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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.10 n.2 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A difícil notícia do diagnóstico da síndrome de imunodeficiência adquirida para jovens: considerações psicanalíticas com base na perspectiva winnicottiana

 

The difficult news of the diagnostic of aids to youngsters: psychoanalytic considerations from a winnicottian perspective

 

La difícil noticia del diagnóstico del síndrome de inmunodeficiencia adquirida para jóvenes: consideraciones psicoanalíticas desde la perspectiva winnicottiana

 

 

Vera Lúcia MencarelliI; Lílian Sabião BastidasII; Tânia Maria José Aiello VaisbergI

I Universidade de São Paulo
II Universidade Metodista de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O aumento da sobrevida de pacientes soropositivos com síndrome de imunodeficiência adquirida trouxe novos desafios para a clínica psicológica. A tarefa de comunicação do diagnóstico dessa infecção para crianças e jovens é um desses desafios. Essa questão foi abordada à luz de uma discussão sobre os conceitos winnicottianos de interrupção da continuidade de ser e de experiência completa. O trabalho insere-se em uma proposta de estudo de caso com base na narrativa psicanalítica. Os resultados permitem concluir que o processo de revelação diagnóstica pode ter seu impacto traumático atenuado quando familiares e a equipe cuidadora atuam no sentido de prover a sustentação emocional necessária para o paciente. Desse modo, favorece-se a vivência de uma experiência de aproximação da difícil verdade, que deixará de transformar-se, necessariamente, na supressão da possibilidade de a criança ou de o jovem se sentirem vivos, reais, integrados e espontâneos.

Palavras-chave: Psicanálise, Winnicott, HIV/aids, Trauma, Intervenção psicoterapêutica.


ABSTRACT

The increase in the survival rate of patients with Acquired Immune Deficiency Syndrome brought new challenges to the psychological clinic. The task of communicating the diagnostic of this infection to children and youngsters is one of these challenges. The authors approach this question from the perspective of the winnicottian concepts of interruption in the continuity of self and complete experience. The presentation of the psychoanalytic narrative of a thoroughly examined clinical case. The results leads to the conclusion that the process of diagnostic revelation can have its traumatic impact minimized/avoided when family members and staff provide emotional support to the patient. It favors, then, that patients live through the experience of approximation to the difficult truth; experience will not necessarily end up in the suppression of the possibility of the child or the youngster feeling alive, real, integrated and spontaneous.

Keywords: Psychoanalysis, Winnicott, HIV/aids, Trauma, Psychotherapeutic intervention.


RESUMEN

El aumento de la sobrevenida de pacientes con síndrome de inmunodeficiencia adquirida trajo consigo nuevos desafíos para la clínica psicológica. La tarea de comunicar el diagnostico de esta infección a niños y jóvenes es uno de esos desafios. Esta cuestión es aquí abordada a la luz de una discusión sobre los conceptos winnicottianos de interrupción de la continuidad de ser y de experiencia completa. La presentación de la narrativa psicoanalítica de un caso, que es minuciosamente considerado, permite la conclusión de que el proceso de revelación por diagnóstico puede atenuar/evitar su impacto traumático cuando familiares y el equipo cuidador actúan en el sentido de dar el apoyo emocional necesario para el paciente. Asimismo, queda favorecida la vivencia de una experiencia de aproximación de la difícil verdad, que dejará de transformarse, necesariamente, en la supresión de la posibilidad del niño o del joven de sentirse vivo, real, integrado y espontáneo.

Palabras clave: Psicoanálisis, Winnicott, VIH/Sida, Trauma, Intervención Psicoterapéutica.


 

 

Introdução

O Brasil, ao longo dos últimos dez anos, conquistou uma grande vitória na luta contra a aids: alcançamos uma queda vertiginosa (83%) nos casos de inoculação do vírus HIV da mãe soropositiva para seu bebê durante o processo gestacional e de parto (BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO, 2007). Em 1996, foram notificados 368 novos casos de aids em crianças menores de 1 ano em todo o Brasil; e em 2006, 63 novos casos. O sucesso se deve à adoção de um protocolo de profilaxia, ofertado a toda gestante quando constatada a condição de soropositividade. O diagnóstico durante a gravidez significa a possibilidade de evitação da transmissão nos primórdios de vida do feto/bebê. Quando a profilaxia é corretamente adotada, as chances de contaminação tornam-se muito reduzidas. O protocolo de profilaxia para a gestante soropositiva contempla os seguintes passos: prescrição para o uso de anti-retrovirais a partir da décima segunda semana gestacional, uso de alta dosagem do anti-retroviral Zidovudina, injetável na hora do parto, prescrição da mesma droga em forma de xarope para o bebê durante as seis primeiras semanas de vida e a contra-indicação mandatória do aleitamento.

