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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717versão On-line ISSN 1981-0490

Cad. psicol. soc. trab. vol.28  São Paulo  2025  Epub 08-Set-2025

https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.cpst.2025.214840 

Artigos originais

Composição do ser e do fazer docente: os sentidos do trabalho para professores do Ciclo de Alfabetização

Composition of being and doing as a Teacher: The Meanings of Work for Literacy Cycle Teachers

1Universidade Estadual de Maringá (Maringá, PR, Brasil)

2Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis, SC, Brasil)


Este artigo, inserido na área da psicologia social do trabalho, objetiva discutir os sentidos do trabalho produzido por docentes do ciclo de alfabetização, a partir da perspectiva da psicologia histórico-cultural. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com três docentes do ciclo de alfabetização de uma escola da rede municipal de educação brasileira, observações no cotidiano escolar e registros fotográficos. O movimento de análise foi baseado na proposta dos núcleos de significação. Constituíram-se três núcleos de significação, a saber: articulações entre trabalho e educação na vida de professores; o trabalho docente e suas formas de expressão; e trabalho docente em relação. De modo geral, os sujeitos constituem o seu fazer e ser docente segundo os sentidos e significados que eles produzem e reproduzem em suas atividades pedagógicas gestadas na lógica capitalista. Assim, os sentidos do trabalho produzidos pelos sujeitos se articulam com o seu atual fazer docente, com as suas trajetórias laborais e educativas e com as relações que eles estabelecem com os seus pares.

Palavras-chave: Psicologia Social do trabalho; Trabalho docente; Ciclo de alfabetização; Processo de significação; Sentidos do trabalho

ABSTRACT

This article, inserted in the area of Social Psychology of Work, aims to discuss the meanings of the work produced by Literacy Cycle teachers, from the perspective of Historical-Cultural Psychology. For this purpose, semi-structured interviews, observations in the school routine and photographic records were carried out with three teachers from the Literacy Cycle of a school in the Brazilian municipal education network. The analysis movement was based on the proposal of the Meaning Nuclei. Three core meanings were constituted, namely: articulations between work and education in the teachers’ lives, teaching work and its forms of expression and teaching work in relation. In general, subjects constitute their doing and being a teacher according to the senses and meanings they produce and reproduce in their pedagogical activities gestated in capitalist logic. Thus, the meanings of work produced by the subjectsare articulated with their current teaching activity, with their work and educational trajectories and with the relationships they establish with their peers.

Keywords: Social psychology of work; Teacher’s work; Literacy cycle; Meaning process; Work Meanings

Introdução

Para além dos processos biológicos que concernem à formação humana, a ciência psicológica se dedica cada vez mais a compreender o entrelaçamento entre as múltiplas determinações que constituem a diversidade da existência dos sujeitos. Nesse percurso, por meio de seus estudos e pesquisas, a área da psicologia social do trabalho (PST) tem contribuído para entender de modo crítico e reflexivo as relações e, sobretudo, as condições de possibilidades que se estabelecem entre os seres humanos e os processos de trabalho.

De acordo com Bernardo et al. (2017), a PST questiona de forma crítica o trabalho na contemporaneidade e, por isso, em nosso entendimento, faz avançar a compreensão e a intervenção frente às possibilidades e aos limites que envolvem a formação da existência dos seres humanos na atual particularidade. Assim, a partir da necessidade de uma análise crítica das relações de trabalho capitalistas (do modo de produção capitalista, portanto), a PST articula-se com a abordagem da psicologia histórico-cultural (PHC). Isso se dá porque, ao desenvolver-se a partir das contribuições de um contexto revolucionário que buscava superar as condições de exploração capitalista e dos fundamentos do materialismo histórico dialético, a PHC, segundo Shuare (2016), constrói a sua análise da constituição e do desenvolvimento humano de modo histórico, social e cultural, isto é, segundo a dialética singular-particular-universal.

Partindo da concepção de que o trabalho é a atividade central, isto é, fundante do ser humano (Leontiev, 2004/1975), a PHC possibilita compreender o desenvolvimento humano, a constituição do psiquismo, da consciência, enfim da totalidade dos sujeitos, segundo a diversidade de atividades que se instituem ao longo de suas existências. Entender a formação humana deste modo implica, por exemplo, vislumbrarmos a possibilidade (e a necessidade) de mudanças diante da realidade e da constituição fragmentada dos sujeitos que temos na atualidade capitalista.

Nesse sentido, Vygotski (1996/1933-1934) contribui para compreendermos o processo de periodização do desenvolvimento humano para além das aparências, isto é, buscar a essência constitutiva do processo de desenvolvimento psicológico. Assim, desvelar a forma de ser e de atuar do trabalhador docente adulto não diz respeito apenas a identificar sua idade cronológica, mas compreender a formação de sua atividade principal3, que é a atividade produtiva, isto é, a atividade pedagógica.

