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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.11 no.3 São Paulo  2009

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Padrões perceptuais nos transtornos globais do desenvolvimento: rastreamento ocular em figuras sociais e não sociais1

 

Perceptual patterns in developmental disorders: eye tracking for social pictures and non-social pictures

 

Los patrones de percepción en trastornos generalizados del desarrollo: seguimiento de los ojos en cifras sociales e non sociales

 

 

Fernanda Tebexreni OrsatiI; Tatiana Pontrelli MeccaII; Daiana Fernanda de MeloII; José Salomão SchwartzmanII; Elizeu Coutinho de MacedoII

I Syracuse University
II Universidade Presbiteriana Mackenzie

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Um dos prejuízos nos transtornos globais do desenvolvimento (TGD) é a interação social. Estudos que investigam os movimentos oculares nos TGD têm demonstrado que é possível quantificar e definir o fenótipo social dessa desordem. O objetivo do estudo foi verificar se pessoas com TGD diferem dos controles no padrão de percepção de figuras sociais (rostos de pessoas) e não sociais. Participaram 11 indivíduos do sexo masculino com TGD, pareados por idade, sexo e nível intelectual com grupo-controle. Os movimentos oculares foram registrados pelo equipamento computadorizado Tobii® 1750. Os sujeitos com TGD apresentaram mais padrões de omissão do que os controles (t[20] = 2,362; p = 0,028) e usaram menos estratégias de rastreamento organizado (t[20] = 4,249; p < 0,000). Análise do padrão de rastreamento revelou que participantes com TGD tenderam a explorar as figuras de maneira menos organizada, ocasionando a omissão de figuras e não percepção de estímulos. Esse padrão é importante para entendermos a percepção social nos TGD.

Palavras-chave: Autismo, Movimento ocular, Fenótipo, Cognição social, Percepção.


ABSTRACT

One of the main difficulties in children with Pervasive Developmental Disorder (PDD) is social interaction. Eye tracking research in PDD population has shown the possibility of quantifying their social phenotype. The objective of the present paper is to access differences on perception of social pictures (faces) and non-social pictures (objects) for people with PPD and people with normal development. The research included eleven male individuals with PDD that were age, gender and intectually pared with a control group. Tobii® 1750 was the computerized equipment used to register the eye tracking movements. The perceptual pattern of individuals with PDD had more omissions (t [20] = 2,362; p = 0.028) and less use of organized tracking strategies (t [20] = 4,249; p < 0.000). Analysis of the tracking pattern revealed that PDD subjects tended to be less organized when exploring the pictures leading to perception omissions. These patterns are important to understand social patterns in persons with PDD.

Keywords: Autism, Eye tracking, Phenotype, Social cognition, Perception.


RESUMEN

Una de las pérdidas en los Trastornos Generalizados del Desarrollo (TGD) es la interacción social. Estudios de investigación de los movimientos oculares en el TGD han demostrado que es posible cuantificar y definir el fenotipo social de este trastorno. El objetivo de este estudio fue determinar si las personas con TGD difieren de los controles en las características de las figuras sociales percibidas (caras de las personas) y no social. Los participantes del estudio fueron 11 sujetos varones con TGD, emparejados por edad, género y nivel intelectual con el grupo control. Los movimientos oculares fueron grabadas por el equipo informático Tobii ® 1750. Los sujetos con TGD habían más patrones de omisión que los controles (t [20] = 2,362, p = 0,028) y utiliza estrategias de detección menos organizados (t [20] = 4,249, p <0,000). Análisis de los patrones de seguimiento reveló que los pacientes con TGD tienden a explorar las cifras de una manera menos organizada, lo que lleva a la omisión de las figuras y la no percepción de los estímulos. Este patrón es importante comprender la percepción social en TGD.

Palabras clave: Autismo, El movimiento del ojo, Fenotipo, La cognición social, La percepción.