Essa realidade mais promissora para a dupla formada pela mãe soropositiva e seu bebê, infelizmente, não estava disponível antes do período anteriormente mencionado. Dessa maneira, no passado, tivemos um número bem maior de situações que redundaram na contaminação da criança. Hoje, esses indivíduos já pré-adolescentes ou adolescentes trazem preocupações específicas para os serviços encarregados de seu tratamento, tais como a questão da revelação diagnóstica e a compreensão da complexa terapêutica anti-retroviral. Trata-se de temas de inevitável abordagem pela equipe terapêutica e por cuidadores (aqueles que assumiram o cuidado das crianças soropositivas órfãs de pai, mãe ou ambos em função da mesma enfermidade), pois, a partir de certa idade, de acordo com cada indivíduo, é fundamental comunicar o diagnóstico (INSTONE, 2000; GERSON et al., 2001) e orientar a pessoa em relação à necessária adesão à terapêutica medicamentosa (TORRES; CAMARGO, 2008; GALANO, 2007). Mais cedo ou mais tarde, haverá, ainda, a perspectiva de surgimento de questões mais íntimas, revestidas de singularidade na medida em que se apresentam à luz da história pessoal do paciente. Citamos, a seguir, alguns desses temas, já contemplados pela literatura acadêmica: vivências relacionadas à orfandade (FRANÇA-JR.; DORING; STELLA, 2006); preocupações relativas ao sigilo da condição especial de saúde e conseqüente possibilidade de discriminação social principalmente nas escolas ou na freqüência de outros grupos institucionalizados (SEIDL et al., 2005), pois assim como os adultos preocupam-se com a segregação, estigma e preconceito (OLIVEIRA; COSTA, 2007; CASTANHA; ARAÚJO, 2006); fantasias a respeito do agravamento da doença e o medo da morte (BARRICA, 2001). Já na adolescência, tornam-se fonte de inquietações todas as questões que envolvem a iniciação da vida sexual, as expectativas de constituição de parcerias amorosas e, finalmente, os sonhos de matrimônio, maternidade ou paternidade, que povoam o imaginário de todo jovem. Entre nós, outros importantes e abrangentes estudos têm surgido contemplando tais aspectos psicossociais das crianças e de jovens soropositivos (AYRES, 2004; CRUZ, 2007). Entre os temas anteriormente arrolados, será considerada, neste momento, a revelação diagnóstica para crianças e jovens, com o intuito de refletir sobre as dificuldades que enfrentam pais/cuidadores, familiares ou equipe multiprofissional para lidar com a questão. Acredita-se que as pesquisas clínicas, teoricamente articuladas, visam aos aspectos subjetivos dos que vivem na condição de soropositividade e se justificam na medida em que, em nosso país, uma grande maioria dos cidadãos acometidos pela doença alcança sobrevida significativa. Tal situação foi conquistada por meio da implantação de políticas públicas que engendraram um eficiente programa de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis (DST) e à aids, e assistência aos doentes, com garantias de acesso universal à terapêutica medicamentosa anti-retroviral. Os resultados estão aí, divulgados pela mídia. Alcançou-se o controle da epidemia, e é possível o oferecimento de melhores condições de vida aos cidadãos brasileiros soropositivos. Se nossas crianças estão sobrevivendo, a dramática de vida (BLEGER, 1963/2007) de cada uma delas tem de ser observada; e deve receber especial atenção a difícil tarefa de fazê-la conhecedora de um aspecto essencial de sua biografia.

O presente trabalho resulta da articulação entre uma perspectiva de pesquisa, desenvolvida na Universidade de São Paulo, e uma inserção concreta e cotidiana na equipe multidisciplinar de um equipamento público de saúde referenciado para o tratamento de DST/aids. Encontramo-nos, dessa maneira, em situação privilegiada para a observação dos aspectos subjetivos de pessoas que vivem na condição de soropositividade. São objetos de atenção o vínculo afetivo-emocional emergente na relação entre pacientes e equipe de cuidadores (MENCARELLI; VAISBERG, 2007), e a exploração de enquadres psicoterapêuticos não-convencionais (MENCARELLI; VAISBERG, 2005; MENCARELLI, 2003).

Elege-se a vertente da leitura dinâmica como possibilidade de uso do método psicanalítico winnicottiano, adotada como o ângulo privilegiado por meio do qual será abordado o fenômeno clínico.

Bleger (1963/2007), uma das referências para o desenvolvimento do trabalho, é um autor que retoma a crítica politzeriana à duplicidade discursiva contida na psicanálise tradicional, a saber, a oferta da abstrata teorização metapsicológica a eventos humanos de caráter emocional, incorrendo na perda de concretude da experiência humana – o homem encarnado. Por sua vez, Politzer (1928/1973) elege o drama como objeto da Psicologia, apontando como propriamente transformador e revolucionário no método psicanalítico o pressuposto de que toda conduta humana tem sentido, por mais incompreensível que possa parecer. Com base nessa perspectiva, coloca-se o homem ante a dependência e correlação dialética com o mundo externo e se percebe toda conduta humana como a melhor possível, na medida em que emerge a partir da reunião dos recursos internos do indivíduo. Nessa linha de pensamento, a Psicologia constitui-se por um instrumento epistemológico necessário para iluminar um aspecto do complexo e transbordante fenômeno humano – o sentido emocional das condutas humanas.