A partir disso, temos a possibilidade de conhecer a emergência do processo de significação dos sujeitos face a determinado aspecto da realidade. Nesse sentido, Vigotski (2009/1934) realiza uma importante contribuição conceituando e mencionando a importância da formação dos sentidos e significados para o processo de apropriação dos elementos da realidade e, consequentemente, para o próprio desenvolvimento humano. Segundo o autor, tais processos são importantes mediações que articulam a palavra, a fala e o pensamento. Leontiev (2004/1975, 2021/1975), por sua vez, complementa essa ideia afirmando que os sentidos pessoais e os significados sociais são processos intimamente articulados à atividade humana.

No que diz respeito à questão da atividade, faz-se necessário olharmos para a atual particularidade capitalista que impõe forma e conteúdo ao mundo do trabalho. Antunes (2018) é enfático ao evidenciar as contradições do trabalho, sobretudo por meio de sua terceirização e precarização. Conforme o autor, ao longo dos últimos anos, o sistema capitalista e, mais precisamente, as relações de trabalho passaram a se reorganizar na perspectiva da maximização dos lucros e, portanto, na formação do movimento de exaurir cada vez mais as condições de trabalho e de existência dos trabalhadores.

Em seus estudos, Leontiev (2004/1975) já apontava o fato de que a “desigualdade entre os homens não provem das suas diferenças biológicas naturais. Ela é produto da desigualdade econômica” (p. 293). Assim, quando olhamos para a particularidade desvelada por Antunes (2018), entre outros aspectos, passamos a questionar quais são as condições de possibilidades de existência postas aos trabalhadores na atualidade, especialmente aos docentes do Ciclo de Alfabetização.

No entanto, compreender a atualidade requer retomarmos a temporalidade, isto é, a história. Em um importante resgate histórico do magistério no Brasil, Chamon (2005) menciona que a “ideologia da vocação, amplamente disseminada nas escolas normais e entre os profissionais do magistério em geral, passou a exprimir uma espécie de predestinação, socialmente determinada” (p. 150). Assim, no Brasil, historicamente, o trabalho docente, especialmente na Educação Básica, esteve articulado com a significação de vocação e atividade maternal (Chamon, 2005).

Como desdobramento disso, pode ocorrer a emergência de significados sociais que denotam, por exemplo, o trabalho docente como “missão” e não como profissão articulada às determinações de dada particularidade. Nessa direção, vale lembrar, conforme a PHC, que a relação sentido pessoal e significado social compõe a consciência dos sujeitos, ou seja, organiza as compressões e atuações dos sujeitos na realidade.

A partir desses apontamentos, este artigo objetiva discorrer acerca dos sentidos do trabalho produzidos por docentes do ciclo de alfabetização. Cabe salientar que este estudo é um recorte de uma pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (Trindade, 2018). O artigo estrutura-se da seguinte maneira: introdução; algumas discussões sobre o fazer e ser docente; procedimentos metodológicos; resultados apresentados de forma articulada com as discussões; e, por fim, considerações finais.

Notas sobre o fazer e o ser docente: contribuições da psicologia histórico-cultural

Para a PHC, conforme Vygotski (2000/1931), é na prática social que os sujeitos transformam a realidade e também aprimoram seu desenvolvimento enquanto seres humanos. Nessa perspectiva, a constituição dos sujeitos não é um processo determinado organicamente, mas historicamente, socialmente e culturalmente. Devido a isso, segundo o autor, entende-se a íntima relação entre a conduta e a existência humana. Dito de outro modo, as nossas ações na realidade articulam-se com a formação do nosso ser, mais precisamente com a formação da nossa personalidade.

No âmbito do trabalho docente, Martins (2015) enfatiza a vasta quantidade de trabalhos voltados à compreensão da subjetividade do professor e de suas possíveis articulações com a docência. Segundo a autora, esse movimento vem se ampliando e se constituindo principalmente na direção de verificar/identificar os desdobramentos dessa dita subjetividade na atuação docente, inclusive na perspectiva da determinação da subjetividade em relação ao fazer profissional dos professores.

Não resta dúvida quanto à inter-relação entre a constituição dos sujeitos e trabalho – fazer profissional. Contudo, conforme Leontiev (2004/1975, 2021/1975), tanto a consciência quanto a personalidade dos sujeitos são formadas na atividade humana, não o contrário. Essa compreensão se desdobra também no fato de que não existe uma subjetividade padrão, de um ser docente inato e/ou único, mas de sujeitos trabalhadores que constituem suas singularidades também de acordo com as condições de possibilidades colocadas no seu contexto de trabalho.

