Introdução
No Brasil, a Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ) é uma das modalidades de fomento à pesquisa científica concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) como forma de reconhecimento às pesquisadoras e pesquisadores com destacada produção científica, líderes em seu campo de atuação e destaque entre seus pares. Trata-se do mais relevante fomento destinado aos cientistas do país (Weber et al., 2015). Nesse âmbito, apesar das mudanças recentes em relação à ampliação da participação das mulheres entre os bolsistas PQ, as assimetrias de gênero na ciência brasileira em desfavor das mulheres pesquisadoras persistem em todas as grandes áreas do conhecimento. De modo geral, os homens predominam e se destacam, sobretudo, nas bolsas com maior prestígio da carreira de pesquisador(a) (PQ1A).
Essa situação tendeu a se intensificar dado o cenário de disputa e concorrência interna nas diversas áreas do conhecimento pelo aumento do número de cotas. Nos últimos anos, houve uma forte retração dos investimentos em Ciência e Tecnologia (C&T) no país, com particular impacto nas Ciências Humanas, Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes (CGEE, 2020). Ademais, o clima de incerteza em relação à manutenção das bolsas PQ pelo governo anterior preocupou todas as associações e sociedades científicas, dentre as quais destacam-se a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP).
Além disso, os desequilíbrios de gênero na ciência brasileira têm impactado as mulheres cientistas devido às mudanças no mundo do trabalho acadêmico. No Brasil, desde os anos 1990, foi implementado um conjunto de políticas públicas que se estabeleceram em meio a políticas econômicas orientadas pela lógica da produtividade e da excelência, próprias do projeto neoliberal (Costa & Silva, 2019). Essa configuração, no cenário das universidades e dos programas de pós-graduação brasileiros, tem submetido todos os docentes-pesquisadores ao exercício esgotante de alta produtividade e múltiplas atividades, exigindo que o profissional se dedique exaustivamente ao trabalho, indo além da carga horária na própria instituição. Tal condição, contudo, traz à luz os mecanismos e os modos de operar da ciência moderna que, baseada nas desigualdades de gênero, raça e classe, dentre outros marcadores sociais, impacta de forma particular a rotina de atividades das mulheres pesquisadoras, já que essas também são, na maior parte das vezes, responsabilizadas pelo cuidado doméstico e familiar.
Em estudo anterior, Cunha Souza (2021) destacou as principais problemáticas em relação às mulheres pesquisadoras em nosso país. Constatou-se que as cientistas recebem um menor número de bolsas de pesquisa, ocupam posições mais baixas na hierarquia da política de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I), estão mais vulneráveis a discursos que inferiorizam a capacidade intelectual feminina e a assédios (morais e/ou sexuais) nas instituições universitárias e de pesquisa, estão concentradas em áreas do conhecimento relacionadas ao cuidado e, além disso, sofrem impactos cotidianos, em função do exercício da maternidade e da posição socialmente imposta nas relações conjugais, o que resulta constantemente em sofrimentos e/ou adoecimentos físicos e psíquicos.
Schiebinger (2001) alerta que a condição assimétrica dirigida às mulheres na carreira científica nos países ocidentais relaciona-se à exclusão da intelectualidade dessa parte da população como marca originária da ciência moderna. A participação de mulheres em pesquisas desenvolvidas em laboratórios e observatórios mantidos outrora em ambiente familiar - como o caso de membros de famílias aristocratas europeias - sofre uma interrupção com a criação das universidades, já que nesses espaços o acesso feminino não era permitido. Nas instituições universitárias, entre os séculos XVII e XVIII, defendia-se amplamente o afastamento das mulheres do campo científico em razão de sua considerada menor capacidade científica/intelectual, bem como da incompatibilidade da ciência com o desempenho das tarefas domésticas-familiares, dadas como femininas. Para a autora, esse modo de operar das instituições acadêmicas baseou-se em experiências masculinas, na medida em que se estruturou sobre a “suposição de que os cientistas seriam homens com esposas em casa para cuidar deles e de suas famílias” (Schiebinger, 2001, p. 69).
Porém, o estudo de Harding (1996) demonstrou que, mais do que constituir instituições científicas a partir do descrédito da intelectualidade das mulheres, a ciência moderna constituiu-se pela defesa de princípios como racionalidade, universalidade e objetividade que, construídos a partir de estereótipos de gênero, reproduziram estrategicamente as relações de gênero como instrumento de poder. Segundo Lloyd (1996), um exemplo disso é a naturalização das noções de sujeito, mente, razão, objetividade, transcendência e cultura, que foram identificados como masculinos e valorizados nas produções científicas de diversas áreas do conhecimento.
São inúmeras as produções feministas que denunciam os efeitos dessa realidade para as mulheres cientistas em todo o mundo ocidental. Dentre os estudos que se esforçam para analisar esse fenômeno no âmbito internacional, há cinco principais tendências de pesquisas voltadas a: a) evidenciar os desafios enfrentados pelas pesquisadoras em universidades e demais instituições de pesquisa; b) informar acerca das reproduções dos estereótipos de gênero, raça e classe na origem de diferentes áreas de conhecimentos; c) problematizar a noção de ciências puras; d) analisar os sentidos simbólicos do fazer científico, a partir da crítica literária, da história e da psicanálise; e) compreender o fundamento das crenças sociais, assim como conhecer qual tipo de experiência social constitui o saber científico (Harding, 2019). Entre as tendências evidenciadas na realidade nacional, identificam-se aquelas que abordam: a) a inserção das mulheres na carreira acadêmica-científica; b) a estrutura de gênero na ciência e na tecnologia e o impacto sobre o trabalho e a saúde das mulheres; e c) a trajetória acadêmica e pessoal de pesquisadoras, sobretudo das pertencentes às Ciências da Vida e às Ciências Exatas (Minella, 2013), condição que, por outro lado, impulsiona o desconhecimento do impacto dessa desigualdade no cotidiano de mulheres das Humanidades, de modo geral.
