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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH v.7 n.2 Rio de Janeiro dez. 2004
ARTIGOS
Refletindo sobre as relações entre a equipe médica, a mãe e a criança portadora de paralisia cerebral
Fabiane Menezes AzevedoI, *; Juliana Rausch PötterII, **
I Hospital Hernesto Dornelles de Porto Alegre
II Hospital da Criança Santo Antônio
Ao percorrermos os corredores de um hospital pediátrico, logo percebemos a grande quantidade de crianças portadoras de algum grau de paralisia cerebral. Estas crianças necessitam de freqüentes hospitalizações em função dos mais diversos problemas de saúde que estão relacionados à sua patologia principal: problemas respiratórios, atrofia muscular, problemas neurológicos...
A primeira questão a ser abordada neste trabalho é a relação que as mães estabelecem com estas crianças desde o momento de seu nascimento. Uma mãe espera um filho e, por mais que já saiba antes do nascimento de sua condição, nem sempre imagina que seja tão grave como realmente é. Quando o bebê nasce, se não possui uma deformidade ou face expressiva que acuse seu problema de saúde, é mais difícil que a mãe possa dar-se conta da realidade e perceber que o filho não é normal. KLAUS, KENNELL e KLAUS (2000), falam da importância dos primeiros momentos da mãe com o bebê e que, em muitos casos, é melhor não investir para que a mãe fale sobre seus sentimentos referentes à patologia da criança nos primeiros momentos, pois perceberam que é melhor que as elas tenham suas próprias impressões. Assim, quando o médico for explicar de forma mais aprofundada a patologia para os pais, a mãe já exerceu sua função materna, já foi ativa como mãe e isso a ajudará a lidar melhor com sentimentos ambivalentes.
O nascimento de um filho representa para uma mãe a recompensa ou repetição de sua própria infância. O filho vai ocupar lugar em seus sonhos perdidos, vai preencher aquilo que ficou vazio em seu próprio passado. Quando o filho, encarregado de recuperar os sonhos perdidos da mãe nasce doente, a irrupção na realidade de uma situação a faz entrar em choque, pois no momento em que, no plano fantasmático, seus vazios eram preenchidos por um filho imaginário surge um ser real que, não só vai renovar seus traumas e insatisfações, como vai deixá-los mais intensos do que antes (MAUD MANNONI, 1999).
Estas mães sentem culpa, raiva e impotência e questionam sobre o que fizeram de errado por toda a vida ou durante a gestação para receberem tal punição, mas estes sentimentos se confundem com sentimentos de grandeza, pois em outros momentos entendem que os filhos são como bênçãos de Deus e que, se foram escolhidas para terem filhos especiais, é porque tinham mais condições que as demais mulheres.
O ponto principal é que elas, na maioria das vezes, estabelecem relações simbióticas com seus filhos, não permitindo que terceiros interfiram nesta díade. Em função das demandas da criança, vivem como se estivessem em uma eterna gestação, realizando seus próprios desejos e fantasias inconscientes. Se ligam à criança também para fugir do fantasma de se colocar contra o filho, tamanha a raiva que sentem de sua condição. Qualquer ameaça à vida deste filho, qualquer depreciação que ele sofra, é sentida como um ataque a ela mesma, já que os dois não são dois, mas um só. A grande maioria deixa todas as outras funções de sua vida para cuidar do filho que precisa mais delas do que os outros. Assim, não permitem que eles desenvolvam nem mesmo aquelas capacidades que lhes seriam possíveis. As crianças, muitas vezes, ficam estagnadas em seu desenvolvimento, mesmo que sejam muito estimuladas por terapeutas das mais diversas áreas por não se sentirem autorizadas a evoluir, pois desta forma estariam destruindo esta relação com as mães. Elas se sentem importantes e valorizadas, pois fazem até mais do que seria necessário para os filhos, aliviando a culpa e sendo reconhecidas pelos demais. Já que não puderam gerar filhos perfeitos, sentem-se na obrigação de serem mães perfeitas.
As mães se desesperam ao perceber que as pessoas não se interessam tanto por seus filhos quanto elas mesmas e partem para as equipes com agressividade e raiva. Todos no hospital devem estar preparados para lidar com esta situação de crise, entendendo que estas reações não se dirigem a esta ou àquela pessoa, mas fazem parte de toda uma situação em que a mãe precisa descarregar uma série de sentimentos. Quando os profissionais podem agir com tranqüilidade estabelecendo uma relação de confiança estarão permitindo que elas não neguem sentimentos reais e naturais de todo o ser humano. Por outro lado, quando isto não ocorre, fazem com que as mães procurem outros profissionais na busca daquele que a conforte e que possa lidar com seu sofrimento.
Este é outro ponto que mobiliza as equipes, as mães saem em busca de respostas, daqueles que irão resolver seu problema sem solução definitiva, deixando também os médicos com sensação de impotência por não se sentirem ajudando e por saberem que, por mais que se esforcem, seus conhecimentos não trarão a cura definitiva destas crianças. As mães questionarão indefinidamente os diagnósticos e tratamentos e, mesmo que aparentemente, aceitem a afirmação de caráter irrecuperável da doença, sempre carregarão a esperança e a força. Para MAUD MANNONI (1999), elas não buscam na troca de médicos a cura, um diagnóstico ou uma verdade absoluta, mas sim, que suas perguntas nunca recebam respostas para sempre poder continuar a fazê-las. Buscam alguém que perceba que por detrás da fachada de tranqüilidade elas não agüentam mais.
