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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.17 no.2 São Paulo dez. 2012

 

DOSSIÊ
A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS: DESAFIOS E RESULTADOS

 

Existe um lugar para os pais reais: relexões sobre o lugar dos pais e do analista real na psicanálise de orientação kleiniana

 

There is a place to the real parents: some thoughts about the place of parents and reality in the kleinian's psychoanalysis

 

Hay un lugar para los padres reales: reflexiones sobre el lugar de los padres y de la realidad en el psicoanálisis kleiniano

 

 

Audrey Setton Lopes de Souza

Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, SP, Brasil. Av. Prof. Mello Morais, 1721 - Bloco A - sala 204 05508-030 - São Paulo - SP - Brasil. asetton@uol.com.br

 

 


RESUMO

Muitas críticas são feitas à teoria kleiniana. Ela tem sido criticada por conferir espaço privilegiado ao mundo interno, negligenciando o papel que o mundo externo - os pais reais - teria sobre o desenvolvimento da criança. O que pretendo explorar neste trabalho é como, especialmente a partir do conceito de identificação projetiva, a pessoa real dos pais e do analista passa a ser primordial na teoria e na técnica de orientação kleiniana.

Descritores: Melanie Klein; relação mãe-bebê; identificação projetiva; técnica psicanalítica; objeto real.


ABSTRACT

Many criticisms are made to Klein's theory. It has been criticized for giving privileged space to the internal world by neglecting the role that the external world - the real parents - would have on child development. What I intend to explore in this paper is how, especially since the concept of projective identification, the real person of the parents and the psychoanalist becames crucial in the kleinan's theory and technique.

Index terms: Melanie Klein; mother-infant relationship; projective identification; psychoanalytic technique; the real object.


RESUMEN

Muchas críticas se hacen a la teoría de Klein, que ha sido criticada por dar un espacio privilegiado para el mundo interior y descuidar el papel que el mundo exterior - los padres reales - tendría en el desarrollo del niño. Lo que me propongo explorar en este trabajo es cómo, sobre todo desde el concepto de identificación proyectiva, la persona real de los padres y del analista se convierte en crucial en la teoría y en la técnica de orientación kleiniana.

Palabras clave: Melanie Klein; relación madrehijo; identificación proyectiva; técnica psicoanalítica; objeto real.


 

 

Muitas críticas são feitas à teoria kleiniana. Ela tem sido criticada por conferir espaço privilegiado ao mundo interno, negligenciando o papel que o mundo externo - os pais reais - teria sobre o desenvolvimento da criança. O que pretendo explorar neste trabalho é como, especialmente a partir do conceito de identificação projetiva, a pessoa real dos pais e do analista passa a ser primordial na teoria e técnica de orientação kleiniana.

Para Klein, o sujeito constitui-se pela relação dialética entre modos fundamentalmente diferentes de atribuir significados às experiências emocionais. Sua teoria das posições traz a marca e o impacto da concepção de um ser pautado pelo temor a sua pulsionalidade, sentida como ameaçadora, e por um contínuo processo de clivagem e dispersão que, em um primeiro momento, visa a permitir a vivência do ódio e da frustração: seu vértice de observação, ao descrever uma teoria do desenvolvimento, centra-se na experiência emocional, particularmente nos elementos que dão o colorido a essas experiências. Ao estudar as pulsões, seu enfoque é sobre a relação que elas estabelecem com o objeto e a experiência emocional subjacente. Para ela, as experiências emocionais não podem ser pensadas como constituídas somente pela relação com os objetos reais, pois, devido ao papel desempenhado na vida psíquica pela projeção e pela introjeção, o objeto internalizado não é uma cópia do objeto externo, mas sim como este foi constituído em uma sucessão de projeções e introjeções. Assim, cada vivência emocional adquire um significado de acordo com as características destes objetos internos. Sua teoria vai destacar o papel que esse mundo interno desempenha sobre todas as nossas reações e formas de lidar com as situações internas e externas, determinando sobremaneira a forma de viver cada experiência. Tal perspectiva não exclui, mesmo nos textos kleinianos iniciais, a importância das experiências reais de gratificação e frustração, mas aponta para o fato de que elas serão tingidas pelas cores decorrentes destas combinações.