É partindo desse cenário que esse estudo deseja focalizar a realidade das pesquisadoras da Psicologia brasileira, uma vez que, apesar de ser um campo majoritariamente feminino, as mulheres não são reconhecidas como as principais referências teóricas e profissionais. Além disso, somente um pequeno contingente de mulheres dessa área se direciona à carreira acadêmico-científica, sobretudo se esse quantitativo é comparado à quantidade de egressas que optam pelo campo profissional da Psicologia no Brasil (Cunha Souza, 2021). Por isso, objetivou-se conhecer os desafios e obstáculos enfrentados por mulheres bolsistas de produtividade em pesquisa (PQ) do CNPq da área de Psicologia. A partir de um mapeamento sociodemográfico e acadêmico-científico, pretendeu-se conhecer a realidade dessas mulheres, identificar o conjunto de atividades desempenhadas e os aspectos contextuais e institucionais associados ao seu desempenho, com vistas a compreender seus rebatimentos no aprofundamento das desigualdades de gênero, raça e classe na ciência brasileira.
Material e Métodos
Utilizou-se uma abordagem multimétodo desenvolvida em duas etapas. Inicialmente, buscamos traçar o perfil sociodemográfico e acadêmico-científico das pesquisadoras PQ da Psicologia por meio de um formulário eletrônico. Para tanto, trabalhamos com uma amostra não-probabilística de 85 bolsistas PQ/CNPq dentre as 204 cadastradas no sistema em 2020. Essas pesquisadoras responderam ao questionário online composto de questões abertas e fechadas. Na segunda etapa, buscamos discutir o conjunto de atividades realizadas pelas pesquisadoras ocupantes das bolsas PQ da Psicologia, por meio de entrevistas remotas com 24 pesquisadoras, pertencentes ao conjunto amostral de 85 bolsistas PQ que demonstraram interesse em participar. Esse estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), sob o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE nº 32033620.0.0000.5537 de acordo com o parecer nº 4.072.688.
Resultados e Discussões
Perfil sociodemográfico das bolsistas PQ/CNPq da Psicologia
Como pode ser observado na Tabela 1, as 85 mulheres bolsistas PQ em Psicologia são moradoras de todas as regiões do país, com destaque para a região Sudeste. Quanto à faixa etária, as participantes se concentram em um largo intervalo que abrange dos 41 a 70 anos (81,1%), representando aquelas mulheres com carreiras já consolidadas na área e em plena fase produtiva, diferentemente de outras mais jovens, entre 20 e 30 anos, que estão iniciando; das que têm entre 31 e 40 anos e estão em fase de consolidação; e daquelas com idades entre 71 e 80, que vivenciam a finalização da carreira. Dentre as 85 pesquisadoras, apenas 16 já estão aposentadas. A maior parte mantém relacionamentos conjugais (74,1%), sejam casadas (58,8%) ou em uniões estáveis (15,3%).
Tabela 1: Distribuição das bolsistas PQ/CNPq da Psicologia por faixa etária, estado civil, identificação étnico-racial, localização de residência e região do país (n, frequência, % porcentagem)
| N | % | |
|---|---|---|
| Faixa etária | ||
| 20 a 30 | 4 | 4,7 |
| 31 a 40 | 8 | 9,4 |
| 41 a 50 | 24 | 28,2 |
| 51 a 60 | 25 | 29,4 |
| 61 a 70 | 20 | 23,5 |
| 71 a 80 | 3 | 3,5 |
| Não informou | 1 | 1,2 |
| Estado civil | ||
| Casada | 50 | 58,8 |
| Divorciada | 6 | 7,1 |
| Separada | 3 | 3,5 |
| Solteira | 11 | 12,9 |
| União estável | 13 | 15,3 |
| Viúva | 2 | 2,4 |
| Raça/Etnia | ||
| Branca | 70 | 82,35 |
| Parda | 9 | 10,59 |
| Preta | 4 | 4,71 |
| Amarela | 1 | 1,18 |
| Outra | 1 | 1,18 |
| Área de residência | ||
| Urbana | 84 | 98,8 |
| Rural | 1 | 1,2 |
| Renda Salarial | ||
| 3 a 6 salários-mínimos | 4 | 4,7 |
| 6 a 9 salários-mínimos | 2 | 2,4 |
| 9 a 12 salários-mínimos | 18 | 21,2 |
| 12 a 15 salários-mínimos | 25 | 29,4 |
| 15 a 18 salários-mínimos | 14 | 16,5 |
| 18 a 21 salários-mínimos | 14 | 16,5 |
| Mais de 21 salários-mínimos | 8 | 9,4 |
| Região do país | ||
| Nordeste | 14 | 16,47 |
| Norte | 2 | 2,35 |
| Centro-oeste | 7 | 8,24 |
| Sudeste | 34 | 40 |
| Sul | 14 | 16,74 |
| Não informou | 14 | 16,74 |
Quanto ao perfil étnico-racial, há predominantemente mulheres brancas (82,35%) do que mulheres pretas (4,71%), pardas (10,59%) e amarelas (1,18%). Não houve nenhuma referência a raças/etnias indígenas. Quase a totalidade reside em centros urbanos. Somente uma mora em área rural, na região Sul do país. Em termos da renda mensal, de uma forma geral, a maioria (n = 79) ganha acima dos 9 salários-mínimos, com média em torno de 12 a 15 (n = 25; 29,4%). Contudo, registram-se extremos, com 6 pesquisadoras que recebem menos de 9 salários-mínimos e apenas 8 que ganham acima dos 21. As fontes prioritárias da renda mensal das pesquisadoras é o salário (ou aposentadoria), juntamente com a bolsa de produtividade em pesquisa. Somente 8 pesquisadoras mencionaram o recebimento de honorários pela prestação de serviços profissionais. Outras complementam a renda com o recebimento de aluguel de imóveis. A maioria (n = 50, representando 58,8%) compartilha a responsabilidade financeira da família com uma companheira ou companheiro e/ou com amigas(os). Porém, 19 (22,4%) são as únicas responsáveis financeiras da família e 16 (18,8%) são as principais responsáveis. Em relação à região do país, notamos que há mais bolsistas PQ nas regiões Sudeste e Sul (n = 48, ou 56,74%). Sobre esse aspecto, ao analisar a distribuição da bolsa por milhão de habitantes da região, destaca-se que a região Sul é a que concentra maior número de pesquisadoras, e o eixo Norte-Nordeste tem o menor número de bolsas.
