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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
versão impressa ISSN 1516-3717versão On-line ISSN 1981-0490
Cad. psicol. soc. trab. v.10 n.2 São Paulo dez. 2007
ARTIGOS
Trabalho emocional: o caso dos teleatendentes de uma central de atendimento
Emotional labour: the case of a call center workers
Lailah Vasconcelos de Oliveira Vilela; Ada Ávila Assunção
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO
O objetivo desta pesquisa empírica sobre o trabalho e as manifestações de adoecimento em uma empresa de telecomunicações é demonstrar a necessidade de trabalho emocional, de acordo com os conceitos de Hochschild (1983) na execução de tarefas pelos teleatendentes. Tais conceitos ainda não foram devidamente explorados no Brasil, apesar de muito utilizados em diversos países. O estudo utiliza-se de dados da análise da atividade associados à análise do conteúdo de verbalizações realizadas em situação de trabalho e à análise de cartas enviadas pelos trabalhadores espontaneamente ao sindicato da categoria. Busca-se evidenciar núcleos de sentidos atribuídos ao trabalho pelos próprios trabalhadores, nos quais traços da atividade, valores e problemas relacionados à atividade e o uso das emoções são percebidos. Os resultados obtidos permitiram descrever a atividade humana tendo como centro o trabalhador e suas relações com o trabalho. São apresentados os elementos do trabalho emocional diagnosticado, focalizando a necessidade dos sujeitos em moldar suas emoções para lidar com clientes, em face dos objetivos estabelecidos pela gestão, como fonte das queixas de esgotamento e cansaço relatadas.
Palavras-chave: Teleatendimento, Trabalho emocional, Esgotamento, Exaustão emocional, Organização do trabalho.
ABSTRACT
The aim of this empirical study is bring evidences about emotional labor requirements during tasks execution in a call center. The idea of emotional labor was initially described by Hochschild (1983), but there isn’t much about this in Brazil. The study made an association of activities analysis and speech analysis. Dialogues in real situation and letters sent by the workers to their syndicate were evaluated to find out what they thought about their work, good values, troubles and, use of emotions like a work instrument. The obtained results lead to attendant work description from the workers vision, presenting emotional labor evidences and focusing the need of humans to control and change emotions during contact with clients. The use of emotion became part of the job like a task demand, and could bring fatigue and emotional exhaustion.
Keywords: Call center, Emotional labor, Fatigue, Emotional exhaustion, Work organization.
Introdução
Vários tipos de trabalhos trazem exigências afetivas, a depender do conteúdo das tarefas, das relações estabelecidas entre trabalhador e usuário, do contexto onde atua o trabalhador. Pereira e Assunção (2007) identificaram, por exemplo, no grupo de oficiais de justiça, emoções como compaixão, pena, tristeza, medo e raiva em face às situações litigiosas que enfrentam. Assunção e Luz (2001) descreveram os sentimentos das enfermeiras que lidam com crianças de baixo peso ao nascer e as articulações entre o componente afetivo da tarefa e os problemas de cansaço referidos pelo grupo ocupacional estudado. Fernandes et al. (2002) citam a exposição freqüente a diversas situações geradoras de estresse, tais como intimidações, agressões e ameaças, possibilidade de rebeliões nas quais, entre outros, os agentes penitenciários podem perder a vida ou ser capturados como reféns. Este artigo explora as situações de trabalho no setor de telecomunicações, as quais denotam um forte conteúdo emocional nas tarefas realizadas, como se verá adiante.
As regras de sentimentos fazem parte do trabalho emocional, o qual diz respeito, segundo Hochschild (1983), ao investimento pessoal para controlar e estabelecer meios para lidar com aquelas emoções geradas no desenrolar de tarefas específicas. São regras criadas pelas organizações com o objetivo de administrar o tipo, o momento e a intensidade da emoção relacionada à tarefa. Essas regras formais visam a modular as emoções dos trabalhadores no curso da atividade cuja natureza implica em, por exemplo, atender a um usuário irritado com a qualidade do serviço prestado por um banco, por uma companhia aérea ou por ter adquirido um equipamento que não funciona.
Diferentes efeitos deletérios para o trabalhador são associados ao trabalho emocional: abuso de álcool e drogas, cefaléias e absenteísmo. As demandas emocionais intensas estão associadas à insatisfação no trabalho (Morris & Feldman, 1996). Contudo, é possível encontrar níveis de satisfação no trabalho apesar de as situações de contato com o cliente exigirem equilíbrio na lida com situações extremas ou permanente cortesia e amabilidade, não importando o conteúdo dos eventos abordados pelos trabalhadores. Se o ambiente proporcionar margens de autonomia para o trabalhador, os esforços investidos no curso da atividade serão compensados (Hochschild, 1983; Tolich, 1993; Wharton, 1993), diminuindo os efeitos nocivos sobre a saúde.
