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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. v.7  São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Trabalho e gestão de si – para além dos “recursos humanos”

 

Work and self management – beyond the “human resources”

 

 

Maria Elisa Siqueira Borges1

Univerdade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende trazer algumas reflexões sobre a produção de uma nova subjetividade em relação ao trabalho a partir das demandas colocadas pelas modulações do capitalismo contemporâneo. Trata-se de pensar a Psicologia do Trabalho a partir das contribuições da Ergologia, abordagem pluridisciplinar que estuda o trabalho a partir da atividade concreta de quem trabalha. O objetivo é compreender os desafios colocados para os profissionais de Recursos Humanos no cenário contemporâneo a fim de propor transformações em suas práticas.

Palavras-chave: Trabalho, Recursos humanos, Modulações do capitalismo, Ergologia.


ABSTRACT

This study intends to propose some reflections about the production of another subjectivity respecting the work started from the discussions of the contemporary capitalism. The objective is to think the Work Psychology beyond the point of view of the Ergology contributions. The Ergology is a pluridisciplinary boarding that studies the concrete activity of the workers. It intends to comprehend the challenges appointed to the Human Resources professionals in the contemporary scenery in order to propose transformations.

Keywords: Work, Human resources, Capitalism modulations, Ergology.


 

 

Introdução

Este artigo tem como objetivo problematizar como a Ergonomia da Atividade Situada e a Ergologia podem contribuir para repensar as práticas de trabalho do profissional de Recursos Humanos (área hoje denominada como Gestão de Pessoas) a partir das demandas colocadas pelas modulações do capitalismo contemporâneo. Consideramos de grande relevância para o debate sobre Psicologia do Trabalho no Brasil a introdução das questões levantadas pela Ergonomia e, especialmente, pela Ergologia – uma “disciplina do pensamento”, como é chamada por seu maior representante, Yves Schwartz2.

O que buscamos afirmar neste texto é que as novas modulações do capitalismo exigem uma outra construção de subjetividade em relação ao trabalho.

O trabalhador da disciplina, da fragmentação, da monotonia e da repetição, cunhado por um modo de produção taylorista-fordista não mais atende às demandas do capital. O capitalismo contemporâneo demanda um trabalhador crítico, questionador, dinâmico, inovador, criativo e inteligente. Uma nova subjetividade é demandada e vem sendo produzida para atender às necessidades do sistema capitalista.

Cabe explicitar o que estamos denominando subjetividade nas análises que pretendemos efetuar neste trabalho.

Subjetividade aqui não tem um caráter de subjetivismo em contraponto a uma objetividade defendida pela ciência a partir de um pressuposto de neutralidade.Também não se refere a uma constituição estrutural e universal de sujeito. Trata-se de pensar a subjetividade, como nos ensina Foucault (1979), como uma invenção: sujeito e objeto se engendrando no ato de conhecimento, construindo-se e modificando-se mutuamente, não havendo nenhuma anterioridade de qualquer um dos dois.

Subjetividade pensada enquanto processo de subjetivação, que diz respeito a formas de estar, pensar e sentir o mundo, atravessada por questões políticas, econômicas, sociais e múltiplos elementos complexos e heterogêneos.

As práticas da Psicologia (aí se incluindo aquelas dos profissionais de Recursos Humanos) sempre naturalizaram a existência da noção de sujeito ou de indivíduo, muitas vezes considerado um a priori não problematizável. A formação de uma subjetividade individualizante na modernidade ocidental contribuiu bastante para a dificuldade de entendimento da categoria indivíduo como uma produção histórica. “Torna-se difícil apreender que o indivíduo é apenas um dos modos de subjetivação possíveis e que cada época, cada sociedade põe em funcionamento alguns desses modos, sendo a categoria indivíduo, o modo hegemônico de organização da subjetividade na modernidade” (Mancebo, 2002, p. 101).

É a partir dessa categoria de subjetividade enquanto produção histórica que iremos efetuar nossas análises.