A partir disso, é essencial à compreensão tanto do fazer docente quanto do ser docente o desvelamento do contexto do trabalho educativo, isto é, das condições que viabilizam ou não a atividade pedagógica no cotidiano escolar. Nesse sentido, inicialmente, vale lembrar, conforme Saviani (2003), a importância da atuação intencional e sistematizada dos docentes para a formação do processo educativo formal. Tal como a pedagogia histórico-crítica, a psicologia histórico-cultural entende e defende a relevância da centralidade do trabalho docente para o processo de escolarização formal dos sujeitos. Por isso, torna-se especialmente relevante identificar e compreender as possibilidades e os limites que perpassam a articulação entre o fazer e o ser docente.

É fundamental levarmos em consideração esse pressuposto – da centralidade do trabalho docente – que concerne o processo de escolarização, mas obviamente precisamos avançar no desvelamento de como esses processos vêm tomando forma e conteúdo na atual particularidade capitalista. Sobre isso, Martins (2015) pondera a necessidade de “nunca perder de vista que vivemos numa sociedade capitalista, produtora de mercadorias, universalizadora do valor de troca, enfim, uma sociedade essencialmente alienada e alienante” (p. 30). Nesse cenário, Facci et al. (2018) enfatizam a necessidade de conceber os professores enquanto trabalhadores que também estão submetidos a esse contexto.

Destarte, entende-se que compreender o fazer e o ser docente perpassa também por desvelarmos os limites que envolvem a existência dos sujeitos no contexto da sociedade de classes. Dado que, segundo a PHC, tem-se uma intrínseca relação entre as condições concretas de existência e a constituição dos sujeitos (Shuare, 2016).

Ademais, tomar como base esse pressuposto diz respeito à verificação dos desdobramentos do processo de alienação na formação do fazer e ser docente. O qual, “caracteriza-se, portanto, pela extensão universal da ‘vendabilidade’ (isto é, a transformação de tudo em mercadoria); pela conversão dos seres humanos em ‘coisas’, para que eles possam aparecer como mercadorias no mercado” (Mészáros, 2006, p. 39).

Assim, quanto ao processo de trabalho, Martins (2015) chama atenção para a possibilidade da ocorrência de uma adaptação e/ou naturalização da atual forma do trabalho docente mediante, por exemplo, o direcionamento dado aos processos formativos desses sujeitos. Em outras palavras, segundo a autora, as condições de trabalho docente, especialmente seus processos formativos, podem limitar a necessidade do questionamento das condições de alienação que perpassam a existência dos seres humanos.

Esse cenário é reforçado pelos contornos impostos ao fazer docente. Um exemplo disso, segundo Facci et al. (2018), é a implementação na Educação Básica da necessidade da avaliação quantitativa do trabalho para a produção de rankings. Diante disso, ao se submeterem a essa lógica, os docentes também acabam reproduzindo relações alienadas de trabalho (Facci et al., 2018; Pessoa, 2018). Assim, as engrenagens que alimentam essa forma de trabalho funcionam continuamente e, assim, se perpetuam.

Já em relação ao ser docente, Martins (2015) chama atenção para o fato de que a “cisão criada pela alienação no interior da personalidade acaba por opor a atividade psicológica a si mesma” (p. 130). Esse movimento, conforme a autora, dentre outras formas, expressa-se principalmente na negação que se institui entre os processos de significação social e sentido pessoal, que perpassam a formação da consciência dos docentes.

Pessoa (2018), por sua vez, em seu estudo com docentes da Educação Básica, também constatou que apenas entender as contradições colocadas no processo educativo formal não é sinônimo de mudança do fazer alienante e do ser docente fragmentado. Segundo a autora, mesmo as docentes que identificam os limites colocados nos processos educativos acabam por reproduzir as respectivas relações alienadas de existência.

Diante dessas reflexões, a partir da psicologia histórico-cultural, o fazer e o ser docente não são processos que se distanciam, ao contrário, eles estão intimamente articulados. Justamente, conforme Leontiev (2004/1975, 2021/1975), pelo fato de que o ser se constitui na e pela atividade desenvolvida pelos seres humanos, isto é, pelo seu fazer. Devido às condições de existência impostas pelas relações capitalistas, atualmente tanto o fazer quanto o ser docente constituem-se de modo fragmentado, tornando ambos os processos articulados sobretudo na perspectiva da perpetuação da alienação.

