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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.13 no.1 Rio de Janeiro jun. 2010
ARTIGOS
Psicologia Hospitalar e Cuidados Paliativos
Health Psychology and Palliative Care
Gláucia Porto1; Maria Alice Lustosa2
Centro de Pós Graduação, Sta Casa da Misericórdia do RJ
RESUMO
Os cuidados paliativos têm como estrutura uma nova forma de gestão da morte, assegurando, através de uma prática multiprofissional sobre as necessidades do doente, principalmente quanto ao controle da dor. Assim, conceitos pertinentes, como o da bioética, englobam sempre o bem estar daqueles que sofrem tanto, como nas doenças crônicas. Neste quadro, o presente trabalho vem tratar a psicologia hospitalar como modalidade pedagógica frente os personagens deste cenário de dor e sofrimento quanto às atitudes diante da morte, proporcionando uma melhor maneira do paciente e cuidadores de resolverem pendências e expressarem emoções ao vivenciarem sua própria finitude. Seu grande desafio é a de permitir ao paciente uma vida com mais qualidade diante da própria morte.
Palavras-chave: Cuidados paliativos; Bioética; Dor; Psicologia hospitalar; Multiprofissional.
ABSTRACT
Palliative care has as a new form of death management, ensuring, through a multi professional practice on the patient's needs, especially regarding the control of pain. Thus, relevant concepts, such as bioethics, always encompass the well-being of those who suffer like in chronic diseases. In this framework, this paper registers the pedagogical model of health psychology thowards the individuals of this scenery of pain and suffering as for the attitudes before the death, providing a better way of the patients and caregivers of solving outstanding issues and expressing their while surviving his finitude itself. His great challenge is it of allowing to a patient a life with more quality before the death itself.
Keywords: Palliative care; Bioethics; Pain; Health psychology; Multiprofessional.
Introdução
O que faz do homem ser humano é ter consciência de si mesmo. Isso equivale a um tesouro mais precioso do que a própria vida. No entanto, isso só é possível a partir do momento que se tem consciência da própria morte. A existência humana sempre é ameaçada pelo conhecimento de que se vai crescer, se desenvolver e, inevitavelmente, morrer.
A morte, por mais paradoxo que isso pareça, faz parte da vida muito mais do que até então o ser humano se tenha dado conta. Ela ronda através das guerras, pelos conflitos civis e sociais, pelas epidemias e, cada vez mais, pelas doenças crônicas em situações fora de possibilidades terapêuticas, ou seja, quando a medicina não possui mais recursos para deter o avanço fatal da doença, suscitando questionamentos tanto para a equipe de saúde, como para familiares e também para o próprio paciente.
Segundo Kovács (2003), a forma como se vê a morte certamente influenciará a forma de ser. Esta autora comenta que, durante todo o processo de desenvolvimento vital, há um entrelaçamento da vida e da morte, e que se engana quem acredita que a morte só é um problema no final da vida, e que só neste momento deverá pensar nela. Afinal, a morte revela a integridade da vida, manifestando o sentido da mesma, visto que, somente ao vivenciar sua própria finitude, o homem alcança a totalidade e a plenitude de sua humanidade, como refere Brugger (1969).
Diante disso, fica a questão: como manter a vida diante de um quadro que suscita a morte? Até que ponto, essa vida ainda absorverá os cuidados oferecidos neste momento que emerge dor e sofrimento? Por essas e tantas outras questões entende-se ser a psicologia hospitalar uma ferramenta em cuidados paliativos necessária não com o intuito de salvar vidas, mas sim em proporcionar boas mortes a partir de uma humanização do morrer.
Conceitos pertinentes como o da bioética englobam sempre o bem estar daqueles que sofrem tanto, como nos casos das doenças crônicas. Afinal, não se podem estudar cuidados paliativos sem que se aborde tal questão. Segundo Torres (2003), bioética é a ciência da sobrevivência humana. Com o fantástico progresso da medicina high tech, chegou-se à ilusão de se pensar que a gestão técnica da dor seria a solução, mas, independente de serem um problema de ordem técnica, a dor e o sofrimento situam-se na esfera ética e devem ser considerados pela ótica multidisciplinar física, psíquica, social e espiritual.
Segundo Pessini (2002), o cuidado da dor e do sofrimento é a chave para o resgate da dignidade do ser humano neste contexto crítico, como a morte. A problemática da dor e do sofrimento não é pura e simplesmente uma questão técnica, mas sim de uma das questões éticas contemporâneas de primeira grandeza.