 

Contribuições da Ergonomia da Atividade Situada e da Ergologia à compreensão do trabalho no contemporâneo: um olhar a lupa

Uma das grandes contribuições da Ergonomia da Atividade Situada ao estudo da organização do trabalho foi a diferenciação entre trabalho prescrito e trabalho real (o trabalho efetivamente realizado).

O trabalho prescrito é apresentado pela Ergonomia como o conjunto das condições determinadas, da tarefa predefinida e dos resultados a serem obtidos.

Ao se aproximar do trabalho humano em situações reais, essa Ergonomia mostrou que o trabalho efetuado não corresponde jamais ao trabalho esperado, fixado por regras, orientado por objetivos determinados. Ao realizar a tarefa, a pessoa se encontra diante de várias fontes de variabilidades: panes, disfuncionamentos, dificuldades de previsão, fadiga, diferenças de ritmo, efeitos da idade, experiência.

A Ergologia, abordagem pluridisciplinar que estuda o trabalho em sua dimensão micro, utilizando-se de uma “lupa” e tentando entendê-lo a partir da atividade concreta de quem trabalha, tem como ponto de partida essa distinção apontada pela Ergonomia entre trabalho prescrito e trabalho efetivamente realizado.

Trabalhar, para a Ergologia, é a atividade de seres humanos situados no tempo e no espaço e que se dá no acontecendo da vida. São atividades sempre complexas e que possuem um caráter enigmático.

Atividade de trabalho é a maneira pela qual os humanos se envolvem no cumprimento dos objetivos do trabalho, em um lugar e tempo determinados, utilizando-se dos meios colocados à sua disposição. Para lidar com as variabilidades que se apresentam, o trabalhador se engaja por inteiro, a cada momento, com seu corpo biológico, sua inteligência, sua afetividade, seu psiquismo, sua história de vida e de relações com outros humanos.

Na visão da Ergologia, é impossível que não exista atividade. Em uma situação de trabalho, não há como se ater ao prescrito, àquilo que é determinado antes da realização do trabalho. O trabalho efetivamente realizado nunca é só prescrição, pois envolve sempre atividade humana.

Logo, só existe trabalho se existe um sujeito que trabalha. Se, em estruturas organizacionais tayloristas, acreditava-se que apenas seguir as normas, os procedimentos escritos e as prescrições era suficiente para se realizar o trabalho, os estudos ergológicos sustentam o que o movimento dos trabalhadores já afirmava: a prescrição nunca é suficiente para dar conta da produção exigida. O trabalho real (efetivamente realizado) exige sempre uma mobilização cognitiva e afetiva do trabalhador. O trabalho, na realidade, nunca é só mera execução.

Essa abordagem pluridisciplinar a que se propõe a Ergologia exige que cada disciplina envolvida – sejam a Lingüística, a Antroplogia, a Psicologia, a Economia, a Engenharia – se repense e se retrabalhe a partir de quatro pressupostos:

– a noção de atividade (extraída da Psicologia cognitiva de Vigotski e Leontiev);

– a consideração de que existe um campo de debate de valores em todas as atividades realizadas por humanos;

– a existência de uma dialética: universalidade-ressingularização ou macro-micro;

– a consideração da existência de um regime de produção de saberes como dispositivo em três pólos.

A noção de atividade ganha uma dimensão muito mais ampla do que a explorada pela Ergonomia a partir da análise de Yves Clot (1999), que afirma que a atividade não é apenas aquilo que se faz, mas também o que não se faz, o que não pode ser feito, o que se busca fazer sem lograr êxito (os fracassos), o que poderia ter sido feito, o que se desejou fazer, o que se pensa ou se sonha fazer em outra ocasião, o que fazemos para não fazer o que deve ser feito, o que fazemos sem querer fazer, o que está para ser refeito, o que foi suspenso, o não realizado.

Essa atividade é, portanto, sempre realizada e vivenciada de forma singular, personalizada e diferenciada e marca o distanciamento entre o que é prescrito e o que é efetivamente realizado.