A organização formal do trabalho, em especial no setor de serviços, espera a demonstração de um afeto inexistente. É o caso da recepcionista de hipermercado que cumprimenta o cliente sem fitá-lo, objetivando ganhar tempo para diminuir a fila de espera, ponto de satisfação do cliente (Assunção, 2002). Como ser autêntico na expressão de seus sentimentos em um ambiente marcado pela pressão temporal? Tal dicotomia acarretaria uma espécie de dissonância emocional, nos termos de Hochschild (1983) e de Soares (2002), no sujeito que vivencia sentimentos contraditórios e que pode enfrentar uma sensação de estar sendo falso (Ashfort & Humphrey, 1993).
Hochschild (1983) identificou 44 categorias ocupacionais com altas demandas de trabalho emocional, como as da área da saúde, da educação, da administração e operadores de telefone, dentre outros, pertencentes ao setor de serviços com tarefas de interface direta com o usuário.
O trabalho de atendimento via telefone caracteriza-se como atividade de interação com o cliente, seja para fornecer informações, vender produtos e serviços, solucionar problemas ou receber reclamações de clientes irritados. Nessa relação, muitas vezes o teleatendente se sente ameaçado, pois deve mediar o contato cliente-fornecedor, trabalhando sob rígido controle e com poucas margens para alterar a forma prescrita pela organização para conduzir a solução do problema (Abrahão & Santos, 2004; Glina & Rocha, 2003; Sznelwar & Masseti, 2000).
Este artigo caracteriza o trabalho emocional em situações de teleatendimento, focalizando o moldar de emoções para lidar com clientes diante dos objetivos estabelecidos pela gestão e dos mecanismos de controle do trabalho em uma grande empresa que presta serviços de teleatendimento/telemarketing como terceirizada (Vilela & Assunção, 2004).
Materiais e Métodos
A natureza do objeto justificou a abordagem qualitativa, procedendo-se a uma análise situada de nove diálogos atendente-cliente a fim de compreender o sentido das ações dos trabalhadores e seus determinantes. Buscando na expressão do trabalhador os traços de sua atividade e os reais problemas vivenciados, articulou-se ao estudo dos diálogos uma análise do conteúdo de treze cartas arquivadas no sindicato dos teleatendentes, em cujas palavras buscou-se compreender o sentido atribuído ao trabalho e a percepção dos seus efeitos sobre a atividade e a saúde. Procurou-se identificar as contradições aparentes, convergências e divergências no discurso de cada sujeito pelo princípio de Bakhtin (1986, p. 14), que toma a palavra como “a arena onde se confrontam valores sociais contraditórios”.
Trata-se de um tipo de pesquisa que valoriza a comunicação entre os participantes na busca de evidências dos problemas tal como são percebidos pelos sujeitos da amostra. A análise das comunicações no trabalho, no caso os diálogos teleatendente e usuário e as cartas enviadas pelos teleatendentes ao sindicato, foi utilizada como forma de entender a dinâmica das atitudes, motivações e preocupações dos indivíduos. O objetivo não foi interferir, mas entender; não foi generalizar, mas determinar o campo; não fazer afirmações sobre a população, mas oferecer insights sobre como as pessoas percebem uma situação.
As cartas analisadas originaram-se da manifestação voluntária dos sujeitos em relação ao seu trabalho, o que geralmente representa uma situação em que já se ultrapassaram os limites das estratégias defensivas e da tolerância (Dejours & Jayet, 1994). Procedeu-se a uma pré-análise dos dados, com leitura flutuante do material e decisão de utilizar todas as treze cartas para a construção do corpus, por tratar-se de material compatível com as questões elaboradas na primeira aproximação do campo.
Esse universo de depoimentos escritos dizia respeito a sentimentos e situações consideradas como sendo prejudiciais ao trabalho e à saúde dos teleatendentes. As comunicações registradas em todas as treze cartas enviadas de 2001 a 2003, espontânea e anonimamente por teleatendentes de empresas diversas, foram analisadas em seu conteúdo conforme passos próprios da análise temática, que consiste em descobrir, inicialmente, núcleos de sentidos que compõem a comunicação. Dessa forma, identificou-se a presença de determinados temas que permitiram evidenciar valores de referência e modelos de comportamento presentes no discurso (Godoy, 1995; Triviños, 1987). Buscou-se a abrangência pela diversidade e categorias estratégicas que pudessem esclarecer o problema estudado tanto na análise da situação real, quanto nas reflexões teóricas (Bauer & Gaskell, 2003; Turato, 2003).
