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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.2 São Paulo maio/ago. 2019

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i2p317-328 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i2p317-328

ARTIGO

 

O trágico na cena escolar e a medicalização como desenlace

 

Lo trágico en la escena escolar y la medicalización como desenlace

 

The tragic in the school scene and the medicalization as denouement

 

 

Ana Paula Bellochio ThonesI; Simone Zanon MoschenII

IDoutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: anabellochio@gmail.com
IIPsicanalista, Professora-Associada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. Bolsista Produtividade CNPq. E-mail: simoschen@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo propõe discutir um fenômeno que na última década tem ganhado vulto na cena escolar: a medicalização do sintoma de aprendizagem como forma de desenlace para o sofrimento que este engendra – tanto para estudante quanto para professores e famílias. Como estratégia metodológica, este escrito parte de uma retomada da tragédia clássica para, dela, destacar elementos que possibilitam compor diferentes cenários que indicam desdobramentos possíveis para o encontro com a dimensão insolúvel da (ex)sistência. O escrito tem como objetivo refletir sobre as consequências deste encontro para a relação estabelecida entre os atores escolares envolvidos com a práxis educativa. Retomando a figura trágica do deus ex machina, o trabalho indica que a medicalização, o mais das vezes, ingressa na cena escolar como elemento externo que suspende as condições necessárias a uma consideração do impossível próprio ao educar e daquilo que disso deriva: a abertura para uma invenção que mobilize os elementos internos à cena na construção de uma saída do mal-estar. Quando o desenlace de um impasse é pensado a partir da perspectiva do insolúvel que a linguagem inscreve na vida comum, as saídas para os conflitos escolares acabam por ser inventadas no jogo de relações entre os sujeitos da educação.

Palavras-chave: educação; psicanálise; medicalização; sintoma; trágico.


RESUMEN

El artículo busca discutir un fenómeno que, en la última década, ha cobrado relevancia en la escena escolar: la medicalización del síntoma de aprendizaje como forma de desenlace para el sufrimiento que engendra, tanto para el estudiante como para maestros/profesores y familias. Como método, este escrito parte de una recuperación de la tragedia clásica para destacar elementos que posibilitan componer diferentes escenarios que indican desdoblamientos posibles para el encuentro con la dimensión insoluble de la (ex)sistencia. El objetivo es el de reflexionar sobre las consecuencias de ese encuentro para la relación establecida entre los actores escolares involucrados con la praxis educativa. Retomando la figura dios ex machina, el análisis indica que la medicalización, muchas veces, ingresa en la escena escolar como elemento externo que suspende las condiciones necesarias para una consideración de lo imposible inherente al educar y de la apertura hacia un invención que movilice los elementos internos a la escena en la construcción de una salida del malestar. Cuando se piensa el desenlace de una situación límite desde la perspectiva de lo insoluble que el lenguaje inscribe en la vida común, las salidas para los conflictos escolares acaban inventándose, en el juego de las relaciones entre los sujetos.

Palabras clave: educación; psicoanálisis; medicalización; síntoma; trágico.


ABSTRACT

The paper is aimed at discussing a phenomenon that has expanded in the last decade in the school scenario: the medicalization of the learning symptom as a denouement for the suffering that engenders it – both for the student and the teachers and families. As a method, this writing starts from a resumption of the classic tragedy to highlight elements that make it possible to compose different scenarios that indicate possible unfoldings for the encounter with the unsolvable dimension of the (ex)sistence. The writing reflect upon the consequences of this encounter for the relationship established among the school actors involved in the educational praxis. Resuming the figure of deus ex machina, the work indicates that, many times, medicalization enters the school scene as an external element that discontinues the necessary conditions for a consideration of the inherent impossible in educating, as the opening to an invention that mobilizes the elements internal to the scene in the construction of a way out from the unease. When the denouement of an impasse is thought from the perspective of the unsolvable that the language inscribes in the ordinary life, the solutions for the school conflicts are ultimately invented in the relationships between the subjects.

Keywodrs: education; psychoanalysis; medicalization; symptom; tragic


 

 

Como sondar o trágico, o que lhe é próprio? Como circunscrever essa fonte de horror que não queremos abastecer, mas para a qual, em certas circunstâncias artísticas, endereçamos parte de nosso sofrimento na aposta por apaziguá-lo? Há alguma definição do trágico, algum significado no dicionário? Elegemos uma primeira aproximação, afinal há de se começar por algum lugar.