Enfrentar essa necessidade de gerir as variabilidades é também tornar o trabalho vivível. Nesse sentido, é de muita ajuda resgatar a concepção de saúde de Georges Canguilhem (1990), que a entende como “abertura aos riscos e às infidelidades que o meio nos impõe” (p. 159). Se as infidelidades do meio, os fracassos, os erros e o mal-estar fazem parte de nossa história e, na medida em que nosso mundo (incluindo os mundos do trabalho) é constituído por imprevistos, a saúde não pode ser pensada senão como a capacidade de enfrentar os riscos, as adversidades e nocividades que o meio nos impõe, renormatizando-o. Adoecer, por outro lado, é se adequar a um único meio restrito e limitado.

No ambiente de trabalho – que é um ambiente técnico, humano, cultural e social – existe toda espécie de infidelidades, que se combinam e se reforçam. Nada acontece da mesma forma de um dia para outro ou de uma situação de trabalho para outra. É nesse sentido que o meio, a vida – e também o trabalho – é infiel.

Yves Schwartz (2000) aponta para o fato de que essa infidelidade é gerida como um uso de si e não como mera execução. Reduzir a atividade de trabalho à mera execução é acreditar que a prescrição é perfeita, que o meio é fiel e que não há variabilidades contínuas e constantes, algo que é impensável na ordem do humano.

Se recusamos, como Canguilhem, a idéia de que o meio se impõe aos humanos e se acreditamos que a saúde não pode ser reduzida a um mero equilíbrio ou capacidade adaptativa (mas que deve ser pensada como a capacidade que possuímos de instaurar novas normas em situações adversas ou nocivas), não podemos acreditar que seja possível alguém ser mero executor de prescrições, como o taylorismo nos quis fazer acreditar durante tanto tempo.

O segundo pressuposto da abordagem ergológica traz a questão dos valores: se o trabalho mobiliza o tempo todo aspectos subjetivos do trabalhador, então o trabalho é também o tempo todo um debate de valores. Ao se deparar com a prescrição, cada um vai ressingularizá-la à sua maneira, de acordo com seus valores e com sua história individual e coletiva. A maneira como cada pessoa age diante das lacunas ou das deficiências do prescrito é sempre singular, não pode ser padronizada. Cada um vai renormalizar o meio a seu jeito para dar conta do que não está prescrito. E isso vai sempre envolver um debate: de normas, de valores, de histórias.

A variabilidade de todas as situações de trabalho faz com que os problemas não sejam resolvidos mas constituídos. (...) toda situação de trabalho é, de alguma forma, experiência, reencontro: ela coloca à prova normas e valores antecedentes em uma situação histórica sempre em parte singular. (...) A atividade de trabalho propõe, convoca, impõe escolhas e arbitragens. Nunca é o retorno do mesmo. A realidade e a materialidade desses encontros obriga a levar a sério o fato de que os valores são também convocados em uma espécie de prova de fogo que os avalia e julga segundo sua capacidade de tratar esses reencontros (Schwartz, 2000, p. 38).

Uma das importantes contribuições da Ergologia ao estudo do trabalho é esse olhar sobre o sujeito da atividade enquanto alguém atravessado por escolhas e valores, o que desloca o olhar para outras esferas da vida e das atividades sociais. Os valores interrogados são da existência dos humanos e não apenas do trabalho, na medida em que a Ergologia não separa a produção no trabalho das demais instâncias da vida.

O terceiro pressuposto, a dialética entre universalidade e ressingularização, aponta para a necessidade de interligar as questões micros e macros, entre o contexto em que ocorre a atividade de trabalho e a atividade singular.

Interessar-se pelo trabalho é sempre se interessar por essa espécie de dialética entre o particular e o geral. É se recusar a pensar apenas o contexto global (dimensão macro) acreditando que apenas ele promove impactos sobre as pessoas, que deveriam encontrar formas de se adaptar.

