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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.16 no.1 São Paulo jun. 2011

 

DOSSIÊ

 

O trabalho com sonhos na clínica das psicoses não decididas da infância

 

The work with dreams in the clinic of the non-decided psychosis in the childhood

 

El trabajo com sieños en la clínica de las psicosis no decididas de la infancia

 

 

Leda Mariza Fischer Bernardino

Psicanalista, membro fundador da Associação Psicanalítica de Curitiba, analista membro da Association Lacanienne Internationale, membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. ledber@terra.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo propõe o trabalho de análise de sonhos como um recurso importante, nos casos das psicoses não decididas da infância, para permitir encontrar imagens e significantes para situações que não puderam ser simbolizadas, pela falta de função do Nome-do-Pai, ainda não inscrito.

Descritores: psicoses nãodecididas; análise de sonhos; função paterna; clínica psicanalítica.


ABSTRACT

This paper proposes the work of analysis of dreams like an important resort to the non-decided psychosis cases in the childhood to find images and significants to the situations which couldn't be symbolized by the absence of function of the Name-of-Father, unscripted yet.

Index terms: non-decided psychosis; dream's analysis; paternal function; clinic psychoanalytic.


RESUMEN

Este articulo aborda el trabajo de análisis de sueños como un importante recurso en los casos de psicosis no-decididas de la infancia, para encontrar imágenes y significants para situaciones que no pudieran ser simbolizadas por la carencia de la función de lo Nombre-del-Padre aínda no inscrita.

Palabras clave: psicosis no-decididas; análisis de sueños; función paterna; clínica psicoanalítica.


 

 

Na direção do tratamento de crianças que estariam em uma indecisão estrutural entre neurose e psicose, quadro clínico que propomos nomear como psicose não decidida (Bernardino, 2004), o trabalho de análise de sonhos pode ser um valioso recurso terapêutico.

Já a partir da clínica psicanalítica com analisantes adultos, em muitos momentos o relato de um sonho e sua análise na sessão analítica parece ter uma função a mais do que aquela, princeps, proposta por Freud em seu trabalho inaugural sobre o tema, A interpretação dos sonhos (1900/1972a), qual seja: a realização de um desejo infantil proibido. Esta função adicional, mas não menos importante, diríamos, seria a de permitir a formulação em termos significantes de algo que aparece como impossível, impensável, não formulado, algo que para o paciente tivera até então um estatuto de real. As imagens do sonho, seu relato e a subsequente interpretação em análise, permitiriam uma abordagem deste real, de modo a colocar em palavras não o recalcado, mas aquilo que permaneceu fora da simbolização, embora tenha um registro psíquico, pela via da figura. Estaríamos no registro do traço, do vestígio, tal qual foi conceituado por Lacan no Seminário sobre a Identificação (n.d., 1961-1962), mas sem possibilidade de este traço ser alçado ao estatuto de significante.

Na Conferência 29, Freud (1933/1976) revisa sua teoria dos sonhos. Nessa revisão, volta a enfatizar a estrutura do sonho como similar à do rébus. Este, o enigma figurado, é inicialmente, como o nome o diz, uma escritura enigmática que se apresenta em forma de imagens. O trabalho de análise do sonho seria um trabalho de transcrição, entre registros psíquicos (inconsciente para consciente); mas poderíamos dizer também, com Lacan, entre letra e significante. Freud se interessa por esta escritura latente, inconsciente, que se faz imagem no sonho, em uma tela que barra a censura. O deciframento deste enigma, por sua vez, deve consistir na busca de laços simbólicos, transformando imagens em palavras, ou seja, escapando da fascinação do valor da imagem – apagando a letra, diria Lacan. Segundo Freud, o sonho encena o desejo proibido por meio da condensação e do deslocamento, estratégias do modo de funcionamento primário que seriam eficazes para iludir a censura. Mas podemos dizer também que, em alguns casos, pode se tratar de um trabalho preliminar a este, pois, ao pôr imagens no que se refere ao campo pulsional, mas diante do qual o corpo não adquiriu uma dimensão erógena, ao encontro com algo que alude ao desejo, mas não encontra significação possível, o sonho permite um trabalho sobre o real. Há uma possibilidade de pôr forma neste real. Em outras palavras, o sonho daria acesso, não somente ao material recalcado das experiências infantis, mas também a um material que estaria aquém deste registro: o inconsciente real. A análise do sonho, assim, permitiria a passagem do imaginário destas formas que surgem no sonho e recobrem o real – o "traumático" para Freud –, para a formulação de palavras e de significados pelo paciente, diante de uma questão até então impossível de simbolizar.

Uma paciente de 32 anos, por exemplo, sonhou que estava em uma sala de exposições de maquinários, em uma faculdade da área tecnológica, na qual o público predominante é masculino. A análise do sonho se faz a partir do inesperado de sua presença ali, assinalada pela frase: "haveria uma mulher ali", o que, após a escansão da palavra ex-posições, teve um efeito interpretativo. Foi possível formular algo a respeito da feminilidade. Evidentemente, pode-se identificar neste pequeno fragmento também a realização de um desejo infantil recalcado, mas a sequência do material trazido à análise após a interpretação deste sonho demonstrou a importância desta formulação significante em si, da presença desta enunciação, para mover as cadeias associativas da paciente, no ponto que se apresentava até então como "cego" para ela: poder se representar como uma mulher.

Um paciente de 50 anos, ainda em estado limite apesar da meia idade cronológica, sonha frequentemente com saguões, salas de espera, portarias de prédios, ou seja, lugares de passagem que mostram exatamente o ponto em que se encontra na sua encruzilhada estrutural: parece percorrer em sonhos esta distância que permitirá um passo decisivo de saída da adolescência interminável.

Na análise dessas crianças que têm sérias dificuldades com o significante, o qual corre o risco de se holofrasear em alguns momentos (quando S1 e S2 se colam sem a distância necessária para o aparecimento do sujeito), ou de faltar completamente em outros, mas que ainda assim têm produções no campo das palavras, o recurso ao trabalho com sonhos pode se revelar um caminho possível na direção do tratamento. Referimo-nos àquelas crianças que, apesar do risco de as palavras serem tomadas ao pé da letra, ainda assim transitam no campo significante e aceitam o convite do analista de trazer sonhos para o processo analítico. Como se trata de crianças que sofrem de falta de significação para seu corpo, seu lugar no mundo, seus pensamentos e seus atos, pela vacilação da inscrição do significante central, Nome-do-Pai, que permite a significação fálica, a figurabilidade contida no sonho e o desdobramento das associações com a subsequente interpretação, permitem avançar nesta busca de sentido.