Patrice Pavis indica, em seu Dicionário de teatro, que, quanto ao trágico, é preciso estabelecer uma diferença entre o gênero literário da tragédia e o trágico como aquilo que se refere a um "princípio antropológico e filosófico que se encontra em várias outras formas artísticas e mesmo na existência humana" (Pavis, 2015, p. 416).

Quanto ao gênero chamado tragédia, Pavis (2015) situa seu nascimento no século V a.C., tendo sido sistematizado por Aristóteles, na Poética, no século IV a.C. Como exemplos desse gênero, podemos citar as tragédias antigas de Ésquilo, Eurípedes e Sófocles, as quais foram propostas no século V a.C. Também fazem parte do gênero trágico as tragédias modernas de poetas como Shakespeare, Corneille e Racine.

Já o trágico como experiência humana deriva de uma apreciação filosófica da existência. Tal concepção surge a partir do século XIX na filosofia de Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, entre outros. No entanto, é preciso considerar, segundo Pavis (2015), que o trágico localizado pelos filósofos só foi possível de ser situado a partir do que foi capturado por eles no gênero da tragédia sob a forma de poesia e dramaturgia. Há, portanto, entre as duas dimensões do trágico, localizadas pelo autor, uma relação inextrincável.

Pavis (2015) indica que o conflito inevitável e insolúvel proposto pela tragédia antiga se transformou ao longo da história, possibilitando o enunciado de dramas sem resolução apaziguadora possível, de reflexões filosóficas e do sentimento de absurdo implicado na existência humana – esses temas passaram, também, a figurar em outros gêneros teatrais. Talvez possamos dizer que o que a tragédia antiga inaugurou no cenário teatral, como essência do trágico que se relança e se renova, tem uma relação intrínseca com a insolubilidade da experiência humana. O trágico permitiu que nos colocássemos diante do que, na condição humana, diz respeito aos limites de nossa existência, à falta de garantias sobre o sucesso de nossas escolhas, à dimensão da fragilidade e vulnerabilidade do humano.

Diante da dimensão insolúvel da existência humana pode-se, no entanto, adotar diferentes formas de se posicionar, seja na arte ou na vida. As noções do trágico nos fornecem elementos para ler a vida cotidiana, as relações humanas que estabelecemos nos mais diferentes espaços de convívio que, não raras vezes, tramitam em uma zona de conflitos.

O cenário escolar é uma dessas arenas ricas em conflitos e impasses – é inerente a ela, como locus da vida, a presença de choques, embaraços, empecilhos e subversões. Nossa intenção, neste escrito, é, a partir da retomada do trágico, destacar elementos que possibilitem compor diferentes equações para desdobramentos possíveis do encontro com a dimensão insolúvel da (ex)sistência, refletindo sobre suas consequências para a relação dos atores escolares envolvidos com a práxis educativa. Interessa-nos pensar sobre um fenômeno que na última década tem ganhado vulto na cena escolar: a medicalização do sintoma de aprendizagem como um desenlace possível para o sofrimento que ele engendra – tanto para estudantes quanto para professores e famílias. Adiantamos aqui que a forma de desenlace de um conflito proposta pelo trágico pode nos ajudar a refletir sobre a prática da medicalização quando ela se coloca como modo de resolução para um mal-estar que emerge na cena escolar. As nuances do trágico e do desenlace que dele decorre são apresentadas nas linhas que se seguem.

 

O trágico e a psicanálise: ressoos de uma larga relação

Para Rosenfield (2000), a tragédia antiga colocou em cena o conflito insolúvel, o impasse, dando enredo a situações em que não há conciliação possível entre as posições dos personagens, já que suas escolhas, mesmo quando antagônicas, podem sustentar-se como legítimas. Nos enredos trágicos, assistimos aos percalços de um herói ou de uma heroína cujo destino aparece como cifrado já desde o início da peça. Trata-se dos desdobramentos de um percurso de vida que encerra opções que bem poderiam ser nomeadas de "escolha forçada", tal como indicou Lacan (1964/2008) ao retomar a "escolha pela neurose", proposta por Freud (1913/2014) como uma escolha que poderia ser lida como entre "a bolsa ou a vida". Assim, os impasses impostos pelo trágico colocarão o sujeito diante de embaraços éticos, o que muito bem observou Lacan (1959-1960/1997), ao retomar a Antígona de Sófocles.