O sofrimento suscita compaixão, isto é, empatia traduzida em ação humanizada e não somente uma exclamação anestesiadora de consciência: que pena ou que dó. A indiferença, simplesmente, é um fator desumanizante que aumenta, ainda mais, a dor e o sofrimento. O sofrimento suscita respeito, o qual igualmente gera temor, medo, porque se vê, como que num espelho, toda fragilidade, vulnerabilidade e mortalidade, dimensões da própria existência humana.
Frente a este cenário gerador de sofrimento, acredita-se ser possível implementar uma política de assistência e cuidado que honre a dignidade do ser humano mesmo fora de possibilidades terapêuticas. O desenvolvimento e implementação da filosofia dos cuidados paliativos é uma grande esperança para a real efetivação de um cuidado digno das pessoas que têm dor e sofrimento crônicos causados por doenças.
Há que se mostrar os cuidados paliativos no resgate do humanismo perdido nas modernas ações da saúde, cheias de tecnologia e de eficácia curativa, mas tristemente sem significado no que diz respeito à empatia, ao amor, à afetividade, ao calor humano e, portanto, incapazes de eficácia integral no consolo ao sofrimento do indivíduo. A este papel, dentre outros, se propõe a psicologia hospitalar frente a sua participação em cuidados paliativos.
Relevante será reafirmar, através deste estudo, que a medicina paliativa apenas por si, não pode dar uma melhor qualidade de vida ao doente fora de possibilidades terapêuticas se não for combinada com o tão importante apoio psicológico especializado. Este apoio é importante, na medida em que o doente vivencia para além dos sintomas físicos, sintomas psicológicos que se vão manifestando ao longo da fase terminal.
O olhar ao paciente, como sujeito de uma vida e história e não como prisioneiro de uma doença, talvez seja o componente mais importante das práticas de saúde, pois, mesmo que esta doença seja incapacitante, crônica e limitante, sempre haverá possibilidade de resgate, adaptação e de manutenção da dignidade e qualidade de vida.
Morte e Morrer: da Visão Tradicional à Contemporânea
Vive-se numa sociedade mortal que escamoteia a morte. É assim que ela se esconde de suas angústias, mas, diante de um diagnóstico de doença crônica, essa verdade passa a fazer parte de uma reflexão inevitável. Assim como o nascer, a morte faz parte do processo de vida do ser humano. É algo extremamente natural do ponto de vista biológico. Entretanto, o ser humano caracteriza-se também e, principalmente, pelos aspectos simbólicos, ou seja, pelo significado ou pelos valores que ele dá às coisas. Por isso, o significado da morte varia necessariamente no decorrer da história e entre as diferentes culturas humanas.
Culturalmente, costuma-se ver a doença como um castigo e a morte como um fim trágico, avassalador, que rouba a vida. Desmistificar esses conceitos é tarefa imprescindível, pois doença e morte fazem parte do currículo da vida, sendo esta última a que finaliza o ciclo da própria vida. Ela é necessária e, em muitas vezes, proporciona o derradeiro descanso, após um longo período de sofrimento.
Atualmente, a doença é vista como fraqueza e punição, tendo em vista a interrupção à produção. De qualquer forma, a doença coloca o indivíduo em contato com sua fragilidade, finitude, e o coloca frente a dor de um longo tratamento percebendo-se enquanto ser mortal.
A Morte e o Morrer no Tempo e no Espaço
Ao longo da história, o homem sempre buscou desvendar a morte e os mistérios que envolvem o antes e o depois de sua existência. Como tem necessidade de compreendê-la, o homem busca conceituá-la assim como faz com todas as coisas do seu cotidiano.
O processo de luto é um exemplo de morte em vida que se caracteriza por um conjunto de reações diante de uma perda. Falar de perda significa falar de vínculo que se rompe, ou seja, uma parte de si é perdida; por isso, fala-se da morte em vida.
Um estudo que, após a Segunda Guerra Mundial, começou a se desenvolver foi o da tanatologia. O termo tanatologia vem do grego que significa thnatos o deus da morte. Já o termo logos, estudo. A tanatologia possibilitou resgatar o sentido da morte por meio da superação dos medos culturalmente instituídos propondo uma reflexão sobre o sentido da vida e o processo da morte e do morrer com dignidade (Torres, 2003).
