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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH v.10 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007
Reflexões sobre a ação do psicólogo em unidades de emergência
Reflections on the action of the psychologist in emergency units
Leopoldo Nelson Fernandes BarbosaI, *; Juliana Alves PereiraII, **; Veridiana AlvesI, ***; Cíntia Alves RagoziniII, ****; Silvia Maria Cury IsmaelII, *****
I Universidade Católica de Pernambuco
II Hospital do Coração de São Paulo
RESUMO
A partir de articulações teórico-práticas, esse texto busca refletir sobre a ação do psicólogo em unidades de emergência que, por sua vez, repercute também no trabalho de toda a equipe de saúde. O adoecimento e a internação nessas unidades são vividos como uma situação-limite que afetam diretamente pacientes e familiares, demandando de todos os profissionais de saúde um cuidar ético que valorize o humano em sua singularidade e em uma dimensão biopsicossocial. Palavras chave: psicólogo; unidades de emergência; adoecimento; cuidar ético.
ABSTRACT
From theoretician-practical joints, this text searchs to reflect on the action of the psychologist in units of emergency that, in turn, also reverberates in the work of all the health team. The sufferingo and the internment in these units are lived as a situation-limit that affect directly patient and its family, demanding of all the health professionals one to ethical care that it values the human being in its singularity and a biopsychosocial dimension.Key words: psuchologist; emergency units; suffering; ethical care.
A psicologia hospitalar, assim como a própria psicologia, é um campo de estudos bastante amplo e requer esforços constantes dos profissionais na realização de pesquisas e produção de conhecimento. Nessa perspectiva, os psicólogos que atuam neste contexto lidam diretamente com diversas reações frente ao adoecimento e a hospitalização que, ultrapassando a condição biológica, envolve uma dimensão psicossocial.
Essa prática nos coloca em contato com um paciente que se questiona: por que eu? Tal questionamento comumente repercute em sentimentos de raiva e depressão que afetam tanto o paciente quanto a família, interferindo, sem dúvida, em todo o percurso do tratamento. A hospitalização retira o paciente de um lugar no qual ele se sentia seguro, da sua casa, do seu trabalho, da sua família, para um lugar diferenciado e hostil. Ele sai de uma posição em que tinha plena autonomia para a submissão a outros que possam decidir por ele (BARBOSA, FRANCISCO E EFKEN, 2007).
Na medida em que o adoecer nos afasta de uma condição de saúde e segurança, aproxima-nos diretamente de uma condição de finitude e vulnerabilidade, demandando de toda a equipe inclusive do psicólogo a abertura ao novo e ao inesperado. Em unidades de emergência esse inesperado é ainda mais concretizado e, por isso, tal situação, convida-nos a uma atuação efetiva para atender a uma demanda comumente inespecífica.
Ser acometido por uma doença nos põe em contato direto com as duas maiores incertezas da vida: o sofrimento da doença e do morrer. O nosso corpo é esquecido na medida em que nos obedece, atende demandas e permanece em silêncio (BOTEGA, 2006). Em contraponto, o surgimento de uma doença nos lembra que a indesejada das gentes pode chegar, isto é, podemos morrer. O adoecimento, por sua vez, também traz a sensação de não se é, sequer, dono de si, do seu corpo, quebrando a linearidade da vida e das nossas funções cotidianas. Nesse contexto, adoecimento e morte tocam aquilo com o qual somos marcados: o selo do desamparo, que embora seja primordial e constitutivo, presentifica-se em outras situações. No hospital, particularmente na emergência, esse desamparo é ainda mais escancarado, deixando às claras a fragilidade humana física e psíquica. Essa angústia do desamparo, atualizada nas situações de doença, muitas vezes torna-se paralisante, imobilizando e congelando nossa existência e nossa relação com o mundo. Assim, a entrada no hospital, motivada pelo adoecimento, e ainda pela porta da emergência, potencializa esse impacto.
Importa lembrar que, apesar das especificidades, essas reações e sensações são frequentemente compartilhadas no do discurso de psicólogos que atuam em diferentes unidades do hospital. Nossa intenção, aqui, é tecer algumas considerações acerca do contato estabelecido entre psicólogo e paciente em situações de emergência no hospital.
