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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.11 n.1 Rio de Janeiro jun. 2008

 

 

O Acompanhamento Terapêutico (AT) no hospital geral: Música e Psicologia aplicada à saúde1

 

The Therapeutical Accompaniment in the general hospital: Music and Psychology applied to the Health

 

Clovis Eduardo Zanetti*

Hospital do Coração de Londrina

 

 


RESUMO

O objetivo do presente artigo é apresentar a construção prática e os fundamentos conceituais que sustentam a conexão entre música e psicologia como um novo domínio terapêutico aplicado à saúde numa perspectiva hospitalar. Articula a clínica do acompanhamento terapêutico e a ética da psicanálise na abordagem das urgências subjetivas e dos processos de criação.

Palavras-chave: Acompanhamento Terapêutico, Música, Saúde, Psicanálise.


ABSTRACT

The objective of the present article is to present the practical construction and the conceptual beddings that support the connection between music and psychology as a new applied therapeutical domain to the health in a hospital perspective. It articulates the clinic of the therapeutical accompaniment and the ethics of the psychoanalysis in the boarding of the subjective urgencies and in the processes of creation.

Keywords: Therapeutical accompaniment, Music, Health, Psychoanalysis.


 

 

Introdução

A introdução da música no processo psicoterapêutico representa a abertura de um campo clínico diferenciado, articulando diretamente saúde à produção de subjetividade. Uma articulação com fortes raízes na cultura, porém, ainda pouco explorada pelas práticas clínicas em psicologia. Este artigo pretende apresentar a construção e alguns apontamentos conceituais que sustentam esse novo domínio de tratamento aplicado à saúde e sua emergência no âmbito do Acompanhamento Terapêutico numa perspectiva hospitalar.

Trata-se de uma direção de tratamento que surgiu e ganhou força a partir da observação dos efeitos terapêuticos decorrentes da audição ou da produção musical própria de cada paciente e família durante os acompanhamentos ofertados pelo Serviço de Psicologia e Psicanálise do Hospital do Coração de Londrina. A música tem se mostrado um recurso capaz de reverter ou minimizar as situações psicológicas mais adversas enfrentadas durante o internamento. No decorrer do acompanhamento psicológico, a música pode ser agenciada de forma terapêutica tanto em momentos de crises, quanto na criação de condições favoráveis aos tratamentos de saúde em geral. Acolhida e sustentada pelos atendimentos, a música pode levar o sujeito em situações de intenso sofrimento a se re-apropriar de sua vida e a se reconciliar com seus desejos.

Para entender melhor os efeitos e a própria aplicação clínica da música é preciso ter em mente o contexto de sua utilização dentro dos atendimentos oferecidos no hospital. O atendimento proposto se divide em duas etapas: A primeira, dedicada ao acolhimento e a avaliação, se dá por meio de entrevistas iniciais com suas funções diagnósticas e terapêuticas que consistem basicamente em acolher e conhecer quem nos procura e os motivos da entrada no hospital. A partir dessa avaliação inicial, paciente e familiares serão acompanhados durante todo o processo, da entrada a alta hospitalar. A segunda etapa é dirigida a uma abordagem mais específica de acordo com as características de cada caso. O trabalho com a música tem lugar nesse segundo momento, quandoo diagnóstico já foi realizado e o dispositivo terapêutico já se encontra estabelecido, o que é uma condição para o bom uso da música.

 

O momento da entrada e a Clínica do Acompanhamento Terapêutico

As intervenções terapêuticas no momento da entrada no hospital são fundamentais para que o próximo passo da introdução da música no atendimento psicológico se estruture e ganhe forma. Portanto, é importante discorrer com mais detalhes esse momento inicial do trabalho. Diante da multiplicidade de situações e agentes envolvidos com a instituição hospitalar, fomos conduzidos, no dia a dia das urgências e atendimentos em geral, a reestruturar o serviço para dar conta de um contexto clínico ampliado distante dos enquadres acadêmicos tradicionais. A presença da escuta também na dimensão institucional guiou a construção de uma abordagem psicológica fortemente inspirada na Clínica do Acompanhamento Terapêutico. (Equipe, 1991). Essa clínica, oriunda do tratamento das psicoses, foi a que se mostrou mais eficaz na sustentação de um trabalho direcionado para as crises individuais e familiares desencadeadas pela necessidade de hospitalização.