A intervenção do analista se faz, então, em uma posição transferencial de sustentação do campo das palavras e das possibilidades de sentido que elas franqueiam. Ao mesmo tempo, a presença do analista, ao acompanhar os pacientes nas trilhas significantes que escolhem, permite uma parceria que assegura que esteja presente o balizamento fálico – cuja transmissão, conforme Lacan (1985), falha na psicose, pela não inscrição da função paterna enquanto Nome-do-Pai, significante que remete ao falo e seu papel organizador do psiquismo. Além disso, como o analista aceita estar em posição de falta, ou seja, daquele que não sabe tudo sobre o paciente, transferencialmente, apresentam-se ao paciente as possibilidades da falta de significante no Outro de uma maneira não aterradora, de modo a poder aceitála sem cair no vazio do real tantas vezes vivenciado nos momentos psicóticos. Momentos estes que oscilam, justamente, entre um Outro todo presente que não apresenta nenhuma brecha para o sujeito comparecer; e um Outro todo ausente que não intermedia as experiências vividas pela criança – deixando-a no limbo quanto aos acontecimentos que a rodeiam.

Uma análise que tive a ocasião de conduzir, alguns anos atrás, de um paciente que chamarei de Walter(1), vai nos permitir discutir melhor estas ideias.

 

O anjo negro

– "eu ficava com medo, aí fazia o Anjo Negro, um cara forte... acho" –.

Walter tem 12 anos, está com sérias dificuldades na escola – não consegue prestar atenção, não se coloca nas aulas, tira notas muito baixas nas provas, mesmo tendo estudado.

Recebo-o inicialmente, sozinho, em três entrevistas. Ele fala dos medos que tem, principalmente de elevador. Associa este subir muito alto com ter entrado muito cedo na escola. Conta que tem um irmão três anos mais novo e que brigam muito.

Fala detalhadamente da "situação" a partir da qual "tudo passou a ir mal" (SIC): aos dez anos, estavam de férias na casa da avó, na praia, ele acordou para ir ao banheiro. Chegando lá, percebeu que os pais estavam ali dentro mantendo relações sexuais. Ficou muito chocado, saiu correndo, escondeu-se no porão e não queria falar com ninguém.

Quando a mãe comparece com ele para outra entrevista, conta a história familiar num tom monocórdio, pronunciando muito lentamente as palavras, com um estilo de "beata": tudo é paz, harmonia e o marido é o centro de tudo. Relata que Walter não suporta ser contrariado, que reage de modo muito violento. Não demonstra afeto, é muito "frio", não chorou na morte do avô, por exemplo. Walter ficou a sessão toda calado, desenhando. Ao final, tenho uma surpresa com seu desenho: ao tom paradisíaco da fala materna, ele respondeu com uma produção que chamou de "Jogo do Inferno", que ficamos de comentar na sessão seguinte.

Quando lhe falo do contraste que me chamou a atenção, entre a fala da mãe e o desenho, ele diz: "vocês falavam de coisas tristes, de problemas, então desenhei algo triste". Explica que se trata da luta entre o "soldado" e o "anjo negro" – dois personagens no melhor estilo das revistas em quadrinhos (ele desenha muito bem). O soldado atravessa o pescoço do anjo-negro e ergue-o do chão com suas garras. Tem muito sangue no rosto, nos braços e na boca do anjo negro, que aparece numa estranha posição: o corpo voltado para frente e a cabeça voltada para trás.

Fico sabendo que houve um tempo, na infância, em que ele queria ser soldado: fez com que a mãe confeccionasse uma roupa para ele, tinha uma série de objetos de soldado e só brincava disto. Houve outro tempo, porém, em que queria ser anjo (o "negro" refere-se provavelmente à cor de sua pele). Conta que fez muitos desenhos nestas fases e os tem guardados.

Na sessão seguinte, Walter volta à situação da praia e à revolta que sentiu. Pergunto se havia acontecido alguma coisa antes disso, se ele se recordava. Ele não sabe responder, acha que talvez o pai saiba. Combinamos de convidá-lo para a próxima entrevista.

Quando ele e o pai chegam, o pai está bastante abalado com a conversa que tiveram no trajeto até o consultório. Walter lhe contou o que acontecera "antes": o relacionamento sexual que manteve com uma prima três anos mais velha, dos sete aos dez anos, aproximadamente. Walter descreve friamente os detalhes da situação, como se ele e a prima fossem dois objetos interagindo, e seu alheamento da situação me surpreende bastante.

O pai, por sua vez, fala de outro "antes": uma explicação sexual que resolveu dar aos filhos. Conta que pediu para a esposa deitar-se sem roupa, chamou os filhos e explicou-lhes in loco as partes do corpo e como um casal se relacionava. Ele tinha vivido na Suécia e queria, como os suecos, "tratar estes assuntos de modo bem aberto". Walter imediatamente comenta: "Só que nós não estamos na Suécia!".

Fico muito espantada e marco como o pai, ali, deu livre acesso ao corpo da mãe para os filhos. Este lembra que seu terapeuta também lhe apontara isto (o pai é psiquiatra).

O pai conta das dificuldades escolares do filho e do tratamento que quis dar-lhe: recebia-o em terapia (!) e não deu certo.

Limito-me a apontar para o pai que, por duas vezes, ele ocupou posições que o tiraram do lugar de pai: como "professor" de educação sexual e como terapeuta. Ele fica muito incomodado, mas parece estar decidido a apoiar o trabalho ali, principalmente pelo que o filho havia lhe contado naquele dia.

Ao refletir sobre estas entrevistas preliminares, penso na posição de Walter como muito frágil. Trata-se de um pai que, ao invés de sustentar a operação de recalque, representando a função paterna que formula uma proibição da mãe enquanto objeto de amor, pelo contrário, ao oferecê-la através de seu ato, como um corpo real, abre caminho para a foraclusão desta função.

Walter fica incapacitado de simbolizar o que quer que seja do campo da sexualidade, remetido ao real como está. Por isso, a percepção de que os pais têm um relacionamento sexual lhe retorna de fora e o precipita num mundo sem significação. Seria uma psicose?

Talvez por isso tenha aceitado as propostas da prima: se não há interdição do objeto enquanto dom, não há inibição do contato físico, mas não passa disto: dois corpos reais em funcionamento.

Sua posição comprometida revela-se na aprendizagem: como dar lugar ao conhecimento sem os movimentos anteriores de recalque e sublimação?

Na transferência, o sintoma desenvolve-se sob a versão de uma fobia... de elevador. Há um imperativo familiar de subir na vida, ao qual ele responde com horror, retrocedendo.

