracional. A mãe disse que estava mais tranquila, pois o agressor teve a prisão preventiva decretada, e sentia-se confiante na possibilidade de ele ser julgado e permanecer um bom tempo na cadeia. Nesse dia, também foi confeccionado o Genograma, solicitando ao adolescente que identificasse os conflitos familiares. Lúcio colocou-se como pertencendo à sua família, juntamente com o pai, a mãe, a irmã e a avó. Reconheceu que sua mãe tem uma relação de cuidado para com ele e sua irmã. Disse que a avó e a irmã são muito unidas, mas que sua avó "é muito chata e não me deixa fazer nada". Quando indagado sobre seu melhor amigo, ele respondeu que era seu pai e seria para ele que pediria ajuda.

No quarto encontro, compareceram Lúcio, a mãe e a irmã. Nesse dia, a proposta de trabalho era o projeto de futuro. A mãe de Lúcio chorou muito, relatando que havia comparecido ao interrogatório do acusado no dia anterior e que o juiz havia lido o depoimento do filho, no qual ele descreveu com riqueza de detalhes o que o tio fez. Foram coisas absurdas, e ela não conseguia entender como um ser humano era capaz de fazer aquilo, que nunca pensou que aconteceria isso com ela. Teve que ficar em silêncio, ouvindo o depoimento do tio, que mencionou ser incapaz de fazer tais crueldades com Lúcio e que o considerava um filho. Isto a deixou mais revoltada, mas conseguiu forças para enfrentar a situação por estar sendo acompanhada pelo GM. Relembrou, então, que uma vez desconfiou que algo estivesse acontecendo porque o abusador tratava seu filho de maneira muito diferente, porém, todos diziam que ela era maliciosa e que eram fantasias suas. Relatou, também, que não conseguia dormir e que só não havia feito alguma besteira até então porque os filhos contavam somente com ela e com o pai. Por sua vez, Lúcio relatou como imaginava ser seu futuro, com quantos anos iria se casar, quantos filhos teria, qual seria sua profissão e onde iria morar.

No quinto e último encontro, vieram Lúcio, a mãe e a irmã. O objetivo desse encontro foi a finalização dos temas discutidos anteriormente. A mãe contou que havia ido depor e não aceitou a participação do acusado e nem de sua família no depoimento. Lúcio também foi ao Fórum e confirmou as acusações que já haviam sido relatadas anteriormente. Porém, a mãe afirmou que, com relação aos cuidados do filho, ainda se sentia muito insegura, pois, se ele saísse para algum lugar, ela ficaria incomodada, e se ele ficasse em casa, ela acharia que ele não está bem e que estaria pensando no que aconteceu. Assume que vigia-o todo o tempo e que ainda considera difícil estabelecer limite entre a proibição e a permissão para sair. Lúcio, no subgrupo com outros adolescentes, folheava revistas e, num determinado momento, apontou uma fotografia de mulher e disse que, para ser sua futura companheira, a moça teria que ser decente. Também apontou três figuras masculinas como sendo bonitas, mas ficou meio constrangido por ter feito esta escolha. Quando mãe e filho se reuniram antes do término da sessão, Lúcio perguntou à mãe se ela o deixaria namorar; ela respondeu que, dependendo da menina, sim. Lúcio, então, insistiu com a mãe que, ali, ela não podia mentir.

 

3. História transgeracional da família

A mãe de Lúcio migrou para o Centro-Oeste com 7 anos de idade. Teve uma criação rígida, mas aprendeu a ser honesta e leal graças a essa educação. Tanto seu pai quanto sua mãe lhe proporcionaram carinho, na medida do possível eram atenciosos, mas não lhe davam muita liberdade. A avó materna foi contra a união com o pai de Lúcio, porque ele bebia. No início do casamento, houve várias separações até ele parar de beber. A família já morou com os avós paternos, em função de dificuldades financeiras, e, desde que ficou viúva, a avó materna mora com a família. A relação de mãe e filha não é boa e, até hoje, quase não conversam sobre o ocorrido com Lúcio. Este ultimamente aproximou-se mais da irmã, mas briga com a avó porque ela não quer que ele saia de casa. A família conta com apoio dos tios maternos.

 

4. Ciclo de Vida Familiar

A formação do casal - Os pais de Lúcio namoraram durante nove meses, quando ela engravidou e resolveram se "juntar". No início da gravidez a mãe quis abortar, mas o pai ameaçou denunciá-la, fato que fez com que ela desistisse da ideia. A gravidez trouxe também o início da diminuição da bebida do pai.