Dentro dos hospitais e consultórios médicos estas mães são verdadeiras heroínas que lutam pela saúde de seu filho. É uma maneira de encontrarem forças para suportar a dor de carregar um filho deficiente, pois sempre existe a expectativa de que alguém dirá algo diferente do que já foi dito. Segundo MAUD MANNONI (1999), a mãe foi feita para dar a vida e lutará com todas as suas forças contra qualquer atentado à vida que dela saiu.
No hospital, existe quase uma briga de mães de crianças portadoras de paralisia cerebral versus equipe médica. A maioria das equipes reage com descrença frente a estes pacientes, não demonstra investimento afetivo para com eles e sente-se desperdiçando tempo e energia não obtendo a melhora clínica para a qual os médicos são preparados. Da mesma forma como as mães se esforçam para fazer o melhor por seus filhos, os médicos esperam que os pacientes respondam ao tratamento para confirmar a idéia de que possuem a cura.
A instituição maior alega que as crianças portadoras de paralisia cerebral servem apenas para trazer prejuízos e, se pensarmos administrativamente, percebemos que eles têm razão. De maneira fria, a criança com paralisia cerebral ocupa um lugar que serviria para outra criança que poderá ser produtiva para a sociedade. Assim, ficam ocupando leitos por longos períodos e tirando lugar de crianças não portadoras de doenças severas e limitantes.
As dificuldades pessoais de cada um também podem fazer com que muitos tenham medo até mesmo de olhar mais profundamente para estas crianças. A máxima de que somos todos iguais serve, na realidade, para justificar a exclusão, já que o que não é igual a nós, não está dentro dos padrões. Temos dificuldades para reconhecer as diferenças, assim é mais fácil excluir. A deficiência representa aquilo que foge ao esperado, ao simétrico, ao belo ao perfeito. Como muito do que se refere à diferença, ameaça, desorganiza e mobiliza alguns indivíduos, nem sempre permitindo que percebam que estas crianças possuem necessidades afetivas e físicas que são diferentes das necessidades da maioria.
DANGELO (2001), diz:
O pequeno ser humano tem uma necessidade física de ser tocado, acariciado e acudido; infelizmente, porém, às vezes tais desejos legítimos e naturais lhe são negados. É neste momento que ele sente que não é desejado, então chora, mas não encontra ninguém disposto a escutar a linguagem do seu grito(p. 107).
Será que muitas das limitações destas crianças não seriam geradas por privações afetivas, por relações de abafamento com as mães e desinteresse dos demais? Não seriam as hospitalizações freqüentes um pedido de ajuda tanto da mãe quanto de seu filho, já que muitas mal conseguem ficar com suas crianças em casa?
Finalmente, iremos falar sobre a criança e em todas as repercussões que sua patologia e estas relações de disputa que se estabelecem no hospital trazem à sua vida social, sua vida de relação. Na medida em que surgem disputas de poder e conhecimento, sobre quem sabe mais ou menos sobre o que é melhor para a vida da criança e sobre o que é melhor ou pior em termos de valores, a criança vai sendo deixada de lado. Ela sofre com a limitação imposta por sua patologia e pela deficiência imposta pelos que a rodeiam, neste caso, família e equipes do hospital. Segundo AMARAL (apud COSTA, 2002), esta pode ser chamada de deficiência secundária, que diz respeito à leitura social que é feita da diferença. Portanto, as significações afetivas, emocionais, intelectuais e sociais que o grupo atribui a diferença são deficiências secundárias.
Certamente, é o nosso papel, de psicólogos, o de dar suporte afetivo a todas estas pessoas, às equipes, às mães e às crianças, de tal forma que possamos traduzir todos estes sentimentos e reações de cada um, mostrando aquilo que mobiliza, como que tirando as pedras do caminho. Sabemos que os médicos sofrem por não poderem transformar a vida destas crianças trazendo a cura apesar de todo o seu conhecimento. Também sabemos que os motivos que levam estas mães a lutarem por seus filhos são os mais intensos possíveis, já que eles são produções delas e, mesmo não sendo perfeitos, são grandes amores de suas vidas. E não podemos esquecer que o amor materno é um dos grandes tabus de nossa civilização.
Sabe-se que todos precisam de conforto e afeto e isso não será diferente em nenhum lugar. Na medida em que pudermos perceber o quanto estas relações conturbadas impedem o bem-estar e a qualidade de vida destas crianças, poderemos partir em busca de soluções que, de fato, possam ajudá-las, assim como suas mães, em seus caminhos pela busca da saúde e da felicidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
COSTA, Valdelúcia Alves da. Diferença, desvio, preconceito e estigma: a questão da deficiência. Disponível em http://www.geocities.com/baston_br/trabalho.doc. Acesso em 08 de Junho de 2002. [ Links ]
DANGELO, Carlo. Saúde e afetividade: mãe e filho na primeira infância. São Paulo: EDUSC, 2001. [ Links ]
KLAUS, Marshall H.; KENNELL, John H.; KLAUS, Phyllis H. Vínculo: construindo as bases para um apego seguro e para a independência. Porto Alegre: ARTMED, 2000. [ Links ]
MANNONI, Maud. A criança retardada e a mãe. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [ Links ]
Endereço para correspondência
Fabiane Menezes Azevedo
E-mail: fabianepsico@santacasa.tche.br
Juliana Rausch Potter
E-mail: jupotter@tera.com.br
* Psicóloga do Hospital Hernesto Dornelles de Porto Alegre
** Psicóloga do Hospital da Criança Santo Antônio Complexo Hospitalar da Santa Casa de Porto Alegre