Frequentemente, tanto a doença como o ato de internação são vividos pelos sujeitos como uma situação de ruptura marcada por intensa angústia, medo e incertezas, que variam com o grau de complexidade do suporte hospitalar exigido e os antecedentes médicos, sociais e psicológicos de cada estrutura familiar. Em muitos dos casos é possível observar dois grandes fatores relacionados que colaboram para o desencadeamento das crises:

• O primeiro é o próprio desamparo dos sujeitos fragilizados com a urgência médica e diante de algo desconhecido ao qual são levados a se submeter. Paciente e familiares sofrem, no momento inicial da hospitalização, uma destituição subjetiva aguda, ou seja, a admissão lhes destitui da posição de sujeito e os impõe o lugar de objeto como condição de tratamento. (Moura, 2000). Nessa inversão de sujeito a objeto ocorre uma perda dos referenciais que sustentam a subjetividade, capaz por si só de instalar uma crise de angústia e agressividade contra os serviços e suas equipes.

• E o segundo é o fato de que frente ao desconhecido da doença e da internação, no momento da angústia, o hospital é vivido como um espaço estranho, lugar de dor e morte, com procedimentos e rotinas invasivas que fogem ao controle dos pacientes, e no qual o acesso à informação é dificultado e distorcido pelo desconhecimento do vocabulário utilizado, pelos desencontros e pelas fantasias alimentadas pelo medo.

Nesse contexto, o Acompanhamento Terapêutico atua como dispositivo de tratamento aplicado a duas frentes de trabalho:

1. Recepciona e acolhe possibilitando um lugar de fala e escuta das questões subjetivas emergentes, re-instituindo ao paciente e a família o lugar de sujeito.

2. Os conduz a uma apropriação do espaço e da dinâmica hospitalar, produzindo conexões com os serviços diminuindo a insegurança e o pânico diante da internação.

A experiência pioneira que a Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital Dia A Casa da cidade de São Paulo oferece nos espaços urbanos, estamos oferecendo no espaço hospitalar. (Equipe, 1991). Propomos um cruzamento entre Psicologia Hospitalar e Acompanhamento Terapêutico. (Rebello, 2006). O acompanhamento acolhe criando um guia, introduzindo e conectando a organização psíquica de cada um à dinâmica do hospital, confeccionando articulações aonde há dificuldades em participar do que é ofertado. Trata-se de um guia de ocupação, que facilita o deslocamento do sujeito pelo espaço, aproveitando-se da lógica de cada estrutura psíquica para demarcar pontos de apoio e de referencia fixos passiveis de serem utilizados por ambos os lados, paciente/família e equipes. A estrutura hospitalar como um todo é ativamente oferecida para que o paciente e sua família possam servir-se como um suporte, formando uma rede cujos nós de amarração são os vínculos afetivos e transferenciais entre seus participantes. (Carrozzo, 1991). Como afirma Carrozzo (1999), abordagens isoladas não criam à sustentação necessária para uma terapêutica dessa ordem. Paciente e familiares, acoplados ao acompanhante terapêutico que lhe serve de referencia básica, permitem as equipes sustentarem as funções de conter e transformar crises em vínculos de confiança e trabalho coletivo.

 

O Profissional de Ligação

Outra referência dessa abordagem que está sendo proposta é aquela construída pela Equipe do Serviço de Atenção Psicossocial Integrada em Saúde (Sapis), do Hospital Universitário da Universidade Federal de São Paulo.  Nesse serviço o objetivo não é transmitir informações ou orientações, mas, principalmente capacitar paciente e família a usufruir de forma plena da assistência prestada, tornando-os colaboradores e participativos em relação aos tratamentos. (De Marco et al.,2003). Para tanto, foi instituído dentro do Sapis, o Programa de Ligação em Saúde Mental, responsável por atuar em conjunto e no dia a dia das diversas equipes do hospital: recepcionistas, administração, corpo clínico, técnicos e demais funcionários, servindo de mediador no acolhimento e na capacitação de pacientes e acompanhantes, articulando de forma integrada os recursos do hospital.

“Desde a entrada pelo grupo de visitantes, passando para uma abordagem mais específica, visando ao cuidado do cuidador, diante de uma situação terminal do paciente, até a mobilização da equipe médica, (...) atuamos como facilitadores da relação, facilitando o fluxo de informações e abrindo espaço para a percepção de sofrimento desse familiar e a restauração, mesmo que superficial, da comunicação entre todas as partes envolvidas.” (De Marco et al., 2003, p.265).