 

Introdução

Atualmente, o diagnóstico do autismo infantil é feito somente de acordo com uma avaliação do quadro clínico do paciente, sem que exista um marcador biológico único que possa caracterizá-lo (BAIRD; CASS; SLONIMS, 2003). Existe a necessidade de critérios diagnósticos mais específicos que possam caracterizar mais precisamente esse quadro. Como se trata de um modelo complexo, qualquer tentativa para compreendê-lo requer uma análise em muitos níveis diferentes, como do comportamento à cognição, da neurobiologia à genética (KLIN; MERCADANTE, 2006). Portanto, a falta de instrumentos padronizados e a heterogeneidade do quadro mostram a importância do desenvolvimento de novos procedimentos de avaliação. Dessa forma, a análise dos movimentos oculares ante estímulos sociais, como faces humanas, em oposição a estímulos neutros, como imagens de objetos, paisagens, animais e alimentos, pode ser importante na determinação de endofenótipos e na investigação dos aspectos cognitivos no autismo.

Assim, o objetivo do presente estudo foi analisar os padrões perceptuais de participantes com TGD e com desenvolvimento normal. Isso foi feito analisando a preferência por estímulos sociais e não sociais por meio da análise dos movimentos sacádicos e das fixações.

 

Revisão teórica

Os transtornos globais do desenvolvimento (TGD) são definidos, de acordo com o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM IV-TR), como déficits qualitativos em três grandes domínios: interação social, comunicação e comportamentos restritos, repetitivos e estereotipados (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1999). Nessa categoria, incluem-se transtorno desintegrativo da infância, síndrome de Rett, transtorno autista, síndrome de Asperger e transtornos globais do desenvolvimento sem outra especificação.

Segundo Klin e Mercadante (2006), o autismo e os TGD referem-se a distúrbios da socialização que têm início na infância e que provocam um impacto no desenvolvimento da subjetividade e das relações pessoais. Os prejuízos na interação social e a dificuldade de compreensão de pistas sociais, como a atenção seletiva para faces humanas, podem ser caracterizados como endofenótipos no autismo.

Os déficits na interação e comunicação estão relacionados à cognição definida como habilidade de interpretar adequadamente os signos sociais e responder de maneira apropriada a eles (BUTMAN; ALLEGRI, 2001). Segundo Adolphs (1999), a cognição social corresponde ao processo cognitivo que elabora a conduta adequada em resposta a outros indivíduos da mesma espécie, especificamente aqueles processos cognitivos superiores que sustentam as condutas sociais que são extremamente diversas e flexíveis.

Os TGD apresentam uma disfunção na cognição social e emocional (ADOLPHS; SEARS; PIVEN, 2001). De acordo com esses autores, pesquisas realizadas chegaram à hipótese de que uma disfunção na amígdala pode ser a explicação para alguns prejuízos citados, especificamente as dificuldades no processamento de informações faciais que nos dão pistas sociais relevantes para a vida cotidiana. A amígdala é uma estrutura do sistema límbico que está relacionada à regulação das emoções (KOLB; WHISHAW, 2002) e intervém na elaboração de uma avaliação cognitiva do conteúdo emocional de estímulos perceptivos complexos (BUTMAN; ALLEGRI, 2001).

Outros estudos também reconhecem a relação do funcionamento da amígdala ao reconhecimento de faces e revelam um padrão atípico na ativação desta região cerebral de autistas, principalmente na região na amígdala, durante o processamento visual de faces humanas (ADOLPHS; SEARS; PIVEN, 2001; PELPHREY et al., 2007; SPEZIO et al., 2007; DALTON et al., 2007; ASHWINA et al., 2007; GOLARAI; GRILL-SPECTOR; REISS, 2006; SCHULTZ, 2005; TIRAPU-USTÁRROZ et al., 2007). Assim, apontam essa estrutura como tendo papel importante na sociabilidade, especificamente na relação com outras pessoas e na conduta social, e o envolvimento de áreas frontais (VALDIZÁN, 2008).

De acordo com Boraston e Blakemore (2007), por muitas décadas, o rastreamento ocular tem sido utilizado para investigar o comportamento de olhar em indivíduos normais. E estudos recentes têm expandido a utilização do rastreamento ocular para indivíduos com transtorno do espectro autista. Tais trabalhos envolvem imagens e vídeos de pessoas ou simplesmente faces humanas.

