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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.18 no.1 São Paulo abr. 2013

 

FUNDAMENTOS

 

Corpo e sinthoma: tratamento do gozo em Freud e Lacan

 

The body and the sympthom: enjoyment's treatment in Freud and Lacan

 

El cuerpo y el sinthoma: tratamiento del goce en Freud y Lacan

 

 

Christiano Mendes de Lima

Psicólogo, psicanalista, mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e membro da Clínica Freudiana de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil. Rua Amoré, 133 38411-372 – Uberlândia – MG – Brasil. christiano.m.lima@bol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo procura delinear como o corpo, a pulsão e o gozo aparecem articulados nas obras de Freud e Lacan. Nosso intuito é situar a ideia de que o aparelho dito psíquico é uma montagem para tratamento do gozo. Consideramos que tal tratamento é agenciado a partir das formas de atar o real, o simbólico e o imaginário (RSI) com base no sinthoma. Acreditamos que há formas borromeanas e não borromeanas de enodação de RSI e, portanto, de constituição da realidade. O campo das psicoses nos interessa particularmente, pois com Lacan podemos saber que aí se operam formas não borromeanas de amarração de RSI.

Descritores: corpo; gozo; psicose; RSI; sinthoma.


ABSTRACT

This article seeks to outline how body, drives and enjoyment appear articulated in Freud's and Lacan's works. Our aim is to situate the idea that the apparatus said psychic is an assembly for the enjoyment's treatment. We consider that such treatment is touted as ways of tying the real, the symbolic and the imaginary (RSI) by the symthom. We believe that there are borromeans and nonborromeans ways to articulate the RSI, and therefore the constitution of reality. The field of psychosis interests us because, with Lacan, we know that there we have non-borromeans ways of binding the RSI.

Index terms: body; joy; psychosis; RSI; sympthom.


RESUMEN

Este artículo busca delinear cómo el cuerpo, la pulsión y el goce aparecen articulados en las obras de Freud y Lacan. Nuestro objetivo es ubicar la idea de que el aparato dicho psíquico es un montaje para tratamiento del goce. Consideramos que se agencia tal tratamiento a partir de las formas de atar lo real, lo simbólico y lo imaginario (RSI) a partir del sinthoma. Consideramos que hay formas borromeanas y no borromeanas de enudaciones de RSI y, por lo tanto, de constitución de la realidad. Nos interesa particularmente el campo de las psicosis, pues con Lacan podemos saber que en este espacio se operan formas no borromeanas de amarradura de RSI.

Palabras clave: cuerpo; goce; psicosis; RSI; sinthoma.


 

 

Buraco, corpo e representação: articulações freudianas primordiais

Parece-nos que o corpo e sua (des)articulação com a realidade psíquica representa uma questão para a psicanálise desde Freud. Podemos ler as sucessivas teorizações freudianas, desde o "Projeto para uma psicologia científica" (1895/1990a), como tentativas de cernir o que se trata na relação entre o corpo e o aparelho dito psíquico. Desde o início, nosso autor considera que o aparelho psíquico é uma montagem para operar o tratamento das excitações que chegam ao infans, especialmente aquelas que advêm de excitações endógenas, ou seja, que brotam do corpo.

No "Projeto", podemos destacar duas ideias: em primeiro lugar, o aparelho psíquico é concebido como um sistema que permite acumular certa excitação interna – é um aparelho que permite tratar as excitações endógenas, ainda que seu objetivo último seja reduzi-las ou eliminá-las; em segundo lugar, Freud considera que o aparelho possui uma inércia – uma recusa ao acúmulo da tensão deve ser abandonada para que o aparelho psíquico suporte o aumento da excitação. Assim, a montagem psíquica precisa funcionar como um regulador da excitação, isto é, suportar certo acúmulo e operar um savoir-faire com o que invade o sistema a partir das exigências do corpo. Podemos, então, situar duas questões: como o corpo é tratado na e pela montagem da maquinaria defensiva diante do excesso que provém, em última instância, do próprio corpo? Que uso do corpo é possível em cada montagem?

Se tomarmos outros textos considerados "pré-psicanalíticos", que figuram na correspondência de Freud com Fliess (Masson, 1986),1 em que os estados melancólicos são examinados, notamos que Freud procura operar uma distinção entre os quadros de melancolia, situando alguns no campo das neuroses (neurose de angústia e neurastenia), e outro, considerado melancolia genuína, que podemos pensar como situado no campo das psicoses. Teríamos a diferença entre a sintomatologia depressiva presente nas neuroses e o que aparece como uma diminuição ou estase na excitação sexual somática, o que caracterizaria o estado melancólico propriamente dito. Haveria aqui uma perda da libido e o correlato estado de anestesia psíquica.

