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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH v.11 n.1 Rio de Janeiro jun. 2008
Narcisismo materno: quando meu bebê não vai para casa...
Ana Paula Marson1
Hopital Universitário Regional do Norte do Paraná
RESUMO
A autora tece reflexões sobre a gestação prematura, a qual instala uma crise na relação da mulher com a sua identidade, com a maternidade e com o tornar-se mãe. A ruptura do encontro com o filho idealizado e a surpresa do encontro com o filho real, que a impossibilita de ser mãe, faz cair por terra os sonhos, as idealizações, gerando uma ruptura na rotina de vida da mãe, e na rotina do bebê, que vem ao mundo com aparência frágil e pequena. A gestação e a passagem do bebê imaginado para o bebê real tendem a ser interrompidos por uma realidade em que o bebê idealizado da gestação não corresponde em nada ao bebê da incubadora. Assim, seu narcisismo é profundamente ferido. Deu a luz a um bebê incompleto ou doente, não podendo contar com a festa social do nascimento, as felicitações dos familiares e amigos. O reconhecimento social da maternidade não lhe pertence. A mãe tem que elaborar neste momento sentimentos de dor, angústia, tristeza, que despertam ou reativam vivências de castigo e perseguição, determinando uma regressão afetiva tanto na libido objetal como narcísica. Essas reflexões nos tornam úteis, ao ponto de darmos um espaço de escuta para essa mãe poder ressignificar os sentimentos gerados pela situação, significando esse momento da díade mãe/bebê.
Palavras-chave: Narcisismo, Maternidade, Psicanálise.
ABSTRACT
The author makes some reflection about early pregnancy when it emerges a crisis between the woman and her identity, the motherhood and the fact of becoming a mother. The rupture of meeting an idealized child and the surprise of meeting a real one that prohibits her to become a mother collapses her dreams, her idealizations, creating a rupture in the mother and in the baby´s routine that comes to the world showing a small and fragile look. The pregnancy and the transference from the imaginary to the real baby tend to be interrupted by a hard reality where the idealized child doesn´t correspond at all to the baby in the incubator. Therefore the mother´s narcissism is deeply hurt. She gave birth to an incomplete or ill baby, being deprived of the social celebration for the birth and also the congratulations from relatives and friends. The social acceptance doesnt belong to her. The mother must deal at this moment with feelings of sorrow, heartache and sadness that wake up or restart the experience of punishment and persecution establishing an affective regression in the object-libido and narcisic as well. This reflections become useful to the point of giving the mother a hearing opportunity, so she can add up the feelings raised because of this situation, playing the role of this dyad moment mother/baby.
Keywords: Narcisism, Motherhood, Psychoanalysis.
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu.
(Chico Buarque)
A maternidade marca uma nova fase na vida da mulher. A gravidez é normalmente considerada um estágio de crise e a experiência de ter um filho acarretam consideráveis mudanças em relação à situação anterior, suscitando na mulher reações, sentimentos, fantasias, expectativas. Representa uma transição que faz parte do processo normal do desenvolvimento, envolvendo uma mudança de identidade e uma nova definição de papel, a gestante além de filha e mulher, passa a ser mãe.
Freud (1914) contribuiu para o estudo da maternidade e da paternidade através de seu trabalho sobre Narcisismo. Neste, ele atribui ao amor e às atitudes afetuosas dos pais em relação aos filhos uma característica narcisista. Segundo ele, o narcisismo primário dos pais, já abandonado, é revivido e reproduzido em seu amor ao filho. A atitude emocional dos pais será dominada pela supervalorização, o que revela o caráter narcísico deste afeto, sendo ao filho atribuído todas as perfeições e as suas deficiências. A criança concretizará os sonhos que os pais não realizaram e terá os privilégios que eles não tiveram.
As contribuições de Winnicott (1982b) também adicionam importantes elementos ao estudo da maternidade. Segundo ele, a mulher, durante a gestação e por algumas semanas após o nascimento do bebê, desenvolve uma condição psicológica muito especial, por ele denominada Preocupação Materna Primária. Esta condição consiste em um estado de sensibilidade aumentada, que capacita a mãe a se adaptar às necessidades iniciais de seu filho, a se preocupar e se identificar com ele e excluir temporariamente outros interesses. Este estado da mãe é comparado, pelo autor, a um estado retraído, ou dissociado, ou ainda a uma perturbação mais profunda do tipo esquizóide. Se não fosse pela gravidez, seria uma doença. Porém a mãe saudável é capaz de desenvolver esta doença e recuperar-se dela quando o bebê a libera.