Os filhos pequenos - Após o nascimento de Lúcio, uma tia paterna e o marido vieram morar com o casal para ajudá-los a cuidar do bebê. Pelo fato do marido da sua cunhada beber muito, o pai voltou a beber. Este fato fez com que a mãe voltasse para a casa materna com seu filho, após 15 dias de nascido. Os tios paternos foram embora e a família voltou a se reunir. Devido a dificuldades financeiras, o casal resolveu morar na casa dos sogros. Ficaram lá apenas um ano, pois o pai voltou a beber. A mãe, então, voltou com Lúcio para a antiga casa. O pai insistiu para retomarem a relação, o que acabou acontecendo com a condição de que ele nunca mais voltasse a beber, promessa que foi cumprida até aquele momento.

Os filhos adolescentes - Lúcio tem uma irmã de 10 anos. Os dois mantêm um relacionamento razoável entre si. A mãe está com muitas dificuldades de lidar com esta nova fase da vida dos filhos, principalmente no quesito confiança.

A situação atual da família - Depois dos atendimentos ocorridos no GM, a mãe relata que houve uma melhora no relacionamento entre ela e seu filho, inclusive deixando-o sair sozinho, sob certo controle: "A que horas vai voltar? Com quem está saindo?" A comunicação com o filho melhorou e os dois conversam mais. A mãe relata que, depois do GM, passou a dar mais atenção ao filho, inclusive em termos materiais, pois antes não faltava nada a ele, porque o tio (abusador) dava tudo que ele queria. Em relação ao marido, a mãe relata que este mudou muito, mas não gostava de comentar o ocorrido, o que aconteceu é passado e tem que tocar a vida adiante. Isto não ocorreu com ela, pois ainda sente a necessidade de falar e de alertar o filho sempre, dizendo-lhe que ele não deve confiar nas pessoas. A mãe está usando medicação antidepressiva. Com relação ao tio abusador, antes ela tinha muita raiva, vontade de matá-lo e, hoje, acha que ele é doente.

História do abuso - No final de 2003, a mãe descobriu que seu cunhado abusava de seu filho há 3 anos. O abusador foi casado com sua irmã já falecida. Hoje, ele está preso e alega que ela é interesseira, pois acredita que a denúncia foi realizada na tentativa de ficar com a pensão da irmã. Contou que esse tio abusou de Lúcio e de outros sobrinhos, quando o menino passava um período na sua casa, que aproveitava para sedá-lo e cometer o abuso. Relatou que desconfiou de algo errado por um tempo, o que foi motivado pelo fato do abusador presentear Lúcio, inclusive com um celular, no qual enviava mensagens amorosas para o menino, o que não fazia com os próprios filhos. A mãe mostrou-se aflita com a possibilidade do filho se tornar um abusador, pois comentou-se na delegacia onde foi registrada a denúncia que o menino se tornaria um abusador quando crescesse.

 

5. Discussão dos resultados

A análise destas informações possibilitou a construção de cinco zonas de sentido.

5.1. O dilema da mãe: como voltar a confiar no filho?

Lúcio demorou a falar com a mãe sobre o abuso a que estava sendo submetido e isto lhe trouxe grande ansiedade, fazendo com que esta passasse a desconfiar dele daí em diante, como se ele tivesse sido cúmplice do tio, e não sua vítima. Tal movimento não é excepcional, pois, de acordo com Furniss (1993), meninos abusados têm grandes dificuldades em contar sobre o abuso para suas mães ou, ainda, para outras pessoas do sexo feminino, com receio da quebra da idealização de sua imagem masculina. E, mesmo entre meninas, tem-se a forte característica do "segredo" nessas situações, levando à sua ocultação por tempo significativo e acusações de que eram coparticipantes dos abusadores (Bandeira & Almeida, 1999).

Por outro lado, mesmo após desconfiar que algo estava errado na relação do filho com o tio, a mãe teve dificuldade em acreditar que suas desconfianças fossem verdadeiras. A ambivalência é um aspecto socioafetivo central nas situações de abuso sexual intrafamiliar, observado por Almonte, Insunza e Ruiz (2002), assim como por outros autores. Afinal, os casos envolvem pessoas com vínculo afetivo intenso, pessoas conhecidas ou mesmo com dependência financeira, considerando a realidade dessas famílias com baixa renda, o que também dificulta a quebra do "segredo" em torno dos acontecimentos. Em geral, como na posição ocupada pela tia (por afinidade) de Lúcio ao fazer o flagrante, é alguém externo à unidade familiar que denuncia ou estimula a denúncia (Bandeira & Almeida, 1999).