O estudo da tanatologia é de suma importância para desmistificar preconceitos e fornecer subsídios para um melhor preparo ao lidar com a questão da morte, proporcionando a valorização da humanização no cuidado de pessoas e pacientes com risco iminente de morte assim como também de seus familiares, através de ações de conforto e respeito.
É difícil, nos tempos de hoje, encarar a morte como um fenômeno natural. Com o avanço da ciência, mais se teme e se nega a morte como realidade. Isto se dá, na maioria dos casos, por conta da técnica através de repouso, tranqüilizantes, aparelhos, transfusões, picadas, intromissões de tubos e cateteres, além de exames muito invasivos.
Durante muitos séculos, por toda a Idade Média, a morte era entendida com naturalidade, fazendo parte do ambiente doméstico, chamada também de morte domada (Ariès, 1981). A morte era ritualizada, comunitária e enfrentada com dignidade e resignação. A partir de então, o doente, chamado na época de moribundo, tomava suas próprias providências e a morte ocorria em uma cerimônia pública, organizada e presenciada pelo próprio indivíduo em processo de morte.
Outro fator importante da época, que reforçava este caráter público, era a presença avassaladora das epidemias, transformando a morte em um evento visível e corriqueiro. Isto também contribuía para uma expectativa de vida muito menor do que a vivida nos séculos XX e XXI (Menezes, 2004).
A espiritualidade e a religiosidade revelavam-se nos ritos e sacramentos da igreja antes através da confissão, comunhão e extrema-unção; e após a morte com os cortejos fúnebres, ritos de purificação e passagem conduzidos pelo sacerdote. O processo de luto era rigorosamente seguido através das roupas pretas, da não participação na vida social, até que não acontecesse sua elaboração. Ariès (1981) prefere afirmar que o morrer na sociedade tradicional era vivido de modo mais pacífico que hoje, visto que o indivíduo se sentia acolhido pela comunidade e pela religião.
O hospital como meio terapêutico surge no final do século XVIII, ao mesmo tempo em que a medicina surge como ciência do indivíduo (Foucault, 1994). Agora o hospital se torna uma instituição administrada e controlada pelos médicos, passando a ser referência na área da saúde, da vida, do sofrimento e também da morte. Surge então, a medicalização social através dos métodos diagnósticos e terapêuticos, pela indústria farmacêutica e pelos equipamentos médicos. A medicina passa a ser responsável, na figura do médico, e através dos progressos técnicos, pelo prolongamento da vida.
A partir de 1930 e, mais especificamente, desde 1945, morrer no hospital é uma praxe (Mello Filho, 1992). O doente perde o direito de opinar sobre a sua morte, e o médico passa "a presidir o espetáculo", e os familiares passaram a sentir-se protegidos por não terem de presenciar a morte de um ente querido.
A partir do século XX, a morte modernizada pode ser qualificada por cinco características: um ato prolongado gerado pelo desenvolvimento tecnológico, um fato científico gerado pelo aperfeiçoamento da monitoração, um fato passivo já que as decisões pertencem aos médicos e aos familiares e não ao enfermo, um ato profano por não atender a crenças e a valores do paciente e finalmente um fato de isolamento já que o ser humano morre socialmente em solidão (Menezes, 2004).
A intenção, na verdade, não é de proteger o doente da angústia do final da vida, mas sim de impedir que a rotina institucional seja perturbada pela emergência das emoções. Esta estratégia de ocultamento ao doente da proximidade da morte, na verdade, vem conduzir o doente a um isolamento social, conforme Kubler-Ross (1975) destaca em sua obra.
O que se viu nestes tempos, foi a distância entre o cuidado do doente e a atenção aos seus órgãos e funções. Há um excesso de poder da instituição médica ao desenvolver uma assistência eminentemente racional, produtora de um elevado índice da medicalização do final da vida, em detrimento da perda de autonomia do doente em submissão ao poder médico.
Bioética
O surgimento da Bioética foi uma exigência das situações decorrentes dos fatos até aqui analisados e, sobretudo, da revolução científica e tecnológica. O termo, um neologismo derivado das palavras gregas bios (vida) e ethike (ética), passou a ser utilizado na década de 1970, quando surgiu nos Estados Unidos. Na Europa, na década de 1980 e nos países em desenvolvimento a partir da década de 1990. Discute- se seus fundamentos epistemológicos, sua abrangência temática, mas sua maior preocupação é prover a qualidade de vida. Por esta razão é que foi inicialmente definida segundo Torres (2003), como a ciência da sobrevivência humana.