É recusar-se também, por outro lado, a fechar-se na dimensão micro do trabalho, esquecendo de ampliá-lo para efetuar análises mais precisas. É realizar o esforço de efetuar cruzamentos de uma determinada situação de trabalho com questões maiores que possam ser generalizadas. É “partir de” um determinado lugar para buscar sua ampliação.

Analisar o trabalho a partir de uma situação real é uma tentativa de sair da armadilha proposta pela visão determinista de que “está tudo dominado” e, portanto, não há saída. É buscar não “a” saída, mas saídas: diversas, inúmeras, infinitas, como requer a complexidade do trabalho e da vida humana.

Finalmente, o quarto pressuposto da abordagem ergológica aponta na direção de um regime de produção de saberes como dispositivo em três pólos: o pólo dos conceitos, o da experiência e um terceiro, ético e epistêmico, que faça a ligação entre os dois.

O dispositivo em três pólos é uma conseqüência direta da idéia de renormalização da atividade. O primeiro pólo, dos conceitos, do conhecimento sistematizado “encontra-se” com o segundo pólo – dos saberes gerados nas atividades (experiência) – em uma dinâmica constante e contínua de renormalização.

Esse “encontro” só pode se produzir na presença de um terceiro pólo, o das exigências éticas e epistemológicas, pois ele pressupõe uma maneira de olhar o outro como semelhante. O terceiro pólo gera uma situação de “desconforto intelectual” e impõe uma certa humildade para reconhecer que ambos os saberes (conhecimento e experiência) vivem a fragilidade de não explicar a realidade em sua totalidade, sendo complementares e não excludentes.

Para Schwartz, trabalhar envolve sempre uma dramática do uso de si. Trabalhar é sempre um drama no sentido de que envolve o trabalhador por inteiro, é o espaço de tensões problemáticas, de negociações de normas e de valores.

Schwartz (1999) afirma que:

(...) isto quer dizer que vemos o outro como alguém com quem vamos aprender coisas sobre o que ele faz, como alguém de quem não pressupomos saber o que ele faz e porque faz, quais são seus valores e como eles têm sido retratados.(...) Esta disposição não se ensina, mas se empresta no sentido de que nos impregnamos no contato recíproco com aqueles que estão no outro pólo. Vemos como funciona sua relação com o trabalho e os valores, impregnamo-nos da idéia de que, quando vemos alguém trabalhar, é preciso tentar reconstituir, em parte, suas “dramáticas de uso de si” (p. 208).

A expressão “uso de si” remete ao fato de que não há somente execução nessa dramática, mas um uso. É a pessoa sendo convocada em toda a sua subjetividade, com toda a mobilização que qualquer abordagem taylorista jamais pode alcançar. O conceito de uso de si chama a atenção para a complexidade do humano.

E quem faz esse uso? Existe um uso de si pelo outro, isto é, as condições históricas que são dadas e que são produtoras de subjetividade.

Mas existe um outro uso que é o uso de si por si mesmo, aquele uso que cada um faz de si próprio, a renormalização singular realizada pela atividade humana. Não estabelecer essa tensão contraditória entre esses dois usos é acreditar que o trabalhador é um ser humano passivo, reprodutor, que apenas sofre os impactos dos determinismos históricos, econômicos e sociais. Se as condições históricas são um já-dado (prescrição), o trabalho efetivamente realizado (assim como a vida) nunca é apenas isso. Pois o humano não só varia, mas produz variações. Nesse sentido, as pessoas praticam, o tempo todo, uma gestão de si como uma questão humana que envolve escolhas, valores, arbitragens. A gestão é da ordem da vida, independe do trabalho.

A gestão de si sempre esteve presente, mesmo quando o taylorismo afirmava o contrário. As atuais mudanças nos mundos do trabalho não inventam essa dimensão, mas apenas começa a assumir sua existência. “Os trabalhadores inventam/elaboram/transmitem uns aos outros procedimentos não ensinados, nem pela formação, nem pela supervisão. Esse saber é fonte não só de criação, como também de produção de resistências, de novos sujeitos/objetos, de outras formas de gestão de si” (Barros, 2002, p. 6).