Perfil acadêmico-científico das bolsistas PQ/CNPq da Psicologia
Quanto ao perfil acadêmico-científico, 72 (84,71%) são graduadas em Psicologia, grande parte em instituições públicas e/ou confessionais. Pertencem a diferentes gerações de psicólogas e psicólogos no Brasil. Observa-se cinco blocos distintos em relação ao ano de conclusão: as décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000 e o período entre 2010 e 2016. As demais são graduadas em outras áreas do conhecimento, tais como Comunicação Social e Administração, Medicina, Jornalismo, Farmácia & Bioquímica, Medicina Veterinária e Filosofia. Esse cenário repete-se na formação de pós-graduação: 55 (64,7%) cursaram mestrado e 52 (61,2%) fizeram o doutorado em Psicologia, seja em instituições nacionais, seja no exterior (6/mestrado e 14/doutorado), com destaque para as universidades europeias. Nota-se, em relação às instituições brasileiras, que os programas de pós-graduação da região Sudeste em nível de mestrado e doutorado tiveram números maiores de egressos, seguidos dos da região Sul. Em relação ao período de conclusão do mestrado, 30 mulheres (35,29%) concluíram entre 1990 e 1999; 39 (45,88%) finalizaram o curso de doutorado entre os anos de 2000 e 2009.
Das 85 pesquisadoras, 49 (em nível de mestrado) e 44 (em nível de doutorado) obtiveram recursos públicos em forma de bolsa para realizar seus estudos de pós-graduação por parte de instituições tais como a Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e/ou as Fundações Estaduais de Pesquisa. Poucas contaram com apoio de órgãos internacionais (2 no mestrado e 2 no doutorado) e uma considerável parcela custeou os estudos com seus próprios recursos, em especial, o doutoramento (n = 20). A maioria (66, consistindo 77,6%) não fez doutorado sanduíche no exterior, apenas 11 registraram essa modalidade de doutoramento. Todas que a realizaram contaram com o apoio das instituições de financiamento à pesquisa e foram para instituições de ensino na Europa ou Estados Unidos. Quanto ao estágio pós-doutoral, a situação inverte-se, pois 58 das 85 pesquisadoras (68,24%) fizeram pós-doutoramento em Psicologia ou em áreas afins, sendo que 14 delas já o realizaram duas vezes e 5, três ou mais vezes. As pesquisadoras fizeram seus estágios pós-doutorais no Brasil, Estados Unidos, França, Portugal, Inglaterra, Canadá, Espanha, Itália, Suécia e Dinamarca. Dessas, 41 contaram com apoio financeiro dos órgãos de fomento brasileiros ou internacionais, sendo que 37 delas receberam auxílio da CAPES, CNPq e/ou Fundações Estaduais de Pesquisa e 4 de órgãos internacionais. Contudo, 8 mulheres custearam seus estudos em nível de pós-doutorado.
Na Tabela 2, é possível observar, no que diz respeito à atuação docente e de pesquisa em instituições de ensino superior, que nenhuma bolsista ingressou no magistério na década de 1960 e somente 13 na década de 1970. O grande contingente de professoras iniciou a partir da década de 1990, ampliando-se no início dos anos 2000, o que corresponde a 50 pesquisadoras. Atualmente, são professoras de Instituições de Ensino Superior (IES) públicas (69,4%), confessionais (10,6%) ou privadas (7,1%). Repete-se, assim, o mesmo padrão observado na análise geral das 204 pesquisadoras da psicologia, bolsistas do CNPq, cuja concentração alcança 145 (71,08%) em instituições públicas, 41 (20,10%) em confessionais e 18 (8,82%) em privadas. Ocupam diferentes níveis da carreira em suas respectivas instituições, com registro de uma quantidade considerável de Titulares (30,59%). Das 85 participantes, 71 indicaram participar de um ou mais Programas de Pós-Graduação em Psicologia ou área afins do Sudeste; 14 do Sul; 14 do Nordeste; 07 do Centro-Oeste e 02 do Norte do país.
Tabela 2: Período de início da atuação docente, tipo de instituição, classe e nível atual da carreira, subárea, modalidade de bolsa, ano de ingresso no sistema PQ e tempo atual da bolsa das bolsistas PQ* do CNPq da Psicologia.