Essa condição ambivalente também esteve presente no sofrimento da mãe de Lúcio em sua vivência de ter que responder a situações contraditórias: primeiro, foi chamada de maliciosa, porque desconfiou do tio, depois, se sentiu displicente e culpada, porque não percebeu a violência.

"É de não me conformar com o que aconteceu. Eu me sentia culpada, porque eu confiei na casa do tio dele, achava que estava tudo bem. Aí, um culpava o outro porque às vezes ele falava que a culpa era minha, e eu falava que o culpado era ele (o pai), porque eu falava 'não' e ele falava 'sim', mas a gente não sabia o que estava acontecendo."

Concomitantemente, houve e ainda há insegurança e dificuldade dos pais em estabelecer limites claros para a proteção do filho, sem que isso signifique seu aprisionamento e distanciamento do convívio social. Em particular, no abuso sexual masculino, há uma forte atitude de evitação, ambivalência e cumplicidade com relação ao agressor, em função da relevante e dramática significação social contida na denúncia de agressão sexual sofrida por um menino. Ou seja, ao mesmo tempo em que as exigências culturais indicam que o menino deve se separar do universo simbólico da "casa" na idade da pré-adolescência, chegando mesmo a dele se afastar por vários períodos do dia em favor do grupo de amigos e do simbolismo da "rua" (Carvalho, 1990) para tornar-se homem, a mãe se sente responsável pela sua proteção, a qual está mais garantida no interior da "casa". Parece, então, impossível equacionar essa dubiedade sem tensões e ansiedades, especialmente no caso de Lúcio, conforme ficou explícito e possível de ser reelaborar nos encontros do GM.

Esta mãe sempre esteve só no enfrentamento dos fatos que ocorreram com seu filho. Chamou-nos sempre a atenção o desespero presente no seu choro, nas suas lamentações, nas suas expressões de medo e na forma como ela se vinculou ao GM, enfatizando a importância única da oportunidade e do espaço para sua fala.

"O que eu não gostei foi assim, porque começa parecer que o tempo passa voando, acaba, e a gente fica aqui sofrendo, porque a gente sente. Não tem com quem conversar porque não pode expor o assunto com os outros, porque não é todo mundo que é confiável. Aí, eu entrei em desespero eu fiquei sozinha."

Penso, Ramos e Gusmão (2005) e Penso, Costa e Sudbrack (2008), em publicações acerca da triangulação perversa que caracteriza as relações de adolescentes infratores, chamam atenção para as condições de desassistência e solidão que as mães, especialmente aquelas provenientes de situações de baixa renda, vivenciam na tarefa de criar os filhos, quando seus maridos, por alcoolismo, desemprego ou por herança cultural, mostram-se ausentes e alheios ao processo educacional dos filhos, com dificuldades no exercício do papel parental. Podemos nos reportar a esta questão quando refletimos sobre a proteção de Lúcio.

O alcoolismo também é um marcado valor ligado à masculinidade no senso comum brasileiro, haja vista inclusive que há pais que iniciam seus filhos na ingestão de álcool desde cedo e, tal como um rito de passagem para o mundo adulto, existe uma linha muito tênue entre aqueles que caem na dependência, e aqueles que não se tornam dependentes da bebida e conseguem fazer uso do álcool mantendo-se no controle de parar de beber quando quiserem. Estes últimos são os considerados homens verdadeiros (Soares, 1999).

5.2 A reação do pai

A mãe trouxe uma preocupação que foi seu medo da reação do marido: "Ele pode matar o abusador." Esta afirmação pode nos levar a pensar em um pai presente, preocupado e muito ligado ao filho, assim como em um pai que ocupa o lugar daquele que gera mais problemas para a família do que é capaz de protegê-la, mostrando-se impulsivo e infantil diante dos grandes desafios da vida.

Ao conhecer a história da família, descobrimos que Lúcio está sempre entre os cuidados de duas mulheres, a mãe e a avó materna, que competem pelo lugar de cuidadora e educadora da criança. Nessa dinâmica, o pai, que apresenta dependência do álcool, pouco participa como mediador nos conflitos presentes entre estas duas mulheres ou como protetor e educador do filho. Portanto, Lúcio tem praticamente duas mães superprotetoras, com papéis mal definidos e conflituosos, e um pai distante e envolvido em seus dilemas pessoais.