Alinhadas ao pensamento exposto, encontramo-nos distanciadas da vertente metapsicológica na busca de compreensão para os fenômenos humanos. Acredita-se que o pensamento winnicottiano harmoniza-se com o posicionamento epistemológico adotado no uso do método psicanalítico. O trabalho aborda a dimensão emocional do encontro inter-humano com os pacientes (VAISBERG, 2004).

Este trabalho adotou o método de estudo de caso, concentrando-se na narrativa de uma vinheta clínica na qual foi apresentado o que se julgou essencial para permitir ao leitor uma aproximação bastante detalhada do acontecer clínico. Nos encontros clínicos narrados, evidencia-se a peculiar tarefa de revelação diagnóstica de soropositividade para uma jovem, cuja família não conseguira dar conta dessa necessidade, demandando auxílio de uma das psicólogas da equipe. Convida-se o leitor para acompanhar a narrativa que será seguida de um debate teórico.

 

Método

História clínica

Uma garota pré-adolescente, a quem chamaremos de Fabiana1, às vésperas de completar 12 anos de idade, é a filha mais velha de Josélia, uma jovem de 29 anos que adquiriu o HIV de seu esposo, falecido há oito anos. O pai é amorosamente lembrado por Fabiana, que, não raro, diz sentir muitas saudades dele. Fabiana tem uma irmã mais nova que não é soropositiva, e ambas moram com a mãe e o padrasto. Na ocasião em que foi trazida para seguimento psicoterápico, a paciente freqüentemente indagava a mãe a respeito da necessidade de ambas tomarem medicamentos diariamente, o que não ocorria com sua irmãzinha.

A garota, muito perspicaz, desde o início de seu atendimento questionava o motivo dos encontros com a psicoterapeuta, e esta procurava lhe responder de maneira franca, porém, cuidadosamente, buscava preservá-la dos assuntos para os quais ainda não se mostrava pronta para discutir. Dessa maneira, optou por dizer-lhe que os encontros eram necessários para que compreendesse, com seu médico infectologista, a importância dos remédios que tomava tão a contragosto.

Fabiana estava prestes a completar 12 anos de idade, o que comentava com grande empolgação. Esse contexto fez que a psicoterapeuta julgasse oportuno utilizar um material mediador, disponível no ambulatório, dando-lhe como atividade a confecção de velas ornamentais, com o objetivo de enfeitar sua festinha de aniversário, já que diversos trabalhos publicados apontam a eficácia da utilização de materialidade mediadora no favorecimento da comunicação emocional durante o processo psicoterapêutico. Tais trabalhos podem ser encontrados no site www.serefazer.com.br.

Paciente e psicoterapeuta passaram, então, a ocupar os encontros com o fazer de velas, tendo como recorrente assunto algo que era colocado em pauta pela garota, isto é, seu desejo de, brevemente, deixar de tomar os remédios. Fabiana, no entanto, hesitava em indagar a terapeuta de forma mais direta em relação ao que a levava a necessitar de tais medicações, o que certamente trazia implícito outras perguntas correlatas: Ela seria doente? Qual seria sua doença? A mãe sofreria do mesmo mal? Durante esse período, a terapeuta apenas acompanhava atentamente o explanar de suas expectativas no aguardo de novos movimentos que pudessem surgir.

Dispostos na sala de atendimento, encontravam-se folhetos, livros e livrinhos infantis com a temática do HIV/aids. No ambulatório, em seus corredores e nas enfermarias, também são encontrados banners e outros materiais de divulgação de cuidados em saúde relacionados a esse mal, o que é natural para o contexto do ambiente. Todo esse material jamais era escondido da garota; porém, quando folheava os livrinhos infantis, Fabiana negligenciava os que diziam respeito à sua doença.

Quando a menina encontrava, na sala de atendimento, outras velas feitas por algum outro paciente e se mostrava curiosa para saber sua origem, a terapeuta aproveitava e lhe dizia que também haviam sido feitas por pessoas, que, como ela, tomavam os mesmos remédios. Nessas ocasiões, ela se sentia mais confiante e perguntava: “Crianças e adultos também? Que tomam remédio também?”.

Ela mostrava-se satisfeita e aliviada naqueles momentos, mas logo em seguida procurava mudar de assunto. Transcorridos quatro meses do início do acompanhamento, conformou-se uma situação que ocupou o decorrer de dois encontros seguidos, de modo que, ao final destes, a revelação pôde ser feita.

No primeiro dos encontros, Fabiana estava animada fazendo velinhas da Hello Kitty para colocar em seu bolo de aniversário. Repentinamente, a garota fez a seguinte pergunta para a psicoterapeuta: “Seus filhos também vão ao psicólogo?”.

A terapeuta lhe disse que não e que talvez ela quisesse saber se era igual às outras crianças, apesar de fazer coisas diferentes como tomar medicamentos todos os dias. Prosseguiu dizendo que Fabiana tinha dúvidas a respeito do porquê freqüentava aqueles encontros. Aproveitou para retomar suas explicações iniciais dizendo-lhe que estava ali para compreender melhor algumas coisas que faziam parte de sua vida, como a necessidade de tomar remédios, e que, aos 12 anos, talvez estivesse pronta para saber mais sobre tudo aquilo.