No chamado "Rascunho B", que consta na carta à Fliess de 8 de fevereiro de 1893, Freud já trata da etiologia das neuroses e produz uma distinção importante entre o quadro clínico em que a depressão figura como sintoma de uma neurose de angústia e a melancolia verdadeira. O eixo de diferenciação se articula em torno do desencadeamento do sofrimento: enquanto na neurose de angústia, que toma a forma de uma depressão periódica branda, pode-se estabelecer uma relação lógica entre um trauma psíquico e o desencadeamento dos sintomas (angústia e depressão), na melancolia propriamente dita não é evidente um nexo entre um fator precipitante e o surgimento do estado melancólico. Além disso, "a depressão periódica branda ocorre sem anestesia psíquica, que é característica da melancolia" (Masson, 1986, p. 43). Assim, enquanto na depressão neurótica um nexo lógico, histórico e temporal se faz evidente, situando o padecimento neurótico em uma espécie de continuidade com o vivido do sujeito, no estado melancólico genuíno, característico do campo das psicoses, aparece uma ruptura, uma descontinuidade entre o vivido do sujeito e a emergência dos sintomas. Parece-nos que esta aparente descontinuidade é o que faz o discurso psiquiátrico supor que há causas físicas, endógenas, para os estados melancólicos e maníacos, ao passo que as depressões neuróticas são consideradas reativas por apresentarem evidências de que o quadro mórbido se articula à vivência do sujeito, constituindo uma espécie de resposta a um evento suposto traumático.

Ocorre que, no "Rascunho G", após operar as discriminações sobre os tipos de melancolia – que podemos reorganizar em função da distinção entre neurose e psicose, dizendo que a melancolia genuína ou propriamente dita se situa no campo das psicoses, ao passo que a melancolia neurastênica e a melancolia de angústia recobrem a sintomatologia depressiva que se insere no âmbito das neuroses –, Freud formula uma hipótese explicativa para os efeitos psíquicos da melancolia a partir da constatação de que nos estados melancólicos ocorre uma "inibição psíquica com empobrecimento pulsional e dor a respeito dele" (Masson, 1986, p. 102, itálicos do autor), ou seja, o sofrimento, a dor, é decorrente do empobrecimento pulsional. No entanto, nesta hipótese, a diferença que poderíamos tomar como estabelecida entre o campo das neuroses e o campo das psicoses parece não ser considerada.

A hipótese freudiana é a seguinte: quando o psiquismo é confrontado a uma perda significativa

no volume de sua excitação, é possível que ocorra um retraimento ... para a esfera psíquica, que produz um efeito de sucção sobre os volumes de excitação adjacentes. Os neurônios associados têm que abandonar sua excitação, o que produz dor.... Desfazer associações é sempre doloroso; instala-se, como que através de uma hemorragia interna, um empobrecimento da excitação (no estoque livre dela), que se faz sentir nos outros impulsos e funções pulsionais. Como na inibição, esse retraimento age como uma ferida, de maneira análoga à dor.... A contrapartida disso seria a mania, onde o excedente de excitação se comunica a todos os neurônios associados. (Masson, 1986, pp. 104-105, itálicos do autor)

Freud, então, opera uma distinção entre a neurastenia e a melancolia. Se em ambas há um empobrecimento pulsional – "um escoamento da excitação ... por um buraco" (Masson, 1986, p. 105) –, na neurastenia o que se esvai é a excitação somática, enquanto que na melancolia o buraco se situa no campo psíquico. Assim, trata-se de um buraco que se situa no nível das representações psíquicas.

Neste texto, Freud ainda afirma que, na prática clínica, pode ser difícil discriminar os quadros neurastênicos dos melancólicos, visto que o empobrecimento neurastênico pode produzir efeitos no campo psíquico. De resto, é esta imbricação entre somático e psíquico que faz Freud pensar na existência de quadros mistos, os quais denomina melancolia neurastênica.

Retornemos à citação acima a fim de demarcar algumas ideias que nos serão úteis para pensarmos o estatuto da psicose e do corpo no pensamento freudiano. Primeiramente, notemos que Freud formula sua hipótese explicativa sobre os efeitos psíquicos da melancolia utilizando palavras oriundas do campo discursivo da neurologia. No entanto, podemos notar claramente que, para Freud, os neurônios são o suporte material das representações (agrupamento de ideias) e das cargas pulsionais que percorrem o aparelho psíquico, investindo e desinvestindo as representações e os neurônios que as suportam. Sabemos que, mais tarde, em seus escritos reconhecidamente psicanalíticos, Freud não vai mais utilizar esta linguagem neurológica e substituirá o termo neurônio pelo termo representante-representação (ou, abreviadamente, representação) para se referir à inscrição psíquica da pulsão. Queremos destacar, porém, que, se no texto do "Projeto" a linguagem é neurológica, isto não quer dizer que nosso autor está produzindo uma teoria neurológica do psiquismo. Basta estarmos atentos para as articulações de ideias que subjazem aos termos empregados para percebermos que Freud produz uma teoria sobre o funcionamento psíquico que não se reduz ao campo discursivo da medicina. Por exemplo, a palavra neurônio é por vezes utilizada como um sinônimo de grupo sexual psíquico, ou seja, como equivalente ao grupo de ideias investido por determinada quantidade de energia. Além disso, os neurônios, ou grupo sexual psíquico, na concepção freudiana, articulam-se como uma estrutura, uma vez que a variação abrupta na quantidade de energia (excitação) investida em um grupamento psíquico produz efeitos em outros grupamentos ou neurônios.