Unidades de Emergência: vivendo uma situação-limite
Em uma instituição hospitalar, as unidades de emergência são o lugar destinado a pacientes que necessitam de cuidados especiais e urgentes, que não se restringem apenas a cuidados físicos e de manutenção da vida, mas também de qualidade de vida e de suporte emocional. A procura por esses serviços, de emergência, geralmente ocorre após a manifestação súbita dos sintomas físicos e/ou emocionais que promovem a necessidade de um diagnóstico imediato e a esclarecer. Desconhecer esta condição clínica e prognóstico gera um aumento significativo nos níveis de ansiedade e estresse, neste contexto, Perez (2005) destaca que a vivência da hospitalização em uma unidade de emergência é reconhecida como uma situação-limite, onde qualquer pessoa que tem a sua capacidade adaptativa posta à prova podendo apresentar quadros de desorganização psíquica, picos de ansiedade, entre outros de significativa importância.
Pensando com Muñoz y Lillo (2003), consideramos que as funções do psicólogo em uma unidade de emergência são determinadas dentro de uma multiplicidade, devendo-se, portanto, levar em consideração como igualmente importante tanto os fatores inerentes ao quadro clínico em questão quanto os fatores associados ao paciente e todo o contexto psicossocial envolvido.
Da mesma forma que em todo o contexto hospitalar, a família também está nas unidades de emergência, e, junto com o paciente vivencia um verdadeiro momento de crise que engloba: o impacto de um diagnóstico inesperado, o medo, a ansiedade, o estresse, a sensação de proximidade com a morte. Aqui, entendemos crise tal como a definição proposta for Ferreira (1999): uma manifestação súbita inicial ou não de doença física ou mental; uma fase difícil e grave na evolução das coisas, dos sentimentos, dos fatos; colapso, deficiência, penúria, um ponto de transição entre uma época de prosperidade e outra de depressão.
Em função da emergência, pacientes e familiares são conduzidos a essa situação sem ao menos poderem refletir a respeito. O desconhecido, a urgência, a insegurança, o incômodo ao sentir dor, a preocupação com a existência de recursos materiais e humanos que possam suprimir suas necessidades a tempo, promovem angústias e fantasias muitas vezes impensáveis.
As expectativas de pacientes e acompanhantes/familiares que buscam serviços de emergência envolvem a valorização e manutenção da vida, que será percebida a partir dos cuidados oferecidos. Cabe, porém, uma atenta reflexão sobre as repercussões emocionais que tais cuidados promovem, inclusive daqueles cuidados que não são possíveis serem oferecidos. Almeida, Barbosa, Pereira e Ragozini (2005) afirmam que o medo de vivenciar uma situação desconhecida é algo que evidencia a importância de se ter profissionais envolvidos no cuidado ao paciente que possam fornecer orientações necessárias para que se desmistifiquem fantasias, muitas vezes distantes da realidade, promovendo assim a diminuição da ansiedade e amenizando suas angústias e, na medida do possível, dar significado a tal situação. Tantas questões inúmeras vezes torna necessário que toda a equipe estabeleça estratégias de ação, não raro breves e únicas, considerando a imprevisibilidade da permanência do paciente nesta unidade. Os recursos emocionais influenciam diretamente o modo de perceber a experiência. A integração entre psique e soma enquanto possibilidade de permanecer como uma unidade, apesar deste ambiente pouco favorável, possibilita que seja atribuído a essa experiência um significado que não promova sentimento de imobilização, colocando o sentimento de angústia como sinal de alerta e motor de elaboração, retomando seu caráter saudável. Refletindo um pouco mais sobre essas questões observamos, em nossa experiência, que pacientes com níveis de ansiedade elevados e transtornos de ajustamento comumente apresentam histórico de vínculos emocionais escassos, com baixa criatividade, e, portanto, grandes dificuldades de adaptação à situação emergencial. Em contra ponto, indivíduos emocionalmente saudáveis, apresentam maior tolerância à frustração, e menor sentimento de desintegração ou desespero diante da vivência de toda a situação para a qual praticamente não houve possibilidade de preparação. A