Essa situação foi relatada pela mãe como presente ao longo de toda vida familiar. O casal parental, desde a sua constituição, esteve acompanhado por outras pessoas. Estas compartilharam com a mãe o papel de cuidadora e educadora de seus filhos não de modo positivo, tal como em várias situações familiares bem sucedidas no país (Almeida, 2008). Neste caso, o desempenho de seu papel materno acaba sendo realizado de forma precária e ambivalente. E, segundo Minuchin (1982), o exercício da parentalidade requer a capacidade de nutrir, guiar e controlar. Acreditamos que estes elementos são essenciais na garantia da proteção das crianças, ainda que seja por mais de uma pessoa ou não só pela dupla de genitores, mas que seja de modo harmonioso e equilibrado entre os adultos envolvidos.

Um papel só pode ser definido em um sistema de oposição e complementaridade em relação a outros papéis, fazendo com que todos os papéis familiares sejam interdependentes (Miermont et al.,1994; Minuchin & Fishman, 1985; Simon, Stierlin & Wynne, 1988). Neste caso, passamos a pensar na seguinte organização familiar: um pai alcoólatra e ausente, uma mãe insegura e dependente da sua própria mãe, resultando em um filho desprotegido, à mercê do contexto externo. Isto pode ter feito dele uma presa fácil para os desejos do tio, que, apesar da perversidade dos seus comportamentos, era atencioso, carinhoso e muito presente na vida de Lúcio, ocupando o lugar vazio deixado pelo pai, de que Lúcio era distante afetivamente. Esta situação confirma a colocação de Furniss (1993) de que meninos em situação de vulnerabilidade encontram a figura de um "bom tio".

Chama a atenção o fato de que o pai se recusou a participar dos atendimentos multifamiliares e não compareceu às audiências, apesar de mostrar-se revoltado e verbalizando o seu desejo de matar o abusador. Isto nos leva a questionar sobre quais sentimentos são vivenciados por este pai: Vingança? Amor pelo filho? Culpa? Proteção? Raiva do outro e de sua impotência? Ele utilizou a estratégia do silêncio, do segredo e do "não se fala mais nisso" para conseguir se colocar perante o ocorrido. Porém, na verdade, esta conduta já existia antes mesmo da denúncia, pois nunca houve interferência sua em relação à frequência com que Lúcio visitava a casa do tio.

Além disso, parece haver a honra ferida desse pai, abalada em sua própria masculinidade e na evidência pública de sua fragilidade. Afinal, na tradição mediterrânea e ibérica assimilada no Brasil (Machado, 1999), a honra da família e do pátrio poder do patriarca depende intensamente da conduta moral das mulheres e filhos, tanto que não é casual se constatar que o estupro e o atentado violento ao pudor tenham figurado até recentemente em nosso código penal como crimes contra os costumes, a tradição, e não contra a pessoa. Nessa mesma referência, vemos que muitos casamentos foram, ou ainda são, realizados à força pelo pai, entre moças e rapazes após tais atos, considerados não como crimes, mas como ofensas ao patriarca. Ou seja, nos casos de violência sexual no país, o pai das vítimas é geralmente atingido em arraigados valores socioculturais que sustentam sua masculinidade, baseada no provimento, na proteção, na virilidade e na autoridade relacionada à unidade familiar e à comunidade em que se insere.

5.3 A sexualidade de Lúcio

A mãe verbalizou, desde o início, o seu receio de que o filho viesse a se tornar um abusador. Por este motivo, afirmou que vigiava o filho quando este brinca com outros meninos. Contudo, segundo Almonte, Insunza e Ruiz (2002), o maior temor dos pais e familiares, bem como da sociedade, é de que o menino, que sofreu abuso sexual, venha a se transformar em homossexual. Por isso, conforme vimos nas observações do GM, tanto o menino como sua mãe expressavam preocupações desta natureza. "Hoje eu compreendo, mas mesmo assim ainda tenho medo, ainda não estou totalmente segura assim, de que ele assim não possa dar uma reviravolta, sabe?"

Afinal, conforme Segato (2003), tornar-se um abusador ainda está dentro dos ditames exigidos pela construção da masculinidade em nossa sociedade patriarcal, uma vez que os homens acabam tendo que violar constantemente - ainda que apenas metafórica ou alegoricamente - para se sentirem como tais. Violar, portanto, acaba sendo um permanente mandato imperativo e inconsciente dentro de meios sexistas como o nosso, em que as mulheres e os filhos são vistos enquanto extensão das posses dos homens e a honra destes encontra-se atrelada ao comportamento moral delas e de sua prole. Já o homem homossexual é considerado feminino, emasculado, o que abala bem mais a família que o homem abusador por mostrar-se justamente identificado com o lugar subjugado da dominação, da opressão, do destino, em um discurso sociocultural naturalizado, próprio às mulheres.