A atuação do Profissional de Ligação no acolhimento e no trabalho com pacientes e visitantes também cria a oportunidade de identificar, de forma precoce, fatores que podem acrescentar complicações ao tratamento no hospital, como por exemplo: angústias ligadas ao adoecer, seqüelas traumáticas de internamentos anteriores, carência de informações ou informações distorcidas, desestruturação familiar, falhas na rede de apoio social, estados psicológicos relacionados como depressão, ansiedade, fobias, conflitos familiares, dependências, históricos psiquiátricos etc.

De Marco et al. (2003) observa que em alguns casos os próprios pacientes e familiares se excluem da assistência prestada, muitas vezes por medo e desconfiança, criando resistências que os impedem de usufruir dos recursos que podem ser oferecidos para ajudá-los a atravessar a crise desencadeada. Essa auto-exclusão quando não trabalhada, perpetua a desinformação, o despreparo, se revertendo em descrédito e agressividade contra a equipe de saúde. Portanto, as abordagens psicológicas do Profissional de Ligação em Saúde Mental bem como do Acompanhante Terapêutico, visam melhorar a condição de internação contribuindo para ampliar as possibilidades de amparo aos pacientes e as equipes, diminuindo a ansiedade e tensão de ambos os lados, restituindo a confiança e a colaboração para a efetividade dos serviços.

 

A introdução da música no dispositivo terapêutico

No momento seguinte a esse contexto de acolhimento e avaliação são diagnosticados os casos que poderão se beneficiar da aplicação clínica da música. Portanto, a música tem lugar numa segunda etapa do acompanhamento em queo diagnóstico médico e psicológico já foram realizados e os dispositivos terapêuticos já se encontram estabelecidos. Esse desdobramento terapêutico seqüencial se orienta em um campo clínico hibrido composto pelo entrecruzamento e o diálogo entre diferentes práticas e disciplinas, como a neurologia, a cardiologia, a musicoterapia, a psiquiatria, enfermagem, entre outras. (Chagas, 2008). Contudo, a teoria psicanalítica continua sendo o eixo que baliza o entendimento clínico psicológico de base e a orientação ética do trabalho.

De modo geral, a música é utilizada como recurso terapêutico coadjuvante no controle da dor, na redução da ansiedade, do estresse e fadiga decorrentes da internação e tratamento. (Vale, 2006), bem como, nos cuidados paliativos e doenças que requerem estimulação apropriada como Mal de Alzheimer, o Parkinson e as seqüelas do AVC.  (Särkamo et cols., 2008; Sacks, 2007). Muitos estudos têm comprovado que a presença do som ritmado e harmônico pode aliviar a dor de causa física e emocional e agir em parâmetros hemodinâmicos como freqüência cardíaca, pressão arterial, temperatura, bem como na regularização do ritmo respiratório, relaxamento muscular e melhora do sono.(Hatem, 2006).

Portanto, os objetivos da aplicação são determinados de acordo com as características clínicas de cada caso e com o perfil musical de cada paciente. A partir das entrevistas com paciente e família, o diagnóstico psicológico e a avaliação do histórico musical irão indicar se no caso em específico será benéfica a aplicação da música ou não. É importante saber se o sujeito tem uma relação boa com a música, e o valor que ela tem na sua vida, caso contrário a aplicação pode ser aversiva, inconveniente e até mesmo contra-indicada. Como a música atua em parâmetros fisiológicos vitais é necessário que a equipe médica participe e avalie as condições clínicas de cada caso e a pertinência da estimulação sonora e afetiva em cada momento.

 

A orientação ética do trabalho e a criação como tratamento

Quanto à seleção do repertório musical a ser utilizado, a orientação ética e metodológica do trabalho observa a importância fundamental de se criar condições para que o próprio sujeito escolha e decida sobre as músicas que deseja escutar ou cantar, quando não for possível a orientação é de que a família possa escolher. Na maioria esmagadora das vezes as músicas escolhidas têm um forte significado para o paciente, e marcaram ou estão marcando momentos importantes da sua vida. Conforme Mohallem (2003)

“É ético, ao estarmos diante de um outro que sofre, seja ele paciente, família ou profissional (...) tratar o insuportável, (...) tendo como direção o fazer falar a diferença, para que cada sujeito possa existir no que ele tem de mais singular, sua história, sua subjetividade.”(p.32).