Estudos de análise dos movimentos oculares em indivíduos com autismo demonstram que é possível quantificar e definir o fenótipo social dessa categoria diagnóstica. Duas vertentes na pesquisa de movimento ocular com população autista vêm sendo exploradas. A primeira verifica o padrão de fixações em relação a figuras sociais, para clarificação de como o autista explora seu ambiente. A segunda vertente analisa propriedades dinâmicas dos movimentos sacádicos em diferentes tipos de tarefas (SWEENEY et al., 2004). Pesquisas que analisam os movimentos sacádicos demonstram dificuldades executivas na população com TGD caracterizadas, principalmente por falta de regulação da atenção voluntária, dificuldade em inibir um comportamento e direcioná-lo ao objetivo proposto na tarefa, alteração no planejamento de ação e dificuldade para iniciação de resposta; enfim, dificuldades executivas (MINSHEW; LUNA; SWEENEY, 1999; LUNA et al., 2007; ORSATI et al., 2008). Já a vertente que estuda a percepção de estímulos sociais parte da possibilidade de se investigar, de forma quantitativa, a disfunção social como fenótipo presente no espectro autista por meio do monitoramento do padrão rastreio ocular desses indivíduos (KLIN et al., 2002).

Segundo Geest et al. (2002a), o comportamento visual incomum de crianças autistas para as faces humanas, como pode ser observado em situações da vida cotidiana, é investigado em estudos do tempo de fixação do olhar dessas crianças. Segundo esses pesquisadores, as faces humanas são estímulos significativos e especiais para indivíduos com desenvolvimento normal, e isso pode não ser o caso de indivíduos com autismo. Com base nisso, foi realizado um estudo com indivíduos autistas de alto funcionamento (incluindo aqueles com TGD-SOE) e indivíduos normais com o objetivo de comparar, em fotografias, o tempo de fixação visual em faces humanas como um todo e também em elementos parciais dos rostos. Utilizaram-se fotografias de faces humanas com expressões relacionadas a emoções e faces neutras, de cabeça para baixo e em posição normal. Os resultados da pesquisa mostraram que o comportamento de fixação de crianças autistas é o mesmo de crianças normais para as faces que estavam em posição normal, tanto para expressões emocionais como para expressões neutras. Porém, com relação às faces de cabeça para baixo, as crianças normais tiveram o tempo de fixação diminuído se comparado ao tempo de fixação para a posição normal dos rostos, o que já não ocorreu em crianças autista. O tempo de fixação foi o mesmo para as duas disposições das faces. No entanto, os autores reconhecem que esses achados limitam a generalização para a vida diária, pois acreditam que a anormalidade no processamento visual de faces humanas não se deve ao estímulo em si, mas sim à exigência requerida numa interação social (GEEST et al., 2002b).

Segundo Spezio et al. (2007), a exploração visual alterada de faces humanas pode ser atribuída aos déficits na cognição social. Esses autores, ao investigarem a relação entre cognição social no autismo e o olhar para faces, mediram a fixação do olhar nas faces e como as diferentes regiões faciais foram realmente exploradas durante o julgamento de emoções. Pareados por quociente de inteligência (QI), nove crianças autistas de alto funcionamento e nove controles foram testados. Notou-se que os autistas não utilizavam a informação da região dos olhos para fazer julgamentos, focando muito mais tempo a região da boca. Os resultados encontrados sobre a forma como os autistas fazem julgamentos de expressões faciais fornecem uma nova maneira de avaliação quantitativa dos aspectos cognitivos.

Um estudo realizado por Mercadante et al. (2006) teve como objetivo verificar as diferenças nas estratégias de varredura visual de indivíduos com TGD, comparados a controles normais na observação de figuras sociais e não sociais. Os sujeitos observaram, por cinco segundos, nove figuras de seres humanos e três figuras de objetos. Os resultados obtidos mostraram que o número de fixações e a maior duração de movimentos sacádicos dos sujeitos com TGD revelam uma estratégia diferente para a exploração das figuras humanas, e o padrão de investigação não foi modificado diante da observação de uma figura humana que rompia com o estímulo esperado como apresentação da face humana, omissão dos olhos.