equipe assistencial percebe tais diferenças no momento em que oferece o cuidado profissional. Pacientes emocionalmente fragilizados apresentam-se inseguros, com constantes solicitações, demonstram insatisfação evidente frente aos cuidados, irritabilidade e comportamentos agressivos. Esses comportamentos podem denotar um processo regressivo que remete o paciente a buscar a repetição dos cuidados que, se no decorrer da sua vida não foram suficientes, mobilizam-no na busca incessante da satisfação de tais necessidades. Deste modo, a equipe ao oferecer os cuidados assistenciais ainda que desconhecendo as repercussões emocionais, promove nos pacientes as mais diversas reações, e estas devem ser observadas e acolhidas de modo a permitir que, apesar de invasivo, o ambiente não seja hostil. Considerando o ambiente hospitalar a partir de uma perspectiva winnicottiana (DIAS, 2003), este deve ser capaz de garantir a saúde mental dos indivíduos na medida em que acolhe e fornece um ambiente propício onde se sinta seguro, assumindo responsabilidade no fornecimento de força que o paciente não podia encontrar em si mesmo, e retirá-la, gradualmente, quando o paciente fosse capaz de cuidar de si mesmo.Apenas a partir da produção de um espaço criativo surge à possibilidade de conter o insuportável, porque é no insuportável que a resposta habitual fracassa e todo saber prévio torna-se questionável. Surge a necessidade de transformar o impossível em possível, de criar, de integrar o antagônico a uma nova síntese. A urgência solicita a criação de um novo espaço que contenha a resposta necessária para a reintegração emocional do paciente (STERIAN, 2001). Toda a equipe de saúde comprometida com o cuidado do paciente deve estar atenta a este tipo de reflexão, para que o tratamento não seja exclusivamente voltado para a cura, mas para a valorização do ser do homem, da sua dignidade (BARBOSA et al, 2007).
O sofrimento emocional causado pela imediaticidade do adoecimento repercute, na maioria das vezes, em uma intensa sensação de desalojamento e demanda a necessidade de um ambiente que seja protetor e acolhedor (WINNICOTT, 1999). Dias (2003) enfatiza que a maioria dos processos psíquicos e emocionais, apesar de serem iniciados nos primeiros meses de vida, nunca se estabelecem completamente e continuam prosseguindo em todas as etapas da vida, mantendo uma estreita relação com o ambiente externo. E, do mesmo modo que necessita de uma mãe suficientemente boa, busca um ambiente que possa dar contorno ao seu sofrimento.
O significado a ser atribuído a essa experiência está relacionado à efetividade do vínculo estabelecido com a equipe cuidadora, a qual tem diante de si o desafio de oferecer cuidado a pacientes que apresentam demandas diversificadas e emergenciais , a seus acompanhantes que enfrentam um momento de crise , e à equipe de saúde que busca continência às manifestações emocionais apresentadas. Nesse contexto onde tudo é urgente, através de uma relação de confiança e de envolvimento, a ação clínica do psicólogo favorece a criação de espaços de continência à desorganização emocional na medida em que propicia um ambiente favorável à expressão de seus conflitos, fantasias, reflexão e elaboração de um momento de vida, do qual faz parte o seu passado e as dúvidas desalojadoras suscitadas pela incerteza do seu futuro.
Compreender e cuidar...
A princípio, ninguém imagina ou planeja adoecer. Ainda mais de forma brusca, durante o desenvolvimento de suas atividades de trabalho, lazer ou no meio do sono. O adoecimento é sinal de que algo no nosso corpo não está bem e precisa ser cuidado. Ser internado em uma unidade de emergência suscita pensamentos, muitas vezes, aterrorizantes e impactantes que se estendem também aos familiares e cuidadores.
Durante essa vivência, que consideramos no texto como uma situação-limite e um momento de crise, muitos encontros são possíveis. O confronto com a imprevisibilidade da vida parece funcionar como um mecanismo de descarga emocional dos afetos que irão necessitar de direcionamento e toda a equipe de saúde deve estar atenta à importância de cuidar com dignidade que nesses casos, implica considerar para além de um sofrimento físico, um verdadeiro sentimento de desamparo que inunda o paciente.