Desvelar esse movimento requer conhecermos cada vez mais o cotidiano escolar a partir de suas múltiplas determinações, principalmente as históricas, sociais e culturais. Saviani (2003) nos lembra que “a escola é, pois, compreendida com base no desenvolvimento histórico da sociedade” (p. 103) e, por isso, ela é também uma importante mediação para a construção do processo de superação da atual sociedade de classes. Tal espaço-tempo, ao ser historicamente formado, também oferta as condições de possibilidade da superação de sua forma alienada.

Por fim, enfatizamos que desvelar o fazer e o ser docente, a partir da perspectiva da psicologia histórico-cultural, implica colocarmos em movimento ambos os processos e, ainda mais importante do que isso, concebê-los de maneira historicizada na dialética singular-particular-universal, e não enquanto processos naturais ou individuais.

Procedimentos metodológicos: quais caminhos seguimos

A pesquisa em tela, como já mencionado, constitui-se na área da psicologia social do trabalho, a qual, de acordo com Bernardo et al. (2015), busca compreender e intervir de forma crítica nas atuais relações de trabalho. Deste modo, tão essencial quanto identificar os sentidos do trabalho produzidos por docentes do ciclo de alfabetização, é pensarmos os caminhos que possibilitam a compressão científica desses sentidos. Para tanto, o presente estudo fundamenta-se nas contribuições da psicologia histórico-cultural, mais precisamente nas elaborações científicas de Lev Semionovich Vigotski.

Entre outros aspectos, tal perspectiva, ancorada no materialismo histórico-dialético, possibilita compreendermos o psiquismo de forma histórica e social (Shuare, 2016). À vista disso, torna-se especialmente relevante pensarmos a formação e o desenvolvimento do processo de significação humana, uma vez que é na trama da atividade, mais precisamente da formação do significado social e do sentido pessoal, que os indivíduos desenvolvem a sua consciência (Leontiev, 2004/1975). Assim, dada as diferentes mediações da investigação científica postas na atualidade, coloca-se o desafio de planejar e executar ações de pesquisa que possibilitem a compreensão dos sentidos que os seres humanos produzem frente aos diferentes aspectos da realidade.

No âmbito deste estudo, participaram duas professoras e um professor, isto é, três docentes do ciclo de alfabetização, lotados na mesma escola de uma rede municipal de educação brasileira. A seleção dos respectivos sujeitos de pesquisa ocorreu em virtude do fato deles fazerem parte do ciclo de alfabetização da escola, isto é, serem os docentes responsáveis pelos primeiro, segundo e terceiro anos do Ensino Fundamental de nove anos.

Como mediações científicas para o desvelamento e, consequentemente, para a compreensão dos sentidos do trabalho produzido por esses sujeitos, foram realizadas entrevistas com os docentes, observações no cotidiano escolar e registros fotográficos produzidos tanto pelos próprios sujeitos quanto pela pesquisadora. Destaca-se que o foco deste artigo não é a exposição pormenorizada das observações e dos registros fotográficos em si, uma vez que essas foram incorporadas no movimento de produção e discussão dos núcleos de significação que compõem o trabalho completo, que podem ser localizadas em Trindade (2018).

O processo de entrevista e as observações no cotidiano escolar estiveram alinhados com o objetivo do estudo, isto é, conhecer os sentidos do trabalho produzidos por docentes do ciclo de alfabetização. As entrevistas foram orientadas por um roteiro semiestruturado, realizadas individualmente com os docentes, gravadas e, posteriormente, transcritas. Já as observações também foram realizadas individualmente, acompanhando a rotina dos docentes no cotidiano escolar, sendo utilizado um caderno para os registros.

Quanto aos registros fotográficos, inicialmente partimos da premissa de que as produções fotográficas não se constituem enquanto mediações a-históricas e/ou atemporais, ao contrário, são ações direta ou indiretamente planejadas e desenvolvidas em uma dada particularidade. Nessa perspectiva, as produções fotográficas elaboradas pelos sujeitos deste estudo e pela pesquisadora constituíram-se enquanto mediações que possibilitaram desvelar e dialogar sobre os sentidos do trabalho para docentes do ciclo da alfabetização. Em outras palavras, os respectivos recursos fotográficos não foram analisados em si, mas sim os relatos produzidos pelos sujeitos a partir desses (Trindade, 2018).

Já em relação ao movimento de construção das análises dos produtos das entrevistas, das observações e dos registros fotográficos, ele se deu a partir da proposta desenvolvida por Aguiar e Ozella (2006) dos núcleos de significação. Conforme os autores, esse movimento de análise requer a construção de pré-indicadores, indicadores e, por fim, dos núcleos de significação.