Essa forma de analisar o trabalho enquanto atividade nos faz refletir sobre algumas questões relativas às políticas e às práticas de Recursos Humanos nas organizações.

 

Recursos Humanos – que transformações?

Até a década de 70, as práticas de Recursos Humanos se dão como modulações em torno de um mesmo tema (o taylorismo-fordismo) e a demanda é por uma área de Recursos Humanos baseada na Psicotécnica, operando com processos padronizados para atender a uma determinada subjetividade: o trabalhador da repetição e do fragmento, o ser humano visto como um recurso que pode ser usado, descartado, substituído como qualquer outro recurso dentro da organização.

As práticas dos profissionais de Recursos Humanos se dão sempre no sentido de “adaptar” o trabalhador às necessidades do trabalho e “corrigir” as falhas advindas do “fator humano”. A idéia é a de que o ser humano “falha” e o trabalho do profissional de Recursos Humanos seria corrigir essas “falhas” que “atrapalham” o trabalho.

A partir da década de 70, emerge uma nova crise capitalista internacional e novamente os mundos do trabalho3 são alvos de grandes transformações tecnológicas e organizacionais.

O capitalismo passa a vivenciar um momento inédito em sua história. A hegemonia do capital financeiro descola o capital da ordem produtiva, a competição e a concorrência por novos mercados se acirram e as novas tecnologias e formas de organização do trabalho vêm permitir que as empresas possam oferecer produtos cada vez mais semelhantes.

A agilidade da inovação e a criatividade passam a ser decisivas para a sobrevivência das empresas. Assim, após investir na anulação das capacidades cognitivas dos trabalhadores, dificultando terrivelmente o desenvolvimento de cada um, o capital chega a um outro momento em que necessita de um trabalhador não apenas qualificado, mas competente, inteligente, questionador, crítico, inovador, que possa criar alternativas que mantenham a empresa competitiva.

A ênfase na área de Recursos Humanos passa a recair então sobre a qualificação profissional. Surge a demanda de um “super-profissional”, altamente qualificado para atender às novas exigências do capital.

A partir de então, algumas diferenças podem ser marcadas em relação às políticas e às práticas de Recursos Humanos.

A primeira grande mudança que se observa nesse sentido é a própria alteração do nome do campo de trabalho: de Recursos Humanos passa-se para Talentos Humanos ou para Gestão de Pessoas (nome mais aceito pelo “mercado”). O que representa essa alteração? Apenas um modismo? Um novo nome para velhas práticas? Do ponto de vista da Ergologia, essa alteração representa muito mais do que um simples modismo, mas a constatação de que as pessoas são mais do que um recurso que pode apenas ser manipulado de acordo com condições externas. Trata-se de compreender que existe uma dimensão gestionária em qualquer forma de trabalho e o movimento do capital deve ser no sentido de “capturar” também essa dimensão.

Se trabalhar é sempre gerir, ao capital não mais interessa “administrar Recursos Humanos”, mas intervir nessas gestões das pessoas, compreender que mobilização subjetiva é essa, presente nas atividades de trabalho. “O novo management hoje é a alma do operário que deve descer na oficina. É sua personalidade, sua subjetividade, que deve ser organizada e comandada” (Lazzaroto & Negri, 2001, p. 25).

Evidentemente, falar em Gestão de Pessoas continua sendo uma forma taylorista de compreensão da subjetividade do trabalhador na medida em que se continua a acreditar que existe um gerenciamento que vem “de fora”, que deve ser prescrito e obedecido. Do ponto de vista da Ergologia poderíamos falar em Gestões com Pessoas, na medida em que gestão é sempre plural e coletiva. Em toda a atividade de trabalho existe uma dimensão gestionária, sendo impossível gerenciar a partir de um deserto de gestão4.   