Hoje, no estágio da bioética global, a gama de problemas se ampliou muito e obrigou os eticistas, ou seja, a que pessoa viabiliza a estrutura e a estratégia da ética, a considerarem disciplinas para além de suas especificidades, e, assim, estabelecer fronteiras com diversos campos do conhecimento, tais como direito, medicina, religião, filosofia, antropologia, teologia, bem como a psicologia, e outras. Portanto, um dos aspectos mais marcantes da bioética é o diálogo multidisciplinar.
Eutanásia X Mistanásia X Distanásia: A Morte em Discussão
A condição humana inclui a morte como ato final da vida, quaisquer que sejam as condições sociais, psíquicas, culturais ou econômicas em que tenha se desenvolvido, independentemente do sucesso que o indivíduo tenha alcançado ou das frustrações que tenha vivido. A morte iguala a todos, a despeito de credo, status social, idade, ideologias, nacionalidade etc., mostrando a fragilidade da vida e o quanto o ser humano é solitário no morrer. Entende-se que ninguém foge à morte e ninguém pode morrer por outro.
A decisão sobre a continuação do tratamento de pacientes considerados terminais, isto é, fora de possibilidades terapêuticas, envolve médicos, pacientes e familiares com diferentes interpretações e percepções de uma mesma situação. As decisões finais devem diferenciar os procedimentos médicos que levarão ao prolongamento da vida daqueles que somente irão prolongar o sofrimento até o momento da morte.
Diante disso, surgem questionamentos éticos como, por exemplo, se um doente, em fase terminal de um câncer, sofrendo dores insuportáveis, tem o direito de pedir que o matem. Se este for o caso, o médico tem o direito ou ainda, o dever de atender ao seu pedido? A vida tem valor sagrado ou intrínseco? Este valor é absoluto? Qual o critério a ser usado na deliberação destas questões: direitos, princípios, valores? A estas questões segue-se o problema da permissividade ou não da eutanásia. Várias são as conseqüências de uma política de permissão da eutanásia, em nível social, moral, psicológico e econômico. Percebe-se que a questão da eutanásia tornou-se um problema importante nos dias atuais.
Os defensores da eutanásia enfatizam a questão da qualidade de vida do paciente, considerando fútil e até mesmo imoral prolongar vidas sem qualidade, sem condições dignas de serem vividas. Defendem que, nessas circunstâncias, estabelecer critérios que levem a uma possível prática da eutanásia voluntária, não significa desrespeitar a vida considerada sagrada, pois as condições da existência natural já teriam se esgotado.
Dentro da prática médica e dos sistemas de saúde costuma-se ocorrer um evento que é confundido com a eutanásia, sendo por muitos teóricos chamado de eutanásia social: trata-se da mistanásia. O paciente é levado à morte por abandono, erro médico ou má prática da medicina, seja por motivos econômicos, sociais ou científicos. Esta prática é impregnada de maldade, tanto nos motivos que levam à sua prática quanto à intenção de quem a realiza.
Assim, o conceito de eutanásia passa não só por uma transformação de ordem conceitual, mas também jurídica. Esta transformação acarreta fundamentalmente o problema da distinção entre o que é lícito e o que não é, entre o que é liberdade para morrer e o que é o dever de salvar vidas, bem como o direito de viver e/ou de uma boa morte. Quando a terapia médica não consegue mais a restauração da saúde, tratar para curar torna- se uma futilidade. Daí o imperativo ético de parar o que é inútil, fútil, intensificando-se os esforços para manter a qualidade de vida. Cuidar é parte do tratamento, e esquecer-se disto faz cair na obsessão da vida biológica, na obstinação terapêutica da distanásia (Pessini, 1999).
Ortotanásia e Boa Morte: A Morte Contemporânea
Contrapondo ao modelo da morte moderna, eminentemente curativa, no qual o doente não é ativo, a nova modalidade de assistência chamada de morte contemporânea, vem valorizar os desejos do enfermo. Neste caso o termo empregado é chamado de ortotanásia (orto=correto) que significa morte em seu tempo certo. Isto é, sem abreviar e sem prolongar desproporcionalmente o processo de morrer. Mais recentemente passou-se a utilizar este termo por traduzir uma maior sensibilidade ao processo de humanização da morte e alívio das dores, não incorrendo em prolongamentos abusivos com a aplicação de meios geradores de sofrimentos adicionais (Pessini, 2004). Os limites da ação do médico frente aos desejos do doente, torna possível a deliberação sobre o período de vida ainda restante, a escolha de procedimentos e a despedida das pessoas de suas relações, a partir do suporte de uma equipe multidisciplinar (Menezes, 2004).