A teoria de desenvolvimento mental formulada por ela, quando compreendemos o sentido dado ao conceito de posição, é uma teoria da mente e de seus modos predominantes de funcionamento; uma teoria de como as pessoas usam suas mentes para perceber, negar, alterar ou refletir sobre a realidade. Rocha Barros (1989) destaca que, com a teoria das posições, Klein passa a privilegiar uma espécie de ótica a partir da qual certas estruturas mentais são estabelecidas; uma ótica que norteia a percepção de si mesmo e das experiências: trata-se de um certo modo de organizar-se frente às vivências que faz com que estas adquiram sentidos diferentes dependendo da ótica usada. As posições esquizoparanoide e depressiva são, assim, conceituações sobre as organizações psíquicas que geram formas de ser e experienciar o mundo.

Estas formas de organização psíquica não são nunca superadas ou deixadas para trás: o que é possível, com maior ou menor sucesso, é manter uma relação dialética entre elas, na qual cada estado cria, preserva ou nega o outro.

O bebê kleiniano é um bebê confrontado com a experiência interna dos impulsos de vida e de morte, com as exigências instintuais satisfeitas ou não, com o prazer proporcionado pela satisfação e com o desprazer e agressividade decorrente da frustração. Para organizar-se e sentir-se seguro frente à ameaça de caos, advinda de sua fragilidade para significar essas experiências, o ego recorre aos mecanismos primitivos de defesa dos quais dispõe, a saber: a cisão ou splitting, a projeção, a identificação projetiva e a introjeção. O desenvolvimento destas concepções permitiu perceber de que forma os objetos externos reais podem facilitar ou obstruir aquele processo, como veremos adiante.

O conceito de posição como um modo específico de ver o mundo está determinado, do ponto de vista psíquico, por uma constelação de ansiedades, defesas, fantasias e formas de se relacionar que criam um modo de perceber e de compreender a realidade. Conceber o desenvolvimento como operando com duas posições básicas é pensá-lo como duas atitudes mentais diferentes a partir das quais as experiências podem ser vividas. Para Klein, existe uma flutuação entre as duas posições, dependendo sempre da capacidade do ego de suportar as angústias decorrentes dos aspectos ambivalentes da experiência. Na concepção da autora, a posição esquizoparanoide (Klein, 1946/ 1991a), com toda a multiplicidade de emoções ali constituída, seria o primeiro instrumento do bebê para estruturar suas experiências. As descrições de Klein tentam dar conta de como o bebê busca usar as capacidades rudimentares de seu ego para organizar as percepções do mundo.

Ela sustenta como hipótese que, ao nascer, a criança já seria capaz de algumas funções de ego, tais como: experimentar ansiedade, utilizar mecanismos de defesa e estabelecer relações de objeto primitivas tanto na realidade quanto na fantasia. Esse ego rudimentar estrutura o mundo interno com um modo de funcionamento mais próximo ao que, no adulto, encontramos nos pesadelos ou na regressão psicótica. Trata-se de um mundo no qual nossa discriminação entre realidade e fantasia, interno e externo, verdade e ilusão deve ser deixada de lado para podermos compreendê-lo.

A fantasia de não ser capaz de dar conta das exigências pulsionais e de conviver com os aspectos contraditórios de si mesmo e do objeto faz com que, em fantasia, haja uma tendência a expulsar as experiências más, localizando-as fora de si e, ao mesmo tempo, a tentar incorporar e identificar-se com as experiências sentidas como boas. Assim, a ansiedade predominante é a persecutória (paranoide) e o estado do ego é fragmentado e cindido (esquizo). No entanto, Klein (1946/1991a) destaca que há uma tendência à integração do ego que alterna com uma desintegração defensiva, um movimento de vida que leva à integração e um de morte que leva à desintegração defensiva.