Percebemos, também, que a mãe e o filho enfrentam sozinhos seus medos com relação à homossexualidade, já que não podem contar com o pai ou com outros familiares e amigos. A mãe luta contra seus pensamentos para olhar o filho sem um "carimbo" sinalizador e formatador do seu destino. Enquanto isso, Lúcio precisa do aval da mãe para namorar e provar, a si mesmo e aos outros, que superou o acontecido, sentir-se, reconhecer-se e ser reconhecido, de fato, homem. Uma questão importante aqui diz respeito ao modelo de homem que ele conseguiu formar e se referenciar ao longo de sua infância e início de adolescência: por um lado, conviveu e convive com um pai alcoólatra, infantil e ausente; por outro lado, confiou em um homem que o usou como objeto sexual, desconsiderando a sua condição de criança e a sua necessidade de confiança e respeito em um modelo masculino. Soma-se a isso o fato de Lúcio não se ver mais em correspondência ao ideal de masculinidade projetado pelos olhos e falas da mãe, assim como o fato de passar a ver sua mãe como a guardiã da honra do pai, como aquela que está atenta aos detalhes de sua conduta enquanto filho, para não mais permitir a mácula da honra paterna.

5.4 Os ganhos financeiros e afetivos da situação do abuso

Apesar dos prejuízos psicológicos e emocionais sofridos por Lúcio, tudo nos indica que ele se submeteu à situação porque obteve ganhos financeiros e afetivos, assim como também pode ter se sentido ameaçado e amedrontado pelo tio. A mãe relata que o tio presenteava o filho com bens materiais que eles não podiam lhe oferecer. No primeiro momento, então, a família é seduzida por este fato, e não percebe que o tio não oferecia estas mesmas coisas para os seus próprios filhos. No entanto, também, ressaltamos o fato de que existia um ganho afetivo, os quais são relevantes no vínculo ambíguo estabelecido entre Lúcio e o tio. Notamos que este lhe dava o que o pai não tinha condições emocionais para proporcionar: carinho, afeto, atenção, bem como, possivelmente, o tio mostrava-se forte em contraposição ao pai frágil, desestruturado e infantil frente à bebida.

Às avessas, então, parece-nos que Lúcio realizava um movimento bipolarizado, um "duplo-vínculo" cruel (double bind, cf. Pereira, 2004), enquanto encontrava-se na impossibilidade de romper com a situação de abuso. Ou seja, ele obtinha tais ganhos afetivos e materiais, além de se aproximar do modelo de masculinidade forte apresentado pelo tio, mas isso ocorria sempre na sua identificação com a posição ausente e submissa do próprio pai diante de sua impotência em relação à bebida. Desse modo inconsciente, perverso consigo mesmo, Lúcio realizava uma fusão entre os dois homens referenciais na sua permanência na violência. Contudo, o menino não traía o pai ao se identificar com este na condição de dominado pela força atraente do outro - outro que pode ser o álcool ou qualquer referência.

5.5 O medo do abusador

Faz-se importante ressaltar que o "duplo-vínculo" de Lúcio na situação de abuso também foi nutrido por medo do tio, uma vez que se via acuado, intimidado e ameaçado por ele. Além disso, o fato do tio se sentir atraído sexualmente por Lúcio gerou-lhe medo de ser o responsável por tal sentimento e ideias fantasiosas (talvez, até mesmo estimuladas por dizeres do tio) de que teria manifesto explícita ou implicitamente desejo por vivenciar tal abuso. Afinal, é bastante comum o abusador imputar em suas vítimas, mesmo crianças, a insinuação, a sedução e a decisão de "atirarem-se nos seus braços", recusando para si a responsabilidade pelos acontecimentos (Bandeira & Almeida, 1999).

Observamos ainda outra inversão, onde quem tem medo e precisa restringir seus espaços de locomoção é a vítima, juntamente com sua família, e, não, o agressor, que permanece na impunidade ou segue com ameaças de vingança, mesmo estando relativamente afastado daqueles. Esta difícil questão já discutida, inclusive de direitos à cidadania fortalecida e plena em que se encontra grande parte das vítimas de violência no país (Costa, Penso & Almeida, 2004) e, novamente, surge aqui, na fala da mãe: "o cara está solto, ele mora aqui na outra quadra, entendeu? Então, eu tenho medo."