Sófocles, em Antígona, última parte da trilogia tebana, apresenta inicialmente um diálogo entre a personagem que dá nome à peça e Ismene, ambas filhas de Édipo e Jocasta. Elas situam o expectador/leitor quanto ao drama recém-ocorrido. Seus dois irmãos, Etéocles e Polinices, acabaram por matar um ao outro na disputa pelo trono de Tebas. Com a morte dos dois, é o seu tio Creonte que assume o reinado. Creonte confere um sepultamento digno a Etéocles, que era o rei de Tebas, mas proíbe, sob pena de morte, o enterro de Polinices, que havia cometido um crime contra o governo ao matar o rei, seu próprio irmão. Mesmo sabendo que irá pagar sua escolha com a própria vida, Antígona resolve enterrar seu irmão Polinices com as próprias mãos.

Em diálogo com Creonte, Antígona lembra a ele das leis não escritas, leis divinas que regem a passagem dos homens pela terra desde os tempos mais remotos. Desafiado por Antígona, sua sobrinha, Creonte insiste em imprimir à princesa um destino terrível: o emparedamento, ainda viva, em uma caverna fora da cidade, local onde ela mesma põe fim à própria vida.

É à Antígona que Lacan (1959-1960/1997) recorre quando se ocupa da ética da psicanálise, estabelecendo-a sustentada em preceitos que de forma alguma respondem a uma obrigação, a um ordenamento prévio ou a uma moral social. Da ética da psicanálise decanta um único princípio que indica a necessidade do sujeito não ceder de seu desejo. Não é demais relembrar que a dimensão do desejo pode, um sem-número de vezes, impelir o sujeito a atos que não se coadunam com sua vontade consciente, e justo aí reside a complexidade desse preceito ético. Respondendo ao ditame inconsciente, o desejo não é algo passível de controle ou antecipação, mas, ainda assim, de acordo com os caminhos abertos pela psicanálise, requer que o sujeito não recue diante de sua emergência e que possa se responsabilizar por suas consequências.

Lacan se interessará por esquadrinhar o percurso de Antígona, que escolhe, à revelia de sua morte, alinhar-se aos preceitos dos deuses em oposição à lei da cidade, em relação à qual Creonte se apresenta como guardião. Como nos lembra Vorsatz (2013), a posição tomada pelo herói trágico leva em consideração a alteridade divina: "... o herói trágico, determinado pelo campo real dos deuses, dele se extrai por intermédio de seu ato" (Vorsatz, 2013, p. 22). O herói se inscreve como tal através de uma ação que garante a presença e a ordem divina, mas que implica sua própria perda.

O herói alça uma posição digna, comovente, admirável, bela, pois mesmo sabendo de sua mortalidade, de sua infelicidade, de seu destino trágico, não cede de sua decisão e, nesse instante de não ceder, atinge a potência que é possível a um ser humano experimentar: a responsabilidade por suas escolhas, pelas perdas que derivam dessas escolhas. O Coro, em Antígona, lembra-nos de que "Há muitas maravilhas, mas nenhuma/ é tão maravilhosa quanto o homem." (Sófocles, 2014, p. 215).

As ações do herói são definidas por Aristóteles (1991) – quem primeiro propôs uma sistematização da tragédia – como de caráter elevado, superior às dos homens comuns. Para ele, a tragédia é uma representação dessas belas ações que suscitam no espectador o temor e a piedade, tendo como efeito a purificação dessas emoções. Nesse sentido, ao final do enredo, o espectador experimenta um apaziguamento, uma sensação de que tudo retornou a uma suposta ordem inicial, ainda que o impasse tenha conduzido o herói a um destino trágico, sem conciliação possível entre as partes que constituem o conflito.

De acordo com Rosenfield (2000), o paradoxo para onde o destino trágico conduz desencadeia uma experiência que não cabe em qualquer polaridade ou dualismo. A escolha que os personagens estão em vias de fazer não é equacionável por um isso ou aquilo, mas distende-se com mais precisão no diapasão do "isso e aquilo". Na tragédia antiga vemos se desdobrar uma narrativa que localiza um vértice impossível, desenhando uma terceira margem para a travessia do herói.

Na Poética, Aristóteles apresenta o gênero trágico, seu contexto de nascimento, os elementos que o compõe, suas características, explanando o que seria, em sua visão, o ideal de tragédia. Para o filósofo grego, essa arte é superior à epopeia, ou seja, aos poemas épicos que narram mitos e feitos heroicos, como é o caso da Ilíada e da Odisseia, atribuídas ao poeta Homero (Aristóteles, 1991). Além de contemplar todos os aspectos das narrativas épicas, como a métrica, o ritmo, o mito, a tragédia consegue reunir ainda o espetáculo e a música.