Assim, o movimento de compreensão dos sentidos do trabalho para docentes do ciclo de alfabetização não se restringiu à análise em si das falas transcritas dos sujeitos, das observações e das produções fotográficas, mas fundamentou-se na interlocução com a teoria, isto é, com a literatura científica da área. Deste modo, foram sistematizados três núcleos de significação, a saber: “Articulações entre trabalho e educação na vida de professores”, “O trabalho docente e suas formas de expressão” e “Trabalho docente em relação” (Trindade, 2018, p. 58). Na sequência, serão apresentadas as discussões que perpassam cada um desses núcleos, os quais, em articulação, revelam os sentidos do trabalho produzidos pelos docentes do ciclo de alfabetização.

Por fim, quanto aos aspectos éticos, este estudo contou com apreciação e aprovação de seu projeto de pesquisa no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Portanto, para seu desenvolvimento, contou com os documentos éticos necessários, entre esses, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Ser professor é sempre ser estudioso”: conhecendo os sentidos do trabalho docente

As contribuições da psicologia social do trabalho (PST) apontam para a importância de compreendermos de modo crítico as determinações que constituem o processo de trabalho e a vida dos trabalhadores (Bernardo et al., 2017). Face a isso, junto com a abordagem da psicologia histórico-cultural (PHC), ao tomarmos como fundamento da formação humana as múltiplas determinações que constituem a realidade, podemos conceber os docentes do ciclo de alfabetização em suas singularidades, particularidade e totalidade, as quais são históricas, sociais e culturais.

A atual particularidade, que dá forma e conteúdo ao trabalho, caracteriza-se, cada vez mais, como um cenário marcado pela precarização e pelo desemprego estrutural, sendo que “aqueles que se mantêm empregados presenciam a corrosão dos seus direitos sociais e a erosão de suas conquistas históricas” (Antunes, 2018, p. 25). Especificamente em relação ao trabalho docente, sobretudo no que diz respeito à docência na Educação Básica, Chamon (2005) chama atenção tanto para o fato da predominância do trabalho feminino quanto da subvalorização dessa profissão no contexto brasileiro.

É no centro dessas reais contradições que são constituídos os modos de ser e existir da classe trabalhadora brasileira, mais especificamente, no caso do recorte deste estudo, dos docentes do ciclo de alfabetização. Ademais, Leontiev (2004/1975) nos lembra que a gênese da linguagem se articula com a atividade de trabalho, ou seja, a partir da “necessidade, nascida do trabalho, que os homens sentem de dizer alguma coisa” (p. 92). Por isso, conforme o autor, a linguagem, o pensamento e, portanto, também a consciência, constituem-se diretamente em correlação com a atividade.

De acordo com a PHC, o processo de significação humana, aqui entendido como o movimento de formação dos sentidos pessoais e dos significados sociais, não diz respeito a um desenvolvimento exclusivamente “interno”, biológico e atemporal dos sujeitos. Ao contrário, o processo de significação funda-se e fundamenta-se na atividade humana, a qual é forjada em dada particularidade histórica, social e cultural. Logo, é segundo a realidade concreta dos sujeitos que o processo de significação toma forma e conteúdo e, por consequência, alicerça a formação das múltiplas singularidades dos trabalhadores. Assim, nas palavras de Leontiev (2004/1975), as “significações não têm existência fora dos cérebros humanos concretos; não existe qualquer reino de significações independente e comparável ao mundo platônico das idéias” (p. 94).

Nessa perspectiva, para desvelar os sentidos do trabalho produzidos por docentes do ciclo de alfabetização, partimos da premissa de que aqueles são constituídos em sua forma e conteúdo também segundo as condições de possibilidade de existência desses sujeitos. No caso do presente estudo, eles se expressaram através dos enlaces entre três processos, a saber: as trajetórias de vida; o cotidiano de trabalho; e as relações entre indivíduos. Acrescente-se que essa sistematização dos sentidos do trabalho, a partir da proposta dos núcleos de significação, constitui-se de maneira didática, posto que na vida dos docentes não ocorre uma cisão entre tais processos.

Destarte, os sentidos do trabalho produzidos pelos docentes do ciclo de alfabetização revelaram-se articulados com as suas trajetórias de vida, as quais foram forjadas na relação estabelecida entre o estudo e o trabalho. Conhecer as trajetórias de vida dos sujeitos nos remete a pensar a própria questão do desenvolvimento humano, a qual, segundo a PHC, deve ser concebida a partir das discussões elaboradas por Vygotski (1996/1933-1934) acerca do problema das idades e das crises do desenvolvimento. Dito de outro modo, desvelar as trajetórias de vida correlaciona-se ao entendimento dos períodos do desenvolvimento que compõem a existência dos seres humanos, mais precisamente no movimento dialético que institui as diferentes atividades nos diferentes períodos da vida.