Também a questão da qualificação no trabalho ganha um novo sentido do ponto de vista da Ergologia. Se, numa concepção taylorista de trabalho, acreditava-se que bastava ao trabalhador seguir as prescrições, resultando em um constrangimento de suas características cognitivas e afetivas do trabalhador, hoje é requerida um outro tipo de qualificação.   

Zarifian (2001) aponta que a grande diferença passa pelo deslocamento do referencial da qualificação do emprego ou do posto de trabalho para a qualificação do indivíduo e introduz na discussão a noção de evento como um dos aspectos fundamentais das transformações ocorridas nos mundos do trabalho.

Evento, nessa concepção, é tudo aquilo que ocorre de maneira imprevista, inesperada, tudo aquilo que é da ordem do acaso que faz parte de qualquer trabalho humano. Trabalhar seria, então, gerir esses acasos, “pressenti-los”, antecipá-los, enfrentá-los, ou seja, saber colocar as questões e inventar as respostas em um ambiente técnico e social complexo e instável. E essa capacidade inventiva é própria do humano.

O trabalho, definitivamente, não pode mais ser visto como uma seqüência de operações repetidas, programadas, padronizadas, mas torna-se uma seqüência de eventos que se cruzam, modificam-se e ultrapassam o saber e a ação de um único indivíduo, mobilizando redes de atores.

Essa nova forma de pensar o trabalho traz mudanças também nas questões de seleção de pessoas. As seleções não podem mais ser realizadas a partir de perfis – rígidos e estáticos –, privilegiando trabalhadores que sejam bons seguidores de regras, mas surge a noção de potencial, que traduz uma visão de movimento, mais dinâmica. Essa noção de potencial vai permitir prever competências futuras (a partir, por exemplo, de avanços tecnológicos previsíveis), sendo possível antecipar programas de formação e de orientação de carreira.

As avaliações de desempenho passam a levar em consideração questões como satisfação do cliente, clima no ambiente de trabalho e melhoria de processos internos, além dos indicadores financeiros. Estes últimos passam a ser apenas um dos indicadores da saúde de uma empresa na medida em que, em um ambiente de grande competitividade e instabilidade crescente, a saúde financeira das empresas é abalada por diversos fatores como insatisfação dos clientes, processos mal planejados, climas organizacionais caóticos e muitos outros que precisam ser avaliados periodicamente.

As questões que envolvem a saúde do trabalhador também precisam ganhar um novo olhar que passe por estimular a maior autonomia no trabalho, facilitando a invenção de novas regras, as renormatizações constantes e contínuas, a criação de normas próprias, como nos ensina Canguilhem.

Enfim, pensar o trabalho do ponto de vista da atividade permite-nos colocar antigas perguntas em um novo contexto. Que novos campos de luta se formam nestes novos cenários? Que dramáticas de uso de si estão presentes no contexto da empresa? Como lidar com elas? Que produtividade é essa que se busca? Para quem? Para quê? Como? Como aliar a produtividade à qualidade de trabalho e à saúde? Como selecionar pessoas sem deixar de considerar a complexidade presente em qualquer atividade humana? Como ajudar a desenvolver suas competências? Qual a melhor forma de remunerá-las?

Todas essas questões devem ser norteadas pela crença de que todo humano é gestor de si e deve gerir sua vida e seu trabalho. Qualquer prática na área de Gestão de Pessoas deve “partir do” pólo da experiência dos trabalhadores.

 

Considerações finais

Defendemos a tese de que o capitalismo encontra-se diante de um paradoxo inédito em sua história: necessita, para se manter, de um trabalhador competente, inovador, crítico, questionador, inteligente. Por outro lado, essa demanda – ao criar novos espaços de produção de subjetividades, de expressão e de expansão das ações dos trabalhadores, em diversos planos (do pensamento, da linguagem, da afetividade, das interações sociais) – pode trazer a possibilidade dos trabalhadores questionarem e reinventarem o próprio sistema.