Aristóteles justifica a superioridade da tragédia em relação à epopeia também em função da finalidade: a tragédia seria a arte que melhor consegue atingir seu propósito artístico de imitação de ações.

... o elemento mais importante é a trama dos fatos, pois a tragédia não é imitação dos homens, mas de ações e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas felicidade] ou infelicidade, reside na ação e a própria finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade. Ora, os homens possuem tal ou tal qualidade conformemente ao caráter, mas são bem ou mal-aventurados pelas ações que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar certas ações; por isso as ações e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é tudo o que mais importa. (Aristóteles, 1991, p. 448)

Podemos situar parte do interesse de Lacan pela tragédia a partir do que Aristóteles define como sua finalidade: a representação das ações humanas. Lacan (1959-1960/1997), ao apresentar o que, em seu entender, caracteriza a ética da psicanálise, reporta-se à ética aristotélica para, em relação a ela, estabelecer um deslocamento. Para Aristóteles, as ações do ser humano deveriam tender a um bem, e o bem último seria a felicidade dos cidadãos.1 No sentido da produção desse bem, a tragédia poderia cumprir a função social de uma educação para uma vida feliz ao retratar ações que conduzem da felicidade à infelicidade e vice-versa.

Muito embora localizemos a partir de Freud (1930/2012) a presença de uma dimensão na experiência humana não considerada por Aristóteles em suas reflexões sobre o trágico – dimensão essa que acaba por inscrever uma diferença radical nos caminhos tomados em busca da felicidade –, podemos considerar a ação trágica, acentuada por Aristóteles como aquela que sobrepassa a personagem, definindo sua posição nos desdobramentos da cena, à revelia das consequências que essa posição possa engendrar, como um elemento de profundo interesse para as formulações acerca da ética da psicanálise. Isso porque o que importa para psicanálise, em termos de sua ética, é a conformidade das ações – diríamos, com Lacan, do ato – com o desejo, inconsciente, de quem age. Da mesma forma, para Aristóteles (1991), o que importa na arte trágica é a ação; é ela quem define as características do herói: a ação faz a posição subjetiva e não o contrário. Esse talvez seja um dos pontos em que Lacan e Aristóteles se enlaçam, mesmo que em tantos outros, no que concerne à noção de ética, eles se distanciem.

 

O trágico e seu desenlace

Aristóteles (1991) define o desenlace como o período da tragédia que se inicia com a ocorrência de uma mudança de sorte e termina com o final da peça. Para o filósofo, o desenlace trágico é fruto do jogo entre os elementos presentes na história desde o início, dispensando o uso de novos recursos cênicos para propor o final da cena trágica. O desenlace, assim, decorre, emana, da trama trágica.

Um dos recursos cênicos propostos na tragédia antiga era o deus ex machina: um deus grego que, através de uma maquinaria, entrava em cena para predizer certos acontecimentos ou para contextualizar o passado do drama que estava prestes a acontecer. Para Aristóteles (1991), a intervenção do deus ex machina não deveria fazer parte da cena trágica, pois as ações dos personagens eram, de certa forma, alheias a esse recurso, bem como o modo como encaminhavam o desenlace do drama.

No entanto, algumas peças da tragédia antiga apresentavam o deus ex machina como artifício para conferir uma solução aos conflitos trágicos: um deus grego descia ao centro da ação através de uma maquinaria, a fim de dar um encaminhamento definitivo aos impasses do drama. O recurso ao deus ex machina, proposto como elemento exterior ao enredo, capaz de nele ingressar para desenhar uma solução derradeira aos conflitos, contraria o que, no dizer de Aristóteles, caracteriza a tragédia.

Entrevemos o declínio da dimensão trágica da experiência humana, localizada, em sua forma narrativa, na estética da tragédia grega, no surgimento de peças que apresentavam o deus ex machina como desenlace, como foi o caso de peças do tragediógrafo Eurípides. Nietzsche (1872/1992), em seu trabalho O nascimento da tragédia, situa nesse dramaturgo o fim da tragédia antiga e elenca, como um de seus motivos, a forma como propunha esse dispositivo cenográfico.