Terapeuta: “Você se lembra de que sua mãe me procurou para eu te ajudar a entender o motivo pelo qual você deve tomar os seus medicamentos?”

Fabiana respondeu afirmativamente.

Terapeuta: “Fabiana, você às vezes pensa nisso?”

Fabiana: “Penso o tempo todo... Fica na minha cabeça o tempo todo...”

Terapeuta: “Você gostaria de conversar agora?”

Fabiana: “Sim” – respondeu convicta.

A terapeuta, por sua vez, tinha uma outra convicção: responderia a tudo o que a menina perguntasse, adiando, no entanto, a nomeação da doença para quando a mãe estivesse junto, já que, naquele dia, fora levada ao ambulatório por uma tia. A imprevisibilidade favorável do curso que tomou aquele encontro não permitiu que ela perdesse a oportunidade de se aproximar ao máximo da revelação, ainda que não tenha optado por concluí-la na ausência da mãe, de quem a menina precisaria para apoio emocional. Assim, tentou lhe explicar a situação:

Terapeuta: “Fabiana, vamos então conversar agora que você mostrou-se pronta. Vou procurar responder tudo que puder, mas algumas coisas gostaria de deixar para conversar quando sua mãe estivesse aqui também.”

Fabiana: “Mas por quê?”

Terapeuta: “Por dois motivos: primeiro, porque seria bem legal para você, e, em segundo lugar, porque você veio hoje com sua tia e eu acho que sua mãe não gostaria de que ela participasse desse assunto que é só de vocês. Você consegue entender agora?”

Fabiana: “Consigo. Por que eu tomo remédios?”

Terapeuta: “Porque você tem um vírus... você sabe o que é vírus?”

Fabiana: “Sei, um bichinho.”

Terapeuta: “Isso mesmo. Ele está no seu sangue e precisa ficar preso e quietinho, e não livre e solto, pois ele ataca o seu linfócito, que é o soldadinho de defesa contra doenças, e a gente precisa ajudar o soldadinho...”

Fabiana: “E esse vírus vai morrer?”

Terapeuta: “Um dia a gente acha que sim, mas, por enquanto, ainda não criaram um remédio que conseguisse matá-lo.”

Então, Fabiana ficou muito entristecida, já que parar com os medicamentos sempre fora um dos seus maiores desejos:

Fabiana: “Nunca vou poder parar” – constatou.

Terapeuta: “Talvez um dia, mas agora você não pode...”

Fabiana começou a chorar. Inicialmente, eram apenas lágrimas, muitas e muitas. Depois, a elas se somou um murmúrio baixinho de dor e angústia, lembrando o chorinho de um bebê muito pequeno e solitário, que não percebe a presença daqueles que cuidam dele, tamanho o seu sofrimento. A terapeuta sentiu seu coração apertado, mas manteve-se confiante de que tomara o melhor caminho que a situação permitia. Após ter chorado, a jovenzinha perguntou à terapeuta por que era doente, e esta lhe respondeu que, na verdade, ela não era doente, era somente portadora de um vírus que poderia se tornar perigoso se cuidados não fossem tomados.

Ao término desse encontro, a psicoterapeuta assegurou à garota de que estaria pronta para ajudá-la no que fosse necessário e que poderia lhe telefonar se quisesse. Fabiana pareceu aliviada, embora entristecida. Ao abrir a porta, a terapeuta pôde vê-la sair cabisbaixa e ficou preocupada com os desdobramentos daquele encontro clínico.

Passados alguns dias, Josélia telefonou para a terapeuta. Estava desesperada e contou que, ao ser questionada pela filha a respeito da doença, ficara totalmente atrapalhada e dissera para a garota que ambas tinham o vírus da hepatite B. A terapeuta solicitou que Josélia comparecesse sozinha ao próximo encontro para que pudessem conversar. Qual não foi sua surpresa quando, no dia agendado, a mãe apresentou-se acompanhada de Fabiana! A terapeuta pediu licença para a menina e entrou no consultório com Josélia. A mãe relatou-lhe os detalhes dos últimos acontecimentos, e era notável seu sofrimento. A psicoterapeuta assegurou-lhe que tudo poderia ser revisto e que a verdade poderia ser retomada. Garantiu-lhe que poderia estar presente nas consultas caso desejasse, tendo ela lhe assegurado que estaria sempre agindo corretamente, pois amava sua filha e tinha com ela um excelente relacionamento. Josélia, então, tirou da bolsa uma foto do esposo falecido e se emocionou. Confidenciou à terapeuta que ainda tinha muitas saudades, embora, simultaneamente, sentisse muita raiva por ele ter deixado aquele legado inominável que agora ela deveria partilhar com Fabiana.