Mas, apesar de um sintoma aparentemente neurótico, podemos destacar também uma sintomatologia psicótica, qual seja: dissociação afetiva (extrema frieza diante de fatos relevantes); insuportabilidade da castração (violência ao ser contrariado); apego ao real dos objetos (a descrição dos atos sexuais como atos mecânicos envolvendo partes reais do corpo, como se não houvesse sujeitos ali); episódios de despersonalização (não se sentir dentro do corpo, mas destacado dele); irrupção de ideias de estilo injuntivo (medo de passar ao ato quanto ao desejo de morte em relação ao irmão, ao pai).

Ao mesmo tempo, sua abertura ao trabalho analítico, sua disponibilidade de utilizar meios simbólicos (desenho, escrita), sua surpresa com os lapsos que produz e com a possibilidade de trabalhar com seus sonhos, apontavam para uma não definição destes traços psicóticos como estrutura.

Walter situa-se num quadro clínico que poderíamos denominar de psicose não-decidida. Está paralisado num tempo de latência pura, sem resolução, em suspenso diante desta primeira posição foraclusiva que se produziu em sua história. Em termos de operações psíquicas, poderíamos dizer que Walter está em suspensão entre a entrada na operação edípica e sua saída. A inscrição paterna não tendo se realizado e metaforizado, ficou sem possibilidades de resolução dos conflitos, portanto, sua latência não apresenta solução de continuidade. A proximidade da adolescência implica uma escolha: ou reedita a foraclusão ou inventa um modo de constituir sinthoma para uma nova simbolização. É neste momento decisivo que se inicia sua análise.

 

A análise

Nos dois anos de sua análise, trabalhamos basicamente suas associações a partir de desenhos e de sonhos. Apresentarei uma seleção de alguns fragmentos de sonhos trabalhados, para refletir especificamente sobre o papel do trabalho com sonhos no tratamento psicanalítico com crianças que se situam nestes momentos de vacilação subjetiva, em que o risco de psicose se apresenta.

O caso de Walter é exemplar, já que temos duas situações relacionadas com o desejo, que ficaram no registro real, sem as possibilidades de distanciamento e significação que o enodamento com os registros simbólico e imaginário permite. Walter se encontrava em suspenso diante da falta de bordas para a falta de significante no Outro vivida no real. Poderemos acompanhar como o recurso aos sonhos foi uma via, encontrada por ele, com a sustentação transferencial do trabalho analítico, para simbolizar estas situações e se ressituar como sujeito.

É interessante observar – como pude fazê-lo só-depois, ao reler as anotações sobre o caso – o modo como, por meio das formulações disparadas pelos sonhos, um encontro com a função paterna, uma montagem da metáfora paterna e um enodamento dos três registros RSI tornam-se viáveis e transformam o caminho deste sujeito. Como afirma Rassial (1997), o enodamento dos três registros RSI é primário na história da criança; o quarto nó, do sinthoma, do nome-do-pai, é secundário e depende dos encontros que o sujeito realiza em seu processo edípico, até se efetuar na adolescência. O enodamento RSI de Walter apresentava falhas e ele não conseguia comparecer a estes encontros. Retomou estas vias através da análise.

Vale ressaltar que, apesar de a análise ter sido empreendida com Walter, os pais compareceram a algumas entrevistas, momentos fundamentais onde foram chamados a se reposicionar diante do lugar que reservavam para este filho. Sem este movimento da parte deles, não teria sido possível para Walter o salto que pôde dar.

 

Sonho 1

Sonha com "dois esquilos que encontrou debaixo da cama". Relaciona: "eu e minha prima, a gente se escondia debaixo da cama".

"Estes esquilos tiveram que achar um lugar para se reproduzir e continuar a raça deles". Associa: "Uma vez, eu falei pro meu pai e um amigo dele que não queria ser padre porque senão não teria chance de ter uma pessoa igual a mim, um descendente. Aí eu nunca ia morrer. E meu pai disse que também quis ter uma família".

An.: "Diante do risco de ter um filho, você parou de se relacionar com a prima".

W.: "É, não teria sentido pra gente".

An.: "Foi o momento em que você entendeu o sentido daquilo"

"Podia ser o sonho dos ex-quilos!". Ele ri.

É interessante notar como há aí, nesta relação com a prima, que vai das brincadeiras sexuais infantis ao encontro com um real irrepresentável, um aspecto simbólico importante, quando se insere a questão da "paternidade". Observamos que a questão "o que é um pai" já se apresenta para ele: há o significante do pai, o que aponta para uma possibilidade de chegar a uma combinatória que lhe dê acesso a esta função.

 

Sonho 2

Relato do sonho: "Eu estava saindo da fazenda do meu avô e indo pra fazenda do meu pai. Eu sabia a placa – estava escrito fazenda tal e tal. No meio da viagem, nunca chegava. A placa não dizia a mesma coisa, era outro letreiro".

Relaciona com "herança, com uma vizinha que é filha adotiva e não sabe uma pessoa que não sabe se o pai é verdadeiro ou não".

An.: "No sonho é você".

W.: "Fiquei confuso. Sei que é meu pai pela semelhança".

An.: "No sonho é uma placa, um nome".

Ele fala que gosta do seu nome, "apesar de ser estrangeiro", "porque é um nome bonito".

Falamos um pouco sobre os nomes na família dele. Eu lhe propus montarmos sua árvore genealógica, ele gostou da ideia. Pesquisou os nomes e trouxe. Pudemos comentar sobre as mudanças de posição de uma geração a outra.

Continuamos na busca do significante Pai, pois, como apontou Erik Porge (1998), "o pai introduz uma ordenação na linhagem. É unicamente a partir do momento em que falamos de descendência de masculino a masculino que se introduz um corte, que é a diferença das gerações" (p. 34).

 

Sonho 3

Outro sonho traz novamente o personagem do avô, nas associações sobre uma "porta pesada": "se eu fosse mais velho, teria visto o pai do meu pai construir a casa".

Lembra ainda de "porta divisória": "algo que separa um campo de outro".

Remeto à porta do banheiro, na praia. Ele demora a lembrar:

W.: "Separou eu fora e eles lá dentro". "Fiquei surpreso".

An.: "O que você pensou?"

W.: "Que eles eram pessoas normais".

An.: "E sobre esta separação?"

W.: "Eles fecharam a porta, como quando a gente se troca. Eles não queriam que eu soubesse, ou não era tempo de mostrar".

Ele fala como se fosse natural algum dia mostrar, sem se implicar, fico muito espantada e comento isto.

Na sessão seguinte, fala do enterro do avô: "não senti que meu avô morreu. O corpo dele sim, mas a alma não". Aponto novamente a não implicação dele.

W.: "Estou ali, mas não sinto emoção".