Outro estudo também comparou o desempenho de crianças e adolescentes com TGD com sujeitos normais no rastreio ocular de faces humanas. Foi observada diferença significativa para o tempo de fixação na face inteira, e o grupo-controle despendeu maior tempo ao rastrear as faces. Quando se manipulou a presença dos olhos nas faces, observou-se que o grupo-controle apresentava mais fixações nessa região nas figuras em que os olhos haviam sido removidos, no entanto, essa diferença não foi encontrada no grupo TGD. Tais achados apontam para uma dificuldade da percepção do rosto como um todo pelos membros do grupo com TGD, pois se detiveram menos tempo nas faces e não perceberam que os olhos haviam sido removidos, o que tem grande impacto para a cognição social (ORSATI, 2007).

Enfim, os estudos de rastreamento ocular no processamento de pistas sociais caracterizam-se como uma linha promissora de pesquisa no autismo (KLIN et al., 2002).

 

Método

Foram avaliados 11 indivíduos com TGD, com idades entre 8 e 14 anos, pareados por sexo, idade e quociente de inteligência com o grupo-controle. A amostra foi constituída por indivíduos apenas do sexo masculino. Dentre os TGD, incluíram-se somente as desordens do espectro autista: autismo, síndrome de Asperger e transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação. Excluíram-se sujeitos com comorbidades psiquiátricas ou neurológicas associadas.

O diagnóstico clínico de TGD foi dado por um profissional experiente e como critério de avaliação utilizou-se o autism screening questionnaire (ASQ). Uma escala de 40 itens relacionados a comportamentos, comunicação e interação social com efetiva descriminação para essa categoria diagnóstica foi traduzida e validada para a população brasileira (BERUMENT et al., 1999; SATO et al., 2009). Para avaliação da inteligência, utilizou-se o teste Wisc III (FIGUEIREDO, 2001).

A tarefa de rastreamento ocular consistiu em cinco telas compostas por quatro figuras cada uma. As figuras são fotos coloridas com 9,5 cm de altura por 9,5 cm de largura, em resolução de 300 dpi. As quatro figuras foram apresentadas simultaneamente em cada tela, dispostas nos quatro cantos dela, equidistantes do centro e com espaço de 3 cm entre elas. As quatro figuras foram classificadas como sociais (pessoas) e não sociais (natureza, objeto e comidas). Cada tela era apresentada de forma automática por 10 segundos. Entre uma tela e outra, apresentava-se, por 2 segundos, uma tela em branco com um ponto no centro, a fim de garantir que os sujeitos sempre olhassem a tela subsequente a partir do mesmo ponto central.

Foi utilizado o equipamento computadorizado Tobii® 1750 (Tobii Technology) para o registro do padrão de movimentos oculares. O equipamento consiste em um monitor de 17 polegadas com resolução de 1280 x 1024 pixels, que tem embutida, em sua parte inferior, duas câmeras de alta resolução com um amplo campo de captura necessária para a captação dos movimentos oculares. Diodos embutidos geram raios infravermelhos necessários para gerar luminosidade e reflexão dos olhos do sujeito que possibilitam a identificação da direção do olhar. O rastreio foi binocular, permitindo uma maior tolerância de movimento da cabeça sem que se perca a calibração ou a precisão. O equipamento registra o movimento ocular e possibilita a análise do padrão dos movimentos oculares com informações sobre duração, localização e números das fixações e dos movimentos sacádicos.

Os sujeitos foram posicionados a uma distância de 50 cm da tela do computador. O equipamento foi calibrado para cada sujeito em função do tamanho da pupila e da curvatura da córnea. Os parâmetros analisados nas tarefas de movimentos oculares foram: número de fixações, tempo de fixação nas figuras e padrão de rastreamento ocular.