Assim, Freud correlaciona o desinvestimento maciço de um conjunto de representações com o efeito de sucção produzido nos neurônios, ou nos grupamentos de representações, que guardam com os neurônios desinvestidos uma relação de adjacência ou contiguidade. Os neurôniosrepresentações associados aos neurônios-representações desinvestidos são obrigados a abandonar sua carga de energia, pois o desinvestimento brusco produz um buraco representacional que aspira a energia psíquica como uma ferida pode fazer perder o sangue em uma hemorragia interna. Há, de fato, uma hemorragia interna ao campo representacional produzida pela irrupção de um buraco – ou seja, de um vazio representacional –, em que se esvai a energia psíquica. Deste modo, o estado melancólico se faz presente.

Freud afirma que a antípoda deste processo ocorre na mania, em que haveria um excesso de excitação, isto é, de energia pulsional no aparelho psíquico, que se espalha por todos os neurônios associados, pela rede articulada de neurônios-representações. Podemos pensar que a ilustração clínica deste processo é a fuga maníaca de ideias. Queremos destacar que também aqui Freud fala que "o excedente de excitação se comunica a todos os neurônios associados" (Masson, 1986, p. 105). É possível perguntar: associados a quê? Apesar de isto não ser explícito, podemos inferir que também na mania haveria a irrupção de um buraco no campo das representações. Assim, os neurônios-representações associados, ou seja, na contiguidade deste furo, são sobreinvestidos. Nossa hipótese é que este sobreinvestimento é produzido por um processo defensivo que objetiva evitar que a energia pulsional se escoe pelo buraco, como ocorre na melancolia. Deste modo, reencontramos a ideia de que a mania é o efeito de uma defesa contra a melancolia e podemos pensar o caráter cíclico de certos quadros clínicos em que se alternam episódios melancólicos e episódios maníacos. No ciclo melancolia-mania, temos que o psiquismo procura se defender do escoamento libidinal ocasionadoo no tempo melancólico a partir do sobreinvestimento dos neurônios-representações adjacentes ao buraco no campo representacional. Produz-se, desta forma, o tempo maníaco do ciclo. Como nem sempre esta estratégia defensiva pode se mostrar eficaz e a energia psíquica pode ser novamente sugada pelo furo, o sujeito pode retornar ao tempo melancólico e assim sucessivamente. Queremos assinalar que tanto no tempo maníaco quanto no melancólico o corpo é claramente afetado.

Notemos que, na hipótese explicativa acerca da melancolia formulada por Freud, ele não faz distinção entre os tipos de melancolia que havia inicialmente descrito. Parece, portanto, evidente que nosso autor aqui se refere ao conjunto dos estados melancólicos, não operando nenhuma diferenciação que nos permitisse determinar que singularidade operaria nos quadros de melancolia situados no campo das neuroses e que elemento diferencial estaria presente no registro das psicoses. Aqui a distinção entre neurose e psicose parece se esfumar. Estaria Freud passando ao largo da diferenciação proposta anteriormente, quando estabeleceu uma tipologia dos estados melancólicos? A reordenação que operamos desta tipologia em torno da distinção neurose/psicose não mais se sustenta?

 

Do buraco ao furo: estrutura e psicopatologia

A hipótese freudiana é a de que a melancolia produz uma inibição psíquica, um empobrecimento pulsional e um estado de dor provocado pela estase da vida pulsional. Este empobrecimento é efeito da irrupção de um buraco no campo das representações psíquicas, ou seja, há a irrupção súbita de um furo que insiste em permanecer furo, resistindo a ser recoberto por representações imaginárias e/ou simbólicas. Este furo que presentifica o impossível de ser representado – isto é, o real – traga a energia psíquica e ocasiona o empobrecimento pulsional e a vivência de dor, típicos dos estados melancólicos. Esta hipótese é válida para as vivências melancólicas situadas no campo das neuroses bem como para as que acontecem no registro das psicoses.

Concordamos com a hipótese de Freud. No entanto, parece-nos necessário, a partir das elaborações de Lacan, construirmos uma hipótese suplementar: a diferença entre os quadros clínicos de melancolia nas neuroses e aqueles que aparecem no campo das psicoses se situa nas formas de articulação com este buraco, com este furo no campo das representações psíquicas. Sabemos, a partir de Lacan, que este impossível de escrever – a saber, o real – está sempre em causa, quer se trate de neurose ou psicose. No entanto, a suplência ao real não é aparelhada de modo idêntico em formas borromeanas (neurose) e em formas não borromeanas (psicose) de amarração de RSI, ou seja, o savoir-faire com o impossível de representar – com o real – se aparelha de modo distinto nas neuroses e nas psicoses. Parece-nos também que o corpo se vê convocado de modo diferente em formas borromeanas e em formas não borromeanas de amarração de RSI.