Essa forma de organização permite, devido ao predomínio das gratificações e da identificação com o objeto que gratifica, construir uma confiança em um objeto interno, sentido como mais capaz e mais forte para lidar com as frustrações e as emoções delas decorrentes. Com isto quero destacar o papel, estruturante e organizador, desse modo de constituição das vivências emocionais para a sobrevivência do ego no momento de fragilidade, bem como sublinhar a função da confiança neste bom objeto interno para estimular os movimentos de integração e a capacidade de suportá-la. A questão que se coloca é como conquistar tal confiança.

Uma experiência da ordem descrita por Klein para a posição esquizoparanoide é um modo de ser no qual o conhecimento de si mesmo e do mundo real é muito precário, na medida em que os aspectos dolorosos de si e do mundo não podem ser reconhecidos. Ao mesmo tempo, ao projetar sobre o mundo fora de si esses aspectos, a experiência do mundo é distorcida: nos momentos de prazer e gratificação este é sentido como perfeito e idealizado, e nos momentos de frustração passa a ser vivido como ameaçador e persecutório.

De maneira geral, neste modo de viver não é possível pensar na existência de alguém, dentro de si mesmo, capaz de interpretar a experiência vivida; não há subjetividade capaz de exercer mediação; é como se a pessoa fosse vivida pelas experiências boas ou más, como forças que se impõem, aparecem e desaparecem, contaminam e transformam sem que o sujeito possa interpretá-las. Perde-se uma possibilidade de perceber a causalidade e a temporalidade, que só seriam alcançadas com os movimentos de integração da posição depressiva.

Ogden (1996) descreve a posição esquizoparanoide como uma forma de organizar as experiências na qual estas são sempre impessoais e não reflexivas, com um modo quase automático de reagir e no qual pensamentos e sentimentos não são percebidos como criações pessoais e, sim, como acontecimentos factuais.

A cisão como forma predominante de reagir ao perigo permite ao sujeito amar e odiar com segurança, protegido das angústias decorrentes da ambivalência, pois um aspecto da experiência está sempre fora do alcance. Perigo e segurança são manejados de forma tal que a experiência é vivida de maneira descontínua, como resultado do splitting; o desagradável não é sentido como próprio e as experiências, de frustração e de prazer, são sentidas como descontínuas, o que torna impossível a percepção de que podem provir do mesmo objeto. A mãe que frustra passa a ser vivida como outra, diferente da que gratifica, o que permite odiá-la com mais segurança e propriedade. O que ainda não é possível perceber é que existe um "eu" que sente coisas diferentes e aparentemente contraditórias em relação a um mesmo objeto, o que gera uma falta de percepção de que a historicidade e a subjetividade afetam a forma de viver a experiência.

O conceito de identificação projetiva introduzido por Klein em 1946 começa a delinear um lugar para o objeto real neste processo, uma vez que insere um componente interpessoal nesta dialética de dispersão e integração dos afetos. Ela propõe a existência, desde os estágios iniciais, de um processo psíquico em que aspectos do self não são simplesmente projetados sobre o objeto, mas sim, como ela destaca, "para dentro do objeto", gerando efeitos sobre ele. Em suas descrições, Klein privilegiava as fantasias das crianças de controlar, possuir e dominar o objeto, mas suas ideias permitiram que autores como Bion explorassem o conceito em sua dimensão interpessoal.