Para Nietzsche (1872/1992), o deus ex machina entrava nos dramas euripidianos como substituto do apaziguamento final, mas sem provocar tal sensação. Era uma presença que ditava o futuro dos heróis, "... uma consonância terrena..., o deus das máquinas e crisóis, vale dizer, as forças dos espíritos naturais conhecidas e empregadas a serviço do egoísmo superior; que acredita em uma correção do mundo pelo saber, em uma vida guiada pela ciência..." (Nietzsche, 1872/1992, p. 108, grifo nosso). Não nos passa despercebido o papel que o saber, travestido de racionalidade científica, assume sobre as decisões. Uma nova ordem que começa a se erguer.

É nesse sentido que o desenlace da história adquire uma marca própria na maioria das peças de Eurípides, conforme comenta Nietzsche (1872/1992, p. 51), "a fim de amarrar o enredo ou desembaraçar os protagonistas de alguma dificuldade de outro modo insuperável...". A transmissão da experiência do trágico dá lugar à imposição moral através da presença e da palavra divina que encerram a trama.

A presença da maquinaria se torna signo de um desenlace que não se constrói ao longo do drama, que não emana das relações entre os personagens da história. Vejamos como ocorre em Medeia, tragédia citada na Poética de Aristóteles como exemplo desse recurso cênico.

Quem entra em cena através da máquina na obra em questão é a própria Medeia. Ao fim da trama, ela entra em uma carruagem do Sol, do deus Apolo, trazendo consigo seus dois filhos mortos. O ex-marido Jasão a abandonara com a prole para casar com a filha do rei, que a havia expulsado de Corinto. Apesar de Medeia ter cometido um ato repulsivo (matar seus dois filhos), ela escapa impune, protegida pelos deuses. Por ter planejado sua fuga e enganado sabiamente Jasão e Creonte quanto às suas intenções, consegue fugir.

Medeia é uma personagem que se destaca pelo bom uso da retórica e da ironia. Ela inscreve um novo uso da palavra que a dramaturgia de Eurípides sugere: não apenas como palavra posta em ação para garantir a existência divina, da qual o herói deriva como sujeito, mas uma palavra que utiliza seu poder de argumentação para enganar os outros personagens, numa trama que, em vez de ser tecida com o outro, faz do outro seu instrumento (Vieira, 2010). Medeia é rica em nuances e poderíamos seguir a discussão,2 mas, para nosso intuito, o que frisamos é a transição de um desenlace trágico que deriva da trama para um desfecho que resulta da exclusão do outro como reduto do horror com o qual não queremos lidar; exclusão que se faz presente, para Medeia, em sua expulsão de Corinto pelo rei, ou na tentativa de apagamento de seu laço com Jasão por meio do assassinato dos filhos que tinham em comum.

Nossa breve retomada de alguns elementos presentes na história do trágico prepara um salto largo que nos catapulta para o chão da escola, acompanhadas por uma interrogação sobre os modos que os atores escolares encontram de se movimentar a partir dos impasses que enfrentam. Carregariam esses impasses algo do insolúvel da experiência humana, característica do trágico, ou seriam eles embaraços significados como problemas que exigiriam "uma correção do mundo pelo saber", uma ação guiada pela ciência, como indicou Nietzsche (1872/1992), ao situar o declínio da dimensão trágica da experiência humana? Teria lugar nesse cenário algum artifício cuja estrutura de funcionamento nos lembraria o recurso ao deus ex machina? Sigamos com essa pergunta.

 

A suspensão da dimensão trágica da experiência humana e a travessia escolar

Para começar essa seção, retomamos três recortes de cenas escolares, presenciadas em nossa vida profissional, ou ainda, recolhidas da experiência de colegas.

(1) Durante uma reunião, a coordenadora pedagógica das series iniciais diz à professora de um menino de 6 anos que iniciava a primeira série: "Mas com que autoridade você questiona o laudo do médico?" O laudo dizia que o menino sofria de um transtorno do desenvolvimento e teria muitas dificuldades de aprender e de socializar. A professora dizia que o menino era muito alegre, conhecia algumas letras e adorava desenhar (Freitas, 2011).

(2) Outro menino, de 6 anos, é encaminhado a uma psiquiatra infantil por sugestão da escola, pois apresenta claramente sintomas de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). A coordenadora pedagógica afirma que a médica indicada é "parceira da escola".

(3) Uma professora comenta à mãe de uma aluna que, na hora do recreio, as crianças deveriam tomar Ritalina, em vez de fazer o lanche, em função da grande agitação dos alunos durante o intervalo.