No texto "As neuropsicoses de defesa" (1894/1990b), Freud procura pensar o campo psicopatológico como uma espécie de efeito colateral de operações defensivas. Embora não houvesse definido o conceito de inconsciente e formulado o que caracteriza o modo de funcionamento da "outra cena", podemos ler neste texto a forma embrionária de várias ideias que terão uma formulação mais rigorosa nos escritos metapsicológicos de 1915. Além disso, nosso autor parece considerar que neurose e psicose são efeitos de operações defensivas distintas. Notemos que as defesas se põem em marcha para procurar fazer frente ao que é da ordem de um excesso pulsional. Lembremos que Freud (1894/1990b) concebe o aparelho psíquico como formado por representações e por cargas de excitação. Estas cargas de excitação possuem certa mobilidade e podem investir e desinvestir as representações. Assim, as representações podem ser pensadas como sítios que podem ser ocupados e desocupados por quantidades de excitação. Esta ideia é, grosso modo, mantida nas teorizações metapsicológicas de 1915.

Freud (1894/1990b), a partir desta concepção do psiquismo, formula uma base comum para a formação dos sintomas que se situam no campo das neuroses. Para ele, o mecanismo de formação dos sintomas, tanto histéricos quanto fóbicos e obsessivos, é decorrente de um processo defensivo que consiste na retirada de excitação (energia) que estava investida em uma representação incompatível com o restante da vida representativa consciente do sujeito. Este desinvestimento de excitação torna a representação incompatível fraca, ou seja, desliga-a do restante da vida representativa consciente com a qual perde os nexos associativos. Esta ideia desinvestida não desaparece, pois formará o núcleo de um grupamento psíquico separado da consciência de onde continua a produzir efeitos, determinando a produção dos sintomas.

A partir deste mecanismo comum de formação dos sintomas neuróticos – o recalcamento, que consiste no processo defensivo que opera uma separação entre representação e carga de excitação –, o destino da excitação toma caminhos diferentes para a produção de sintomas histéricos, fóbicos ou obsessivos. Assim, pode ser direcionada ao corpo, dando origem aos sintomas conversivos na histeria ou permanecer na esfera psíquica, ligando-se a outra representação, o que produz a localização da angústia no objeto fóbico ou as representações de que goza o obsessivo.

No entanto, ainda segundo Freud (1984/1990b), na psicose a operação defensiva seria mais radical: trata-se da rejeição de uma representação intolerável juntamente com seu afeto. Esta operação lança o sujeito em uma psicose alucinatória, visto que o eu, ao eliminar a representação e o afeto do campo representacional, rompe com a realidade e é tomado pela vivência alucinatória. Isso seria a explicação para que as representações do sujeito retornem de fora na experiência alucinatória e ganhem um caráter especialmente vívido. Várias leituras são possíveis: notemos que Freud fala de um desligamento da realidade pela rejeição de uma representação e de seu afeto. Logo, há uma íntima conexão entre o campo representacional e o campo da realidade. Em outros termos, a realidade é constituída pelo campo representacional, já que a excitação (o afeto) é manejada neste campo. Se a excitação/afeto não percorrer um trilhamento dado pelas representações (registro articulado do imaginário e do simbólico), seu lugar de retorno será o real. Assim, o campo da realidade é invadido pelo real. Outra leitura pode ser feita: a rejeição da representação pode ser entendida como a não inscrição dela no campo representacional. A rejeição, portanto, é uma não admissão no simbólico de uma representação. De todo modo, podemos considerar que, na psicose, há um furo no simbólico decorrente de uma operação defensiva radical.

 

Linguagem, gozo e corpo: articulações lacanianas

Estes últimos argumentos são caros a Lacan no início de sua obra, que se inscreve sob a égide do "retorno a Freud". Permite situar no texto freudiano uma diferença estrutural entre a neurose e a psicose. Lacan destaca da obra de Freud o termo Verwerfung (rejeição) e o alça à categoria de conceito ao traduzi-lo por foraclusão, delimitando, assim, o mecanismo em causa na estruturação da psicose. Destaca que a foraclusão incidiria sobre um significante específico – o Nome-do-Pai. Portanto, a psicose é a estrutura decorrente da foraclusão do Nome-do-Pai no inconsciente – a não inscrição da castração no simbólico.