O fascinante é perceber como a inclusão deste conceito de identificação projetiva coloca a mãe (ou o objeto que acolhe a identificação projetiva) como parte do processo que permite desenvolver a capacidade de conter e significar a experiência emocional. A continência materna, que acolhe a identificação projetiva do bebê, torna-se modelo e apoio para as experiências de integração e para alcançar a estabilidade emocional que é a base para o processo de subjetivação e de construção do eu. A leitura cuidadosa dos textos kleinianos deixa claro que ela nunca negligenciou o papel dos pais no desenvolvimento da criança. Um exemplo desta perspectiva pode ser visto na descrição do caso Dick (Klein 1930/1991b), no qual ela aponta a importância do distanciamento materno e da afetividade da babá sobre o comportamento da criança. Todavia, o conceito de identificação projetiva permitiu compreender de que forma este processo pode ser significado dentro do sistema kleiniano. As novas formulações propostas por Bion a respeito da revêrie materna e a colaboração dos autores que estudaram a identificação projetiva e seus efeitos na contratransferência sugerem que o uso das emoções despertadas como efeito da identificação projetiva poderia fornecer mais um instrumento para a compreensão do paciente.

Observemos o conceito de revêrie, termo adotado por Bion (1962/1988a) para referir-se a um estado mental de receptividade da mãe que lhe permite acolher as emoções projetadas por seu bebê e dar-lhes significado. A partir da introjeção desta mãe receptiva e compreensiva, a criança será capaz de desenvolver a capacidade de refletir sobre seus próprios estados mentais. Trata-se de uma mãe que se permite ser habitada pelo bebê e, em sua continência e revêrie, pode nomear, dar forma, significar, tranquilizar, digerir, transformar a experiência sentida como catastrófica pelo bebê. Tal capacidade implica que esta mãe tenha um espaço interno para acomodar a dor e as angústias.

Este conceito é assim descrito por Segal (1982):

Quando o bebê sente uma ansiedade intolerável, ele lida com ela projetando-a na mãe. A resposta da mãe é reconhecer esta ansiedade e fazer o que quer que seja necessário para aliviar a aflição do bebê. A percepção do bebê é que projetou algo intolerável sobre o objeto, mas o objeto foi capaz de contêlo e lidar com isto. Pode então reintrojetar não só a sua ansiedade original, mas uma ansiedade transformada por ter sido contida. Introjeta também um objeto capaz de conter e lidar com a ansiedade. A contenção da ansiedade por um objeto interno capaz de compreender é um início da estabilidade mental. (p. 183)

Diz Bion (1959/1988b), referindo-se a este processo:

a identificação projetiva lhe possibilita [ao bebê] investigar seus próprios sentimentos dentro de uma personalidade vigorosa o bastante para contê-los. A negativa ao uso deste mecanismo, seja pela recusa da mãe em servir como receptáculo dos sentimentos do bebê, ou pelo ódio e inveja do paciente, que não pode permitir que a mãe exerça esta função, leva à destruição do elo de ligação entre bebê e o seio e, conseqüentemente, a uma grave desordem do impulso de ser curioso, de qual depende toda aprendizagem. (p. 98)

Ao estudar a importância do conceito de identificação projetiva e a forma como Bion o reinterpretou, Ogden (1996) destaca que o bebê desenvolve sua capacidade de vivenciar seus próprios sentimentos e pensamentos por meio de uma experiência com a mãe, em que esta se empresta psiquicamente, experimentando os pensamentos impensáveis e os sentimentos intoleráveis projetados nela pelo bebê. Esta mãe sensível ao processo é evocada para tornar-se psicologicamente disponível, para ser usada desta forma.

Assim, a identificação projetiva para Bion não é somente uma fantasia inconsciente de projetar um aspecto próprio no outro e controlá-lo desde dentro; representa um acontecimento psicológico interpessoal no qual o projetor, por via de uma interação interpessoal real com o recipiente da identificação projetiva, exerce pressão sobre o Outro para que se vivencie e se comporte de forma congruente com a fantasia projetiva onipotente. (Ogden, 1996, p. 39)

Tal perspectiva da identificação projetiva retrata, segundo Ogden, uma conceituação de um sujeito descentrado de seu lugar exclusivo, pois trata-se de um sujeito concebido como emergindo de uma dialética (um diálogo) do self e do Outro, uma subjetividade que depende da existência de dois sujeitos que, juntos, criam uma intersubjetividade por meio da qual tem origem o sujeito individual.