Foram considerados aspectos da “linguagem sobre o trabalho” ou o que se diz a respeito do trabalho, nesse caso, analisando-se as cartas. Da “linguagem no trabalho” - aquilo que se diz durante o trabalho, mas não necessário para a execução da tarefa - observada por meio das verbalizações do trabalhador com o próprio pesquisador durante as observações em campo. E da “linguagem como trabalho”, em que a palavra é utilizada como ferramenta de trabalho, acessada, no caso, através dos diálogos com clientes (Lacoste, 1998).
Para facilitar a compreensão das diversas interfaces do envolvimento emocional no trabalho dos teleatendentes, organizaram-se os dados buscando-se focalizar os fatores provavelmente relacionados às exigências afetivas. As frases em itálico representam manifestações reais dos trabalhadores em relação ao assunto e estão descritas a seguir.
Resultados e Discussão
Na empresa estudada, os trabalhadores estão submetidos a uma série de mecanismos de gestão do trabalho: controle do tempo, do conteúdo, do comportamento, do volume de serviços realizados e dos resultados quantitativos (Vilela & Assunção, 2004). As cartas analisadas apresentam a indignação dos sujeitos quanto aos controles impostos pelos métodos de gestão. As situações registradas nas cartas enviadas ao sindicato da categoria são marcadas por uma espécie de revolta:
O tempo da escravidão já acabou! (carta 1).
Não há intervalo nenhum entre uma ligação e outra [às vezes o atendente nem percebe que já é outro cliente, tão rápido é o processo] (carta 3).
Além de marcar a atividade humana, os mecanismos de controle rígidos são percebidos como perturbadores da relação trabalhador-cliente, desejada pelos critérios de qualidade, como descrevem Abrahão e Santos (2004). Encontra-se um paradoxo organizacional evidenciado na contradição entre o objetivo de satisfazer o cliente e os tempos exíguos para os contatos necessários na escuta de queixas e demandas particulares, como se vê em:
Não existe excelente atendimento com dez segundos, até porque cada cliente deseja algo diferente do que aquele que ligou anteriormente e isso é conseqüência (carta 1).
No extrato a seguir transparece o efeito dos fatores organizacionais, especificamente a pressão, sobre o cotidiano dos teleatendentes:
Este serviço é muito penoso, porque nós temos pressão da empresa, do cliente e acabamos nós mesmos nos pressionando (carta 9).
No trabalho dos teleatendentes é fundamental elaborar o problema do cliente a fim de escolher e propor o caminho mais profícuo para responder a ligação. No caso analisado, os sujeitos remarcam a desumanização no trato com o cliente, como se observa a seguir:
Eu sempre achei errado esse negócio de tempo, porque muitas vezes você se torna desumano com o cliente. Eu gosto de atender o cliente, conversar com ele... (carta 13).
Fica nítida, nas frases, a impregnação do corpo e de suas margens de liberdade pelo controle temporal, percebido como pressão intensa: “não podíamos mais parar para respirar, pois o computador registrava cada segundo que ficávamos sem atender” (carta 2). O conteúdo das cartas expressa a percepção negativa dos trabalhadores sobre as formas de gestão no setor de atendimento, que se queixam da sobrecarga associada aos objetivos do lucro:
... por trás dessa questão está uma sobrecarga de trabalho condicionada por todo o peso das medidas adotadas pela empresa sobre o empregado, para aumentar o processo produtivo e o lucro (carta 3).
A cultura da organização determina modos de interação e pretende determinar o modo de agir, pensar e se comportar do indivíduo que prestará o serviço (Abrahão & Santos, 2004; Abrahão & Pinho, 2002). Entretanto, há uma série de fatores que interferem na execução da tarefa, dificultando seu cumprimento no seu tempo pré-determinado, como por exemplo, questionamentos de clientes, dicção imperfeita e irritação dos clientes, ruído externo etc.