Nessas novas formas de trabalhar demandadas pelo capital, o sistema produtivo só funciona se o trabalhador desenvolve sua intelectualidade, sua inteligência prática e sua afetividade.

A produção se torna cada vez mais coletivizada (necessidade de trabalhar em equipes, em grupos, em mobilizar redes) e os ganhos são cada vez mais individualizados.

Nossa hipótese é de que o capitalismo vê-se obrigado a ajudar na construção de uma forma de subjetivação que pode se tornar incompatível com sua própria manutenção, nos moldes como se encontra hoje.

Ao acreditar durante décadas nas concepções tayloristas, os processos de resistência ao capitalismo foram sempre feitos de forma transcendente. Se o trabalhador é um alienado, as possibilidades de resistir teriam sempre que vir de fora: dos partidos, dos sindicatos, de pessoas não alienadas que tomam para si a missão de “conscientizar” os trabalhadores de sua própria opressão.

A Ergologia pode trazer um novo olhar sobre essas questões ao analisar o trabalho a partir do conceito de atividade. Na atividade concreta de trabalho há sempre um campo de lutas. E nesse campo de lutas há possibilidade de se buscar saídas, escapes, desvios, novos rumos. No micro-campo da dramática do uso de si, no acontecendo do trabalho não existe alienação; não há como se alienar do próprio uso de si.

Uma das saídas propostas a partir da Ergologia é a de utilizar a lupa para analisar a atividade de trabalho do ponto de vista clínico no sentido da ação, da afecção, do movimento. Buscar nesse uso de si por si onde se encontram forças aliadas, afirmadoras da vida. Onde há vida? Onde há potência? Como, no acontecer da vida, fazer desvios, resistir, gerir as variabilidades, renormalizar, lidar com as nocividades e adversidades que se apresentam no mundo?

Ter a clareza de que a vida é renormalizada de forma permanente, a cada atividade, a cada cotidiano, pode trazer conseqüências interessantes. Pode, por exemplo, colocar os humanos em situações mais privilegiadas ao negociar espaços coletivos de trabalho, desenvolver a capacidade de aprender com a experiência, de colocar questões e antecipar os problemas a serem resolvidos. Devolve aos humanos a crença de serem (co)construtores de sua própria história.

Recolocar as questões do capitalismo, sem negá-las, sem fugir delas e sem ressentimentos, tentando reinventar – na dimensão micro da vida – o que é realizado. Buscar as negociações e os acordos possíveis no momento. Com competência, sem ingenuidade e sem nostalgia do velho.

Para isso, um dos grandes desafios é a busca de novas metodologias de trabalho, não se deixando enfraquecer diante das antigas metodologias, que não dão conta de tanta complexidade.

Assim como a vida é gerada, o trabalho também é gerido no entre. Gestões e gestações se fazem com as pessoas. Nosso trabalho como profissionais de Recursos Humanos deve ser facilitar o momento do parto.

 

Referências bibliográficas

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Zarifian, P. (2001). Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
melisaborges@uol.com.br

Manuscrito recebido em: 21/08/2003
Envio de pareceres à autora em: 06/10/2003
Aprovado para publicação em: 05/01/2004

 

 

1 Psicóloga, doutoranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
2 Filósofo, diretor científico do Departamento de Ergologia da Universidade de Provence e principal autor da +Ergologia.
3 A expressão “mundos do trabalho” tem sido utilizada pelo professor Milton Athayde (professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade do estado do Rio de Janeiro e orientador da autora deste artigo) com o objetivo de recusar a homogeneidade em que se costuma colocar o trabalho. A expressão sustenta-se na obra do historiador inglês Eric Hobbsbawn.
4 A expressão “deserto de gestão” é utilizada por Yves Schwartz para designar a ausência de uma dimensão de gestão. Ou seja, não é possível gestionar a partir do nada. A gestão é entendida como coletiva e não se dá em um deserto ou em um território esvaziado.

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