| N | % | |
|---|---|---|
| Início da atuação docente | ||
| 1970 a 1979 | 13 | 15,29 |
| 1980 a 1989 | 11 | 12,94 |
| 1990 a 1999 | 15 | 17,65 |
| 2000 a 2009 | 27 | 31,76 |
| 2010 a 2018 | 8 | 9,41 |
| Não informou | 11 | 12,94 |
| Tipo da instituição | ||
| Pública | 59 | 69,4 |
| Privada | 6 | 7,1 |
| Confessional | 9 | 10,6 |
| Não informou | 11 | 12,9 |
| Modalidade PQ | ||
| PQ-1ª | 8 | 9,4 |
| PQ-1B | 3 | 3,5 |
| PQ-1C | 4 | 4,7 |
| PQ-1D | 12 | 14,1 |
| PQ-2 | 39 | 45,9 |
| PQ-SR | 5 | 5,9 |
| Não informou | 14 | 16,5 |
| Ano de ingresso sistema PQ | ||
| 1981 a 1990 | 2 | 2,4 |
| 1991 a 2000 | 12 | 14,1 |
| 2001 a 2010 | 17 | 20 |
| 2011 a 2020 | 39 | 45,9 |
| Não informou | 15 | 17,6 |
| Tempo atual da bolsa | ||
| Menos de 1 ano | 5 | 5,9 |
| 1 a 3 anos | 31 | 36,5 |
| 4 a 6 anos | 13 | 15,3 |
| 7 a 9 anos | 7 | 8,2 |
| 10 a 12 anos | 10 | 11,8 |
| 14 a 16 anos | 2 | 2,4 |
| 17 a 19 anos | 1 | 1,2 |
| Mais de 20 anos | 2 | 2,4 |
| Não informou | 14 | 16,5 |
Nota. *PQ = Produtividade em pesquisa.
A maioria das respondentes encontra-se na modalidade PQ-2 (45,9%), refletindo o cenário geral da área, cujo percentual atinge 57,8% das bolsas (118 das 204). Quase a metade (39, compondo 45,9%) ingressou no sistema PQ entre os anos de 2011 e 2020, ou seja, tem menos de 10 anos de bolsa. Porém, fica evidente que a maioria ingressou no sistema PQ/CNPq após 2001, coincidindo com o período de maiores investimentos federais na política de C&T no país. Quanto à vinculação às subáreas da Psicologia no sistema PQ/CNPq, observa-se que as bolsistas se concentram na Psicologia Social com 17 bolsistas (20%), seguida das subáreas Tratamento e Prevenção Psicológica com 14 pesquisadoras (16,47%), Psicologia do Desenvolvimento Humano com 11 bolsistas (13%) e Psicologia do Trabalho e Organizacional com 8 bolsistas (9,41%).
Observando-se o perfil das bolsistas PQ/CNPq da Psicologia, é possível concluir que é constituído majoritariamente por mulheres brancas, cis, com idade entre 51 e 60 anos, graduadas e pós-graduadas em Psicologia, sobretudo em instituições localizadas nas regiões Sul e Sudeste, auxiliadas financeiramente durante a formação da pós-graduação e professoras de IES públicas. Em sua maioria, são pesquisadoras PQ-2, com menos de 10 anos de bolsa e renda entre 12 e 15 salários-mínimos, que vivem em relações conjugais, heterossexuais, e compartilham as responsabilidades financeiras da casa.
Esses resultados, considerando a amostra analisada, demonstram que há uma sub-representação de mulheres negras, indígenas, trans, lésbicas e nordestinas no topo da carreira científica da Psicologia brasileira. Cabe lembrar que a Psicologia, como ciência e profissão, esteve historicamente marcada pelo elitismo e pelo descompromisso em relação às desigualdades sociais e raciais (Mello, 1975; Yamamoto & Oliveira, 2010), sendo exercida pela população branca (Bock, 2003; Lhullier, 2013). Segundo Dimenstein (2000), a cultura profissional das psicólogas e psicólogos no Brasil foi forjada por um ideário individualista, próprio da constituição do indivíduo moderno, que já foi situado como estrutura de privilégio do homem europeu, branco, heterossexual (Harding, 1996; 2019) e cisgênero (Vergueiro, 2016).
Atuação acadêmica-científica: a questão de gênero no âmbito da excelência científica
Sobre o conjunto de atividades - as quais fazem parte das expectativas referentes à excelência científica - que as pesquisadoras desenvolvem, verificou-se que, das 85 bolsistas PQ/CNPq, a maioria (45, constituindo 53%) ocupa ou ocupou atividade de direção, seja no âmbito da graduação, seja na pós-graduação. Das 45 que ocupam ou ocuparam funções administrativas, 25 (62,2%) afirmaram que sua atuação administrativa foi na graduação, bem como na coordenação de programas de pós-graduação.
Em relação às atividades de ensino, as pesquisadoras ministram ou ministraram aulas na graduação (69, equivalente a 81,18%) e na pós-graduação (71, ou 83,53%) nos últimos dez anos. A maioria está vinculada à graduação e à pós-graduação em Psicologia e, além disso, contribui em pós-graduações de outras áreas do conhecimento. Das 71 vinculadas à pós-graduação, todas são docentes no curso de mestrado e 67 delas (94,37%) atuaram ou atuam no mestrado e doutorado. Quanto à experiência na formação de recursos humanos para a pesquisa, constatamos que 71 delas registram orientações concluídas no mestrado, 66 no nível do doutorado, 9 no mestrado profissional, 44 no pós-doutorado e 63 na iniciação científica.
No que diz respeito à inserção na área, identificamos que a maioria participa de redes nacionais e/ou internacionais de pesquisa (69 pesquisadoras, ou 81,18%); 61 (71,76%) coordenam ou coordenaram Grupos de Trabalho (GTs) vinculados à ANPEPP; 63 (74,12%) coordenam/coordenaram e/ou participam/participaram de grupos de pesquisa e/ou núcleos de excelência vinculados ao Diretório de Bases do CNPq; 69 bolsistas (81,18%) afirmam coordenar ou ter coordenado projetos científicos financiados, o que indica que passaram por uma concorrência nacional ou internacional. Das respondentes, 34 (40%) participam/participaram de diretoria de Sociedade Científica, 26 (30,59%) foram/são membros de Comissões de Avaliação na Área, 28 (32,94%) foram/são membro de Comitê de Assessoramento de agência de fomento, 59 (69,41%) participaram/participam de editoria de periódicos qualificados e 64 (75,29%) participaram/participam de Conselho editorial. Quanto à participação em bancas de defesa de dissertação e/ou teses, 70 (82,35%) participaram de bancas de mestrado e doutorado, 62 (72,94%) participaram de bancas de concurso público para docente, 66 (77,65%) participaram da organização de eventos científicos nacionais e/ou internacionais e 70 (82,35%) apresentaram trabalhos em eventos científicos nacionais e/ou internacionais.