Desse modo, Lacan (1983), ao comentar o caso do Homem dos Lobos, de Freud, e o caso Dick, de Melanie Klein, permite-nos situar o que ocorre quando há um fracasso na Bejahung, ou seja, uma não admissão no simbólico. A respeito do episódio da alucinação do Homem dos Lobos, Lacan afirma que neste caso há uma Verwerfung (rejeição) da castração. Aqui, Lacan faz corresponder o mecanismo da Verwerfung a uma não ocorrência da Bejahung e afirma que não se pode ler a alucinação a partir da ideia de denegação, já que o conteúdo denegado está inscrito no simbólico, enquanto aquilo que foi objeto de Verwerfung não foi afirmado, aceito, admitido no plano simbólico (não há Bejahung). Diz Lacan: "Essa rejeição [Verwerfung], fomos levados a situá-la no nível, eu diria da não-Bejahung, porque não podemos colocá-la, absolutamente, no mesmo nível do que uma denegação" (p. 73). Ocorre que a Bejahung é a condição de existência de algo para o sujeito, e quando esta fracassa, quando não há inscrição no simbólico, o sujeito queda extraviado, imerso no que Lacan chama de um real primitivo (não simbolizado) em que o outro não existe.

Embora Lacan, nesta época, ainda não tenha realizado suas elaborações sobre a teoria dos nós e, consequentemente, acerca do enodamendo dos registros do Real, do Simbólico e do Imaginário (RSI) já podemos ver aqui o embrião destas ideias: "De um modo geral, com efeito, a condição para que alguma coisa exista para o sujeito, é que haja Bejahung" (1983, p. 73), isto é, a não admissão no Simbólico (no Outro) equivale a uma não existência. Lacan continua: "O que é que se passa quando essa Bejahung não se produz e quando nada é, pois, manifestado no registro simbólico?" (p. 73). O que ocorre é uma desagregação ou uma não estruturação da realidade do sujeito e da relação com o outro/Outro: "O outro não existe mais. Há uma espécie de mundo exterior imediato, manifestações percebidas no que chamarei um real primitivo, um real não-simbolizado" (p. 74), ou seja, há o efeito que aparece no registro imaginário (o outro não existe) e o que se manifesta no registro do Real: o sujeito vive em um mundo não humano, visto que não marcado pelo desejo do Outro/ outro. É o que Lacan chama aqui de real primitivo – um real não delimitado pelo campo da palavra e da Linguagem.

Assim, Lacan descreve um estado em que o sujeito se encontra em impasse, imerso em uma "espécie de mundo exterior imediato" (1983, p. 74), em um real primitivo, em uma realidade não simbolizada, ou como nosso autor se refere ao pequeno Dick de Klein: "nele, o que não é simbolizado é a realidade. Esse jovem sujeito está inteirinho na realidade, no estado puro, inconstituído. Ele está inteirinho no indiferenciado" (p. 84). Propomos, por ora, chamar esta vivência produzida no momento em que há impasse na constituição do sujeito de estado de ser no real. Queremos designar com este termo o que ocorre no momento em que o sujeito se encontra eclipsado pela alucinação ou o estado em que se encontram as crianças diagnosticadas como autistas ou psicóticas, em que a função sujeito se encontra em impasse. Notemos que são vivências em que o corpo está necessariamente implicado, invadido pelo gozo.

Neste ponto de nosso texto, recorreremos a algumas indicações que Miller (1994, 2003, 2009, 2011) tem feito ao longo dos anos em seu seminário, inscrito sob a rubrica Orientação Lacaniana, para situar momentos cruciais do ensino de Lacan. Primeiramente, lembremos que no início das teorizações de Lacan há uma espécie de oposição entre desejo e gozo. O arcabouço teórico presente até então implica uma valorização do simbólico em detrimento dos registros do imaginário e do real. Toda a crítica que Lacan empreende – em seus primeiros seminários, aos teóricos da psicologia do ego, aos teóricos das relações objetais e a outros "descaminhos" sofridos pela psicanálise pós-freudiana – pode ser considerada como a demonstração dos impasses a que uma análise pensada a partir do imaginário leva. Lacan precisava então valorizar o campo da palavra e da linguagem – o simbólico – para fazer frente a uma espécie de imaginarização do campo teórico e prático da psicanálise. Podemos pensar que o efeito colateral desta estratégia tenha sido uma aposta excessiva no poder regulador do campo da palavra e da linguagem, presentificado em seu significante maior: o Nome-do-Pai. Este aparecia como o que garantiria uma relação do sujeito com a Lei e com o Desejo, ao mesmo tempo que erigiria uma barreira ao gozo, figura do desregramento pulsional. Há uma aposta no Pai, uma aposta em Freud e em seu sonho. Ou seja, há uma crença no Édipo e em seu poder metaforizante. Neste campo histórico/conceitual, a relação do sujeito com o corpo aparece regulada pelo Nome-do-Pai e organizada em torno do significante falo. Deste modo, o gozo aparece como sexual, visto que articulado ao falo e à castração.

Parece-nos que a partir do seminário 10, realizado em 1962-1963, Lacan inicia a formalização progressiva do objeto a e esta aposta excessiva no Pai como organizador da realidade psíquica começa a ceder. No fim deste seminário, Lacan já aponta para a pluralização dos Nomes-do-Pai. O seminário seguinte, intitulado precisamente Os Nomes-do-Pai, só tem uma sessão, realizada em 20 de novembro de 1963. É interrompido em meio a questões institucionais. Lacan retoma seu seminário em 15 de janeiro de 1964. Trata-se do seminário 11, em que a causação do sujeito é examinada a partir das operações lógicas de alienação e separação. Acreditamos que aqui o inconsciente segue sendo pensado como estruturado como uma linguagem, mas já se caminha para pensar a linguagem como um aparelhamento do gozo, conforme se evidencia na teoria dos discursos, articulada no seminário 17.