Quando Josélia se acalmou, pôde conversar com a terapeuta a respeito de detalhes sobre a maneira de comunicar à Fabiana o que ainda restava, tendo ambas combinado o nome que dariam para a condição de soropositividade. A psicoterapeuta julgou importante que ambas usassem as mesmas expressões e nomes para evitar que a garota se sentisse confusa. Josélia optou pela expressão “portadora do vírus HIV”, dizendo que não gostava do termo “pessoa soropositiva” e muito menos de “portadora do vírus da aids”. Ela escolheu que falaria com sua filha a sós, antes do aniversário dela, “assim ela não vai passar o aniversário com minhocas na cabeça”.

A terapeuta procurou transmitir segurança para aquela mãe dizendo-lhe que, durante todos aqueles anos, procurara agir da melhor forma possível e que era esperado, na hora da revelação de um segredo daquele porte, o aparecimento de dúvidas e medos dos quais nem sempre era fácil fugir. Disse-lhe também que ela deveria confiar no bom vínculo que tinha com a filha e expressou seus votos de que ambas superassem aquele momento extremamente difícil. No entanto, na seqüência, algo surpreendente ocorreu. Ao despedir-se, Josélia a olhou resoluta e disse-lhe:

Josélia: “Não agüento mais esperar... Tem de ser agora! Estou com isto entalado aqui...” –, fazendo o gesto de apertar a garganta.

Sendo assim, a terapeuta concordou em ajudá-la naquele mesmo momento. Fabiana foi convidada a entrar na sala e a mãe lhe contou que havia se atrapalhado quando disse que ambas tinham hepatite B. Então, nesse momento, confidenciou à filha que, na realidade, ambas eram portadoras do vírus...

Josélia: “Como que é mesmo?” – perguntou assustada para a analista.

Terapeuta: “HIV” – respondeu.

Josélia: “Isto, HIV” – repetiu Josélia.

A terapeuta e a mãe trocaram um olhar. Josélia estava apreensiva, porém orgulhosa. Ainda existiam muitas dificuldades a serem superadas, mas ela havia conseguido fazer que aquela palavra saísse de seus lábios.

Fabiana ouviu de sua mãe o nome do mal que portava e manteve os olhos abaixados durante um bom tempo. Aos poucos, foi olhando para Josélia e gradativamente parecia se sentir mais calma, até que, por fim, mostrou-se capaz de fazer perguntas e quis falar sobre o preconceito.

A terapeuta e a mãe puderam apresentar-lhe algumas considerações sobre a existência do preconceito e sobre a conseqüente necessidade de manutenção do sigilo. A terapeuta lhe apontou que tal conduta seria necessária, pois muitas pessoas não sabiam lidar com assuntos tão difíceis como aquele. Acrescentou ainda que era fundamental que tanto Fabiana quanto Josélia se lembrassem de que não tinham feito nada de errado e que, por isso, não deveriam sentir vergonha alguma.

Outro ponto de questionamentos da jovem referiu-se às formas de transmissão. As respostas claras e diretas da terapeuta fizeram que pudesse, enfim, compreender a morte prematura do pai, a contaminação de sua mãe e, posteriormente, o fato de ter nascido portando o vírus. A terapeuta ainda lhe disse que ela se contaminara com o vírus da mãe durante a gestação, e que Josélia entristeceu-se muito com esse acontecimento, que não queria que isso tivesse acontecido. Foi assim que Fabiana começou o árduo processo de tentar montar o quebra-cabeça de sua história familiar invadida pelo HIV.

No final daquele encontro, a jovem parecia bem mais tranqüila. Abraçou sua mãe e até esboçou um leve sorriso. Quando ambas saíram do consultório, a terapeuta refletiu que ainda havia um longo caminho pela frente.

 

Discussão do caso clínico

Atuamos em uma referência oficial para o cuidado de pacientes HIV positivos ou doentes de aids que pertence ao Programa DST/aids do município de Santo André, e os poucos bebês brasileiros atualmente vítimas da transmissão materno-infantil encontram-se também matriculados em nossa referência. Dessa maneira, temos o conhecimento de diferentes situações no que se refere à comunicação diagnóstica para crianças e jovens. Aos bebês ou às crianças muito pequenos, não cabe a apresentação do problema, ao menos não em caráter de premente necessidade. É importante salientar que as ações preconizadas a partir do Ministério da Saúde têm apontado que a revelação diagnóstica deve se revestir, idealmente, de um caráter processual. Dessa maneira, podemos considerar que, de acordo com a compreensão da criança, não haveria idade mínima para o início da comunicação. Recomenda-se que a criança esteja em acompanhamento psicológico e que receba a notícia de sua condição por meio de uma pessoa de sua extrema confiança, seja um membro da família, seja um profissional com quem tenha e stabelecido vínculo significativo em razão da rotina de cuidados.