Apesar da existência de múltiplos fatores aleatórios que surgem no trabalho, a hierarquia não permite espaços para diálogos ou contestação pelo teleatendente de qualquer mecanismo de controle, aproveitando-se do “exército de reserva” composto por grande número de trabalhadores em busca de um emprego para pressionar, gerando insegurança e medo de demissão como se pode perceber nesta afirmação: “não podemos contestar um ‘a’ que for dito, pois lá fora tem sete mil curriculuns à espera” (carta 4). E também, no extrato seguinte:
... não se pode questionar nada. Qualquer questionamento pode ser motivo de advertência, quando não de demissão e quem está aqui é porque realmente precisa trabalhar [portanto, cala-se para manter o emprego] (carta 3).
Além da pressão temporal, a fraseologia específica determinada pela organização do trabalho, que é uma tentativa de padronizar os atendimentos, em realidade, cerceia o diálogo com o cliente. Segundo Assunção e Souza (2000), os trabalhadores submetidos aos padrões de fala sentem-se bloqueados para interagir com os clientes e, mesmo utilizando-se de criatividade, não conseguem construir um verdadeiro diálogo e estabelecer uma relação proveitosa para os objetivos do atendimento, como descreve um teleatendente:
SCRIPT é o tormento não só do cliente, mas também de nós atendentes... Estou cansado de ser chamado de robozinho (carta 11).
A organização prescreve a fraseologia, determina a entonação de voz, na tentativa de impedir manifestações emocionais pelo operador e transformar a palavra em simples ferramenta de trabalho. São situações que estão na origem de conflitos emocionais, do tipo exemplificado neste extrato:
...somos forçados a usar uma linguagem técnica, robotizada, não vendo ou escutando que existe uma criança do outro lado da linha. Somos obrigados a chamá-la de Sr(a) (carta 1).
Analisando as regras gerais e as simulações de diálogos presentes no Manual do Operador, observa-se que os diálogos prescritos referem-se a situações conhecidas ou previstas, provocando, mais uma vez, uma espécie de dissonância entre uma pretensa relação de diálogo e as condições mecânicas para fazê-lo, o que pode estar na origem de manifestações como: “Aqui mais parece um campo de concentração de robôs” (carta 3) ou “Essa robotização nos causa stress, cansaço mental” (carta 1).
O grau de detalhamento das prescrições é estabelecido a partir da suposição de que o raciocínio do cliente é linear e previsível, seguindo a mesma representação de funcionamento do sistema automatizado e não considerando as variáveis presentes nas situações de atendimento, conforme explicitam Mascia e Sznelwar (2000), o que explicaria as inúmeras alusões a máquinas e robôs, transcritas neste texto do tipo “E ainda somos chamados de ‘trabalhadores’...” (carta 4).
No trecho a seguir, pode-se observar a tendência de flutuação da tarefa. Trata-se de um atendimento já em fase de conclusão, quando a atendente deve informar um código que garante o registro da solicitação do cliente. Nesse momento, ocorre uma interrupção com o afastamento do cliente, que vai procurar papel e caneta. A segunda intercorrência é a chegada de uma criança que ocupa o telefone, exigindo que o atendente mude seu registro para esboçar um diálogo não previsto pela organização:
Obrigada por aguardar, senhora. O número que indica a sua solicitação é...
Espera a cliente buscar papel e caneta. Começa a falar o número. Aguarda mais um pouco.
Sim? A atendente percebe que é uma criança do outro lado da linha, e pergunta: Cadê a mamãe? A criança responde: quem é? A atendente se identifica.
A mãe retorna, a atendente fornece o número de onze dígitos.
Deseja mais alguma informação, senhora?
A cliente reclama que não quer pagar por um serviço que não autorizou. A atendente informa que vai transferir a ligação para o setor responsável.
(Diálogo em situação, teleatendente 1).
Em outro diálogo, a seguir, nota-se novamente o caráter flutuante da tarefa na atuação de uma atendente que tenta dissuadir o cliente de cancelar um serviço. Durante a utilização do script padrão, o atendente descobre que o serviço foi vendido de forma irregular para uma criança, o que deixou o cliente bastante irritado, quebrando qualquer possibilidade de manter a fraseologia prescrita e de convencê-lo a manter o serviço:
[nome da empresa], [nome da teleatendente]. Em que posso ajudar?
Ouve reclamações e diz: Sim, certo.
Por gentileza, com quem eu falo? Senhora, qual o número do telefone?
Digita o número para saber informações do cliente. Qual a localidade?
A senhora. não autorizou o serviço? Correto. Permanece escutando.
Relaciona os serviços que constam no programa para a linha e o nome de quem autorizou. O cliente informa de que o nome fornecido refere-se a uma criança.
(Diálogo em situação, teleatendente 2).