No que diz respeito à produção científica, verificamos que 71 (83,53%) publicaram artigos científicos e/ou capítulos de livro, 60 (70,59%) elaboraram produtos técnicos na área, 71 (83,53%) foram pareceristas ad hoc para revistas científicas. Sobre esse aspecto, os dados chamaram atenção para o fato de que todas as participantes registraram emissão de pareceres. Para as pesquisadoras PQ, a elaboração de pareceres constitui uma das principais demandas atuais para pesquisadoras e pesquisadores de excelência.
Ademais, para se manter no topo da carreira científica em Psicologia, as pesquisadoras precisam exercer variadas atividades, sobretudo, no que diz respeito a três eixos: a) publicação científica; b) formação de recursos humanos para a pesquisa científica; e c) inserção na área. Para a realização dessas atividades, a maioria das pesquisadoras PQ (60, compondo 70,59%) mencionou trabalhar tanto na universidade quanto em casa. No cenário anterior à pandemia da Covid-19, grande parte ministrava aulas, realizava orientações e participava de reuniões administrativas na própria universidade, atividades que passaram a fazer parte da rotina doméstica. A produção científica, por outro lado, é exercida principalmente em casa por ser uma atividade que exige maior concentração e isolamento. Segundo uma das pesquisadoras, “a parte de aulas, orientações e reuniões de Colegiado e de Departamento são feitas na Universidade. A parte de produção é feita em casa por ser um ambiente com menos interrupções” (Bolsista PQ, nº 04, formulário eletrônico).
A flexibilidade da carga horária de trabalho é um dos principais aspectos positivos do cotidiano acadêmico-científico. Para a bolsista PQ (nº 09, questionário eletrônico), a vantagem encontra-se na possibilidade de conciliação com a sua principal função, a maternidade:
Como mulher eu sempre tive clareza que ia ser mãe, né? Então, pensei: tá aí uma atividade que é conciliável com a maternidade. Eu posso aumentar o número de horas, eu posso diminuir, eu vou ter férias, eu vou ter intervalos que vão coincidir com as férias das crianças (n° 09).
Outro aspecto positivo destacado ao serem questionadas sobre a realização do trabalho acadêmico-científico é ser esse um “trabalho estimulante, realização pessoal com os alunos, alguma liberdade na escolha de alguns horários de trabalho” (Bolsista PQ nº 04, questionário eletrônico).
Na carreira docente e de pesquisadora, por outro lado, há aspectos negativos que impactam, sobremaneira, na rotina das bolsistas PQ. A excessiva carga horária destinada ao trabalho administrativo e burocrático, bem como a precarização do trabalho docente, são as principais desvantagens da carreira acadêmica destacadas pelas participantes: “. . . excessivas horas de trabalho, dificuldade no estabelecimento de dias de descanso e de limites de horário para o trabalho . . . . Comparativamente com outros profissionais com nível de formação, o salário do professor universitário deveria ser melhor” (Bolsista PQ nº 20, questionário eletrônico). Para outra bolsista, essas condições têm um impacto direto na vida pessoal, posto que:
a quantidade de horas de dedicação é muito elevada, exigindo trabalhar à noite, no fim de semana e, com isso, tem impactos na vida familiar, pois para dar conta (e mesmo assim, sempre se está devendo algum parecer, ou leitura para alguém) é difícil dentro daquelas 40h . . . (Bolsista PQ, nº 73, questionário eletrônico).
Assim, as pesquisadoras PQ indicam o quanto as atividades acadêmicas ocupam lugar de destaque no seu cotidiano e que o tempo de permanência na universidade não é mais suficiente para o cumprimento de todas as atividades, requerendo uma ampliação do tempo de dedicação ao trabalho. A intensificação do trabalho das docentes e pesquisadoras está associada às transformações ocorridas no sistema de educação superior brasileiro nas últimas décadas. De acordo com Mancebo (2010), pode-se identificar uma crescente privatização do sistema de educação superior e de pesquisa, pelo menos desde a Lei da Reforma Universitária de 1968, posta em vigor em meio à ditadura militar. Contudo, é a partir das décadas de 1990 e 2000 que se inicia no Brasil “um consistente processo de redução dos gastos públicos federais para o conjunto das instituições federais de ensino superior (IFES) e se desencadeia a retomada da privatização desse nível de ensino” (Costa & Silva, 2019, p. 12), aplicando a máxima das reformas neoliberais.
A implementação das políticas neoliberais nas universidades brasileiras e, principalmente, nos programas de pós-graduação, implicou em um modo de organização do trabalho docente e de pesquisa que tem gerado profundos impactos no cotidiano desses profissionais (Costa & Silva, 2019). Efetivamente, em relação a(o) docente-pesquisador(a), compõe-se uma condição de trabalho estruturada pela exigência despropositada da produção acadêmico-científica que provoca sobrecarga de atividades, interferindo de forma fundamental no tempo que poderia ser dedicado às atividades pessoais e/ou familiares (Lopes, 2006).