 

Sonho 4

Sonha que "está atravessando um parque igual ao do filme Esqueceram de Mim e pensou: 'imagine os alunos da noite o que deveriam fazer, porque parque é perigoso'". Conta uma situação no parque, onde foi assaltado e ficou sem seu boné. Falamos dos perigos que levam a perder algo. Aos "perigos do parque" ele associa com sexo, drogas.

An.: "Os perigos de crescer".

Do Pai, ele desloca seu percurso para a castração, que tentamos metaforizar também. Uma castração no real deixa o sujeito sem acesso à representação do sexual – afeta um corpo, mas não marca sua alma, como Walter denunciou. Neste sentido, encontrar significantes para falar disto nas sessões é uma aposta na possibilidade de fazer o percurso imaginário e simbólico destes cortes. A análise permite marcar seus lugares de enunciação, naquilo que relata.

 

Sonho 5

Relata: "Uma festa de ricos. Peguei o elevador, desci de novo. Tinha uma mulher, baixinha, que controlava o elevador: subia e descia na mesma reta. Pedi um andar, o último. O elevador começou descendo e aí foi se inclinando e como de cabeça para baixo começou a subir – comecei a ver lá em cima que eu estava no passado. No sonho, o único herói era o Batman. Eu dizia: não posso esperar

o Batman vir, eu que sou ele. Tenho que me disfarçar para salvar as pessoas. Peguei um carro e desci. Passou rápido um carro preto – era o Batman. Tive a esperança de que ele estivesse à procura da pessoa perdida, que faltava salvar, que era eu".

Associa com dois sentimentos: encontrar um herói, "que está perdido na minha vida". "Só sei explicar no herói o que eu gostaria de ser". Em segundo lugar: "no futuro, encontrar uma mulher que eu ame não pelo desejo, prazer, mas por ter um sentimento, gostar dela".

Lembro do nosso combinado sobre os desenhos, ele fala que não sabe direito como fazer uma história, "não sei se o personagem é branco ou preto, como ele é". Comento se não seria um bom modo de começar, colocando estas questões.

Ele faz uma história. Surpreendentemente, monta em quadrinhos o encontro de um personagem mascarado com uma mulher! Dá o título de "O herói perdido". Digo que pode ser entendido em dois sentidos. Ele entende como "um herói que não sabe o que fazer com seus problemas". Aponto que também pode fazer pensar que, uma vez perdido o herói, um homem, com falhas, sentimentos e desejos poderia aparecer.

No sonho, parece haver uma alusão ao meu papel na transferência (a "mulher baixinha que controlava o elevador") que não me pareceu conveniente, naquele momento, apontar. O que me pareceu importante foi a confirmação de que estávamos no caminho certo, já que minha intervenção da sessão anterior culminou na produção deste sonho. As associações nos conduziram para a sua quebra narcísica, condição para ocupar um lugar de desejante.

 

Sonho 6

Outra sessão, outro sonho: "era como se fosse de verdade!" Descreve: "Tinha dois 'loucão' – um homem e uma mulher. Tinha uma subida para planador e para baixo tinha um precipício. Vamos fazer uma manobra radical – eles estavam de jet ski. Eu fiquei olhando, só que eles não estavam de avião e sim de moto. No meio do caminho era como se eu estivesse na moto: começaram a subir. Deu-me um frio na barriga de verdade. Eu é que tinha que me segurar para não cair no precipício. Aí a moto continua girando e nós também: eu, o cara e a mulher".

Associações: "Era como se fosse um simulador, um treinamento que eu tivesse que fazer", "Frio na barriga como no elevador, antes (agora já sobe normalmente de elevadores), ou na praia, quando pego onda e é muito grande".

"Eu não via meu corpo, só minha mão e meus olhos. Estou sentindo com os olhos, mas não estou reparando eu ali". Lembra da escola: "Presto atenção, vendo e escutando, escrevo com a mão"; "aula de história – sobre Idade Média, igrejas, coisas religiosas" (Fala da professora: chamou sua atenção a calma dela e a história que ela contou).

An.: "E se fosse ao contrário: dormindo, com olhos abertos? (Ele tinha falado que estava dormindo, mas é como se estivesse acordado, com olhos fechados).

W.: "Como quando a gente come uma maçã e vê uma larvinha

– você não quer ver para não perder o apetite?".

Encadeia: "Meu avô era 'porcão': comia pepino e tirava pedaço com larvinhas, eu via, que nojo...".

An.: "O sonho fala de você e um casal".

W.: "Casal? Meu pai, mãe, meu tio e a mulher dele..."

An.: "Pais, ... algo que não quer ver".

Relembra a situação dos pais na praia e a vontade dele de fazer xixi: "perdi a vontade".

Lembro a explicação sexual dada pelo pai.

W.: "É, eu não queria ver. Se fosse outra mulher, bonita... Eu não queria ver meu pai, minha mãe, meu irmão ali. Fazia como se fosse uma brincadeira".

Comento que o que apareceu no sonho foi medo, queda. Marco o quanto ele pôde retornar àquele momento, por meio do sonho, vivendo-o, desta vez. E, se pôde falar disto, não vai mais cair no precipício.

Ele me olha, confuso.

An.: "Pode recuperar seu apetite perdido".

W.: "Uma coisa que notei é que não estou mais preocupado com o que fiz, estou vivendo mais".

O significante que ele escolhe para representar o trauma – "a experiência", situa bem o horror que viveu. É um momento de nomeação e interpretação daquele tempo, que vai sendo simbolizado como parte de seu passado – um apagamento pode ser efetivado.

Essa sessão foi um marco em seu percurso: aí se encenou o abandono do tempo infantil e o ingresso num tempo outro, da adolescência. Fruto do reconhecimento dos pais, na sessão conjunta, anterior, de que ele realmente tinha crescido e, principalmente, consequência de uma operação de apagamento que ele pôde realizar. Só-depois, na releitura do caso, é que me dei conta de algo que nos 'escapou' no trabalho dos desenhos: a rasura do VOOU, cujo ato falho trouxe justamente o VÔ e algo que Walter pôde apagar ali da ordem da letra.

 

Sonho 7

Conta um sonho que teve na noite da sessão anterior: "eu entrei num mini-ônibus que me levou por ruas pequenas até a casa de minha avó, ela mora num morro. Numa das pedras da praia o cara saiu do ônibus e subiu nela. Eu vi e pensei: parece com meu avô, é o meu avô. Não era imagem. Ele consegue o que Jesus conseguiu: ressuscitar. Vou rápido contar pro meu pai".

Lembra da comparação entre as duas praias, que fizera na sessão anterior, entre ele e o pai e não lembra da última frase: "era diferente, algo novo".

Com "ruas pequenas" associa as ruas da casa da avó mesmo, um desenho que segue a mesma rota do sonho: salvar pessoas.