A mãe que atinge o estado de Preocupação Materna Primária, que para Winnicott (1975) está relacionado à devoção e independe de jeito ou nível intelectual, é capaz de fornecer ao bebê a ilusão de que existe uma realidade externa correspondente à sua própria capacidade de criar. Esse estado da mãe, que a torna orientada para a tarefa de cuidar de seu filho, estabelecerá a base da saúde mental do bebê. (WINNICOT: 1982b)
Ao lado do amor e da devoção da mãe pelo seu bebê, surge à ambivalência que está presente nessa relação. Winnicott (1982b) afirma que a mãe odeia seu bebê desde o início, e enumera diversas razões para este ódio. Entre elas, ele cita o fato que o bebê a machuca, se mostra desiludido com ela, não é produzido magicamente, representa um perigo para seu corpo, etc.
Assim como Freud e Winnicott contribuem com a temática da maternidade, outros autores colaboram com o estudo dessa fase impar na vida da mulher, nos ajudando a compreender as vivências emocionais que permeiam a gestação.
Segundo Quayle (2005), na primeira metade da gestação estão mais presentes os conflitos associados à ambivalência, e que incluem: o feto e sua concepção; o desempenho de papéis vistos como auto-excludentes (mãe/esposa/profissional/filha); o medo de perder o bebê ou este ser portador de problemas, doenças ou malformações. A essas condições normalmente associam-se posturas introversivas, regredidas, ou infantilizadas (desejos, vontade de ser cuidada e mimada, sonolência exagerada, refúgio na fantasia...) A segunda metade da gestação é marcada pela possibilidade de percepção dos movimentos fetais, deste outro dentro de si, e acarreta um redirecionamento dos interesses e energias para a realidade externa, sendo comuns os medos e receios das situações e tarefas concretas, tais como: condições do parto e do bebê ao nascer, capacidade pessoal para o desempenho do papel maternal, manutenção da atração física, medo de perder o carinho do companheiro ou de manter a capacidade laborativa.
Para Langer (1981), durante os primeiros meses de gravidez, a mulher vive um conflito de ambivalência, o que se expressa pelos vômitos e desejos. A necessidade de afirmar a gravidez coexiste com o desejo contrário de expulsar o feto ou o que este representa para o seu inconsciente. Assim também Soifer (1986), que se refere aos significados psicológicos dos diversos sintomas presentes na gestação, considera que as náuseas e vômitos, que coincidem com a ansiedade determinada pela incerteza da existência da gravidez, exprimem o conflito de ambivalência. Para esta autora, em todos os mecanismos orgânicos presentes na gestação, participa de modo preponderante o psiquismo inconsciente. Assim, a sonolência, por exemplo, indica que se iniciou a regressão na mulher, que assume as características de uma identificação fantasiada com o feto.
Concordando com Langer, Soifer também considera que durante a gravidez há um incremento das vivências persecutórias como produto de sentimentos de culpa infantis, pelos ataques fantasiados à própria mãe e pelos desejos de ocupar seu lugar. A vivência persecutória consiste em que alguém possa arrebatar o filho sonhado, ou ainda que a gravidez tão desejada implique a perda da própria mãe, por se concretizar a fantasia infantil invejosa: ter o filho pela destruição da mãe.
Nesse sentido, surge uma inquietação: como nasce uma mãe? Segundo Freud (1915) para poder investir narcisicamente em uma criança é necessário, amar o que somos, o que fomos e o que gostaríamos de ser, assim como aqueles que cuidaram de nós. Portanto, uma mulher vai se constituindo em mãe, frente às mudanças físicas do seu corpo, psíquicas e sociais. É comum uma mãe imaginar como será seu bebê ao nascer: terá os olhos do pai? O nariz da mãe? Nascerá saudável? Embora alguns pensamentos ruins passem pela cabeça da gestante, ela sonha dar à luz a um bebê sadio e bonito, que logo poderá estar em seus braços concretizando sua experiência de ser mãe.