Essas situações evidenciam as formas de trabalho emocional descritas por Hochschild (1983), seja a demonstração de emoções que não correspondem aos reais sentimentos, mais freqüentemente utilizada, seja um envolvimento mais profundo com as necessidades do cliente, com a real alteração dos sentimentos do trabalhador: “Já não trabalho com a mesma alegria. Me sinto um robô” (carta 5).
Muitas empresas não somente criam as regras, mas também monitoram os empregados para assegurarem-se de que a demonstração de sentimentos está “correta”. As regras de sentimentos são apresentadas em treinamentos formais e transmitidas no cotidiano de trabalho à medida que o trabalhador reproduz o comportamento dos colegas mais experientes, percebendo aqueles sentimentos que podem emergir no contato com os clientes e mesmo com colegas e chefia (Rafaeli & Sutton, 1987). Na empresa estudada, havia uma fase do treinamento, denominada “operação carrapato”, em que o novato, após ter recebido um treinamento teórico, ficava ao lado de um teleatendente experiente para vivenciar a prática.
Outra forma de sobrecarga afetiva origina-se da necessidade de obedecer a certas regras de relacionamento que a organização do trabalho impõe, apesar do conflito entre a atitude exigida e os princípios éticos do teleatendente, que o orientam para o afastamento de contatos abusivos e desqualificados, como se vê em:
É proibido derrubar ligações, mesmo que estas sejam de caráter obsceno, trote, ou cantadas. Sendo que o atendente é obrigado a ouvir e tratar o cliente por Sr. e com gentileza, mesmo que esteja ferindo a integridade moral do atendente (carta 8).
Há uma ação do atendente que expressa uma emoção e, de acordo com a reação do cliente, percebe se está no caminho certo, mantendo ou reformulando a atitude afetiva, o que configura a interação, um acordo mútuo a respeito das emoções apropriadas para aquela situação. Dessa interação, pode advir uma “harmonia emocional”, quando a emoção expressa pelo atendente condiz com seus sentimentos reais e suas expectativas, ou uma “dissonância emocional”, quando a emoção considerada “mais adequada” foi contrária ao sentimento real despertado no atendente. Rafaeli e Sutton (1987) citam também o “desvio emocional”, quando o atendente termina por expressar uma emoção verdadeira e que não condiz com as regras. Contudo, tal desvio pode gerar uma punição. Essa restrição ameaça o atendente, que deverá dominar suas próprias emoções e as do cliente, como se vê em:
De repente recebe-se uma ligação de alguém tão dócil e meigo, - Ah, que bom começar um dia de trabalho assim!... mas logo, outra ligação: agora alguém do outro lado da linha grita em tom de desabafo - eu não agüento mais vocês, chega... não suporto mais! Resolvam o meu problema imediatamente! (carta 6).
...sem nenhuma informação precisa para o atendimento ser gratificante tanto para o cliente como para mim (sendo a atendente); é nisso que o cliente fica irritado e nervoso e o atendimento começa a ser estressante, opresso e insatisfatório (carta 12).
A atividade dos teleoperadores estudados exige amabilidade e paciência, independentemente das reações que podem surgir face ao comportamento do usuário que se encontra no outro lado da linha. Lidar com diferentes pessoas implica em mobilizar capacidade de escuta e comunicação, visando compensar as diferenças culturais e intelectuais entre um cliente e outro e, ainda, a capacidade de reverter as manifestações agressivas demonstradas pelos clientes insatisfeitos ou pouco informados.
Grandey, Dickter e Sin (2004) realizaram estudo detalhado acerca da agressão do cliente como importante fator gerador de desgaste em situação de teleatendimento nos Estados Unidos e constataram que, em média, 15 a 20% das interações com clientes continham agressões verbais, podendo variar de nenhum a 50 atendimentos com agressões por dia. Grandey, Tam e Brauburger (2002) observaram que as principais situações relacionadas à raiva no trabalho foram agressões freqüentes dos usuários do serviço.
Quanto a essa característica do teleatendimento, vale lembrar que, uma vez agredido, o indivíduo sente-se ameaçado e emoções consideradas negativas, como medo e raiva, apresentam-se. A falta de autonomia não permite que o atendente se sinta no controle da situação, não há como escapar do agressor.
As situações agressivas são costumeiras. Para Abrahão e Santos (2004), escutar o protesto é uma maneira de fazer o cliente sentir que houve uma reparação. A sobrecarga derivada da necessidade de lidar com um cliente insatisfeito, por razões alheias à vontade do operador, pode gerar necessidade aumentada de controlar as suas emoções e as do cliente, denotando um trabalho emocional que pode tornar-se motivo de esgotamento, de acordo com o quadro conceitual de Hochschild (1983).