A ortotanásia, segundo a visão de alguns autores, é a terceira via entre a eutanásia e a distanásia, pois oferece ao paciente as condições necessárias para o entendimento de sua finitude e o prepara para partir em paz e sem sofrimento.Essa prática não apressa e nem prolonga o processo de morrer, mas proporciona condições de vida durante esse período, aliviando todos os tipos de sofrimentos (físico, espiritual e emocional) e permitindo um maior contato com as pessoas queridas do seu convívio a fim de proporcionar a despedida sem culpas e dúvidas.
Uma perspectiva que surge como uma alternativa a esse modelo é a abordagem dos cuidados paliativos. Diferentemente do paradigma de cura da ciência médica, os cuidados paliativos valorizam a qualidade de vida do paciente e, por isso, têm como princípio fundamental o cuidado integral e o respeito à autonomia do paciente em relação ao processo de morrer.
Não há solução para a morte, mas se pode ajudar a morrer bem, com dignidade, facilitando os processos de finalização. O que se propõe como cuidados no fim da vida são de que não deveria haver atitudes autoritárias e paternalistas, e sim movimentos de solidariedade, compromisso e compaixão. O grande desafio é permitir que se viva com qualidade a própria morte; que se tenha uma boa morte.
Assim, a possibilidade de se morrer com dignidade traz uma discussão muito relevante para os dias de hoje. Qualidade de vida no processo da morte e prolongamento da vida não deveria estabelecer uma relação de incompatibilidade, e sim de complementaridade. É o fazer tudo que é possível, e parar no limite do tolerável.
Cuidados Paliativos
Os Cuidados Paliativos não dizem respeito primordialmente a cuidados institucionais, mas trata-se, fundamentalmente, de uma filosofia de cuidados que pode ser utilizada em diferentes contextos e instituições. Pode ocorrer no domicílio da pessoa portadora de doença crônica-degenerativa ou em fase terminal, na instituição de saúde onde está internada ou no hospice, uma unidade específica dentro da instituição de saúde destinada exclusivamente para esta finalidade (Pessini, 2004) .
O termo Cuidado Paliativo é usado, de um modo geral, para designar a atenção multiprofissional a pacientes fora de possibilidades terapêuticas, ou seja, atenção dispensada a pacientes fora de tratamento curativo. A palavra paliativo é derivada do latim pallium, que significa o manto que cobria os peregrinos cristãos que cruzavam a Europa em busca de perdão. Assim, também, o termo que antecedeu ao de cuidados paliativos hospice é derivado do latim, do qual se originaram também as palavras hospício, hospedaria, hospital, hospitalidade, hóspede e hotel. Nesta ocasião, o termo era utilizado em virtude de serem instituições mantidas pelos religiosos cristãos, que erguiam, ao longo de suas trajetórias de peregrinação, abrigos destinados aos peregrinos cansados ou doentes (Figueiredo, 2008).
Em 1970, um encontro entre gigantes dá início ao movimento hospice. Foi quando Saunders se encontrou com a psiquiatra americana Elizabeth Kübler-Ross. Elizabeth Kübler-Ross (2008), em 1969, escreveu o livro intitulado Sobre a morte e o morrer, onde ela descreve os cinco estágios pelos quais passam os enfermos diante da aproximação da morte: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.
Atualmente, registra Esslinger (2004), a obra de Saunders é associada ao movimento cuja preocupação central é a morte digna. Segundo a autora, embora morrer com dignidade seja um conceito altamente subjetivo, a medicina paliativa de Cicely Saunders contribuiu com alguns aspectos cujo centro da preocupação, não sendo mais a cura de sintomas, passa a ser o alivio de sintomas, tanto físicos quanto emocionais, espirituais, sociais e morais decorrentes de determinada doença.
Após 40 anos dos primeiros movimentos em prol dos cuidados paliativos, esta modalidade é uma realidade em vários países do mundo, inclusive abrangendo diversas doenças consideradas incuráveis, não apenas os casos de câncer, conforme aconteceu através de seus pioneiros, e até pouco tempo aqui no Brasil.