Deste seminário, realizado nos anos de 1969-1970, queremos destacar algumas ideias. Primeiramente, Lacan define "o discurso como uma estrutura necessária, que ultrapassa em muito a palavra" (1994, p. 11), chegando a afirmar que a linguagem institui determinadas relações estáveis, pois é uma estrutura e, como tal, determina relações e lugares simbólicos. Trata-se aqui de uma estrutura de linguagem, de discurso, que não depende das palavras enunciadas para existir, isto é, trata-se de um "discurso sem palavras" (p. 11). O inconsciente é, então, matemizado como discurso do Mestre:

Aqui está formalizada a relação do sujeito com o significante que Lacan afirma se tratar de uma relação fundamental da qual emerge o sujeito, "em virtude do significante que, no caso, funciona como representando esse sujeito junto a um outro significante" (p. 11). Este discurso, o do Mestre, podemos lê-lo como o discurso do inconsciente, uma vez que produz o sujeito do inconsciente. Queremos destacar que a teoria dos discursos coloca em evidência o resto que estruturalmente é produzido por qualquer tratamento metafórico do gozo.

Vejamos: S1 é chamado de significante-mestre, aquele que intervém junto a S2, que é a cadeia significante. A partir desta articulação significante, há a emergência do Sujeito ($) e a queda do objeto a, resto desta operação. Aqui devemos fazer duas observações a fim de tornar claro o encaminhamento posterior de nosso raciocínio: a primeira, sobre o objeto a; a segunda sobre S1 e sua relação com S2 (o saber).

O objeto a não é um objeto natural, mas o produto, o efeito da articulação significante. Lacan afirma que da intervenção de S1 em S 2 "surge alguma coisa definida como perda. É isto o que designa a letra que se lê como sendo o objeto a" (1994, p. 13). Ocorre que o objeto a, este resto da operação significante, tem estreita relação com o gozo produzido pela repetição significante. Como pudemos ler, Lacan afirma que na operação significante há perda – de gozo (entropia) – e é o objeto a que, na estrutura, representa esta perda e movimenta a repetição em busca da tentativa de recuperação (impossível) desta perda. É desta impossibilidade estrutural de recuperação do gozo, isto é, de se satisfazer com o objeto (o que seria possível se se tratasse de um objeto natural) que surge a dimensão do Desejo ou do sujeito do desejo. Neste ponto da teorização, Lacan considera o objeto a como causa do desejo, o que acaba por levá-lo a pensar que o objeto a é também condensador de gozo.

Decorre disso que o gozo é produzido na e pela linguagem, o que implica também sua (des)regulação por esta. A linguagem (o saber) gera, circunscreve e limita o gozo: "o saber, isto é o que faz com que a vida se detenha em um certo limite em direção ao gozo. Pois o caminho para a morte ... nada mais é do que aquilo que se chama gozo" (Lacan, 1994, p. 16). Assim, a oposição entre linguagem e gozo deve ser nuançada, já que aqui Lacan destaca que a linguagem é meio de gozo e o significante é o que aparelha o gozo. A extração do objeto a produz uma (des)localização do gozo, ou seja, uma extração do gozo do corpo e um enquadre deste pelo fantasma. Neste seminário, se evidencia de modo mais claro a relação entre a linguagem, o gozo e corpo.

No seminário 20, Lacan reafirma a relação entre o inconsciente estruturado como uma linguagem e noção de que a linguagem é um aparelho de gozo. Afirma que "a realidade é abordada com os aparelhos do gozo. Isto não quer dizer que o gozo é anterior à realidade" (1985, p. 76). Isto implica que para o parlêtre (falasser) não há possibilidade de o corpo não ser afetado pela linguagem e é isto que constitui o inconsciente e o gozo. Há um ser de gozo que se produz pela afetação da lalíngua2 sobre o corpo. Este ser de gozo se inscreve em "signos bizarros no corpo" (p. 13). Resta notar que, se utilizamos o termo ser, o fazemos a partir da meridiana diferenciação feita por Lacan em relação ao uso desta palavra no campo da filosofia e no contexto de sua elaboração teórica no campo psicanalítico, quando afirma que não se pode falar de ser como se fala "na tradição filosófica, quer dizer, que se assenta no próprio pensar tido por seu correlato,3 eu oponho que nós somos jogados e gozados pelo gozo" (pp. 95-96). Há o gozo do ser e deve-se "reconhecer a razão do ser da significância no gozo, no gozo do corpo" (p. 96). Notemos que, se a razão do ser da significância se encontra no gozo do corpo, isto não quer dizer que haja significância neste estado de gozo, mas tão somente que a significância deve se produzir a partir daí, com a captura, e sua consequente dosagem, deste gozo nas tramas da linguagem. Assim, com base em Lacan, propomos que este estado de ser no real implica uma vivência do gozo situado no corpo, ou melhor, na carne enquanto substância gozante e que, a partir daí, algo deve operar para produzir o sujeito. Diz Lacan: "o ser, é gozo do corpo como tal, quer dizer como assexuado" (p. 15) porque o que torna o gozo sexual é a marca do falo. Com isso, podemos dizer que o gozo do ser se situa em um tempo não marcado pelo falo, ou seja, pela castração.