Podemos entender que, ao longo do século XX, a medicina desenvolveu-se de forma a garantir maior longevidade à população e a diminuir o sofrimento físico, as dores e os riscos de vida em procedimentos médicos, graças ao aprimoramento de técnicas e ao avanço da produção de novos medicamentos para doenças orgânicas específicas. No entanto, Moysés e Collares (2015) apontam que esse progresso científico do último século trouxe também uma outra vertente (que desemboca na escola), responsável pela exacerbação diagnóstica de doenças consideradas orgânicas e pela consequente prescrição indiscriminada de medicamentos, avalizada pelo crescimento da indústria farmacêutica. As autoras dão destaque à descrição de doenças neurológicas que, ao longo de cem anos, tornaram-se tão específicas que hoje encontramos na literatura médica transtornos que envolvem apenas a aprendizagem e o comportamento, para os quais há um tratamento medicamentoso previsto.

Na medida em que o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, o DSM, que se encontra em sua quinta edição, recolhe sintomas presentes no cenário educativo e os distribui em transtornos mentais, é compreensível que tais classificações despertem o interesse de educadores que observam seus alunos diariamente. O que parece erguer-se como efeito colateral do interesse docente é, com frequência, uma desautorização do saber próprio aos professores perante um campo do conhecimento consolidado e criterioso – a medicina – que se propõe na condição de saber exatamente o que se passa com o aluno que apresenta dificuldades em seu percurso escolar. Não é raro que diante do saber médico o professor veja minguar o que pode seu saber pedagógico e acabe por recorrer a um recurso externo ao cenário educativo como forma de desdobrar os impasses próprios a esse cenário – qualquer semelhança com o papel desempenhado pelo deus ex machina na tragédia, a partir de Eurípedes, não nos parece mera coincidência.

Assim, expressões como hiperativo, desatento, disléxico, entre outras, adentram a cena escolar na tentativa de nomear, de dar conta e de entender o que acontece com o estudante que não aprende. Elas fazem parte de um discurso social psicopatologizante do espaço educativo de nosso tempo. A nomeação diagnóstica e suas consequências parecem-nos figurar como um deus ex machina da cena escolar. 

O diagnóstico, no campo médico, pode servir de bússola a apontar o norte para tratamentos e intervenções medicamentosas, visando à saúde do paciente. É quando, no lugar de doentes, tendemos a confiar nos caminhos apontados pelo especialista, pois, sendo ele delegado do saber da medicina, conhece as causas de nosso padecimento orgânico e é capaz de indicar as melhores alternativas para atenuar os sintomas e promover a cura da doença. A posição que médicos assumem em nossa cultura geral é, não raras vezes, a de detentores – exclusivos – do saber sobre o que causa nosso sofrimento. É possível que a presença do especialista na escola acabe por se dar no mesmo arranjo. Talvez ele não assuma um novo lugar no jogo de relações entre os agentes da educação, lembrando que ele é convocado, na cena escolar, a falar a partir desse lugar, ou seja, de saber sobre o outro, de legislador das ações educativas. Nesse sentido, ao tomar os sintomas que emergem no cenário educativo como sintomas médicos, o discurso medicalizante pode nublar o horizonte e paralisar a caminhada. Por quê? Porque o modo como se organiza o campo médico, campo que concerne ao fazer de psiquiatras e neurologistas, não é o modo como se arranja o campo educativo.

O ofício de educar é um ofício que depende da fala e das marcas que a palavra pode produzir sobre quem fala e quem escuta. Nesse sentido, a educação constitui um cenário em que circulam afetos e significantes abertos a novos sentidos. Significantes que emergem num jogo de relações entre eu e o outro, num espaço em que surgem impasses que podem, paradoxalmente, carregar em seu enunciado as pistas para o desenho de uma saída. Mas para que essa saída seja desenhada será necessário apostar na dimensão produtiva do conflito que, se não pode ser resolvido de forma integral, pode, em sua dimensão de impossível apaziguamento absoluto, relançar o caminho e fazer ver prosseguimentos criativos para a empreitada educativa.