Apesar dessa condição, a flexibilidade em relação à carga horária e à natureza multifacetada do trabalho acadêmico-científico se constitui como aspecto positivo no dia a dia das mulheres pesquisadoras da Psicologia, sobretudo, por possibilitar a conciliação do trabalho na universidade e aquele despendido junto à família e maternidade. Em seu estudo, Santos (2016) identificou que mulheres na construção das suas carreiras se defrontam com a necessidade de articular as exigências da profissão com as responsabilidades familiares. Sabe-se que a ciência moderna possui uma cultura centrada em valores “masculinos”, ou seja, envolve compromissos em tempo integral com a universidade, assim como se pauta em relações competitivas e produtivas. Ao se propor alcançar o nível de excelência científica, devido à sobrecarga de trabalho doméstico e científico, as mulheres, frequentemente, acabam tendo menos disponibilidade e tempo para investir na carreira. Os efeitos disso são visíveis, por exemplo, no acesso desigual de homens e mulheres aos recursos destinados à produção de conhecimento e à pesquisa científica (Santos, 2012; 2016) e na diferença existente entre mulheres negras e indígenas em comparação às mulheres brancas quando se trata de atingir patamares de excelência científica.
Para além da psicologia clínica: a motivação pela carreira científica em Psicologia
A maioria das bolsistas PQ realizou a graduação entre os anos de 1990 e 1999 e a pós-graduação entre 2000 e 2009. Nos períodos indicados, a Psicologia clínica tradicional tinha um peso importante na formação em Psicologia em todo território brasileiro, em razão da demasiada valorização das psicólogas e psicólogos como profissionais liberais e autônomos (Meira & Nunes, 2005; Dimenstein, 2000; Mello, 1975). Assim, ao serem questionadas a respeito das motivações para seguirem a carreira acadêmico-científica, muitas das pesquisadoras apontaram que essa trajetória não se constituiu como primeira opção, porém, em razão das oportunidades acessadas na própria formação e da aprovação em concursos em universidades públicas do país, abriu-se uma realidade alternativa rumo à prática privada da psicologia clínica.
Por outro lado, identificou-se que outras pesquisadoras escolheram seguir carreira na universidade com vistas à empregabilidade. A bolsista PQ (entrevista nº 2) afirmou que, apesar de pensar inicialmente em ser psicóloga clínica, identificou na carreira acadêmica uma diversidade de atividades que eram do seu interesse e ainda promoviam uma estabilidade financeira, aspecto almejado, principalmente, em razão de sua trajetória pessoal.
A minha motivação pela psicologia foi bem pessoal, está relacionada a elementos da minha história . . . . Eu sou filha de agricultores familiares, eu já fui cortadora de cana, já fui operária de fábrica, e eu via na carreira acadêmica uma estabilidade . . . eu inclusive acho financeiramente mais interessante do que psicólogo clínico . . . (n° 02).
Entre aquelas que decidiram se profissionalizar no âmbito acadêmico-científico, verificou-se que a influência de familiares e amigas com acesso à educação de nível superior, bem como o estímulo de professoras, sobretudo, orientadoras de pós-graduação e colegas já inseridas no sistema PQ/CNPq, foram determinantes pela escolha da área científica da Psicologia e pela busca pelos altos níveis de excelência científica. Conforme afirmou uma das participantes: “mulheres nessas posições são inspirações, mostram alternativas e possibilidades. Elas abrem um campo de possibilidade” (Bolsista PQ, entrevista nº 22).
Todavia, alcançar o nível de reconhecimento entre os pares na pesquisa científica, mediante o recebimento da bolsa PQ/CNPq, trata-se, para as participantes do estudo, de uma íntima relação entre o privilégio e a responsabilidade. Privilégio porque, dadas as adversidades impostas às mulheres nas diversas áreas de conhecimento, ter uma trajetória profissional reconhecida é como receber um reconhecimento para seguir no campo da ciência. Além disso, obter a bolsa de produtividade em pesquisa se estabelece como privilégio, visto que “ainda que não proporcionalmente, é complementação salarial” (Santos & Kind, 2016, p. 227), diante dos baixos salários (Mancebo, 2010) e do atual cenário de retração dos investimentos em ciência e tecnologia no país. Por outra ótica, se manter na esfera da excelência científica da Psicologia brasileira requer uma contínua produção intelectual qualificada visando padrões de avaliação, cada vez mais submetidos às exigências de internacionalização do conhecimento (Santos & Marques, 2018).
Para a pesquisadora PQ (entrevista nº 4), no que se refere à relação entre privilégio e responsabilidade de ser bolsista PQ, as diferenças educacionais entre as e os profissionais que alcançam a excelência científica e a maioria da população são abissais. As desigualdades e a falta de oportunidades educacionais na sociedade brasileira, desde a educação básica até o ensino superior e, consequentemente, ao sistema de Ciência e Tecnologia do país, é um fator de constante questionamento e preocupação, como destacado a seguir:
Acho que é um privilégio porque, de qualquer forma, é uma complementação salarial, uma vez que nossos salários nunca foram de fato ajustados . . . . Ademais, é uma responsabilidade, porque é um país muito pobre de autonomia tecnológica, científica, e (porque) é uma desigualdade profunda do ponto de vista social, abissal, que faz com que a distância entre nós bolsistas PQ e as pessoas de uma grande maioria nesse país, que sequer consegue ler e escrever, seja absurda.
Sobre tais desigualdades, cabe destacar que, no Brasil, o processo de escolarização da população negra se desenvolveu e se desenvolve a partir de assimetrias que se ampliam à medida que se avança nos níveis educacionais e de condução das atividades de C&T. Embora o acesso aos anos iniciais do ensino fundamental tenha sido praticamente universalizado no Brasil, os anos finais já apresentam uma diferença significativa entre brancos e negros (90,4% e 84,4%, respectivamente), que se amplia no ensino médio (76,4% e 64,8%), cresce ainda mais no ensino superior (36,1% e 18,3%) (IBGE, 2019) e se torna drástica no âmbito da excelência científica. Menos de 30% bolsistas PQ/CNPq são negras e negros. Olhar mais detidamente para essa questão é fundamental, pois as atuais exigências educacionais para alocação no campo profissional, incluindo na ciência, estabelece-se a partir de um filtro de natureza racial (Carneiro, 2011).