Para Soifer (1986) o período pós-parto, ou período puerperal, é descrito como uma etapa de delimitação entre o perdido a gravidez e o adquirido o filho. Também de delimitação entre devaneio, fantasia inconsciente e realidade. Segundo a autora, esta múltipla delimitação é realizada por um lento e gradual processo elaborativo, o qual apresenta alternância depressiva (pelas ilusões não concretizadas e fantasias de perda e impotência), persecutória (mantidas nos elementos difíceis apresentados pela realidade), e maníaca ou de negação. A autora esclarece que o parto tem o significado de uma separação entre dois seres que até então viviam juntos, um dentro do outro. È o momento de uma grande alteração, com a perda de um estado e passagem a outro, o que desperta na mulher profundas ansiedades. Tais ansiedades, que se estruturam sobre a reativação do trauma do nascimento, são: de perda, de esvaziamento, de castração, de castigo pela sexualidade e de defrontação com um desconhecido, o filho.
Debray (1988) também salienta a importância da distância entre o bebê real e o bebê fantasioso como um fator originário de decepção para a mãe neste período. Para a autora, durante a gravidez, o escasso contato com o bebê real leva ao predomínio da interação da mãe com o bebê fantasioso. Este bebê da fantasia aparece como um maravilhoso bebê onipotente dos sonhos, dotado de todos os poderes e de todas as qualidades, dotado igualmente dos dois sexos, segundo as fantasias do momento. Nos primeiros tempos após o parto, as características do bebê recém nascido vão, em muitos casos, ajudar a desenvolver na mãe o sentimento de competência e confiança em si para desempenhar seu papel. Nestes casos, a distância entre bebê fantasmático sonhado durante a gravidez e o bebê real será menor, e as decepções naturais poderão ser aceitas sem muito sofrimento. Entretanto, mesmo quando o bebê real preenche todos os sonhos da mãe, pode surgir nela um movimento depressivo após o parto. Para a autora, é necessário compreender este movimento depressivo caso por caso. O nascimento de um filho pode, por exemplo, reativar uma problemática antiga insuficientemente elaborada na mãe. Entretanto, a autora considera que o nascimento de um filho constitui-se num fato tão importante na vida humana, que é comum o afloramento de impulsos e sentimentos contraditórios, como perturbação, alegria, angústia, depressão...
Ser mãe é padecer no Paraíso... Todos esses sentimentos que permeiam essa vivência materna, nos levam a pensar uma outra situação... Que este cenário pode, em alguns momentos, ser alterado pela inserção de crises acidentais, imprevisíveis, durante o processo gestacional, traduzindo-se em uma gestação de alto risco, culminando no nascimento de um bebê prematuro.
Toda e qualquer gravidez traz em seu bojo a semente do sucesso e do fracasso conceitos esses definidos diferentemente nas diversas épocas e culturas. È, portanto, intrínseca ao processo gestacional a noção de risco. Mesmo numa gestação que transcorre naturalmente, sem problemas aparentes, podem ocorrer situações imprevistas que comprometem o resultado do processo, a saúde materna ou a viabilidade fetal. (QUAYLE: 1997)
Grosseiramente, essas situações podem ser divididas entre preexistentes à gravidez ou concomitantes a ela, sendo, ainda, de caráter médico, social ou psicológico. Essa distinção é importante, porque às origens e tipo de risco geralmente associam-se reações diferenciadas, a exigir intervenções específicas.
A existência de determinadas patologias maternas sabidamente aumenta o risco da gestante e do feto. Entre elas, salientam-se a hipertensão, a diabetes mellitus e outras moléstias endocrinológicas, as cardiopatias, as neoplasias e as hemopatias, as quais podem levar ao nascimento de bebês prematuros.
A atuação do psicólogo em obstetrícia engloba, várias situações que se confrontam com intercorrências do ciclo gravídico puerperal. A prematuridade é uma das intercorrências que se contrapõem à imagem social da maternidade, como local de nascimento e vida, que nesse momento se atrelam a situações de perda, à perda real e à perda do filho idealizado.
O nascimento de um prematuro pode levar a frustração de muitos desejos, fantasias e, sobretudo, rompe a possibilidade no que concerne ao exercício de ser mãe nesse primeiro momento do nascimento, já que esse bebê necessita de outros cuidados para garantir a sua sobrevivência. Essa situação produz uma dor intolerável, de difícil e lenta recuperação, rompendo, em geral, o equilíbrio homeostático familiar. Freqüentemente, a confirmação de uma gestação é correlacionada à idéia de uma nova vida, na qual são depositadas expectativas.