 

Lalíngua, linguagem e tratamento do gozo: Lacan com Freud

Para retomar Freud e sua teoria de que o aparelho psíquico é um aparelho para tratar o excesso pulsional, acreditamos poder relacionar os primeiros registros psíquicos – os traços mnem, que Freud hipotetiza na famosa carta 52 à Fliess, datada de 6 de dezembro de 1896, e retoma no capítulo VII de "A interpretação dos sonhos" (1900/1990c) – com o registro da afetação inicial do vivente pelo que Lacan denomina lalíngua (lalangue). Trata-se da incorporação inicial de uma bateria assemântica, que se imprime na carne do vivente, um traço que produz um ser de gozo. Entendemos que esta marcação inicial não se dá de modo aleatório, mas se organiza pelas incidências da sexualidade feminina na carne do infans. Isto é, o ser de gozo que se produz pela incidência do gozo do Outro, dito materno, sobre a carne não é sem consequências para a elaboração de um savoir-faire com o real. Por isto, Lacan afirma a estreita relação da lalíngua com o materno:

Alíngua serve para coisas inteiramente diferentes da comunicação. É o que a experiência do inconsciente mostrou, no que ele é feito de alíngua, essa alíngua que vocês sabem que eu a escrevo numa só palavra, para designar o que é a ocupação de cada um de nós, alíngua dita materna, e não por nada dita assim. (1985, p. 188)

Destaquemos daí a ideia de que a lalíngua se articula com o gozo materno, visto que é o registro de uma primeira incidência deste na carne do infans, e a asserção de que o inconsciente é feito de lalíngua. No entanto, afirmar esta relação entre inconsciente e lalíngua não significa que haja uma identidade entre estes conceitos. Ou seja, o inconsciente é feito de lalíngua, a partir da lalíngua, já que é uma construção defensiva erigida sobre esta, uma construção defensiva contra o gozo do Outro, cujas marcas no vivente são materializadas no gozo da lalíngua. Esta leitura é consoante com a notação freudiana de que os traços mnem precisam ser rearranjados e submetidos a uma espécie de retranscrição para que haja o inconsciente. Se estamos no tempo lógico das marcações dos traços mnem, não há ainda inconsciente, embora estas marcas sejam o que de mais inconsciente há no ser. Para haver inconsciente, Freud o diz, é necessário haver um rearranjo, uma retranscrição das marcações originais. Aí podemos situar a relação que Lacan estabelece entre a lalíngua, a linguagem e a produção do inconsciente.

Tomemos como ponto de partida a seguinte citação: "Se eu disse que a linguagem é aquilo como o que o inconsciente é estruturado, é mesmo porque, a linguagem, de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber concernentemente à função da alíngua" (Lacan, 1985, p. 189). Assim, a linguagem e o inconsciente não existem de início, sendo a linguagem uma primeira forma de tratamento da lalíngua, cujo efeito é o inconsciente. Quer dizer, a função defensiva da linguagem procura recobrir, envelopar, erigir defesa contra as marcas de gozo inscritas no corpo a partir da lalíngua. Por isto, Lacan afirma que "a linguagem é uma elocubração [sic] de saber sobre alíngua" (p. 190).

Ocorre que tal saber – produtor do inconsciente – não recobre totalmente o gozo da lalíngua. O ser falante é sempre afetado pela lalíngua. Diz Lacan:

O inconsciente é o testemunho de um saber, no que em grande parte ele escapa ao ser falante. Este ser dá oportunidade de perceber até onde vão os efeitos da alíngua, pelo seguinte, que ele apresenta toda sorte de afetos que restam enigmáticos. Esses afetos são o que resulta da presença da alíngua no que, de saber, ela articula coisas que vão muito mais longe do que aquilo que o ser falante suporta de saber enunciado. (1985, p. 190)

O real insiste na lalíngua, que não se submete ao saber inconsciente. O ser falante é afetado de tal modo pelos efeitos do real que retorna sempre ao mesmo lugar, ou seja, às marcas de gozo que lalíngua cavou na carne.

Estas marcas de gozo podem ser operadas a partir da constituição de um savoir-faire com lalíngua, que ultrapassa, mas é condicionado pela linguagem. Assim, "o inconsciente é um saber, um saber-fazer [savoir-faire] com alíngua. E o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de linguagem" (1985, p. 190). Se situarmos esta afirmação de Lacan no momento em que está na construção de sua teoria, entendemos que a linguagem neste período ainda está relacionada com a teoria dos discursos, construída a partir do seminário 17.