A análise dos padrões de rastreamento ocular foi feita com base no julgamento de dois observadores que deveriam classificar os traçados da seguinte forma:

Rastreamento organizado: caracterizado por traçados que representavam um padrão organizado de exploração das quatro figuras.
Rastreamento disperso: caracterizado por traçados que representavam padrão desorganizado de exploração das quatro figuras.
Rastreamento com omissões: os traçados revelam que uma, duas ou três figuras não foram exploradas visualmente.

 

Resultados e discussão

Os resultados foram analisados com o programa estatístico SPSS, versão 13.0, conduzindo-se teste t de amostras independentes para comparação dos resultados entre os grupos. O intervalo de confiança adotado foi de 95% e nível de significância de 5% (p < 0,05). As médias de idade e de inteligência avaliada por meio de QI mostraram-se semelhantes entre os participantes com TGD e controle, como pode ser observado na Tabela 1.

 

 

 

Os participantes diagnosticados com TGD obtiveram pontuação média de 25 pontos no ASQ. Todos os participantes com TGD pontuaram de acordo com os critérios diagnósticos do transtorno, distribuídos da seguinte forma: quatro participantes com sintomas mais leves (pontuação entre 16 e 21) e sete com sintomas mais severos (pontuação acima de 22). As diferenças encontradas na pontuação dessa escala refletem a heterogeneidade em relação ao grau de comprometimento desses indivíduos. Isso é esperado, pois os TGD caracterizam-se como um distúrbio complexo apresentando diferentes graus de severidade (GADIA; TUCHMAN; ROTTA, 2004).

A fim de avaliar se os participantes com TGD diferiam dos controles na preferência por escolha por algum tipo de figura, o número e a duração das fixações foram computados para cada um dos tipos de figuras sociais (pessoas) e não sociais (natureza, objetos e comidas). O número de fixações dos participantes com TGD nas figuras de natureza foi menor que o dos controles. Não se observaram diferenças significativas entre os dois grupos para os demais tipos de figuras: objetos, pessoas e alimentos. A análise do tempo de fixação revelou que os sujeitos com TGD despenderam menos tempo explorando visualmente as figuras de natureza, quando comparados com os demais participantes. Nas demais figuras, não foram observadas diferenças significativas. Os valores de número e tempo das fixações, bem como os níveis de significância, estão descritos na Tabela 2.

 

 

Embora tenha sido descrito na literatura que pessoas diagnosticadas com TGD apresentam preferência para inspecionar visualmente figuras não sociais, como objetos, em detrimento de estímulos sociais (KLIN et al., 2002), essa diferença não foi significativa no presente estudo. Isso significa que, embora as pessoas com TGD tenham apresentado mais fixações e com maior duração nas figuras de objetos, essa diferença não foi significativa. Essa ausência de efeito pode ser explicada com base no que foi proposto por Geest et al. (2002b). Esses autores relatam não haver nenhuma indicação de anormalidade no padrão de rastreamento visual quando se comparam pacientes com TGD e controles durante visualização de objetos. Assim, sugerem que a alteração de padrões observada no padrão do olhar em situações da vida cotidiana não estaria relacionada à natureza dos estímulos visuais em si, mas com outros fatores, tais como: a interação social e organização da observação. Esses fatores podem desempenhar um papel decisivo na apreensão de estímulos visuais (GEEST et al., 2002b).

Em relação à duração das fixações para as diferentes figuras, tanto o grupo-controle como os sujeitos com TGD não diferiram com relação ao tempo despendido na exploração visual de figuras sociais. Tal ausência de efeito contrasta com o estudo de Mercadante et al. (2006), em que os participantes com TGD gastaram mais tempo fazendo movimentos sacádicos durante a exploração visual de figuras humanas, quando comparados com o grupo-controle. No entanto, no referido estudo, as figuras foram apresentadas separadamente, ou seja, um estímulo por tela, ao passo que, no presente estudo, apresentaram-se quatro figuras simultaneamente. Essa diferença de procedimento pode explicar os resultados aparentemente contraditórios, pois explorar quatro figuras demanda maior complexidade de organização visuoperceptual. Assim, dado o fato de que foram apresentadas várias figuras simultaneamente por tela e que cada uma delas poderia ter efeito diferencial na determinação da atenção, os números de fixações para cada uma das telas foram analisados separadamente.