Princípios dos Cuidados Paliativos
Apesar das inúmeras discussões que o tema suscita, importa não esquecer que o maior desafio ético em jogo ainda é considerar as questões não resolvidas da dignidade da vida antes de abordar o direito à dignidade da morte. Visto que a qualidade da morte repete a qualidade da vida que se teve, as considerações devem ir além da dimensão físico-biológica e da perspectiva médico-hospitalar, incluindo os aspectos sociais e psicológicos do indivíduo (Figueiredo, 2008).
Cicely Saunders, comentada por Menezes (2004), destaca a expressão dor total, identificando o tipo de dor vivenciado pelo doente no fim da vida. Segundo a autora, Saunders aqui se refere a um tipo de dor complexo, incluindo aspectos físicos, mentais e espirituais, um novo quadro clínico, diante do qual os profissionais prestam uma assistência à totalidade do doente. A dor deixa de ser apenas um dos sinais indicativos de doença, se tornando um problema a ser tratado. De acordo com a proposta de Saunders, o sofrimento só é intolerável quando não é cuidado. Como afirma Victor Frankl, lembrado por Pessini (2004), ao afirmar que o homem não é destruído pelo sofrimento, mas pelo sofrimento sem sentido (p.8).
Apesar do processo de terminalidade, Kubler-Ross (Menezes, 2004) ressalta que persiste em todos os estágios a esperança. E é justamente essa esperança que dá a sensação de que tudo deve ter um sentido e fazendo-os suportar. Isso não significa que os profissionais devam mentir. Deve-se apenas fazer sua a esperança do paciente. Vê-se aqui a capacidade visionária da autora ao evocar desde então as características básicas dos cuidados paliativos.
Com sua teoria, Kubler-Ross (Menezes, 2004) produz uma modificação nas representações do morrer, alegando que a fase terminal da doença e da vida passam a constituir uma essência. Para ela o doente em fase terminal passa a ter voz e demandas específicas e se torna um ator central no processo de sua morte. Para tal, se faz necessário uma rede ampliada de profissionais, surgindo aqui a equipe interdisciplinar.
Humanização Hospitalar na Prática dos Cuidados Paliativos
Em meio ao cenário frio da medicina tecnológica, Pessini (2002) diz ser possível e adequado para a humanização se constituir, sobretudo, na presença solidária do profissional, refletida na compreensão e no olhar sensível. Aquele olhar de cuidado que desperta no ser humano sentimento de confiança e solidariedade.
Humanizar é garantir à palavra a sua dignidade ética. Ou seja, para que o sofrimento humano e as percepções de dor ou de prazer no corpo sejam humanizados, é preciso tanto que as palavras expressadas pelo sujeito sejam entendidas pelo outro quanto que este ouça do outro palavras de seu conhecimento. A humanização depende de nossa capacidade de falar e ouvir, do diálogo com aqueles que nos cercam.
A preocupação com a humanização hospitalar tem como principal meta a dignidade do ser humano e o respeito por seus direitos, visto que a pessoa humana deve ser considerada em primeiro lugar. A dignidade da pessoa, sua liberdade e seu bem-estar são fatores a serem ponderados na relação entre o doente e o profissional de saúde.
Arranjos Profissionais em Cuidados Paliativos
O período final da vida se torna um problema médico, com competência e um saber técnico, vinculados às particularidades biológicas, fisiológicas, mas sobretudo emocionais. Entretanto, junto com esse prolongamento de vida e o chamado processo de morrer (Chiba, 2008), os profissionais da área de saúde começaram a perceber que, mesmo não havendo cura, há uma forma de atendimento com ênfase à qualidade de vida e cuidados ao paciente e da abordagem aos familiares que compartilham deste processo e do momento final de vida, chamado de cuidados paliativos.
O atendimento paliativo requer uma abordagem transdisciplinar, partindo do principio que seu objetivo é de efetuar o controle dos sintomas do corpo, da mente, do espírito e do social, que afligem o homem na sua finitude. Atitudes como estas, acabam exigindo que a equipe de saúde mude o foco do curar para o cuidar. A preocupação central passa a ser a morte digna (Pessini, 2002).
Parece imprescindível que, na prática, mais importante do que compreender os fenômenos biológicos, é compreender os pensamentos, idéias, sentimentos, reflexões e reações desta pessoa que passa pelo processo de morrer. Os profissionais da saúde devem entrar neste campo sem medo, para que estes pacientes possam ser atendidos da forma mais íntegra possível (Chiba, 2008). Por isso, o atendimento a estes doentes estende-se até o âmbito psicológico, social e religioso, atingindo o íntimo de cada um deles.