Os clientes desejam estampar sua insatisfação em relação à empresa, cuja interface é o teleatendente, o qual, por sua vez, vivencia uma carga afetiva relacionada à exigência de lidar com esse tipo de sentimento, sem possibilidade de debater os problemas com os gestores. O seguinte extrato é ilustrativo:
O atendente deverá “agüentar” berros e xingamentos de clientes lesados e, mesmo que seja verificado que o cliente tem razão, não é permitido informar qualquer erro de responsabilidade da empresa (carta 8).
Os efeitos passam a se manifestar não somente no afeto, mas no corpo: “Pessoas que ficam estressadas, com dores de cabeça, insônias e, com o tempo, são simplesmente trocadas por outros” (carta 7).
O grupo de clientes com dificuldades de entendimento provoca irritação no atendente. No exemplo a seguir, a atendente tenta esclarecer como funciona um serviço, tendo feito inclusive um teste, sem obter êxito. O cliente parece ter dificuldade de entendimento e inicia sua fala com “grosserias”. A situação é complexa, pois evoca emoções diversas, desde um sentimento de compaixão até o nervosismo, somente manifesto pelo atendente se o cliente não perceber, por exemplo, enquanto mantém a ligação sem saída de som. Deve-se destacar que há uma preocupação com o tempo do atendimento, que já superou em muito o prescrito, perpassando toda a situação. A atendente explica à pesquisadora o ocorrido, ironizando a limitação do cliente através de um reforço no tom de voz:
Eu “asso” [acho] isso “bubice”... Eu “asso” isso “bubice” [imita em tom irônico a fala do cliente, enquanto usa a tecla mute de seu equipamento]. Eu nem vou discutir muito com ele [já estava conversando com o cliente há seis minutos e quarenta segundos]. “Eu acho isso bobice”... se ele acha “bubice”, eu não vou argumentar de novo, fiz o teste com ele e ele continua achando “bubice”. Começou com as grosserias [bate seguidamente na tecla enter sem necessidade, pois a interface já foi fechada]... Estava demorando! (Diálogo em situação, teleatendente 2).
O atendente assinala uma relação entre as formas de gestão rígidas e o uso das emoções como ferramenta de trabalho, muitas vezes em situação pouco saudável do ponto de vista psíquico (Fernandes, Dipace & Passos, 2002) e pode ser observado em: “É a lógica racional capitalista contra a lógica emocional” (carta 3).
A interação com os clientes solicita o recrutamento de emoções, nos dizeres de Soares (2002), como uma ferramenta de trabalho. Abrahão e Santos (2004) observam que a relação com o cliente é uma situação sobre a qual o atendente não tem total controle. Muitas vezes, as solicitações do cliente estão além das possibilidades do operador, pois a prestação de um serviço não depende apenas dele, mas de toda a estrutura da empresa.
Ressalta-se outra dificuldade de interação, relacionada à não corporeidade dos atores, ou seja, o teleatendimento é uma atividade na qual dois personagens dialogam sem contar com outras expressões da comunicação, gestos e expressões faciais presentes em nossa cultura. Na situação seguinte, vê-se que, talvez por falta de recursos do atendente para demonstrar os argumentos, o cliente não permite que explique as vantagens de um dado serviço. O teleatendente tenta bloquear o discurso ininterrupto do cliente, procurando, serenamente, formas para, também, acalmá-lo:
Oh, meu senhor! Oh!... Meu senhor! Me escuta! Deixa eu explicar para o senhor! Oh, meu senhor! Meu senhor, o que está acontecendo é... Meu senhor! (Diálogo em situação, teleatendente 1).
Em alguns setores de vendas de produtos, o atendente deve contatar clientes cujo número de telefone está em uma lista pré-programada no computador. Se existe disponibilidade do serviço na área de residência, o operador inicia o script com as vantagens do produto, os equipamentos para instalação etc. Após o início da ligação, o sistema pode acusar que não é possível instalar o serviço para aquele cliente. Diante da surpresa, o atendente usa de subterfúgio, dizendo que o contato é para atualizar cadastro e confirmar dados do cliente. As palavras da atendente revelam a sensação de estar sendo falso: “Aí fica aquele atendimento mentiroso, cafajeste... palhaçada!” (Diálogo em situação, teteleatendente 4).