A prematuridade traz consigo significativas repercussões emocionais, que são agravadas por uma sobreposição de perdas: a perda do filho idealizado, o berço vazio, a cobrança familiar e social,etc. A edificação do papel de mãe e a identidade materna, que vinham se desenvolvendo lentamente são, de forma abrupta, interrompidas. Sentimentos de intenso fracasso, de incapacidade e de inferioridade interior são mobilizados pela impossibilidade de gerar o próprio filho.
Muitas vezes, a interpretação do papel feminino passa a ser de desprezo, de inadequação. Em outras palavras, é um golpe para a auto-estima da mulher, para a sua capacidade maternal e para sua feminilidade. (QUAYLE:1997)
O intenso sofrimento psíquico diante da prematuridade, que assinala em alguns momentos a perda do filho, pode abrir caminhos para estados depressivos, estados de ansiedade, fobias, idéias obsessivas que acompanham a mãe durante a permanência do seu bebê na UTIN.
Fazendo uma análise dos aspectos emocionais envolvidos no nascimento de um bebê, um fator citado por Quayle (1997), merece ser considerado: a perda do filho idealizado ou, o luto pelo que está vivo e diferente do que se esperava. O filho real, com seus problemas, difere do filho idealizado e não mais preenche o papel que lhe era destinado no cenário familiar. Não será mais o filho perfeito, sonhado passaporte dos pais para a plenitude pessoal, a gratificação e a felicidade.
Parafraseando Chico Buarque: É arrumar o quarto do filho idealizado que já morreu e vivenciar o filho real (bebê prematuro), exigindo cuidados especiais (como UTI neonatal), que dificultará o estabelecimento do vínculo mãe/bebê. Essa situação, inicialmente reforça os sentimentos de inadequação da puérpera (como mãe), de culpabilidade (pelo sofrimento causado ao bebê por sua doença), e as reações depressivas (pelas perdas reais e fantasiadas percebidas na situação).
O recém-nascido de alto risco é aquele que tem maior chance de morrer durante ou logo após o parto, ou que tem um problema congênito ou perinatal que necessita intervenção imediata, o neonato prematuro é o clássico recém-nascido de alto risco. À medida que a medicina continua a desenvolver mais tratamentos para problemas perinatais, muitos recém-nascidos de alto risco, que no passado teriam morrido algumas horas ou dias após o nascimento hoje sobrevivem. Muitos recém-nascidos de alto risco e principalmente os prematuros exigem cuidados em unidade de terapia intensiva (UTI Neonatal). Além de pessoal médico e de enfermagem especializado, capacitado e presente 24 horas por dia, a unidade neonatal oferece completo suporte vital, equipamento de reanimação, monitoração e extenso serviço auxiliar de apoio (psicologia, serviço social. fisioterapia, fonoaudiologia, etc).
Existe todo um aparato tecnológico de cuidados com o prematuro, que algumas vezes aparece multifacetado perante todos os olhares voltados para esse recém-nascido. Afinal quem é, e o que representa esse prematuro para a mãe?
Sabemos que, além dos cuidados com a parte física do recém-nascido, temos que pensar também em sua estrutura psíquica. A bibliografia é vasta no que diz respeito à importância do vínculo mãe/bebê na estruturação do psiquismo; ao cuidado com a mãe, para que possa dar assistência ao recém-nascido; e as representações do estresse do meio ambiente sobre as funções vitais do bebê.
A organização da unidade busca, em primeiro lugar, preservar a vida e, posteriormente, entregar à mãe um bebê sadio, física e psiquicamente. Para realizar tal tarefa, a equipe recorre a mecanismos de defesa primitivos, tais como dissociação, negação, deslocamento e projeção, fundamentais para que se possa ser tecnicamente competente no cuidado com os bebês. Por exemplo, existem momentos em que é necessário se dissociar das emoções para bem atendê-lo. Como disse uma enfermeira: a gente tem que ver só a veia a ser puncionada. (WIRTH: 2006)
O recém-nascido interno no serviço de neonatologia tem, de um lado a equipe e o serviço, necessários para manter sua vida, e, de outro, a mãe que não pode levar a gestação até o final gerando um bebê prematuro, essa situação é geradora de conflitos. Reforça o sentimento das mães de terem causado a prematuridade do recém-nascido. De modo geral, a prematuridade é vivida como uma falha da mãe, algo que deixou de fazer ou que não fez bem. O que me faz questionar: Qual é a representação desse recém-nascido para a mãe, frente a esse turbilhão de sentimentos, onde em uma UTI Neonatal, vida e morte estão bem mais próximas?