No âmbito deste estudo, referente às discussões que envolvem o núcleo de significação das trajetórias de vida, verificou-se que essas foram marcadas pela significação dos processos de escolarização como possibilidade de mudança de vida e das diferentes atividades de trabalho assumidas enquanto necessidade de reprodução imediata da existência. Vale ressaltar que, ao longo das suas trajetórias de vida, os docentes entrevistados desenvolveram diferentes atividades de trabalho para além da função pedagógica, como relata, por exemplo, o professor do 3º ano: “Era tudo uma loucura, porque eu também tinha a lanchonete na época, né, então era uma loucura… Porque cuidava da lanchonete, estudava na lanchonete, tocava a lanchonete, e cuidava dos filhos também” (Trindade, 2018, p. 77). Já a professora do 1º ano menciona o seguinte: “Em uma malharia que eles dizem, na”Empresa X”, eu trabalhei lá por seis meses e odiei . . . . É tudo automático, é produção . . .” (Trindade, 2018, p. 76).

No campo da PST, Ornellas et al. (2022) contribuem para identificarmos a multiplicidade de entendimentos acerca da questão das trajetórias laborais. Nesse caminho, as autoras sinalizam a importância de concebermos as trajetórias laborais de forma processual, isto é, articular passado, presente e futuro. Reafirmamos essa concepção, tendo em vista que ela também se expressou no estudo em tela, sobretudo na medida em que as trajetórias laborais também se articulam com os sentidos do trabalho produzidos pelos docentes do ciclo de alfabetização.

Como mencionado, a construção e os próprios sentidos do trabalho não são processos à parte das determinações históricas, sociais e culturais que envolvem a existência dos sujeitos. Por isso, as significações do trabalho produzidas atualmente pelos sujeitos são também expressões das suas trajetórias de vida assumidas nos seus diferentes períodos do desenvolvimento humano. Entre tais trajetórias laborais, destaca-se,

. . . por exemplo, quando a professora do segundo ano relata suas experiências de trabalho em uma padaria de sua família, que perduraram aproximadamente até a metade do seu curso de graduação em Pedagogia. Quando a professora do primeiro ano relata que trabalhou em uma malharia no setor têxtil e, posteriormente, trabalhou como secretária em um consultório oftalmológico. E quando o professor do terceiro ano menciona que trabalhou por cerca de sete anos em uma rede hoteleira e, posteriormente, optou por ter o seu próprio negócio no ramo da alimentação

(Trindade, 2018, p. 76).

Assim, conhecer as trajetórias laborais em sua processualidade, isto é, de modo temporal, possibilita tanto identificar que a existência de trabalho dos docentes do ciclo de alfabetização não se restringiu ao âmbito educativo quanto compreender que atualmente eles articulam os sentidos do trabalho também a partir de expressões negativas que envolveram suas trajetórias. Vide as seguintes falas dos sujeitos:

O meu primeiro emprego foi com quinze anos. Eu fui babá do filho de uma amiga minha. (Professora 2º ano)

(Trindade, 2018, p. 71).

Eu comecei a trabalhar com treze anos, em uma confecção do meu pai e da minha tia. Aos quatorze anos, já estava fichado como costureiro. Então trabalhei um ano como costureiro. Depois fui trabalhar em uma indústria têxtil a “Empresa Y”, lá trabalhei sete anos, comecei como varredor, e saí de lá como programador de tecelagem. (Professor 3° ano)

(Trindade, 2018, p. 71).

Tal como apontado por Ornellas et al. (2022) em relação às trajetórias laborais, no que diz respeito à formação das trajetórias educativas, isto é, quanto aos processos desenvolvidos ao longo do período de escolarização formal, também consideramos a necessidade de concebê-las enquanto processualidade. Para os sujeitos deste estudo, as trajetórias educativas são recordadas a partir: da significação produzida e reproduzida por eles e seus familiares acerca da importância da educação como possibilidade de mudança de vida; e das memórias que envolveram os seus processos de escolarização, em especial as relações com seus antigos docentes, e com os processos formativos que envolveram suas trajetórias.

Em geral, no caso dos docentes do ciclo de alfabetização, por um lado as trajetórias laborais são significadas a partir de suas expressões contraditórias; por outro, as trajetórias educativas são significadas enquanto potências na constituição da vida dos sujeitos, mesmo que ocorram em condições escolares capitalistas. Nessa dinâmica, os sentidos do trabalho produzidos pelos docentes também se constituem como expressão dessas trajetórias, uma vez que, como veremos na sequência, as motivações e as ações da atividade pedagógica também se articulam com os conteúdos vivenciados por eles. Esse movimento reitera a necessidade de conceber as trajetórias laborais e educativas em inter-relação temporal (passado, presente e futuro) e de modo articulado com a produção de significados sociais e sentidos pessoais do trabalho.