O mesmo fato ocorre no setor de cobranças, quando a ligação é realizada automaticamente e às vezes o cliente já quitou a conta em atraso geradora da ligação, mas o atendente somente conhecerá a situação após efetuar a ligação. Novamente, ele usará de subterfúgios, evitando confessar que foi um erro do sistema. São situações costumeiras, como se vê em: “O atendente deverá ter ‘jogo de cintura’ suficiente para driblar a situação enrolando o cliente, muitas vezes com pequenas mentiras” (carta 8).
Essa sensação de falsidade é uma das formas de dissonância emocional, que emerge quando o disfarce das emoções traz uma incongruência com os valores morais do atendente, podendo gerar, segundo os autores pesquisados, inadaptação ao trabalho, baixa auto-estima, depressão e alienação do trabalho (Ashfort & Humphrey, 1993; Hochschild, 2002; Soares, 2002). Uma atendente compara seu local de trabalho a um navio negreiro disfarçado de transatlântico e diz:
A quem apelar? Senão para Deus! Porque quando se busca socorro em algum de seus superiores, este logo demonstra estar de acordo com o comandante e as demais autoridades do transatlântico. Mesmo que o simples marinheiro [atendente de serviços] esteja certo, ele passa a ser totalmente errado, ou pior, o mais desprezível (carta 6).
Observa-se que os jovens trabalhadores sentem-se tolhidos em sua capacidade de relacionar-se, tanto com clientes, como demonstrado anteriormente, quanto com os próprios colegas de trabalho. A hierarquia não permite diálogos como declara o teleatendente: “É proibido, também, conversar com colegas, mesmo não estando com atendimento em curso” (carta 8). Não há tempo para trocas de informação e experiências, a cooperação é reduzida, prejudicando o melhor desempenho e aumentando a sobrecarga e a tensão:
Foi proibido e-mails internos entre os atendentes, por isso não existe integração entre os funcionários, tornando, assim, o trabalho mais insuportável ainda, pois não é possível relaxar e aumentar seu círculo social (carta 8).
Ao criar uma identificação com seu trabalho, o atendente pode ter maior facilidade em adaptar seus sentimentos, mas, por outro lado, pode internalizar de tal forma as regras que seu bem-estar passa a vincular-se ao sucesso na tarefa. Exaustão emocional e esgotamento surgem quando esse sucesso não é alcançado (Ashfort & Humphrey, 1993). Quanto maior o envolvimento com o trabalho, a transformação da monitoração externa em auto-monitoração, maior o risco de sofrer conseqüências negativas do trabalho emocional (Hochschild, 1983; Wharton, 1993).
...temos que ser objetivos e temos que interromper o cliente. O cliente não pode falar muito, nem reclamar, pois temos que encerrar rapidamente a ligação, e, além disso, a empresa sempre tem a razão, ou seja, se o cliente estiver reclamando da empresa, de algum serviço ou do tempo demorado que ficou aguardando para sua ligação ser atendida, temos que interrompê-lo para atendê-lo rapidamente... (carta 3).
Lee e Asforth (1996) realizaram uma meta-análise que reuniu 61 estudos e observaram importante correlação entre exaustão emocional e fatores organizacionais, como carga de trabalho, pressão e com papéis conflituosos no trabalho e frustração de expectativas.
Grandey, Tam e Brauburger (2002) compararam situações no trabalho de serviços que desencadeavam raiva ou um sentimento de orgulho e satisfação em jovens trabalhadores. O apoio e o reconhecimento de supervisores quanto aos esforços dos trabalhadores é destacado fator relacionado à satisfação. Na empresa estudada, não foi observado esse tipo de suporte positivo, tornando-se mais um fator de risco para a exaustão emocional: “...raramente recebemos elogios, só recebemos advertências” (carta 13).
Considerações finais
Em situações sociais existem regras de sentimentos que são construídas por tradição e tacitamente acordadas entre as partes. No setor de serviços, as regras de sentimentos são, ao contrário, prescritas por uma organização do trabalho rígida - que busca reduzir tempos e aumentar a produtividade -, e pela necessidade de atender a um dos principais requisitos do serviço: lidar com o público. Viu-se que o sofrimento ético, a traição de si, a transgressão de seus valores e dos valores dos outros para atender exigências da organização do trabalho surgem a todo o momento. Efeitos negativos para a saúde dos trabalhadores e para o funcionamento da organização são constatados, entre eles a exaustão emocional e o esgotamento.