A tela 1 era formada pelas seguintes figuras: rosto de uma mulher, doces de chocolate, um trem e um cavalo-marinho. Não foram observadas diferenças significativas entre os dois grupos para nenhuma das figuras. Assim, do total de fixações, observou-se uma distribuição de aproximadamente 25% para cada uma das figuras. Embora os participantes com TGD tenham apresentado uma porcentagem um pouco maior de fixações na figura de um trem, essa diferença não foi significativa.

A tela 2 era composta pelas figuras: menina, panqueca, bicicleta e peixe. Análises revelam que a figura da bicicleta foi a que chamou maior atenção tanto do grupo TGD (36%) quanto do grupo-controle (48%), mas não se observou diferença significativa entre os dois grupos (t[20] = 1,842; p = 0,080). Tais resultados podem estar relacionados com o fato de a figura apresentada ser a de uma bicicleta. Esse objeto tipicamente desperta interesse de meninos nessa faixa etária.

Já a tela 3 era formada pelas seguintes figuras: mulher, pudim, piano e tucano. Análises estatísticas revelam que o número de fixações na figura do piano foi significativamente maior nos participantes com TGD do que nos controles (t[20] = 2,222; p = 0,038). Na figura do tucano, observou-se uma tendência de os controles olharem mais para ela do que os TGD (t[20] = 1,798; p = 0,087). O perfil da distribuição das fixações na tela 3 foi semelhante ao da tela 1.

A tela 4 era formada pelas figuras: homem, sanduíche, chave e sol. A distribuição das fixações nas figuras foi semelhante nos dois grupos. De modo geral, observou-se que a figura do sanduíche chamou mais atenção dos participantes do que as demais. O padrão de distribuição das fixações da tela 4 foi semelhante ao da tela 3.

Por fim, a tela 5 era formada pelas seguintes figuras: menino, bolo, ônibus e lago. Análises estatísticas revelam que os participantes com TGD apresentaram padrão oposto aos controles durante a inspeção visual da figura de lago e de ônibus. Dessa forma, participantes com TGD apresentaram menos fixações na figura de lago do que os controles (t[20] = 3,418; p = 0,003). A média de fixações no ônibus, embora tenha sido maior para os participantes com TGD, não demonstrou uma diferença significativa.

Em suma, os participantes com TGD olharam mais para as figuras de objetos (piano e ônibus) do que os controles em duas das cinco telas do estudo. Observou-se também que os controles olharam mais para a figura de lago do que os participantes com TGD. De modo geral, não foi possível observar diferenças significativas quanto ao número de fixação em relação às preferências por figuras entre grupos.

A fim de melhor compreender os padrões de rastreamento ocular durante a inspeção das telas, decidiu-se analisar os traçados oculares dos participantes em cada uma das telas. Para isso, um pesquisador analisou qualitativamente os traçados produzidos e identificou três padrões de rastreamento: organizado, disperso e com omissão de figuras. O rastreamento organizado caracteriza-se pela ocorrência de fixações e movimentos sacádicos em todas as quatro figuras da tela. A Figura 1 (esquerda) ilustra as fixações (círculos) e os movimentos sacádicos (linhas retas) produzidos por um participante durante a exploração visual da tela 5. O rastreamento disperso caracteriza-se pela exploração visual das quatro figuras, mas com mais de três alternâncias entre as figuras ou com fixações fora da região das figuras. A Figura 1 (centro) ilustra as fixações e os movimentos sacádicos produzidos por um participante com padrão de rastreamento disperso durante a exploração visual da tela 1. O padrão de omissão de figuras caracteriza-se pela omissão de fixações em pelo menos uma das 4 figuras. A Figura 1 (direita) ilustra as fixações e os movimentos sacádicos de um padrão de rastreamento com omissão.