Apesar de comumente associado a uma máquina, o corpo não está separado do indivíduo humano e merece ser escutado e cuidado de forma ética e em uma dimensão biopsicossocial para que a vivência desse sofrimento seja a menos dolorosa possível. Desta forma, compreender o humano em sua singularidade implica ultrapassar a repetição de técnicas e idéias pré-estabelecidas na medida em que propicia espaços para a escuta do sofrimento. Esperamos, então, que essa breve reflexão possa servir como fonte de sensibilização para uma atuação mais humana de todos os profissionais da saúde.
REFERÊNCIAS
Almeida, C. P.; Barbosa, L. N. F.; Pereira, J. A.; Ragozini, C. A. (2005) A atuação da psicologia clínica hospitalar em cardiologia. In :Ismael, S. M. C. (Org.) A prática psicológica e sua interface com as doenças (pp. 115-130). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Barbosa, L. N. F., Francisco, A. L., Efken, K. H. (2007) Adoecimento: o ser-para-a-morte e o sentido da vida. Pesquisas e Práticas Psicossociais. 2: 54 - 60.
Botega, N.J. Reação à doença e à hospitalização (2006). In : Botega , N.J. (Org.) Prática psiquiátrica no hospital geral: interconsulta e emergência (pp. 49-66). 2ª Edição. Porto Alegre: Artmed Editora.
Ferreira, A.B.H. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.
Muñoz, F. A.; Lillo, A.. Intervención psicológicas em urgências (2003). In: Remor, E.; Arranz, P.; Ulla, S. El psicólogo em el âmbito hospitalario (pp. 769-776). Espana: Editorial Desclée de Brouwer S. A.
Perez, G. H. (2005). O psicólogo na unidade de emergência. In:Ismael, S. M. C.(Org.).A prática psicológica e sua interface com as doenças (pp. 56-65). São Paulo: Casa do Psicólogo.
Sterian, A. (2001). Emergências psiquiátricas. São Paulo, Casa do Psicólogo.
Dias, E. O. (2003). A teoria do amadurecimento de D.W.Winnicott. Rio de Janeiro: Imago.
Winnicott, D. W. (1999) O desenvolvimento da capacidade de envolvimento. In: Winnicott, D. W. Privação e delinqüência. (pp. 111-117); Trad. Álvaro Cabral. 3ª ed. São Paulo: Martins fontes.
Endereço para correspondência
Leopoldo Nelson Fernandes Barbosa
Av. Beira Rio, 230/101 - Ilha do Retiro
50750-400 Recife-PE
Tel.:: +55-81 3227-7039
Cel.: +55 81 9245-1890
E-mail: Lnfbpsi@uol.com.br
Juliana Alves Pereira
E-mail: japereira@hcor.com.br
Veridiana Alves
E-mail: veridianacosta@hotmail.com
Cíntia Alves Ragozini
E-mail: cragozini@hcor.com.br
Silvia Maria Cury Ismael
E-mail: sismael@hcor.com.br
* Psicólogo clínico. Especialista em Psicologia Hospitalar. Bolsista (PROSUP/CAPES) do Mestrado em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco UNICAP.
** Especialista em Psicologia Hospitalar. Psicóloga da Unidade de Emergência e coordenadora adjunta do Curso de Especialização em Psicologia Hospitalar do Hospital do Coração de São Paulo.
*** Psicóloga Clínca. Especialista em Psicologia Hospitalar. Mestre em Psicologia Clínica e professora da disciplina psicologia hospitalar da Universidade Católica de Pernambuco.
**** Especialista em Psicologia Hospitalar. Psicóloga da Unidade Coronariana e coordenadora adjunta do Curso de Especialização em Psicologia Hospitalar do Hospital do Coração de São Paulo
***** Psicóloga Clínica, doutora em ciências pela Faculdade de Medicina da USP. Chefe do Setor de Psicologia do Hospital do Coração de São Paulo.