Em cuidados paliativos, muito mais importante que o objetivo de curar e prolongar a vida, é ajudar a proporcionar uma boa morte. De acordo com Chiba (2008), não há por que ficar improvisando o processo de morrer. Há sempre tempo para aprimorar as nossas vidas, enquanto vivermos (p.50).
O Psicólogo Hospitalar em Cuidados Paliativos
Devido à condição de adoecimento, o estado do ser humano quando hospitalizado é de fragilidade física e psicológica, por isso a prática da psicologia hospitalar requer uma compreensão global, mais abrangente acerca do homem e do seu modo de existir.
A contribuição da psicologia no contexto da saúde, notadamente no âmbito hospitalar, foi de extrema importância nestes últimos anos para resgatar o ser humano para além de sua dimensão físico-biológica e situá-lo num contexto maior de sentido e significado nas suas dimensões psíquica, social e espiritual (Pessini & Bertachini, 2004).
Por ser parte de uma equipe multiprofissional em cuidados paliativos, de acordo com Franco (2008), a psicologia hospitalar contribui em diversas atividades, a partir de saberes advindos ao campo da mente e das vivências e expressões da mesma, através do corpo. O autor destaca que as ações da psicologia em cuidados paliativos não se limitam ao paciente em fase final de vida, mas deve incluir a família, como parte inexplicável da unidade de cuidados, mesmo que estes tenham que ser observados em sua especificidade.
Além dessa unidade de cuidados, a psicologia também se propõe a atuar junto à equipe multiprofissional, uma vez que esta necessita manter a integridade nas suas relações e encontrar vias de comunicação que permitam a troca e o conhecimento, a partir de diferentes saberes. A psicologia coloca-se como elo entre o profissional e a unidade de cuidados, fazendo o que Franco (2008) chama de tradução entre duas culturas. Esse profissional tem como papel identificar maneiras de troca entre paciente, família e com a unidade de cuidados, objetivando a promoção de uma boa adesão aos cuidados propostos, em um nível controlado de desgaste profissional e pessoal entre essa tríade, através de uma comunicação eficiente.
Segundo Esslinger (2004), as pessoas próximas da morte necessitam de alguém que possa estar com elas na dor, criando um espaço para que suas dúvidas, angústias, anseios e também as esperanças possam ser ouvidas e acolhidas, o que chama de morte anunciada. A autora considera a morte anunciada, uma forma do paciente ter a chance de, quando apoiado, traduzir e dar um significado para a experiência da morte ou, ressignificar a própria vida.
Esslinger (2004) entende que só pode haver dignidade no processo de morrer de cada paciente e de seus familiares se for dada a mesma dignidade à equipe de saúde que presta esses cuidados. Se assim for, a autora completa dizendo que, a partir do momento que os profissionais de saúde tiverem a chance de entrar em contato com seus sentimentos ao prestar cuidados para pessoas fora de possibilidades terapêuticas, estes podem identificar-se e, através disto, terão a chance de entrar em contato com as necessidades, desejos e sentimentos do paciente. Nesse sentido, Mermann (citado por Esslinger, 2004), diz que aprender a cuidar daqueles que estão em sofrimento e que estão morrendo, é similar a aprender a amar.
O papel do psicólogo hospitalar em cuidados paliativos é dar um novo direcionamento aos critérios concernentes à qualidade, ao valor e ao significado da vida. É dar condições ao doente de lidar com essa situação e redescobrir o sentido da vida no momento vivenciado por ele. A doença e a morte trazem imbuídos esses propósitos. Cabendo ao psicólogo e toda equipe multiprofissional de saúde em cuidados paliativos tentar decifrá-los, através de cuidados que visem acolher, preservar, acarinhar e dar condições físicas, mentais, espirituais e sociais, além de preservar ao máximo a autonomia funcional do paciente (Figueiredo & Bifulco, 2008).
Conclusões e Considerações Finais
Do ponto de vista histórico, a morte vem assumindo diferentes enfoques e expressões nas mais diversas civilizações. Enquanto em algumas culturas o morrer é encarado como um ato de viver cotidiano, nas quais as pessoas se preparam para a própria morte, na cultura moderna prevalecem as atitudes de negação, evitando até mesmo a abordagem do tema, como forma de defesa aos sentimentos e temores que a palavra evoca.