 

 

Após a identificação dos três padrões de rastreamento visual, outro pesquisador fez o julgamento dos traçados de acordo com os padrões. Foram observados altos índices de concordância, sendo considerado um bom critério de julgamento. A análise dos resultados indicou que o padrão de rastreamento organizado foi significativamente maior do que o disperso (t[21] = 5,449; p < 0,000) e de omissões (t[21] = 4,407; p < 0,000) para todos os participantes. Não foram observadas diferenças significativas entre os padrões de rastreamento disperso e omissão. A fim de analisar o efeito da condição, o teste t de amostras independentes foi conduzido comparando participantes com TGD e controles. Os resultados indicaram que os sujeitos com TGD apresentaram mais padrões de omissão do que os controles (t[20] = 2,362; p = 0,028). Além disso, os participantes com TGD usaram menos estratégias de rastreamento organizado do que os controles (t[20] = 4,249; p < 0,000). A Tabela 3 apresenta os valores absolutos de utilização de cada um dos tipos de rastreamento, tanto para os participantes com TGD quanto para os controles.

 

 

Os resultados obtidos com base na análise dos padrões de rastreamento ocular indicam que os participantes dos dois grupos são capazes de observar todas as telas apresentadas, ainda que com padrões diferentes. O fato de os participantes com TGD apresentarem mais padrões de omissão pode explicar o prejuízo na atenção dada ao estímulo e por consequência o input de informações do ambiente. Tal dificuldade pode acarretar, por exemplo, prejuízo na compreensão do ambiente e, por consequência, na atuação nele. Além disso, a alta frequência desse padrão pode se relacionar com dificuldade de organização, regulação da atenção e habilidades executivas. Essas omissões poderiam ser explicadas como dificuldades no planejamento e inibição do olhar em direção a algumas figuras e direcioná-lo para outras. O fato de os participantes com TGD apresentarem menos padrões de rastreamento organizados corrobora os achados de dificuldades visuoperceptuais, atencionais e executivas nesse grupo. Assim, tais características parecem corroborar os prejuízos encontrados em crianças com TGD na execução de atividades na vida cotidiana (PENNINGTON; OZONOFF, 1996; HILL, 2004; ORSATI et al., 2008), ou seja, na cognição social, que é definida como habilidade de interpretar adequadamente os signos sociais e, consequentemente, responder de maneira apropriada a eles (BUTMAN; ALLEGRI, 2001).

A possibilidade de melhoria nos métodos para quantificar e medir o fenótipo social no autismo requer técnicas experimentais mais sensíveis que recriem no laboratório demandas naturais presentes na vida cotidiana. Hipotetiza-se que a tarefa utilizada tenha baixa validade ecológica pelo fato de a situação experimental usar estímulos fora de contextos. Essa característica do delineamento do estudo pode explicar a ausência de efeito, sendo o perfil dos sujeitos com TGD semelhante ao de sujeitos normais. Isso pode significar que as diferenças entre crianças e jovens com TGD e normais são sutis, e pesquisas devem promover estímulos naturais para observar diferença nos padrões de movimentos oculares e realizar análises qualitativas dos tipos de padrões de rastreamento.

 

Conclusão

Os resultados obtidos no presente estudo indicam padrão semelhante na percepção visual de figuras sociais e não sociais por participantes com TGD e controles. Embora os sujeitos com TGD tenham observado mais figuras de objetos do que as de pessoa, natureza ou alimento, essa diferença não foi significativa. Ainda que o padrão de rastreamento visual mais frequente dos sujeitos do grupo TGD tenha sido o do tipo organizado, observa-se alta frequência de ocorrência dos padrões desorganizados e com omissão de figuras.

 

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Endereço para correspondência

Elizeu Coutinho de Macedo
Rua da Consolação, 896 – 6o andar (sala 62)
Consolação – São Paulo – SP
CEP 01302-907
e-mail: elizeumacedo@uol.com.br ; feorsati@terra.com.br

Tramitação
Recebido em outubro de 2009
Aceito em dezembro de 2009

 

 

1Este estudo contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Fundo Mackenzie de Pesquisa (MackPesquisa).