Como é possível observar, a proposta não é tão somente utilizar as propriedades do som para alterar parâmetros fisiológicos, mas também incluir e engajar os sujeitos numa produção estética criativa capaz de lhes devolver a saúde psíquica necessária a sustentar e atravessar o tratamento e a internação hospitalar. O eixo do trabalho é propiciar a emergência do sujeito, que o sujeito seja “suscetível de advir pela música” (Vivarelli, 2006, p.125). Esta operação que visa o sujeito se torna possível quando o canto ou a audição musical é por ele traduzido em palavras próprias e metáforas que orientam e dão sentido para uma trajetória particular. Como pontua Fink (1998), “o lampejo criativo da metáfora é o sujeito; a metáfora cria o sujeito. Todo efeito metafórico é então um efeito de subjetividade.” (p.94). Quando a música se abre para a história e a particularidade de cada um, esta oferta cria “condições para que as metáforas se instalem com todo seu poder de enfrentamento real.” (Simonetti, 2004, p.145).

Vale lembrar que no início da urgência subjetiva o sujeito não fala, mergulhado no mal estar de sensações cruas e intensas, ele grita, chora, age por impulsividade e cai, trata-se de criar condições para levá-lo novamente rumo a palavra. O término da urgência se dá a partir do momento em que o sujeito produz algum significante, ou seja, uma palavra que o liga como sujeito, a partir daí não se trata mais de uma urgência. (Moura, 2000). Esta intervenção é que permite que o dispositivo terapêutico possa, no tempo do sujeito, abrir-se para o desejo e a criação. Morel (1990, p.20) expõe essa abertura através da seguinte indagação: “como vive um grupo familiar, ou como consegue sobreviver a certas situações dolorosas?” Mais adiante, conclui, criando:

“ a criação não serve só como uma sutura para um machucado psíquico de um indivíduo, mas pode também se transformar num curativo, uma espécie de segunda pele, para todo um grupo familiar. Não é obrigatório que o processo desemboque numa criação reconhecida, mas em todo trabalho de criação podemos encontrar vários tipos de reparação e inventividade. Assim, um processo criador, mesmo que minimamente vivido, pode favorecer um novo equilíbrio numa família marcada pela perda e pela falta.” (p.21).

No hospital existem diversas outras situações e quadros clínicos em que o dispositivo da criação pode proporcionar um rearranjo dos recursos a favor do tratamento. O paciente com dor crônica, aqueles impossibilitados de se movimentar ou até mesmo de falar, como em algumas cirurgias, acidentes vasculares encefálicos, doenças pulmonares crônicas, por exemplo, com o tempo tendem a se desorganizar psicologicamente. O idoso em um internamento prolongado pode ficar confuso e há casos em que ele nem sabe mais quem é. Em todos os casos a música e seu processo criativo chamam para um foco, organizam o psíquico para uma direção (Didier-Weill, 1999), deixando o paciente mais concentrado e menos ansioso. A música também proporciona sociabilidade, a melhora do humor e do vínculo com as equipes. Nos casos de Alzheimer, outro exemplo, é um momento em que o paciente se reencontra consigo mesmo, porque aquilo é a história dele. (Sacks, 2007).

 

Considerações finais 

O que podemos concluir desses efeitos terapêuticos proporcionados pela audição ou pela produção musical é que a música em psicoterapia tem a capacidade de atuar no psiquismo criando um foco de alívio em meio à desorganização da angústia e da dor. A música direciona, organiza e nos remete a algo infantil e esquecido de nossa constituição humana, momento em que entram em cena fortes desejos. (Zanetti, 2006). Aí está o terapêutico da música, quando evoca anseios e esperanças, guia o ouvinte a se reconciliar consigo mesmo. O estado depressivo, quadro clínico preocupante no hospital, se caracteriza justamente pela a ausência ou a recusa do desejo, é quando o paciente não quer mais. O que é muito grave, pois como ensina a psicanálise, o desejo é o único impulso capaz de por em movimento nossa vida psíquica. (Freud, 1987). Nesse sentido, desejo é também sinônimo de saúde (Miller, 1997), e o único remédio capaz de transformar sofrimento em trabalho, perdas em criação, tristeza em sabedoria. (Rodrigues, 2000). Esse eixo de trabalho preparado e estabelecido desde o momento da entrada com o acompanhamento terapêutico inicial, abre caminho para que a música possa produzir seus efeitos criando condições favoráveis aos tratamentos, otimizando a alta hospitalar.

 

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1 (Prêmio de 1º Lugar  na VII Jornada de Psicologia do Hospital Universitário/UEL – I Congresso Brasileiro de Psicologia Aplicada à Saúde – setembro 2008 – Londrina, Paraná.)
* Psicólogo, Coordenador e Supervisor do Serviço de Psicologia e Psicanálise do Hospital do Coração de Londrina, Especialista em Clínica Psicanalítica, Mestre em Epistemologia da Psicologia e da Psicanálise, Docente da Pós-graduação em Psicanálise Curso Fundamental de Freud a Lacan.

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