 

Deus ex machina e a concepção do indivíduo apartado do social

Maria Cristina Kupfer (1999) atenta para a relação existente entre o sintoma e o discurso social. É possível considerar o problema de aprendizagem como um sintoma social, pois, para a autora, ele está inscrito no discurso social dominante do campo da educação. Ou seja, os sintomas manifestados pelos estudantes são produzidos no interior das relações escolares a partir dos significantes presentes no discurso social veiculado pela escola. Desse modo, o aluno não pode ser considerado o responsável único por seu sintoma, como se ele portasse individualmente uma doença. É preciso entender o sintoma como produto da cena escolar, como um impasse que toca o fazer de todos que constituem essa rede de relações. Considerar o sintoma de aprendizagem escolar como uma questão individual é recalcar o sujeito – que se estrutura no laço ao outro/Outro – como elemento crucial da equação que pensa os avatares da relação ensino-aprendizagem.

Na esteira de uma perspectiva que compreende o sintoma de aprendizagem como produção de um indivíduo, vemos se instalar no cotidiano escolar uma verdadeira epidemia de diagnósticos de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Epidemia acompanhada de uma prescrição maciça do metilfenidato, mais conhecido pelo nome comercial de Ritalina. O último boletim fármaco-epidemiológico divulgado pela Anvisa apresenta dados de consumo do medicamento entre 2009 e 2011. No mês de outubro, o consumo mais do que dobrou em dois anos. Há uma clara relação entre a elevação do consumo e o calendário letivo de nossas escolas, já que ocorre "redução do consumo nos meses de férias e aumento no segundo semestre dos anos estudados" (Ministério da Saúde, 2012, p. 13).

Além disso, outro importante dado informado pela agência foi o de que a maioria dos médicos que prescrevem o fármaco tem especialidade no atendimento de crianças e jovens, como neurologia pediátrica e pediatria. Dessa forma, a maior parte das prescrições controladas do fármaco tem sido realizada para o público infantil e juvenil, provavelmente em função dos crescentes diagnósticos de TDAH.

A prescrição maciça dessa medicação acaba por desembocar em chistes entre os professores, que solicitam a adição de Ritalina à caixa d'água da escola. Essa forma jocosa de se referir à entrada da medicação na cena escolar, imiscuída na água, de forma anônima, sem estar incluída em qualquer relação transferencial, chama atenção. É a essa indicação sem rosto, que recalca a dimensão transferencial – e com ela o sujeito – em causa na prescrição de uma solução a um conflito, que acaba por corresponder uma suspensão da responsabilidade dos atores escolares pela construção de uma saída aos impasses que emergem no transcurso das relações de ensino e aprendizagem.

Assim, o que importa atentar é para a posição que o medicamento vem ocupar no cotidiano da escola. A medicação entra na cena como a promessa de uma resolução para o impasse e acaba desresponsabilizando seus atores: a criança que está aprendendo a suspender o interesse em seu entorno para focar sua atenção na resolução de uma tarefa, de forma a manter-se atenta, mesmo quando algo curioso atravessa seu caminho ou ainda quando se frustra por não conseguir chegar a bom termo nas primeiras tentativas; o professor que está construindo alternativas para fisgar o desejo de aprender da criança; a escola que está elaborando as vias de servir de suporte para ambos, mantendo a aposta de que, com o tempo, se chegará a um bom termo na empreitada educativa, mesmo quando o avanço tropeça nos desequilíbrios próprios à aprendizagem e parece patinar sem sair do lugar. Parece-nos fundamental que a reflexão recaia sobre a forma como a medicação, muito frequentemente, entra no jogo de relações entre os atores escolares: como um deus ex machina que economiza o tempo necessário para que, nas idas e vindas em uma arena conflituosa, chegue-se a uma "solução".

 Outro risco que se acaba por correr é de que o estudante se torne condicionado ao uso do metilfenidato para conseguir ter um mínimo de controle sobre o seu corpo e sobre seu objeto de atenção. Ou seja, a quietude e a atenção demandadas pela escola não decantam do que se vive na cena escolar, mas são artificialmente produzidas pelo organismo de um indivíduo que pode estar denunciando, com seus sintomas, algo que não vai bem no sistema de ensino (Moysés & Collares, 2015).

 

Um desenlace inventado

Monteiro (2013) considera fundamental o jogo de relações estabelecido no espaço escolar para pensarmos a emergência de problemas de aprendizagem. A autora nos ajuda a problematizar o encontro do aluno com seu educador, atribuindo grande importância à posição ocupada pelo professor em sua função de educar. Se o professor se apresentar como alguém que detém um saber absoluto, fechado, que tem o intuito de transmitir apenas certezas e garantias, o aluno pode não encontrar espaço para dúvidas, uma brecha para produzir suas questões, e, assim, a educação pode não fazer sentido para ele. Da mesma forma, o aprender na escola pode não ter lugar quando o educador se apresentar como alguém que não sustenta a sua posição de fala, que se desautoriza e se sente impotente em sua função de transmissão.