Gross e Levenson (1997) realizaram testes para avaliar os efeitos das tentativas de supressão da emoção a partir de pequenos filmes com conteúdos tristes e alegres. Os participantes do estudo, que deveriam esconder suas emoções emergentes a partir das cenas, experimentaram uma ativação autonômica e somática, registrada por diversos indicadores, como freqüência cardíaca, freqüência e profundidade da respiração, temperatura do dedo, condutividade da pele, gestos e alterações faciais etc., diferentemente daqueles que podiam manifestar suas emoções. Isso pode ser explicado pelo fato de ser possível controlar o comportamento, mas não a experiência subjetiva da emoção. Uma das causas de adoecimento e exaustão nas tarefas que requerem trabalho emocional é o fato de que, apesar de a organização tentar controlar o comportamento e a forma de manifestar emoções, ela não consegue alterar a experiência interna, a vivência da emoção verdadeira.
A ativação fisiológica aumentada nas situações de repressão de emoções pode reduzir a percepção sensorial e a integração sensório-motora, o que pode levar à redução de eficiência nos processos cognitivos. Ocorre redução da memória para informações recebidas durante o período de supressão de emoções e, além disso, a inibição é mais uma tarefa a ser cumprida, o que consome a atenção. As ações adaptativas e a interação social também podem ser prejudicadas pela inibição de emoções. Por exemplo, se a raiva por ser mal-tratado é escondida, o agressor poderá não perceber o efeito negativo e não reavaliar seu comportamento.
A incongruência na comunicação pode estar associada a transtornos psíquicos. O sistema imunológico também é afetado. Os efeitos são mais intensos quando a inibição de emoções é crônica, inflexível e insensível às nuances do ambiente social. Por outro lado, o suporte social externo (família, cônjuge, amigos) e no próprio trabalho (tipo de gestão do trabalho) são fatores protetores contra a exaustão emocional (Gross & Levenson, 1997; Richards & Gross, 1999).
Wharton (1993) avaliou os trabalhadores de duas instituições de serviço: um banco e um grande hospital, encontrando 22 das tarefas descritas por Hochschild contendo trabalho emocional. O autor concluiu que realizar um trabalho emocional não é, necessariamente, um motivo de exaustão emocional e esgotamento, mas a falta de controle sobre a tarefa, jornadas longas, menor experiência e tempo de trabalho na atividade de interação com clientes, sim. Quando há autonomia, certo reconhecimento no trabalho, relações sociais recompensadoras e possibilidade de ser autêntico no trabalho, os níveis de desgaste emocional são significativamente menores (Brotheridge & Lee, 2002; Tolich, 1993). Isso implica que não é o trabalho emocional em si que esgota o trabalhador, mas o conjunto de exigência afetiva, contexto da organização e condições em que o trabalho é realizado. Em suma, as atividades que requerem trabalho emocional, como o teleatendimento, não são inexoravelmente patogênicas. Os efeitos negativos dependem das margens existentes para o trabalhador modificar sua atividade de acordo com suas necessidades.
O modelo teórico-metodológico utilizado pela escola do trabalho emocional pode sofrer críticas ao não mencionar os mecanismos regulatórios presentes na atividade humana e por não tratar da singularidade das respostas dos sujeitos às exigências das tarefas. A teoria da atividade de trabalho permitiria incursões mais complexas para entender o que Hochschild (1983) denomina de trabalho emocional.
A análise do trabalho provoca a necessidade de distinguir tarefa de atividade. Recorrendo-se à teoria de Leontiev (1978), a atividade não pode existir senão pelas ações, constituindo-se pelo conjunto de ações subordinadas a objetivos parciais advindos do objetivo geral ou do resultado a ser alcançado. A tarefa é a meta a ser atingida e diz respeito às condições sob as quais essa meta será atingida. A atividade é aquilo que o trabalhador mobiliza de si mesmo para executar a tarefa. Nessa linha, todo trabalho é emocional uma vez que o trabalho é sempre permeado por motivações, preocupações e desejos, empecilhos e dificuldades. Todo trabalho mobiliza investimentos pessoais, pois o trabalho é cenário de construção de identidades por meio das vivências subjetivas e intersubjetivas que a atividade humana possibilita.
Contudo, a noção de regras de sentimentos pode facilitar a construção de técnicas para as investigações das situações contemporâneas no setor de serviços, o qual torna a expressão de emoções passível de compra e venda numa racionalidade que trata os sentimentos humanos como mercadorias.
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Endereço para correspondência
E-mail: lailah.vilela@oi.com.br, adavila@medicina.ufmg.br
Recebido em: 25/07/2007
Revisado em: 27/08/2007
Aprovado em: 26/11/2007