Há, entre aqueles que se encontram na faixa etária de 6 a 10 anos, alguns que sabem de sua condição por terem sido comunicados por familiares ou por, infelizmente, terem tido seu sigilo quebrado por um familiar distante ou por alguém da vizinhança que veio a saber da situação da criança. Na referida faixa etária, bem como nas subseqüentes, temos recebido a demanda de familiares para o auxílio psicológico com vistas à revelação. Temos ainda aqueles acima da faixa dos 10 anos, alguns já conhecedores de seu diagnóstico por terem sido comunicados pelo médico de controle em comum acordo com a família ou por um membro da família. Nossa experiência tem constatado que a forma como cada uma dessas crianças recebeu a notícia de sua condição não deixa de determinar uma série de desdobramentos relacionados à continuidade de seu desenvolvimento emocional, bem como a seu relacionamento com a doença e ao tratamento. Preocupa-nos, no entanto, o jovem que, acima da faixa etária dos 10 anos, ainda desconhece sua condição especial de saúde, pois aí se configura uma situação na qual o jovem está apartado de um aspecto extremamente importante de seu viver.

O conhecimento da condição de soropositividade pelo(a) jovem acaba por impor-se de forma inevitável, conforme avança em seu crescimento e amadurecimento. A percepção de que medidas de cuidados diferenciados são adotadas para si faz que se ponha a questionar a família a respeito da necessidade de tomar remédios continuamente, visitar médicos freqüentemente e fazer exames periodicamente. Tais considerações dizem respeito àqueles que têm sua situação clínica estável, o que, infelizmente, não é o caso de todos. Quando o jovem é vitimado por intercorrências diversas, como o surgimento de doenças oportunistas que, por vezes, exigem internação, ou, ainda, quando se fazem necessárias investigações para busca de novos esquemas medicamentosos que exigem o envolvimento em diferentes procedimentos médicos, a ausência de explicações confere à situação um padrão altamente dissociativo. De maneira comum a todos os jovens soropositivos, em condições melhores ou não de saúde, suas suspeitas aliam-se a certa apreensão por parte dos pais ou de outros cuidadores, apreensão esta conseqüente à própria manutenção precária do segredo. A reunião de tais fatores, quando estendidos para um período além do razoável, acaba por gerar um sentimento de urgência em todos os envolvidos para a quebra de um tácito acordo de silêncio que se estabelece entre pais/cuidadores e o jovem. Soma-se a esse sentimento a percepção de extrema delicadeza que deve acompanhar todo o processo. Esta é exatamente a situação que se configurou no caso narrado.

Entende-se que estaria presente, de maneira comum a todos os implicados na situação, uma preocupação que tem como intuito evitar a instalação do trauma. A palavra “trauma” será aqui utilizada com base no referencial winnicottiano. Pergunta-se, então, inicialmente: o que seria um trauma para Winnicott? Posteriormente: o que seria capaz de evitá-lo? Acredita-se que, com Fabiana, a expectativa da evitação da instalação de processo traumático tenha sido exitosa, tornando o caso emblemático para nossas reflexões.

Encontramos em Fulgêncio (2004) um providencial auxílio para a elucidação da noção de trauma em Winnicott. Ele, didaticamente, nos elenca diversos sentidos dispersos pela obra do autor que apontam para essa idéia. Assinala que, para Winnicott, o trauma pode ser considerado como violação do si mesmo; como deprivação; como inconstância do ambiente, o que leva a uma hiperatividade do funcionamento mental; como aniquilação do indivíduo cuja continuidade do ser sofreu uma interrupção; como associado às ansiedades impensáveis; como ausência da mãe por tempo excessivo; como ameaça de separação. Fulgêncio ressalta, entretanto, que a centralidade do fenômeno traumático para Winnicott repousa na idéia de ruptura da continuidade de ser. Convém que nos detenhamos, portanto, nessa idéia.

Winnicott nos ensina que o bebê não existe sem a presença da mãe ou substituto materno. Antes de ser “um”, o bebê é a experiência sensorial/vivencial da dupla que forma com a mãe, a qual, disponível emocionalmente a partir de um estado psicológico disparado durante os últimos meses da gestação, nomeado como estado de preocupação primária (WINNICOTT, 1956/2000a), torna-se sensível às necessidades psicossomáticas de seu filho. É importante salientar que a mãe biológica, capaz de desenvolver a preocupação materna primária, mantém-se, teoricamente, como referência ideal para esse íntimo relacionamento no início da vida do bebê. Entretanto, pode-se postular a viável substituição dessa função materna na ausência de tal favorecimento biológico. Em algumas ocasiões, conhecemos avós que se tornaram substitutas maternas – em razão da morte da mãe ou da rejeição da função materna pela mãe biológica – e que alcançaram perfeita disponibilidade sensível para com o bebê.

No início da vida, o pequeno ser não existe a partir de seu próprio ponto de vista; nem é capaz de ter uma percepção de si mesmo. Condição inversa deve ser a da mãe que, disponibilizando recursos afetivo-emocionais na experiência vivencial com seu bebê, alcança, assim, a medida exata para o atendimento em tempo das necessidades daquele. É importante salientar que, ao contrário do bebê, a mãe deve perceber a si mesma e seu filho como seres separados, ainda que se mantenha disponível sensivelmente para responder às necessidades psicossomáticas daquele. Para o bebê, no princípio, não há diferenciação entre “eu” e “não-eu”, ao passo que, para a mãe, o reverenciar da alteridade deve alcançar seu bebê desde sempre.