Assim, tratar da participação de mulheres e de suas trajetórias acadêmico-científicas requer observação das assimetrias existentes entre homens e mulheres, mas também das desigualdades persistentes entre as diferentes representantes do gênero feminino (Minella, 2013). Como abordado anteriormente, o perfil majoritário das bolsistas PQ da Psicologia é de mulheres brancas, que fizeram escolha pela área científica da Psicologia e pela bolsa de produtividade em pesquisa, estimuladas por pessoas que também tiveram acesso à educação de nível superior, contando com o estímulo de orientadoras de pós-graduação e colegas já inseridas no sistema PQ/CNPq. Essa realidade revela a desvantagem vivida por pesquisadoras negras e indígenas, sub-representadas na Psicologia brasileira e, na maioria das vezes, oriundas de diversas gerações de famílias empobrecidas e sem acesso à educação e outras políticas públicas, principalmente quanto aos níveis acadêmicos mais elevados. Muitas delas fazem parte da primeira geração com nível superior e carreira na C&T. Afinal, como alerta Anzaldúa (2000, p. 229):
os obstáculos enfrentados pelas mulheres negras e demais não são os mesmos das mulheres brancas, embora tenhamos muito em comum. Não temos muito a perder - nunca tivemos nenhum privilégio - é improvável que tenhamos amigos nos postos da alta literatura.
Em outras palavras, a condição de mulheres não-brancas no ensino superior e na excelência científica em Psicologia remonta à origem da própria área de conhecimento que se desenvolveu a partir de preceitos androcêntricos, sexistas e classistas (Lino & Mayorga, 2020). Além disso, as disciplinas das ciências sociais e humanidades, continuadamente, arrastam a herança colonial e reforçam a hegemonia cultural, econômica e política do Ocidente em todas as instituições universitárias e de pesquisa latino-americanas (Lander, 2000).
Excelência científica na Psicologia brasileira: sobre a performance exigida das pesquisadoras PQ/CNPq
Ao serem questionadas sobre as expectativas existentes quanto à performance de mulheres e homens no âmbito da excelência científica em Psicologia (PQ/CNPq), constatou-se posicionamentos divergentes entre as respondentes. Para uma bolsista (entrevista nº 01), o desempenho de cientistas no topo da carreira acadêmica resulta de habilidades intrínsecas ao perfil do ou da profissional e, portanto, independe de questões contextuais. Para ela,
Os homens sempre tiveram um perfil mais intelectualizado na Psicologia do que as mulheres, as mulheres iam muito para a clínica e ficavam num perfil menos identificado com o estudo e a pesquisa . . . . É uma característica mais masculina do que feminina.
O posicionamento apresentado pela referida pesquisadora em termos do perfil de mulheres e homens no campo científico e profissional da área revela o caráter a-histórico e universalista (ainda atual) característico da origem e do desenvolvimento da Psicologia como ciência e profissão (Siqueira, 2008). Saavedra e Nogueira (2006) destacam que a trajetória científica da Psicologia esteve voltada a investigações que buscaram, com base em crenças convencionais e essencialistas de masculinidade e feminilidade, descrever as diferenças entre homens e mulheres.
Sobre isso, outras entrevistadas acreditam que, embora as expectativas no que diz respeito à performance de mulheres e homens na excelência científica em Psicologia brasileira sejam as mesmas, a existência de condições sociais, culturais e de trabalho desiguais para esses dois gêneros resulta em efeitos diretos no desempenho e no reconhecimento de cientistas de alta performance (PQ/CNPq) na área. Elas compreendem, em primeiro lugar, que o sistema avaliativo da ciência brasileira, incluindo o da Psicologia, parte de uma concepção de igualdade entre pesquisadoras e pesquisadores que não existe. Isso implica uma invisibilidade das diferentes cobranças sociais e laborais destinadas às mulheres e aos homens na realidade brasileira (Bolsista PQ, entrevista nº 22). Ou seja, sem considerar as condições fisiológicas que envolvem a geração e o nascimento dos filhos (no caso de mulheres cisgêneras), bem como a responsabilização pelo cuidado desses indivíduos e, por vezes, de outros parentes, a organização do trabalho acadêmico e científico nos moldes atuais penaliza as mulheres e as mantém em desvantagem em diferentes estágios da vida. Dessa forma, a mesma exigência feita para mulheres e para homens reforça as imensas desigualdades de gênero existentes.
Em segundo lugar, ainda que as pesquisadoras da Psicologia alcancem e mantenham uma alta produtividade acadêmico-científica, algumas bolsistas afirmam perceber no dia a dia acadêmico um menor reconhecimento quando comparado àquele recebido pelos homens. Tais questões oferecem pistas de como a estrutura da ciência psicológica brasileira, assim como das outras áreas do conhecimento, como as Ciências da Vida (CV), Engenharias, Ciências Exatas e da Terra/ECET; e demais disciplinas das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras e Artes (CHSSALLA), há o privilégio do modelo “masculino” de carreira, ou seja, todas as áreas operam a partir da valorização de certas atividades e características, que, em certa medida, dificultam, restringem e direcionam a participação das mulheres na ciência (Velho, 2006; Tabak, 2002).