A integração deste processo permite a introjeção de um bom objeto, um objeto capaz de conter, de significar e de simbolizar as experiências, o que faz com que novas formas de percepção do mundo estejam acessíveis, tornando possível viver o modo depressivo de organizar-se. Este desenvolvimento representa um grande avanço do ponto de vista psíquico e do ponto de vista da experiência emocional, pois implica a possibilidade de viver a subjetividade e a historicidade - tal mudança permite acompanhar a continuidade da experiência de si mesmo e do outro. Um elemento importante na posição depressiva é a possibilidade de elaborar a culpa. Novamente, devemos destacar a importância de um objeto externo que sobreviva à destrutividade do bebê e que possa também apresentar um mundo real - e não mágico e onipotente -, ampliando a percepção do outro e do mundo externo e interno.

Esta perspectiva traz ao trabalho analítico a importância da figura real do analista como aquele capaz de exercer tal função, pois o conceito de identificação projetiva propõe que a projeção pode dar-se para dentro do objeto, alterando sua identidade: "O encontro analítico passa a ser visto como uma relação e um processo de comunicação que produz um impacto mútuo, independentemente da vontade do paciente ou do analista" (Rocha Barros, 1989, p. 20).

O trabalho com crianças, por exemplo, coloca-nos muitas vezes no lugar ou da aluna incompetente, ou daquele que sempre perde no jogo, ou do que sabe tudo, ou do curioso e intrometido, ou do controlador e moralizador, ou do que está sempre errado - formas de comunicação da experiência da criança. O que está em jogo é a possibilidade de examinar a experiência pela qual passa o analista em seu aspecto perturbador e fazer o trabalho mental necessário para superar a perturbação. Logo, quando falamos em transferência, devemos também considerar a capacidade do analista de vivenciá-la. Ao finalizar sua análise comigo, um pequeno paciente de 6 anos, que aterrorizava seus pais e a escola com ameaças de destruição de si mesmo e dos outros, assim definiu sua visão do processo: "Você era a única que não ficava louca comigo, acho que por isso você conseguiu me ajudar."

Vários autores da atualidade destacam que se o paciente pode vivenciar o analista como alguém que suporta, compreende, contém e se mantém pensando, mesmo quando é induzido, na situação criada pelo paciente, a viver as emoções, os impulsos ou os sentimentos que ela viveu em suas relações de objeto iniciais, estão criadas as condições para que seja possível a introjeção não só do conteúdo que é interpretado pelo analista, mas também das próprias funções do analista como perceber, suportar e pensar. A partir do exposto, propomos pensar o processo analítico como o processo de uma dupla duas pessoas que vivem, juntas, dentro do setting, uma história analítica. É no desenrolar dessa história compartilhada que se desenvolve a análise (Favilli, 1998).

Esta visão do adoecer e do sofrimento humano inclui a dimensão relacional, tanto na sua articulação com o papel do objeto externo (família) na constituição do sujeito, quanto na inclusão da pessoa do analista no processo.

Conceber o papel do objeto externo no adoecer humano e o papel da revêrie materna na etapa inicial do desenvolvimento do bebê expandiu o espaço para intervenções psicanalíticas nos primeiros momentos do relacionamento pais-bebês, valendo-se do referencial kleiniano.

O fato de poder oferecer continências às angústias dos pais na relação com seus bebês tem-se revelado eficaz para ajudá-los a digerir emoções sentidas como insuportáveis e que eram depositadas em seus filhos. Acolher estas identificações projetivas e nomeá-las têm sido uma possibilidade de intervenção que permite a emergência de novos sentidos e o rompimento de barreiras que estejam bloqueando o desenvolvimento (Silva, Mendes de Almeida & Marconato, 2004).