An.: "No desenho, quem se salva é seu avô".

W.: "Ressuscitou, mas só Jesus..."

An.: "Ressuscitar pode ser também falar sobre a pessoa, lembrar dela".

W.: "Meu pai fala, tem fita de vídeo, tudo".

An.: "O que seu avô fazia?"

W.: "Era mestre de obras, construía prédios, construía coisas em prancheta".

An.: "Como você?"

W.: "Só que ele trabalhava com isso, eu só acho bonito".

An.: "Você tem algo dele".

W.: ?

An.: "Este dom (para o desenho)".

W.: "Pena que ele estava doente. O que ele fazia de bom era contar histórias pros netos".

 

Sonho 8

Depois da interrupção das férias, traz novamente um sonho de passar obstáculos, em que se repetem questões antigas: medo de cair, medo do abismo, ele tinha de atravessar, passar para o outro lado. E é a primeira vez que o sonho vai adiante neste ponto, sem que ele acorde no momento do impasse. Aponto isto, muito admirada, ao que ele responde: "Agora já consigo estudar sozinho, não preciso mais perguntar para meu pai".

No sonho, tem rio, trovão, ele associa com "uma força muito grande dentro de você, dá uma explosão e fica forte", "senti isto quando levei um choque na tomada, fui com tudo para trás".

An.: "Uma vez houve um choque que fez você ir para trás e agora tem uma força que faz você ir para a frente, no sonho".

Há também a palavra animal, no sonho, que ele associa com porco, com "xingar outro time, na torcida do Palmeiras", "uma pessoa nojenta".

Neste momento, ele pede para sair da sessão para ir ao banheiro.

Quando ele retorna, falo da coincidência: aquele dia em que ele levantou para ir ao banheiro e viu os pais lá.

An.: "O que poderia ter a ver com porco? Pais?"

W.: "O ato deles, eu não sabia na vida real como era". Associa com o Kart, que nunca dirigiu e não sabia o que aconteceria se acelerasse muito, "não entrei, não fui".

An.: "E a situação dos pais?"

W.: "Eu não tinha visto filme, nada na vida real. Foi um impacto para mim".

An.: "Mas, e a situação com a prima?"

W.: "É, tinha isso, mas era como se fosse uma brincadeira".

An.: "Uma brincadeira que dava muito medo".

W.: "É, tinha que me esconder, ou ir ao banheiro e fazer que ia tomar banho".

Relaciono o animal que aparece no sonho com a prima. Falamos da arma que aparece no sonho, com a dúvida: "é de brincadeira, é de verdade?".

Aparecem também alguns números. Ele associa: "tempo que foi passando e eu ia indo para frente, para chegar onde eu queria".

An.: "Aparece um desejo de ir para a frente e não para trás".

Na sessão seguinte, ele retoma o sonho e conclui: "várias coisas que eu não conseguia, com a psicanálise já estou conseguindo: comparei com outros sonhos que eu tive e neste eu consegui passar obstáculos".

Conta então do grupo de samba que ele, o irmão e o primo estão formando. Mostra o desenho com a marca do grupo.

Seu acting nesta sessão – ir ao banheiro no momento em que se repete, por meio das associações do sonho, a situação traumática – foi fundamental para sua elaboração do trauma, pelo encontro de uma significação e posterior recalcamento. É o momento em que ele se situa no tempo, o que nos remete à atuação do Nome-do-Pai como ordenador, como aponta Erik Porge (1998): "A sincronia dos três registros do nomear se superpõe à diacronia das três gerações. Mais que a inscrição temporal do Nome-do-Pai, isto mostra o caráter decisivo deste significante para a referenciação temporal do sujeito" (p. 183).

 

Sonho 9

Outro sonho, outro dia: "mar, ondas enormes, quando se chocavam no chão fazia uma ventania. Minha mãe falou: não vai lá, não quer morrer, não é? Falei pro pai: dá para a gente ir pro mar. Ele falou: mas aqui não tem mar. Eu fui ver, era só lama. Teve um estrondo: cadê o mar? Secou tudo. Ficou dividido. Eu pensei: é o fim do mundo. Pulei o muro que separava a casa e a praia. Encontrei minha mãe, ela disse: cuidado, está cheio de buraco, você vai ser engolido. Meu irmão chegou. Tinha um bloco enorme e do outro lado um vale bem fundo e bem bonito, com palmeiras".

Associações: "eu gostava muito daquilo e some sem mais nem menos: um choque".

An.: "Você perdeu algo importante".

W.: "ficar dividido: tem três meninas, você namora todas elas. Um dia estão todas juntas, você tem que escolher – deixar de lado umas".

An.: "Tem a ver com escolher".

W.: "É, eu não sabia se ouvia minha mãe ou ia com meu pai".

An.: "Havia o lado da mãe e o lado das palmeiras".

W.: "Fiquei dividido entre ir e correr o risco de me afogar. Aí esperei meu pai para ter segurança. Só que daí sumiu o mar".

An.: "Parece haver relação entre mãe – mar".

W.: "É, o bebê fica na água, na bolsa, dentro da mãe".

An.: "Escolha entre o mundo da mãe e o mundo das Palmeiras?"

Ele lembra que seu time é o Palmeiras.

An.: "Ah! Então você escolheu seu lado, seu time?" Ele ri.

Sonho que remete à mãe, agora situada no registro de objeto de amor, dom, que foi perdido. O sonho aponta ainda o vazio do lugar do pai enquanto terceiro termo. Há ainda uma provável referência ao nascimento do irmão, como veremos adiante.

 

Sonho 10

Noutra sessão, traz um sonho que fala de mar: "pensei que era o mar e na verdade não era". "Eu estava na praia, fui me trocar e de repente voltei, não tinha mais praia".

Relaciona com coisas sem limites: "planeta terra, universo, o universo está dentro do quê? Não tem nada que segure".

Lembra de coisas suas que o irmão estragou, ou quando o avô sentou no lugar dele na mesa.

Pergunto quantos anos ele tinha quando o irmão nasceu. Ele responde: "dois anos e meio, três anos".

An.: "Quais mudanças ocorreram?"

W.: "Na páscoa, vi ele mamando e joguei os ovos no chão, bravo".

An.: "Uma primeira mudança em sua vida".

W.: "É".

Ele lembra de uma situação, ele teria uns seis anos: o irmão com uma motoca, não deixava uma menininha subir. Remeto o sonho ao nascimento do irmão.

W.: "Acho que já sei o que aconteceu. Meu irmão ficou no berço, que era meu, e eu fui pro beliche".

As sucessivas faltas em sua história – a partir da operação da castração – começam a ser resgatadas e simbolizadas, revertendo num sentido para si mesmo que vai aos poucos se delineando para ele.