Tendo em vista essa possibilidade de correlação entre trajetórias e sentidos, vale destacar, conforme Vigotski (2009/1934), que, no processo de significação, “o significado de cada palavra é uma generalização ou um conceito” (p. 398), isto é,

o significado da palavra só é um fenômeno do pensamento na medida em que o pensamento está relacionado à palavra e nela materializado, e vice-versa: é um fenômeno de discurso apenas na medida em que o discurso está vinculado ao pensamento e focalizado por sua luz. É um fenômeno do pensamento discursivo ou da palavra consciente, é a unidade da palavra com o pensamento

(Vigotski, 2009/1934, p. 398).

Nessa perspectiva, conforme o autor, os significados das palavras não são estáticos, mas se transformam, uma vez que a relação entre o pensamento e a palavra pode ser estabelecida em diversos níveis, ampliando-se e expandindo. O sentido da palavra, por sua vez,

. . . é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variadas. O significado é apenas uma dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata

(Vigotski, 2009/1934, p. 465).

Deste modo, no processo de significação humana, articulam-se significados e sentidos, cada um com a sua particularidade. Sobre isso, Martins (2015) ainda pondera que “o alargamento do domínio da consciência sobre as ações faz-se exatamente mediante o estabelecimento de relações entre os significados e os sentidos” (p. 64). Deste modo, de acordo com a PHC, pensar a relação sentido e significado possibilita desvelar a formação e o desenvolvimento da consciência humana.

Neste estudo, ao abordarmos as expressões do trabalho dos docentes do ciclo da alfabetização, buscamos entender os sentidos sobre ser docente e os sentidos sobre a atuação docente produzidos pelas(os) professoras(es), ou seja, as significações que os docentes produzem acerca do ser docente e de sua atuação na respectiva profissão. Essas discussões fazem parte do núcleo de significação que aborda o cotidiano de trabalho dos sujeitos. Assim, nessa perspectiva, as análises apontaram para o fato de que esses processos

. . . são expressos a partir de múltiplas determinações que se articulam. Entre elas, destacam-se as que dizem respeito a que o professor deva realizar muitas atividades e, ao mesmo tempo, estar em constante processo de formação, aos entendimentos de incompletude e não reconhecimento em relação ao trabalho, atreladas a isso estão a concepção de amor à sua atividade e as contradições postas por novas propostas de reformas educacionais que estão em pauta na atualidade

(Trindade, 2018, p. 93).

Nessa dinâmica, ressalta-se que o sentido do ser docente também é permeado pelos processos que compõem as trajetórias educativas dos docentes do ciclo de alfabetização. Estas, como mencionado anteriormente, caracterizam-se majoritariamente por concepções de mudança de vida, diferentemente das trajetórias laborais, que se evidenciaram sobretudo segundo “características negativas”, isto é, por aspectos e/ou processos que denotam as contradições do mundo do trabalho capitalista, tais como a sobrecarga e a precarização.

Essa concepção reproduzida pelos docentes articula-se com o fato histórico caracterizado por Chamon (2005) como o momento de ampliação do sistema capitalista, no qual “foram alteradas as relações de trabalho, as relações de gênero e muitos valores que antes constituíam o cimento das organizações sociais” (p. 62). Dito de outro modo, o desenvolvimento histórico de expansão do capitalismo também impulsionou a formação de novas concepções de “mudança” de vida, sobretudo as relacionadas à ascensão social através da educação.

Deste modo, ao identificarmos os conteúdos que compõem os sentidos sobre o ser e a atuação docente, verificamos que não se trata de algo específico dos sujeitos deste estudo, ao contrário, são conteúdos sociais que são reproduzidos por tais sujeitos. Nesse sentido, vale lembrar, conforme Martins (2015), que, dada as suas especificidades, “no seio da sociedade capitalista, o professor é um trabalhador como outro qualquer” (p. 4). Assim, enquanto tal, também está sujeito aos processos de exploração, de opressão e, portanto, de alienação. Nesse sentido, interessa lembrar que,

. . . o processo de alienação advém da estrutura social fundada na propriedade privada dos meios de produção, na qual ocorre o esvaziamento do trabalho. A atividade do indivíduo e seu resultado tornam-se independentes, acarretando uma subordinação do produtor ao produto do seu trabalho. Pelo processo de alienação, o homem coisifica-se, convertendo-se em escravo daquilo que ele próprio criou

(Martins, 2015, p. 114).