O cumprimento, a contento, do que é esperado da mãe – na parceria desigual em recursos que forma com seu filho – colocará em andamento, em sentido progressivo, a dependência absoluta do bebê em direção à independência relativa, pois, no início, este é apenas um potencial herdado e uma incipiente continuidade de ser. A mãe deverá ser capaz de oferecer ao bebê um ambiente sustentador, que, nesse estágio, constitui uma parte dele mesmo (WINNICOTT, 1960/1983). Por meio dos cuidados maternos dirigidos às necessidades psicossomáticas do bebê, de maneira a fazer existir um ambiente sustentador – o que Winnicott descreveu como a tarefa de holding materno –, o bebê será capaz de tornar-se um indivíduo. Para isso, o bebê deverá alcançar o estado de integração, referente à percepção de si mesmo como ser uno; deverá alcançar a personalização, que se refere à noção de que se habita o próprio corpo; e, enfim, deverá ter condições de relacionar-se com o meio ambiente à medida que evolui no reconhecimento de um mundo interior, um mundo exterior e um mundo compartilhado (cf. WINNICOTT, 1945/2000b).

Quando há um comprometimento no desenrolar da sutil e sensível tarefa da mãe, em que se cria um descompasso entre as necessidades do bebê e seu atendimento, e impera a conduta do ambiente, o bebê experimentará esse tipo de acontecimento como uma intrusão. Ele passa, então, a reagir à invasão, e sua continuidade de ser fica interrompida. Vejamos isso com as palavras de Winnicott (1960/1983, p. 53):

Com o cuidado que ele recebe da mãe, cada lactante é capaz de ter uma existência pessoal, e, assim, começa a construir o que pode ser chamado de “continuidade de ser”. Na base dessa continuidade do ser, o potencial herdado se desenvolve gradualmente no indivíduo lactante. Se o cuidado materno não é sufi cientemente bom, então o lactante realmente não vem a existir, uma vez que não há a continuidade do ser; ao invés, a personalidade começa a se construir baseada em reações às irritações do meio.

E, ainda, do ponto de vista das experiências sentidas como invasões, ele dirá:

Neste lugar, que é caracterizado pela existência essencial de um ambiente sustentador, o potencial herdado está se tornando uma continuidade do ser. A alternativa a ser é reagir, e reagir interrompe o ser e o aniquila. Ser e aniquilação são as duas alternativas. O ambiente tem, por isso, como principal função a redução ao mínimo de irritações a que o lactante deva reagir com o conseqüente aniquilamento do ser pessoal (WINNICOTT, 1960/1983, p. 47).

Analisando tais citações e unido-as a apontamentos de 1965, em texto intitulado “O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família”, Winnicott (1965/1994) nos demonstra sua convicção quanto à função protetora da família – primeiro ambiente sustentador – diante de situações de imposição da realidade externa com potencial de intrusão. Dirá, precisamente, que “a família fornece à criança que cresce uma proteção quanto ao trauma” (WINNICOTT, 1965/1994, p. 102).

Ainda que saibamos que todo esse processo descrito relaciona-se aos primórdios do desenvolvimento emocional, tendo primariamente a mãe como ambiente, é pelas próprias indicações de Winnicott que podemos emprestar forma semelhante de pensar a respeito de etapas posteriores da vida com o intuito de iluminar os fenômenos estudados neste trabalho. Vejamos:

Esses assuntos que também dizem respeito ao desenvolvimento emocional muito primitivo não são fenômenos de interesse apenas teórico. Eles são e continuarão a ser a tarefa básica de cada ser humano pela vida afora. As tarefas permanecem as mesmas, mas, à medida que o ser humano cresce e se desenvolve, torna-se cada vez mais individual, engajado na verdadeira luta que é a vida (WINNICOTT, 1988/1990, p. 103).

Julgamos ser correto supor que, para Winnicott, o ser humano é um ser em devir, em permanente desenvolvimento e transformação. Em conformidade com esse pensamento, conclui-se que, a qualquer momento da vida no qual haja o assalto por adversidades de potencial traumático, é a sustentação emocional oferecida pelo ambiente – já não depositado somente na figura materna – o elemento fundamental para que tal evento desfavorável tenha seu potencial de intrusão atenuado. Entendemos, portanto, que o holding é o que pode ser oferecido como uma espécie de anteparo em relação ao trauma.

Parece-nos que o grande receio de todos aqueles que se vêem envolvidos com jovens na iminência da revelação de sua condição de soropositividade, como no caso de Fabiana, refere-se a experimentar compreensíveis sentimentos de insegurança em relação à capacidade de, por meio do holding, atenuar o impacto invasivo da realidade externa.

Convém que se considere, contudo, que, embora o ambiente sustentador seja incapaz de afastar fatores externos profundamente desfavoráveis, como a doença grave, com potencial de letalidade, ele pode colocar em andamento algo semelhante ao que Granato e Vaisberg (2003) chamaram de “devoção materna especial”. Esta é compreendida como o desenrolar da preocupação materna primária que se prolonga nos cuidados dirigidos a um filho especial, portador de alguma patologia que ultrapassa o domínio da fantasia, exigindo uma dedicação também especial por parte da mãe, do núcleo familiar e do ambiente.