Todo ser humano é desde a sua origem, da sua concepção, uma fonte autônoma de desejo (DOLTO apud ZORNIG: 2004). Esta citação é instigante, pois coloca uma questão fundamental: que estatuto dar a esse ser que, apesar de imerso na linguagem (dos pais), ainda não tem a seu dispor a linguagem verbal como principal instrumento de comunicação? E quando, além de tudo isso, esse ser faz parte do espaço da UTI, onde a natureza não previu a prematuridade do recém-nascido, mas graças à sofisticada tecnologia, invasiva e quase sempre agressiva, consegue-se hoje diminuir a elevada morbimortalidade do período neonatal. Esta clínica da neonatologia nos faz pensar nas vicissitudes da constituição subjetiva e em como a situação da prematuridade pode ser traumática para a mãe e para o bebê pela própria descontinuidade temporal introduzida pelo parto antecipado (prematuro); tal parto interrompe o processo de construção do bebê imaginário e confronta a mãe com o real orgânico do bebê em uma situação a UTI Neonatal em que a temporalidade é urgente, premente, relacionada à sobrevivência do bebê e não a qualidade de seus cuidados. (ZORNIG: 2004)
Segundo Zornig etal (2004) nascer antecipadamente coloca o bebê diferente e estranho daquele que lhe era conhecido até então. Nossa observação mostra que mesmo o bebê pré-termo que nasce em boas condições clínicas e com adequado nível de maturidade necessita de certo período para alcançar auto-regulação e equilíbrio em seus diferentes sistemas em função dessas novas solicitações. Frente às exigências de processos fisiológicos como respirar, sugar e manter a temperatura, o bebê necessita privilegiar a manutenção e o bem estar biológico, em detrimento de um investimento de respostas a partir das estimulações afetivas e sociais enviadas por seu ambiente de cuidados. Ou seja, o fato de ter nascido antes do tempo previsto exige do pequeno recém-nascido respostas especiais ao que lhe é oferecido pelo exterior que permitam sua sobrevivência ou a manutenção de seu estado clínico estável. Assim, podemos pensar no parto prematuro como uma descontinuidade temporal dupla para o bebê: provoca uma descontinuidade temporal, que dificulta a instauração de cuidados parentais que lhe facilitem a transição e a adaptação à vida extra uterina, e ao mesmo tempo antecipa uma prontidão, ao exigir dele que ultrapasse sua fragilidade e imaturidade e se adapte às novas condições, impostas pelo nascimento antecipado.
Para a mãe, a aproximação deste bebê real ao bebê imaginário, construído durante a gestação, demandará a ela um tempo de elaboração que muitas vezes transcende o tempo de internação. É como se muitas mães esperassem uma garantia ou pelo menos sinais consistentes, por parte do bebê, de que podem investir afetivamente na relação, sem ameaças de perda. O tempo de internação é vivenciado pela mãe como um tempo de exclusão de sua vida familiar e social, pois enquanto os familiares retomam sua rotina, a mãe do bebê prematuro permanece na UTI Neonatal.
Segundo Winnicott, 1988, a existência psicossomática é uma realização e, embora sua base seja uma tendência hereditária de desenvolvimento, ela não pode tornar-se um fato sem a presença e participação ativa de um ser humano que segure o bebê e cuide dele. Esse suporte básico vai promover a integração das características próprias de cada criança, diferenciando cada bebê de outro, a partir do apoio encontrado no ego materno que age como facilitador da organização do próprio ego do bebê. Assim ele passa a existir segundo e para ele mesmo, seguindo na direção de vir a se tornar uma unidade. O importante é que eu sou, não significa nada, a não ser que inicialmente, seja juntamente com outro ser humano, que ainda não foi diferenciado. A condição de ser é o início de tudo sem a qual o fazer ou o deixar que lhe façam não tem significado.
Portanto, para que o bebê sobreviva, se faz necessário que a mãe entre em ressonância com o desejo de viver de seu filho. Segundo Zornig etal (2004), nos casos de prematuridade, o psiquismo materno é fortemente atingido em seu narcisismo pela dura realidade orgânica, trazendo como conseqüência um enfraquecimento nas fronteiras do ego.