O tabu da morte acaba por impedir a realização de procedimentos mais humanizados e significativos no contexto da saúde contemporânea. Estar à frente da morte não imuniza o homem da angústia diante da finitude existencial, nem tão pouco alivia a dor inerente aos processos de luto necessários à elaboração das perdas e à dissipação dos medos evocados pela morte.
Com isso, vê-se a necessidade da humanização no atendimento e sobre o papel consciente do próprio paciente, cujos direitos e a autonomia devem ser respeitados. Diante da defesa paliativista, o paciente tem o direito de recusar tratamentos quando sente que a sua qualidade de vida está ameaçada para que possa finalizar a sua existência com dignidade, da maneira como se deseja. Porém, é perceptível na sociedade contemporânea, a dificuldade de se encarar a morte desta maneira.
Nasce uma sabedoria a partir da reflexão, aceitação e compromisso com o cuidado da vida humana no adeus final: os cuidados paliativos. Estes têm, como estrutura, uma nova forma de gestão da morte, assegurando sua prática sobre as necessidades do doente em fase terminal, fora de possibilidades terapêuticas, principalmente quanto ao controle da dor, indo além, quanto ao controle da dor total (Menezes, 2004).
No enfrentamento da falência do corpo e da saúde, surge a necessidade de estabelecer uma significação para a vida ainda possível. É como se a morte necessitasse de um novo sentido, o que é encontrado nos procedimentos paliativistas, quando estes tomam uma postura pedagógica, conforme Menezes (2004), pela aceitação da morte através da construção de novos significados. Saber que a morte é inevitável não exime o sujeito da dor deste momento. Além dos cuidados físicos, os profissionais de saúde precisam aprender a cuidar dos aspectos emocionais. O paciente precisa de um suporte profissional adequado para poder se sentir acolhido e seguro para enfrentar com dignidade o momento da morte.
Busca-se, de fato, a dignidade humana em todas as etapas da vida, o que inclui a morte. Afinal, se em vida se viveu com base em princípios e valores, este merece morrer com os mesmos princípios e valores. Por isso, segundo Kovács (2008), o bom cuidado é sempre vinculado a uma equipe multidisciplinar afinada, sintonizada e harmônica, da qual o psicólogo é parte integrante.
O psicólogo tem por função entender e compreender o que está envolvido na queixa, no sintoma e na patologia, para ter uma visão ampla do que está se passando com o paciente e ajudá-lo a enfrentar esse difícil processo, bem como dar à família e à equipe de saúde subsídios para uma compreensão melhor do momento de fase final da vida. Seu papel parte do princípio de educar os personagens deste cenário de dor e sofrimento, quanto às atitudes diante da morte, bem como sobre a melhor maneira de resolver pendências e expressar emoções.
Como profissional de saúde, o psicólogo tem, portanto, que observar e ouvir pacientemente as palavras e silêncios, já que ele é quem mais pode oferecer, no campo da terapêutica humana, a possibilidade de confronto do paciente com sua angústia e sofrimento na fase de sua doença, buscando superar os momentos de crise como a morte.
Na verdade, a atuação em cuidados paliativos fica entre dois limites opostos, onde, de um lado, a convicção profunda de não abreviar a vida, de outro, a visão de não prolongar a agonia, o sofrimento e a morte. Assim, entre o não matar e o não prolongar, situa-se o cuidar. Como se é ajudado para nascer, o homem precisa ser também ajudado no momento do morrer.
Com base no trabalho acima exposto, fica evidente a necessidade de atuação de psicólogos nas equipes em cuidados paliativos nos hospitais. Fica claro que sua atuação consiste em facilitar o processo de cuidar paliativamente, cuja preocupação central é dar qualidade de vida na morte, além de propiciar ao paciente e seus familiares uma possibilidade de escuta de suas necessidades. E assim, ao invés de fazer restar mais vida sem qualidade, dar mais vida aos dias que ainda restam.
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Endereço para correspondência
Gláucia Porto
E-mail: glauciapina04@gmail.com
Maria Alice Lustosa
E-mail: lustosa.ma@gmail.com
1 Curso de Pós Graduação em Psicologia Hospitalar da Sta Casa da Misericórdia do RJ Monografia de Conclusão de Curso.
2 Coordenadora do Centro de Pós Graduação da Sta Casa da Misericórdia do RJ CESANTA- Professor orientador.