A análise que toma por base as epistemologias feministas tem continuadamente alertado que a conjuntura do sistema científico é resultado do caráter dualista e excludente adotado pela ciência moderna (Lloyd, 1996; Harding, 1996). Os esforços de teóricas feministas demonstram que essa dicotomia estabelecida entre o humano (dotado de razão) e a natureza (objeto a ser dominado pela técnica científica) tem por base a relação hierárquica de poder entre o feminino e o masculino. À vista disso, todas as áreas de conhecimento, incluindo a Psicologia, em alguma medida reproduzem em suas teorias e técnicas certas noções de sujeito, mente, razão, objetividade e transcendência associadas aos homens e, por outro lado, noções de natureza, subjetividade e sensibilidade relacionadas às mulheres (Lloyd, 1996). Certamente, a base da ciência ocidental estabeleceu-se como o principal obstáculo à participação das mulheres como profissionais nas instituições científicas ao longo dos anos nos países modernos ocidentais.
Contudo, analisar a participação e os atuais obstáculos enfrentados pelas mulheres no campo científico, sem considerar a íntima relação entre modernidade e colonialidade, conduzirá à compreensão de apenas um dos aspectos discriminatórios do fazer científico: o androcentrismo (Santos, 2018). Cabe complexificar essa análise, pois na dicotomia humano (dotado de razão) x não-humano (natureza) há implícito um modelo de humanidade, com lócus de enunciação que atende por homem/mulher, branco/branca, europeu/europeia, civilizado/civilizada, burguês/burguesa (Lugones, 2014).
Essa dicotomia é uma marca normativa de um padrão de poder que, baseado na ideia de raça, estabeleceu-se como “uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que, desde então, permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo” (Quijano, 2005, p. 117). Esse último, como racionalidade da modernidade e da ciência, estabeleceu o mundo atual, produziu subjetividades e os modos de trabalho a partir da percepção de que sujeitos brancos, autodenominados superiores, detêm o poder de disciplinar os corpos e aniquilar os saberes de sujeitos não-brancos, considerados inferiores. Esse padrão dicotômico traz consequências drásticas para a vida de mulheres não brancas, negras e indígenas. Assim, uma entrevistada constata que, para além das exigências e expectativas que se impõem de diferentes formas para mulheres e homens na Psicologia, há um hiato quanto à legitimidade e reconhecimento de pesquisadoras não-brancas na academia brasileira.
A universidade está fechada por conta da quarentena (pandemia da Covid-19). . . . uma aluna, que é negra, me pediu autorização para colocar um material de pesquisa dela na minha sala. . . . Ela me contou quando veio trazer as chaves de volta: “foi tranquilo na universidade, bastou chegar lá, me identificar, mostrar minha carteirinha, dizer para onde eu ia, preencher um formulário e entrei” . . . . Eu fui no dia seguinte na universidade e eu entrei na universidade, ninguém me pediu nada, ninguém perguntou meu nome, eu entrei e saí como se nada tivesse acontecendo (Bolsista PQ, entrevista nº 08).
A dura realidade que se impõe às mulheres negras no campo acadêmico-científico de todas as áreas de conhecimento está relacionada ao processo de subalternização que as vitimou com a implementação do padrão binário, branco, ocidental, heterossexual e burguês, que definiu as relações entre as sujeitas e sujeitos nos territórios colonizados. Segundo Lugones (2008), a partir da intrusão europeia colonial, as mulheres foram afastadas do âmbito político, resultando na perda radical do poder político e na redução de suas decisões e posições ao ambiente doméstico. Certamente, as marcas desse processo de afastamento das mulheres não-brancas do espaço das decisões públicas e da captura de suas existências exclusivamente à ordem doméstica-privada repercutem nas condições de vida doméstica-familiar e de trabalho das mulheres negras e indígenas até os dias de hoje.
Em outros termos, sem a análise das sequelas da colonialidade, dificilmente compreenderemos que, embora a responsabilidade do trabalho acadêmico-científico comporte uma condição de trabalho semelhante para todas as pesquisadoras e os pesquisadores e, além disso, que a responsabilidade do trabalho doméstico esteja historicamente associada a todas as mulheres, as mulheres brancas e não-brancas experimentam esse cenário de forma absolutamente distinta. Então, para construir um sistema de ciência mais justo, é imprescindível desmontar os distintos obstáculos - historicamente construídos - para a entrada e permanência de mulheres na C&T.
Considerações finais
As pesquisadoras PQ/CNPq da Psicologia enfrentam variados desafios para sustentar uma expectativa de alto padrão de excelência científica. Os principais relacionam-se ao cenário de disputa e concorrência interna às diversas áreas do conhecimento, o que têm se acirrado nos últimos anos com a retração dos investimentos em C&T no país. Ademais, a atual configuração do trabalho no âmbito das universidades e dos programas de pós-graduação brasileiros traz repercussões adicionais para as mulheres, em razão das responsabilidades domésticas e familiares que lhes são conferidas. Tal configuração exige das pesquisadoras estratégias de conciliação e manejo da sua carga horária e das inúmeras demandas, o que se torna muito desgastante para elas. Nessa condição, é perceptível a existência de sentimentos que oscilam entre a satisfação pela ocupação da bolsa PQ, dado o reconhecimento de suas trajetórias pelos pares e o aporte financeiro que possibilita o desenvolvimento de investigações, e o desânimo e o cansaço ocasionados pela sobrecarga de atividades e funções.
Esse cenário traz à luz os mecanismos e modos de operar da ciência moderna que, baseada nas desigualdades de gênero, raça e classe, impõe uma conjuntura de trabalho centrada em valores “masculinos” que dificultam o alcance das mulheres ao topo da carreira acadêmica. Dada essa conjuntura, as mulheres pesquisadoras acessam de modo desigual os recursos destinados à produção do conhecimento e à pesquisa científica em comparação aos homens. Além disso, as mulheres pesquisadoras negras e indígenas, em razão da sub-representação na Psicologia e nas CHSSALLA, acessam esses recursos de maneira ainda mais restrita em relação às mulheres brancas. Observa-se, dessa forma, as profundas desigualdades de gênero, raça e classe na ciência brasileira e, em particular, na área da Psicologia.











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