Lacan, no seminário 23, com base no que ocorre com James Joyce, percebe que se pode operar um savoir-faire com lalíngua e criar uma maquinaria de tratamento do gozo que não passa pela montagem do laço social, isto é, pelo tratamento da linguagem pelo discurso do Mestre. Se acompanharmos o movimento da obra lacaniana, temos que subscrever a leitura de Miller (2009) de que podemos distinguir um inconsciente real e um inconsciente transferencial. Nossa hipótese, sustentada em Mandil (2010), é a de que "podemos considerar o inconsciente transferencial como um modo de defesa em relação ao inconsciente real, um modo de defesa que encerra um gozo e que abre as portas para uma experiência analítica" (p. 240). Pensamos que em Joyce, por exemplo, o tratamento do inconsciente real não se deu a partir do inconsciente transferencial (pelo tratamento pela via do discurso do Mestre). Com Joyce, Lacan percebe o tratamento do gozo pela via do sinthoma.

No seminário 23, com o estudo da relação de James Joyce com a linguagem, Lacan (2007) pode situar uma via de tratamento não metafórico do gozo – um savoir-faire com o real que não se articula pela metáfora paterna, nem pela metáfora delirante como o caso Schreber, comentado no seminário 3, nos anos de 1955-1956. O sinthoma aparece como um quarto elo que procura atar RSI, e o Nome-do-Pai aparece, assim, como um dos nomes do sinthoma, uma das figurações possíveis do quarto elemento. Lacan percebe que sempre se está no registro da suplência, ou seja, sempre é necessário agenciar uma forma de tratamento do real. Este savoir-faire pode ser operado a partir da constituição de um sentido (mensagem, metáfora) ou de algum elemento que procura circunscrever o real. Lacan (1979/2003) afirma que o falasser (parlêtre) não pode deixar de escrever a articulação de RSI (trindade) desde que está no mundo, afetado pela linguagem. Diz ele: "a trindade, UOM não pode deixar de escrevê-la, desde o momento em que se imunda [s'immonde]" (p. 562). Assim, a consideração teórica e clínica de que estamos sempre no registro da suplência, de que todo falasser precisa agenciar um artifício para articular RSI, leva-nos a pensar a direção do tratamento a partir da noção de sinthoma, isto é, o analista deve procurar identificar a forma como cada falasser constitui seu modo de tratamento de gozo, seu savoir-faire com o real.

 

Considerações finais

Neste texto, procuramos pensar o aparelho dito psíquico como uma montagem defensiva para tratamento do gozo. Como considerações finais, queremos avançar algumas questões-hipóteses que merecem um desenvolvimento maior que excederia a proposta deste artigo, mas que importa serem delineadas, tendo em vista a trajetória que percorremos desde os primeiros trabalhos de Freud até as últimas proposições de Lacan. Trata-se da hipótese de que a referida montagem para o tratamento do gozo se dá a partir de, pelo menos, três tempos lógicos: 1) há a expulsão (Ausstossung) da excitação ou a inscrição de traços (primeiro registro da excitação). Aqui se produz um estado de ser no real que se dá pela marcação do corpo pela lalíngua. Produção de um ser de gozo, próximo ao que poderíamos designar como gozo da carne, que pode ser caracterizado como gozo de um corpo assexuado. A ilustração clínica deste gozo pode ser encontrada no gozo do autista (estereotipias, autoagressão, agitação psicomotora, etc.); 2) tratamento, pela linguagem, deste ser de gozo produzido pelas marcas do gozo materno sobre o corpo do infans. Ou seja, a lalíngua é tratada pela linguagem e o efeito é a produção de um inconsciente real. Há a produção de um gozo da linguagem conforme pode ser evidenciado em Joyce; 3) o inconsciente real é tratado pelo discurso do Mestre e o gozo é aparelhado pelo fantasma fundamental. Temos então o inconsciente transferencial, que implica o laço social e a produção de um gozo da fantasia, como vemos se desdobrar na neurose e na perversão. Consideramos que, em toda a montagem, um corpo de gozo está concernido e que um uso do corpo está implicado.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Lembremos que as cartas a Fliess e outros escritos produzidos entre 1866 e 1899 estão reunidos pelo editor inglês das obras completas de Freud sob a denominação de "Publicações pré-psicanalíticas". O rascunho B consta na carta a Fliess datada de 8 de fevereiro de 1893 e o rascunho G foi provavelmente escrito em janeiro de 1895.

2 O termo lalangue foi vertido para o português na tradução de Outros escritos como lalíngua. Manteremos este termo, a não ser quando estivermos fazendo citações literais de textos anteriores à publicação de Outros escritos, em que se verteu o termo como alíngua.

3 Vê-se aí a referência a Descartes (1989) e sua identificação do ser ao pensamento

 

 

Recebido em novembro/2012.
Aceito em fevereiro/2013.