Talvez os nomeados sintomas do TDAH, desatenção e hiperatividade, possam causar menos preocupação se o educador puder encontrar segurança em sua função de educar, levando em consideração que há ocasiões em que algo de sua fala pode fisgar os alunos em seu desejo de aprender, produzindo como efeito a atenção dos estudantes à sua aula, mas que também as crianças podem aprender fora dos contornos de sua intervenção, em momentos em que estiverem desatentas à aula, circulando pela sala ou conversando. Ou seja, a escola pode ser rica em momentos nos quais o que desperta o interesse das crianças está para além da sala de aula e dos conteúdos curriculares, e também nesses momentos é possível aprender alguma coisa. 

Se indicamos que o professor, ao se relacionar com o saber de determinada maneira, ao endereçar suas palavras ao estudante, irá refletir no seu aprendizado, no seu desejo pelos estudos ou em sua dispersão e desrespeito, não queremos, contudo, responsabilizar unilateralmente o professor por tudo o que se passa com seus alunos. Apenas queremos lembrar que seu modo de se posicionar – do professor e dos outros agentes escolares – guarda a potência de incidir de forma decisiva sobre seus alunos. Precisamos lembrar que a escola educa no sentido de que o professor se autoriza em seu ato não de forma individual, mas sustentado por seus pares que compõe, com ele, o cenário escolar.

Se em seu fazer, no endereçamento de suas palavras ao aluno, o professor – autorizado pela instituição escolar – puder considerar a forma como o estudante se apresenta na escola, seja através da atenção, seja através da dispersão, ele poderá abrir espaço para o exercício de seu desejo de educar e da consequente responsabilidade sobre os efeitos de seu ensino, ainda que esses efeitos não tenham sido unicamente provocados por ele.

 

Para não concluir

Como referimos, um educador não se autoriza somente de si mesmo, precisa de suporte da instituição de ensino onde trabalha, precisa de respaldo e respeito da comunidade e das políticas públicas em educação. A questão não se resolve facilmente. Justamente por conta disso, precisamos estar atentos aos deuses ex machina que se instalam na cena escolar com a promessa de resolução das dificuldades de aprendizagem, quando na verdade privam os educadores e os estudantes da possibilidade de descobrirem juntos uma forma de desenlace ao impasse, o que corresponderia, no cenário educativo, a uma forma de laço social na escola.

Trouxemos para a discussão desse artigo a noção de trágico, transmitida pelas tragédias clássicas, trabalhada por autores da filosofia e da psicanálise, como o ponto de absoluto impasse, para o qual não há solução prevista e diante do qual o sujeito se coloca em perda. Pensamos que os sintomas de aprendizagem e de comportamento que surgem na cena escolar, circunscritos, muitas vezes, como TDAH, podem figurar como impasses que professores e alunos vivenciam diariamente. Tomando tais sintomas como impasses, nos encontramos na arena do trágico, onde as soluções não são previamente estabelecidas, como pretende o desenlace medicalizante.

A medicalização, em nossa análise, se inscreveria, algumas vezes, na escola como deus ex machina, solução cênica proposta em muitas encenações de Eurípides, como tentativa de subjugar e excluir o outro, como ocorre em Medeia, a fim de não precisarmos lidar com o horror que esse outro pode representar. No caso das crianças com TDAH, a medicalização pode apagar/atenuar os sintomas, sem precisarmos trabalhar com o sujeito aluno, sem precisarmos lidar com as falhas dos sistemas de ensino, ou com o impossível da linguagem que caracteriza o trabalho do educar. Ao escolhermos a via do desenlace das tragédias clássicas, indicado por Aristóteles, as saídas para os conflitos acabam por ser inventadas a cada dia, a cada nova situação, no jogo de relações entre os sujeitos da educação.

 

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Recebido em fevereiro/2019 – Aceito em agosto/2019.

 

 

1 Freud, em o Mal-estar na cultura (1930), já havia retomado o que circunda a busca da felicidade como direção da ação humana, indicando que não há nada na civilização que garanta ao ser humano a realização do desejo de ser feliz.
2 Lacan retoma essa tragédia em alguns momentos de seu ensino. Destacamos o artigo em que compara Medeia com a esposa de André Gide, "Juventude de Gide ou a letra e o desejo" (Lacan, 1958/1998), publicado nos Escritos.

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