Incluir esta dimensão implica pensar uma clínica na qual a revêrie e a figura real do analista são elementos primordiais para qualquer proposta de intervenção psicanalítica, o que, por sua vez, dá lugar a intervenções cada vez mais iniciais e efetivas, como o atendimento focado na relação pais-bebê. Estamos frente a novos enquadres, ou enquadres diferenciados, que permitem atingir, fundamentados na psicanálise, manifestações do fenômeno humano antes inexploradas pela intervenção psicanalítica.

Reconhecer a importância e a pertinência de intervenções nesta faixa etária é reconhecer como sintoma, como grito e pedido de ajuda, manifestações muito iniciais relativas a funções vitais como comer e dormir, e mesmo aquelas mais precoces, como a constituição de vínculo em famílias com bebês prematuros. Trata-se do uso do método psicanalítico em enquadres diferenciados, nos quais atenção flutuante, interpretação, transferência, contratransferência permitem uma escuta, um movimento de gestação de sentidos - intervenções que permitem a abertura para novos sentidos e desarmam as amarras que impedem o movimento do fluxo de desenvolvimento.

Ancorados em experiências de revêrie, emoções insustentáveis, antes "splitadas", projetadas e negadas, podem ser digeridas, possibilitando encontros transformadores que, na presença do outro, podem ser ressignificados e acolhidos. Isso permite que crianças barradas em seu desenvolvimento possam recuperar ou encontrar pais que as ajudem a desenvolver sua subjetividade.

Trabalhar com famílias que, devido a conflitos internos dos pais, apresentam fantasmas que rondam a relação com seus filhos e que os impedem de um contato com o bebê real, contribui para que estes conflitos encontrem formas menos tanáticas de expressão. Inundadas pelas identificações projetivas de seus pais, estas crianças pedem socorro através de seus sintomas, e a intervenção psicanalítica auxilia a abertura de novos sentidos.

Procurei mostrar, neste trabalho, como o conceito kleiniano de identificação projetiva não só permitiu valorizar o papel do objeto externo no processo de constituição do sujeito, como também alavancou modificações técnicas que passaram a considerar a figura do analista como parte do processo psicanalítico, além de oferecer ferramentas para intervenções em momentos iniciais do desenvolvimento, agindo no interior da relação pais-bebê.

 

REFERÊNCIAS

Bion, W. R. (1988a). Uma teoria sobre o processo de pensar. In W. R. Bion, Estudos psicanalíticos revisados (W. M. de M. Dantas, trad., pp. 101-109). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1962)         [ Links ]

Bion, W. R. (1988b). Ataques ao elo de ligação. In W. R. Bion, Estudos psicanalíticos revisados (W. M. de M. Dantas, trad., pp. 87-100). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1959)         [ Links ]

Favilli, M. P. (1998). Transformações da posição do analista no setting: não estamos mais num só lugar - até onde poderemos chegar? Revista Brasileira de Psicanálise, 32(4),835-843.         [ Links ]

Klein, M. (1991a). Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. In M. Klein, Inveja e gratidão e outros trabalhos - 1946-1963 (L. P. Chaves et al., trads., pp. 17-43). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1946)         [ Links ]

Klein, M. (1991b). A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego. In M. Klein, Amor, culpa e reparação e outros trabalhos - 1921-1945 (A. Cardoso, trad., pp. 249-264). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)         [ Links ]

Ogden, T. (1996). Os sujeitos da psicanálise (C. Berliner, trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Rocha Barros, E. M. (Org.). (1989). Melanie Klein: evoluções. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Segal, H. (1982). A obra de Hanna Segal: uma abordagem kleiniana da prática clínica (E. Nick, trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Silva, M. C. P., Mendes de Almeida, M., & Marconato, M. M. (2004). Redes de sentido: evidência viva na intervenção precoce com pais e crianças. Revista Brasileira de Psicanálise, 38(3),637-648.         [ Links ]

 

 

Recebido em agosto/2011.
Aceito em dezembro/2011.