Para Almeida (2004), a ocorrência do parto prematuro interrompe o período crucial de imaginação materna a respeito do bebê que ainda se desenvolve em seu ventre e pode dificultar a vinculação mãe/bebê, bem como o estabelecimento da preocupação materna primária. A construção materna a respeito da criança pode ser deixada inacabada pela urgência do nascimento. Além disso, o parto pré-termo traz ao mundo um bebê de aparência frágil e pequena, se comparado aos bebês nascidos a termo, e que exige cuidados intensivos de uma equipe especializada. A gestação e a passagem do bebê imaginado para o bebê real tendem a ser interrompidos por uma realidade em que o bebê idealizado da gravidez não corresponde em nada ao bebê da incubadora.
Nestes casos, como indica Catherine Mathelin (1991), as mães podem enfrentar uma dificuldade de reconhecimento do bebê prematuramente nascido. É como se o bebê continuasse em seu ventre, como se ainda não tivesse dado a luz. Deste modo, a mãe pode vir a deixar de dirigir a seu bebê o olhar que o constituiria como sujeito.
É de se notar que as particularidades da comunicação dos bebês prematuros podem também fortalecer o movimento de negação do nascimento por parte das mães, uma vez que estes bebês, em função da maturidade própria de seu desenvolvimento evolutivo (idade gestacional), apresentam padrões de respostas diferentes dos bebês nascidos a termo, para os quais estavam preparadas suas mães. Qualquer manuseio já é capaz de cansar o recém-nascido prematuro, que se encontra voltado para a necessidade de auto regulação. Como sentir-se mãe de um bebê que não dá sinal, que não fabrica a mãe? Para Mathelin (1991), esse bebê é decepcionante, uma vez que a mãe se sente decepcionante por não ter podido levar a contento essa gravidez e pôr no mundo um belo filho saudável. Se o luto do filho imaginário está sempre por fazer no momento de um nascimento, no caso das crianças prematuras este luto parece ter-se tornado ainda mais difícil, até mesmo impossível.
Frente a essa situação, existem dificuldades que vão surgindo, como sensação de ser perigosa para o seu bebê, incapacidade de cuidar, lutar contra a decepção e a inevitável culpa por ter parido prematuramente seu filho. Sobre a crise da gestação instala-se a da prematuridade e da doença. O bebê real não é o imaginado, ferindo profundamente seu narcisismo. Deu a luz um bebê incompleto ou doente acentuando-se as fantasias de castração. Não pode contar com a festa social do nascimento, as felicitações dos familiares e amigos. O reconhecimento social da maternidade lhe é negado, tendo que elaborar neste momento os sentimentos de duplo abandono: o de ter deixado o bebê nascer antes do tempo e logo deixá-lo no hospital.
Dependendo de seu funcionamento mental, pode culpar o bebê, e sua atitude em relação a ele será evitá-lo e mesmo rejeitá-lo; ou pode culpar-se e delegar seu rol de mãe aos cuidadores da UTI Neonatal. Esta situação é frequentemente percebida pelos profissionais que, se não conhecerem o funcionamento psíquico especial destas mulheres, poderão condená-las, por estar abandonando o bebê e passam a assumir eles mesmos o papel de mãe. Ao delegar o papel de mãe aos cuidadores da UTI Neonatal, reativa-se o pensamento infantil de que só os próprios pais são capazes de criar e cuidar da vida. Somam-se os sentimentos de desvalorização e acentua-se a tendência à delegação. Pode julgar-se ameaçadora para a vida do filho e incapaz de tocá-lo, alimentá-lo e mesmo olhá-lo. (Cunha: 2004).
A ansiedade da morte (despertada pelo bebê fantasmático) gera a indisponibilidade de investir no filho, a impossibilidade de ficar com ele, entregando-o aos cuidados da instituição. Cria-se nesta mulher uma grande dificuldade para conceber um espaço mental para o filho que lhe asseguraria a identidade materna.
A Psicanálise pode neste contexto da neonatologia quando a vida começa diferente, tecer uma articulação teórica e prática, acolhendo a escuta da mãe para que ela possa elaborar a crise surgida do desencontro com o seu bebê, e a escuta do bebê salvar não só a pele da criança no sentido dos cuidados durante a hospitalização, mas também sua pele psíquica. Encerro minha reflexão com um provérbio chinês: Você não pode evitar que os pássaros da tristeza voem sobre sua cabeça, mas pode evitar que eles construam ninhos em seus cabelos.
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1 Psicóloga do Hopital Universitário Regional do Norte do Paraná.
- Trabalho apresentado na VII Jornada de Psicologia do Hospital Universitário/UEL I Congresso Brasileiro de Psicologia Aplicada à Saúde setembro 2008 Londrina, Paraná.