Passemos, neste momento, para nosso segundo questionamento: o que colabora para a evitação do trauma? Como já apontado, acredita-se que a presença do ambiente de holding, ofertado por familiares e equipe de saúde (caros senhores, preferimos “equipe de saúde” ao termo “equipe de cuidadores” usado anteriormente, pois “cuidadores” se refere à família expandida e não à equipe de profissionais), para as vivências relacionadas à realidade da soropositividade como condição de vida, como ocorrido no processo de revelação diagnóstica de Fabiana, possa se revestir de potencialidade para a minimização de características de intrusão, responsáveis pela condição traumática. Não se pode deixar de comentar que Vitali (2004) aponta importante diferenciação entre o que se pode chamar de “interrupção da dramática de vida por evento adverso” e “interrupção da continuidade de ser”. A última refere-se precisamente à situação na qual o acontecimento adverso ganha poderes de intrusão. Vitali considera que seria possível a uma pessoa ter sua dramática de vida atravessada pela doença, sem ter, contudo, ameaçada sua continuidade de ser.

Nossas reflexões a respeito dessa clínica muito específica têm nos aproximado das observações de bebês descritas por Winnicott (1941/2000c) em uma situação chamada por ele de “estruturada” ou de “situação padrão”.

São reconhecidos três diferentes estágios pelos quais passa um bebê saudável quando recebe a oferta de uma espátula durante consulta terapêutica. O colorido objeto parece exercer um fascínio sobre o bebê, que, desejoso de ir a seu encontro, em um primeiro momento inicia esse movimento, para depois recuar expressando dúvida e temor por reprovação. Esse seria o estágio da hesitação, que é seguido de um segundo movimento de determinação em relação ao alcançar a espátula e ao desfrutar dela ao levá-la à boca. Na seqüência, o bebê deixa cair a espátula como que espontaneamente, ficando claro, para o observador, depois das diversas repetições desse gesto, que ele está, na realidade, brincando de jogar o objeto no chão. Por fim, em um terceiro estágio, haverá o desinteresse pela espátula.

Winnicott alcança uma série de conceituações por meio do reconhecimento desses passos na situação estabelecida. Seu apontamento nos auxilia para a importância de que o bebê possa viver experiências com começo, meio e fim. As experiências completas, com o mínimo de interrupções vindas do exterior, conferem ao bebê vivências que são constitutivas da subjetividade. Viver experiências inteiras apresenta-se como oposição a vivências de ruptura da continuidade de ser, dadas quando da falha ambiental para a proteção às invasões originárias da realidade externa.

Medeiros e Vaisberg (2006), em um trabalho dedicado ao esforço discriminativo das modalidades interventivas em uma abordagem teórica-clínica voltada para o cuidado com a continuidade de ser, assinalam a relevância do suportar. Para essas autoras, o suportar como intervenção terapêutica contempla duas idéias distintas. A primeira refere-se à possibilidade de o psicanalista agüentar a intensidade dos sentimentos contratransferenciais que emergem na relação com o paciente. É preciso agüentar um incômodo, permanecendo vivo e inteiro na experiência de sofrimento, sem se ausentar ou desistir. A segunda idéia essencial contida no suportar diz respeito exatamente à possibilidade de aguardar o tempo necessário para que se dê a experiência completa do paciente. Para ser capaz de esperar que o paciente viva uma experiência inteira, o terapeuta terá de lidar com sua própria confiança/esperança no potencial criativo humano.

 

Considerações finais

Medeiros e Vaisberg (2006, p. 41) assinalam os aspectos essenciais para que o psicoterapeuta coloque-se à frente da condução de um processo de revelação diagnóstica:

Suportar pode ser compreendido como um recurso psicoterapêutico. Permitir ser afetado verdadeiramente pelo paciente, emocionar-se, sofrer, sentir-se sem referências claras diante do outro e de si mesmo podem ser parte fundamental do atendimento. E agüentar essa condição, vivendo-a juntamente com o outro e aguardando que novos movimentos possam acontecer, parece ser a base para a confi ança e a possibilidade de transformações.

Fabiana e sua mãe viveram juntas os três estágios que caracterizam uma experiência completa, o que permite concluir que o atendimento cumpriu importante função terapêutica. Como a revelação diagnóstica ocorreu no início da adolescência de maneira nãotraumática e oportuna, isso possivelmente favorecerá maior integração de suas vivências emocionais no que diz respeito à condição existencial de soropositividade.

 

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Endereço para correspondência
Vera Lúcia Mencarelli
Rua Brasílio Machado, 308, ap. 81 – Centro
CEP 09715-140 São Bernardo do Campo – SP
E-mail: veramencarelli@hotmail.com

Tramitação
Recebido em março de 2008
Aceito em setembro de 2008

 

 

1A utilização desses dados para a publicação na forma de artigo foi autorizada pelas pacientes envolvidas e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Saúde de Santo André, sob o registro nº 49/2008 – CEP/SSSA.

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