Afinal, famílias relatam que não são protegidas enquanto os processos se desenrolam na justiça ou que estão vulneráveis após o abusador passar pouco tempo preso, sendo liberado e voltando ao convívio social no mesmo contexto em que a família. Neste caso de Lúcio, o agressor esteve quatro meses preso e, segundo relato da mãe, continua recebendo meninos em casa, demonstrando a impunidade do seu ato e, também, a manutenção do mesmo comportamento. "A casa continua do mesmo jeito, os meninos que frequentavam lá continuam."

 

6. Notas conclusivas

Para finalizar, retomamos a indagação do título: o gênero configura o sofrimento e o destino? Com base nas análises do caso de Lúcio e de algumas outras considerações, tentaremos respondê-la, assim como nos empenhamos em compreender ao longo dos GMs. Em primeiro lugar, observamos as condições de "carências múltiplas" (Saffioti, 1997), que normalmente se encontram em configurações de abuso sexual contra crianças. Logo, a atração de Lúcio e a oferta pelo abusador de bens materiais, sinal contemporâneo de sucesso na vida, mostram uma moeda de troca importante em que se baseiam a conquista e os vínculos entre os envolvidos. Em segundo lugar, ao nos atentarmos para as carências emocionais e para a organização familiar de Lúcio - um pai alcoolista e periférico, uma mãe e uma avó centrais e em conflito nas tarefas de sua proteção, a dependência da mãe numa posição de submissão e rebaixada na hierarquia de poder da família extensa (Minuchin, 1982) - observamos como tudo isto contribui para a ocupação de um espaço afetivo significativo do tio em relação à criança. Em terceiro lugar, o perfil machista do pai, no qual o alcoolismo entra como elemento configurador (Saffioti, 1987) de prestígio e privilégios masculinos, além dos temores da mãe sobre o desenvolvimento da homossexualidade em Lucio, só corrobora para gerar mais sofrimento à criança e restringir-lhe a possibilidade de redescobrir sua sexualidade por outras referências, conforme reforçamos no trabalho junto à sua mãe nas sessões grupais.

Assim, não podemos afirmar que só o gênero configura o sofrimento e o destino de Lúcio, mas podemos assegurar que tais questões têm papel fundamental nesta construção. Haja vista que a força da "superioridade masculina", esculpida sócio-historicamente (Saffioti, 1987), atua como um vetor concreto e direto nos comportamentos e sentimentos do pai e da mãe, bem como enquanto um fantasma assustando e preanunciando o futuro de tantos Lúcios. Por conseguinte, esforçamo-nos para facilitar às pessoas envolvidas no caso de abuso em questão o exorcismo de tais fantasias, para que possam se relacionar mais livremente uns com os outros, considerando o potencial de superação e a capacidade de recriação de suas próprias histórias. Nosso principal investimento terapêutico nos GMs é a transformação da qualidade da proteção oferecida às crianças e adolescentes e, neste sentido, observamos a evolução durante o GM de Lúcio para uma mudança positiva, ao passar a ter mais acesso e se comunicar melhor com sua mãe, bem como uma perspectiva mais atenta e criteriosa da mãe frente aos cuidados permanentes com ele. A entrevista domiciliar, posterior ao GM, mostrou-nos uma mulher mais questionadora e inquieta, com a assertividade de suas ações de proteção.

Também, por intermédio de nossa atuação nesses encontros grupais, percebemos que a saída da violência contra meninos não é apenas o registro de reincidentes nem a psicologização dos violadores. Deve-se também fazer atenção à escuta sensível e profunda das experiências das vítimas relativas aos casos em si e os acontecimentos que os sucedem, em geral junto às leituras de suas famílias e comunidades. Deve-se, então, buscar práticas, encaminhamentos e políticas públicas que favoreçam aos violadores, aos meninos, às suas famílias e aos seus meios sociais (escolas, igrejas, postos de saúde, comunidades etc) de os desidentificarem-se dos ditados e valores impostos acerca do homossexualismo e do machismo. Afinal, os meninos abusados só poderão deles se livrar por meio da convivência em um mundo com olhares e sentimentos socioculturais e afetivos modificados, acolhedores e respeitosos pela dor das diversas violências e revitimizações que carregam consigo.

 

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NOTA

1 Todos os nomes são fictícios.

 

 

Recebido em agosto/2008.
Aceito em setembro/2008.

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