Traz o diário que escrevia quando era menor, para "mostrar umas coisas que achou interessante". "Tudo na época era movido pelo skate". Conta que agora ocorre o mesmo com o teclado.

An.: "São seus objetos".

Fala do cachorro, do passarinho, do skate. Da queda que teve com o skate.

An.: "Você se machucou?"

W.: "Não, eu ia machucar forte a cabeça, mas por sorte bati no joelho de um cara. Quando eu caio, nos dois sentidos da palavra, não consigo levantar".

An.: "Dois sentidos?"

W.: "Cair do skate e em vez de andar de novo, ficar com medo. No outro sentido, estar quase chegando lá e não tentar mais por medo".

Lembro dos medos dele de cair, relacionando esta queda com aquela, do berço. Ele demorou a lembrar-se.

An.: "Caiu nos dois sentidos"...

W.: "Como?"

An.: "Cair do berço, perder o berço".

W.: "É, caía e não levantava mais".

An.: "Neste sentido, o nascimento do irmão foi um baque".

W.: "É, dá nojo o que ele faz, quando come e faz barulho. Ele mamando no colo da mãe, como eu fiquei bravo. Ele pegou uma parte do meu território".

Depois do skate, conta que veio o tênis, depois o boné, que roubaram.

An.: "O diário fala das coisas que você perdeu.

Conta então que o diário acabou no dia que o avô morreu, foi o último relato que fez. Lê o que escreveu: "foi chocante para mim, mas lembrei uma frase do meu avô – 'quem anda nos caminhos de Deus encontra a paz'".

An.: "Como você entendeu esta frase?"

W.: "Quem anda no caminho certo encontra o céu".

Então, há no diário o desenho do "Anjo Negro" e seu inimigo.

W.: "Eu ficava com medo, aí fazia o Anjo Negro, um cara forte, acho".

No momento, não pude perceber o valor desta sessão. Penso agora que o "Anjo Negro" surgiu no momento da morte deste avô, referência simbólica para ele, que deixou como mensagem o "caminho do céu", ou seja, a paz e a morte. No só-depois desta releitura, percebo que aí se produziu uma identificação regressiva com o objeto perdido, e que foi mortífera para Walter, por resultar neste traço, um lugar de anjo, que como sabemos está fora da sexualidade e da vida... (lugar que já fora dado ao pai, com o mandato de ser padre, do qual ele pôde escapar). Podemos associar isto com a rasura do VOOU, que remete tanto ao avô quanto ao que voa (anjo/céu), apagamento da marca. Podemos identificar aí uma travessia que o posicionou diferentemente.

Pode-se observar como Walter acompanha o trabalho com os significantes e a dimensão simbólica em jogo nesta sessão: o diário continha suas possibilidades de enunciação, elididas de sua realidade naquele momento, pela falta de um interlocutor viável. Ao vir à luz no contexto da relação analítica, permitiram um reconhecimento deste "antes" e deste "depois", escandidos pela morte do avô.

Revela-se nesta sessão a função fundamental da escrita, para Walter, oportunidade de aproximação com um pai não tão idealizado, como lhe parecia ser seu pai da realidade. Este pai que também escrevia um diário e questionava-se sobre seu desejo e suas escolhas. Possibilidade de pôr em palavras este mundo que parecia não ter sentido, onde ele então se situava diante de uma letra, efeito de uma escrita. Destacamos aí a iniciativa de Walter, de proceder ali, no espaço da análise, a uma leitura desta escrita, até então impossível.

 

Sonhos 10 e 11

Relata dois sonhos que teve com o pai e o avô:

W.: "No primeiro, meu pai tinha ressuscitado o pai dele, meu avô, e chegou com ele como se fosse um boneco de palha. Meu pai colocou-o à porta, só a metade do corpo apareceu. Eu olhei a mão dele, estava como se fosse sugada, fininha. Meu irmão começou a gritar, eu entrei numa crise, no ar, todo esticado, não sei como, comecei a gritar".

"No segundo, meu pai chegou para mim e falou algo do avô, eu comecei a chorar e não parava mais".

Associações:

"Como se fosse um boneco": "era um boneco de pano, não tinha expressão, não tinha sentimento, era uma coisa morta. Boneco nos dois sentidos: paralisado, sem vida, alguém tem que segurar". "Minha mãe tinha uma boneca de pano que deu pra gente brincar, eu tinha sete, oito anos, na época brincava de dançar".

An.: "De quem ela ganhou a boneca?"

W.: "Acho que foi a mãe dela que fez, mas não sei". "Meu pai fez um revólver de madeira e ela me deu a boneca, eu usei os dois: era como se fosse um soldado morto".

Esta boneca situa sua imagem de corpo – condensando provavelmente sua leitura do lugar fantasmático que sua mãe lhe dera. A descrição que ele faz corresponde ao que vivia na época, onde precisou se paramentar de soldado e se armar de objetos de soldado para se proteger deste olhar mortífero, que não lhe permitia unificação a não ser enquanto morto-vivo (sou dado morto ?!).

 

Sonho 12

Sessões depois, traz um sonho que anotou, que fala de gangues inimigas. Ele era chefe de uma gangue, tinha que passar por labirintos, uma piscina de loucos, por várias vezes quase foi pego, até que passou uma fronteira e não podiam mais persegui-lo. Uma mulher veio e falou: "ainda bem que você conseguiu sair".

Associa a mulher com uma professora de religião, que já saiu ou morreu. Diz que o labirinto também seria para loucos, para não fugir. Comenta: "quando eu era pequeno, aconteceu uma cena forte e isso trouxe problemas para mim. No sonho é o contrário: vi esta cena e não me trouxe problemas".

An.: "Você ultrapassa uma fronteira e não pode mais ser perseguido".

W.: "Quando saí, não era mais escuro, já era um dia de sol. Uma saída para um outro lugar".

No sonho, as referências ao seu lugar na análise, ao lugar da analista e ao percurso que fizemos são bastante explícitas: só me coube manifestar meu testemunho de que, como no sonho, houve uma passagem sem volta.

 

Sonho 13

Um outro sonho o remete àquela cena infantil que já aparecera algumas vezes, a partir da lembrança de um quadro que havia no quarto dos pais.

W.: "Quando eu era pequeno, tinha um berço, e o reflexo da árvore se movimentando, parecia uma bruxinha".

An.: "Imagem, quarto dos pais, berço, movimento".

................

An.: "Talvez, no berço, no quarto dos pais, você visse algum movimento".

W.: "Eu tinha medo de sombra. Quando fui para o beliche, no meu quarto, já tinha visto história de bruxas: Branca de Neve, Madrasta".

"Quando eu era pequeno, tinha medo que a bruxinha me pegasse, pedia pro meu pai me proteger da bruxinha".

An.: "Talvez se relacione com a imagem que você viu no banheiro, aquela vez".

W.: "A imagem que me vem é de uma mulher, de idade bem avançada".

"O quarto dos meus pais era muito quente, escuro, a luz entrava pelas janelas e formava imagens, reflexos, onde eu estava".

An.: "Imagens que dão medo, paralisam".

W.: "Algo que eu vi num tempo e depois de bastante tempo vejo de novo".

An.: "Imagem do berço, imagem do banheiro".

W.: "Lembro de enxada, olho, lençol, escrita diferente, Anjo Negro..."

Retomo outra frase do sonho: "veio uma dor no meu corpo inteiro".

W.: "Sentir as coisas saindo".

An.: "Ter consciência do próprio corpo".

Nesta sessão se formula a fantasia de visão da cena primária enquanto tal, primeira cena que serviu de base à "cena traumática" do banheiro, se nos referirmos às séries complementares freudianas. Foi possível juntar os fragmentos de lembrança que já vinham aparecendo, produzindo um efeito de significação, com a possibilidade agora de habitar um campo de desejo e de objetos desejáveis. Isto põe em questão sua relação com um corpo, agora pulsional, marcado pela castração e pelas identificações.

A partir desta sessão, Walter passa a falar de situações e sensações que envolvem seu corpo. Na sua relação com o corpo, aparece o conflito dos ideais: sua imagem narcísica (eu ideal) se choca com o traço unário (Ideal do Eu), e entre a "coisa ruim" e a "paralisação", como sustentar um lugar fálico, sem cair? É a sua questão.

 

Sonho 14

Na sessão seguinte, o tema continua com o relato de outro sonho, quando o pai dele aparece com uma "cabeça de catorze anos e um corpo de adulto".

W.: "Um impacto. Uma emoção forte, não é físico. Você imagina uma pessoa bonita e quando vai ver o corpo, a beleza que ela é acaba não sendo o que você gosta".

An.: "Impacto tem a ver com se decepcionar?"

Outro fragmento do sonho: "Eu vi o menino vendo – não sei o que tinha a ver este menino. Ele era um tipo de santo".

An.: "Você comentou isto sobre seu pai, numa das sessões".

W.: "Ele era um pai, uma autoridade, eu não via ele no papel de uma pessoa. Namorar, coisas pessoais, achava que já tinha passado, que não tinha sexo".

An.: "Um menino que vê a verdadeira cara do santo".

W.: "Mudou a relação com as coisas".

An.: "Algo que fez você mudar".

W.: "Mas eu fiquei muito fraco, muito inibido".

Mais um fragmento: "No início do tempo, eu estava na escravidão, nos Estados Unidos". Associa com o avô, que nasceu dois anos após a abolição da escravatura.

An.: "O sonho fala de tempos".

W.: "É, passado, presente, futuro. Meu avô, meu pai e eu".

Lacan refere-se aos efeitos devastadores dos pais que se colocam como muito ideais, pois a consequência disto pode ser a exclusão do Nome-do-Pai de sua posição de significante. Walter ilustra aí como teve que se confrontar com isto e como atravessou este confronto, a partir do reconhecimento paulatino que foi se dando, na análise, de que o pai não era nem santo, nem tão forte nem tão perfeito assim. O que lhe permitiu passar do Pai do Nome ao Nome-do-Pai (Porge, 1998). Sua inclusão na série familiar masculina, nesta sessão, mostra como a identificação se fez possível.

 

Sonho 15

Sessões depois, ele conta: "tem gente que não quer sair do time de futebol, é difícil escolher. Fico pensando: imagine quem não está na lista, como está sofrendo..." "Eu já sou titular, eu e o goleiro".

An.: "Você está na lista". Ele ri.

Traz um sonho que fala de partituras de música, duas folhas, uma verde e atrás um desenho todo preto, onde só aparecia a cara de uma pessoa iluminada. Associa com seu gosto por música, a folha verde remete-o a um folheto sobre uma palestra para os pais na escola, sobre jovens, adolescentes.

Sobre o contraste preto e pessoa iluminada, relaciona: "a pessoa fez coisa errada, está se dando mal, coisa escura. E no meio a coisa que você quer, iluminada".

An.: "Uma coisa desejada?"

W.: "Lembra berço, noite, bruxinha e cara".

An.: "Coisas que falam do desejo".

W.: "Que tipo de desejo?"

An.: "Você está incluído na lista dos que desejam". Ele ri.

Nesta sessão pode-se localizar sua passagem à significação fálica. Walter demonstra estar habitando um mundo fálico – tem um lugar para ele ali, entre seus pares. A questão para ele é como se sustentar neste lugar. Haveria recursos suficientes?

 

Sonho 16

Em outra sessão, trabalhamos outro fragmento de sonho: "Apareceu minha mãe, eu não acreditava e aconteceu de verdade. Ela chega com uma caixa cheia de aranhas". Ele comenta: "não é normal uma mãe mostrar coisa assustadora para filho".

An.: "O que lembra?"

W.: "A mãe mostrar o lado negativo do filho, como ela falou aqui".

An.: "Situações que dão medo".

Associa com momento do pênalti, no futebol, onda grande no surfe: "não sei se vou para frente ou para trás". Lembra do assalto, quando perdeu o tênis.

Outro fragmento: "casa mal-assombrada, luzes apagadas". Ele associa com a situação na casa dele, nesta semana em que o pai foi viajar.

An.: "Luzes apagadas tem a ver com o pai longe". Falo dos momentos difíceis pelos quais ele passou, que se relacionavam com o pai não estar ocupando o lugar de pai, então ele não sabia mais qual era seu próprio lugar, que tínhamos podido trabalhar estas "experiências" ali, tínhamos enfrentado a "caixa de aranhas" e ele estava em outra posição, agora.

Ele se lembra de uma cena infantil: ele e o irmão pequeno, o pai estava com eles, de bicicleta. O pai bateu a bicicleta e eles caíram no asfalto. Diz: "depois não tinha mais segurança".

Apareceu uma alusão a esta mãe à qual foi confrontado enquanto Coisa, corpo real, bem como a "queda do pai" e a fragilidade daí decorrente.

 

O último sonho

A partir desta sessão, começa a se perguntar como será a vida sem os pais. Começa a falar também em interromper a análise.

W.: "Como vai ser quando for eu sozinho, sem pai nem mãe? Quando for só eu?".

An.: "Como que é ser adulto?"

W.: "Quero resolver sozinho os problemas, não precisar dos outros".

An.: "Este é o projeto de todo adolescente".

Conta que desta vez falou sozinho com o pai, sobre seu desejo de viajar com ele, não precisou a mãe interceder e deu certo.

W.: "Eu mudei o meu jeito de agir. Arrumei um jeito de ficar como eu era, mas sem guardar para mim". "Comecei a me preocupar com as coisas que eu tinha, com as pessoas e comigo mesmo".

Podemos observar como Walter está posicionado agora diante do lugar do Outro: desidealizando-o, tentando imaginar-se sem ele, podendo servir-se dele (Lacan, 1975-1976). Ao mesmo tempo, há um movimento de apropriação de sua história.

Trabalhamos um último sonho: "eu estou num barco, depois troco de lugar para eu vendo eu sumindo no barco que vai para longe". "Fico pensando: dois Walter, só que era a mesma pessoa. O que quer dizer?" "Eu vejo duas pessoas que são a mesma, um vê a si próprio, ir para longe, sumir, até que não apareço mais". "Um seria o Walter, criança, sumindo para nunca mais voltar – aquela parte da vida já foi. Troquei por outro barco, maior".

Aparece uma dúvida: "como se um ideal tivesse se perdido, algo que eu gostava". "No barco grande havia uma espada. Eu estava no salva-vidas e pulei para ele. O que queria dizer esta espada?"

An.: "Nunca teve uma espada?"

W.: "Com cinco, seis anos, uma de plástico". "Mais tarde, com nove, dez anos, uma espada de ninja, só que de plástico".

An.: "E como era a do sonho?"

W.: "Era de verdade, grande, afiada, brilhava, de fazer corte".

An.: "Funciona?"

W.: "Sim, algo que eu queria e consegui".

An.: "Saiu do faz-de-conta!"

Ele fala de uns desenhos que trouxe, onde aparece um novo nome: uma palavra, em inglês, semelhante à sonoridade de seu nome verdadeiro, que é como ele vem sendo chamado pelos amigos.

An: "É um apelido?"

W.: "Assino os desenhos. É um tipo de assinatura".

An.: "Como é?"

Ele escreve o novo nome numa folha e me mostra, comentando:

W.: "Não assino, eu coloco um jeito na palavra, é um tipo de assinar".

An.: "Ah, é a sua nova marca!"

E neste ponto terminamos.

 

Conclusão

A partir do caso de Walter, pretendeu-se ilustrar o alcance do trabalho com sonhos e outras produções simbólicas nos casos de psicoses não decididas na infância.

Esta constatação clínica aponta uma função adicional aos sonhos, na análise: além de formações do inconsciente, no sentido de retorno do recalcado, os sonhos podem ser ainda formulações do real em imagens, na busca de interpretação. Como tal, têm extremo valor na clínica além das neuroses.

Como se pôde acompanhar, por meio da análise de sonhos, juntamente com o trabalho sobre alguns desenhos e a retomada de um diário de infância, Walter pôde se desviar de sua fantasia mortífera. Ele pôde fazer do anjo negro um herói perdido, por exemplo. Sua imagem narcísica, que lhe devolvia uma impossibilidade de contemplação especular, pôde ser transposta, com a tomada de distância perante este olhar devastador materno que apontava o ruim, o não falicizado, lugar em que a fantasia materna o situava e que não tinha sido barrado pelo Nome-do-Pai, cuja inscrição não se estabelecera a contento. A contraposição do valor fálico atribuído à figura paterna, retrabalhada em análise, promoveu este encontro com o Pai.

Sua análise deu lugar aos tempos de inscrição, apagamento, leitura e interpretação da marca, a partir do encontro com a função paterna – veiculadora da falta e das identificações – e sua metaforização. Seu pai da realidade, que derrapou seriamente num momento da história do filho, saiu do lugar de pai e o deixou vago. Este pai, instaurado em um lugar ideal e totalmente inacessível, não estava situado em uma posição de outro, capaz de responder aos apelos do filho. A caminhada que Walter fez na análise passou pela castração deste pai no sentido de percebê-lo em sua realidade de faltante e então dirigir-se a ele e com ele identificar-se. A análise teve a função de estabelecer a relação pai-filho, rompida porque literalmente o pai saiu de seu lugar. Tratou-se, pois, de recolocar o pai no seu lugar, segundo a asserção de Jean Bergès.

A releitura de seu diário de infância, e a escrita que encerra o diário, realizada neste tempo posterior da análise – uma marca, um desenho tribal com tatuagens e pranchas de surfe, o primeiro desenho colorido do diário, feito neste outro tempo –, são exemplares deste processo.

Este momento em que decidiu interromper sua análise não era necessariamente o de um fim de análise, mas o do fim da infância. Esta análise foi um primeiro passo, onde ele pôde ter acesso a um lugar de sujeito desejante e fazer a travessia da infância rumo à adolescência, munido de um remanejamento de sua fantasia originária, que o situou numa outra posição subjetiva, em que o falo é o referente e o risco de psicose pode ser afastado: ele colocou seu jeito nas palavras – não é uma definição preciosa para o que se espera de uma análise, uma mudança de posição subjetiva frente aos significantes?

 

REFERÊNCIAS

Bernardino, L. M. F. (2004). As psicoses não decididas da infância: um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Freud, S. (1972a). A interpretação dos sonhos. In Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad., Vol. IV. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900).         [ Links ]

Freud, S. (1972b). A psicopatologia da vida cotidiana. In S. Freud Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud. (J. Salomão trad; Vol. VI). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1901).         [ Links ]

Freud, S. (1976). Conferência 29: revisão da teoria dos sonhos. In S. Freud Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud, vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1933).         [ Links ]

Lacan, J. (1985). O seminário: livro 3 As psicoses, 1955-1956. (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (n.d.). L'identification. Séminaire 19611962. Paris: Association Freudienne Internationale, documento de circulação interna.         [ Links ]

Lacan, J. (n.d.). Le sinthome. Séminaire 19751976). Paris: Association Freudienne Internationale, documento de circulação interna.         [ Links ]

Porge, E. (1998). Os nomes do pai em Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Cia de Freud.         [ Links ]

 

 

Recebido em abril/2011.
Aceito em junho/2011.

 

 

NOTAS

1 Nome que, como Freud bem o apontou em Psicopatologia da vida cotidiana (1901, 1972), escolhi por um motivo inconsciente que merece ser destacado aqui (e agradeço a Jean-Jacques Rassial pela escuta que fez quando falei deste caso em uma mesa-redonda, na qual discutíamos sobre a adolescência, na USP): Walter sem o "l" (era o caso de retirar o "l" de uma palavra, no fragmento do caso que então relatei) fica "Water", que significa Pai em alemão, e era assim que meu pai assinava suas cartas para mim! Pode-se perceber o quanto da minha referência ao Pai entrou em jogo nesta análise!

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