Nessa perspectiva, o processo de alienação do trabalho também se expressa na constituição do psiquismo humano, gerando, conforme a PHC, a fragmentação da consciência dos indivíduos. Esse movimento se revela nos docentes do ciclo da alfabetização quando, por exemplo, eles produzem e reproduzem sentidos sobre um modelo ideal de ser docente, o qual não corresponde à sua realidade no cotidiano escolar e tampouco corresponde ao próprio modo como os docentes produzem sentidos sobre a sua atuação enquanto docentes. Dito de outro modo, o conteúdo que compõe a compreensão sobre si distancia-se do que de fato se é, consequentemente, da forma como eles desenvolvem as suas atuações no cotidiano escolar. Assim, institui-se a alienação do ser e do fazer docente.

Outro exemplo disso ocorre quando os docentes reiteram concepções que denotam o quanto e como eles devem ser sujeitos modelos que os seus estudantes devem seguir; diante disso, os docentes passam a dar o máximo de si em seu processo de trabalho, mesmo quando o contexto trabalhista não oferta as condições para tanto. Com isso, temos a emergência do pleno trabalhador funcional ao sistema, isto é, do sujeito que não consegue compreender a totalidade dos processos e de certo modo romper com essa lógica de trabalho, porque, por exemplo, está focado em ser o modelo para as futuras gerações.

Nessa seara, pensar a questão da consciência dos trabalhadores também se constitui como uma das tarefas centrais da PST. Nessa direção, Bernardo et al. (2017) ponderam que a atuação do psicólogo do trabalho pode contribuir na perspectiva da construção da autonomia dos trabalhadores, isto é, expressa-se na construção da “consciência crítica sobre as condições socioeconômicas a partir das quais constroem sua trajetória de trabalho” (p. 33). No contexto em tela, vemos a necessidade e a importância do trabalho da psicologia nessa perspectiva mencionada, sobretudo enquanto possibilidade de contribuir para romper com o ciclo de alienação dos trabalhadores.

Destarte, investigar os sentidos que os docentes do ciclo da alfabetização produzem acerca do ser e da atuação docente possibilita verificarmos que os conteúdos que compõem os seus processos de significação também são expressões da atual particularidade capitalista. É também nessa dinâmica que o próprio sistema se perpetua, uma vez que não são alteradas suas estruturas gerais e seus conteúdos de significação. Decorre disso a clássica e necessária afirmação de Antunes (2018), sobre o fato de que:

o sentido que estrutura o capital (o trabalho abstrato) é desestruturante para a humanidade, enquanto seu oposto, o trabalho que tem sentido estruturante para a humanidade (o trabalho concreto que cria bens socialmente úteis), torna-se potencialmente desestruturante para o capital

(p. 26).

Face a esse cenário, uma das chaves para romper o processo, como será discutido na sequência, pode se constituir exatamente naquilo que concebemos como relações humanas. Sobre isso, Vygotski (2000/1931) pondera que é no bojo da vida social, isto é, nas relações entre os seres humanos, que os sujeitos têm a possibilidade de colocar em movimento seu desenvolvimento. Em outras palavras, é nas relações que estabelecemos com os outros sujeitos de nossa classe que reside tanto a possibilidade de nossa alienação quanto de nossa libertação, por isso se coloca a necessidade de compreendê-las.

Quando investigamos os sentidos do trabalho produzidos pelos docentes do ciclo de alfabetização sobre as suas relações com os familiares dos alunos, identificamos que essas significações possuem como conteúdo central o entendimento de ausências das famílias na constituição dessas relações. Já sobre as relações entre os trabalhadores, mais precisamente as relações que os docentes estabelecem entre si e com outros trabalhadores da área educacional, verificamos que elas se constituem tanto por tensionamentos quanto por construções coletivas que possibilitam o trabalho no dia a dia da escola. Além disso, quanto às relações com as crianças, isto é, com os estudantes, os docentes enfatizam uma diversidade de sentimentos:

Meu deus, um monte! Um monte! De ódio, de raiva, de coisa boa, de alegria de felicidade, de medo... Ah, um monte de sentimento! É a tarde inteira! (Professora 1° ano). De tudo um pouco, eu experimento todos os sentimentos, desde ódio, de eu nunca mais quero ir, até carinho sabe . . . . Desde o ódio mais profundo de desejar às vezes que a criaturinhamorra para nunca mais ver, até um amor muito bom, sabe! (Professora 2° ano). Ah, já teve vários tipos, de eles me adorarem, de eles me odiarem, de eles não me obedecerem, de eles me obedecerem. Então eu digo que hoje a gente está equilibrado, estamos bem (Professor 3° ano)

(Trindade, 2018, p. 126).

Deste modo, no presente estudo, verificou-se que os sentidos do trabalho produzidos pelos docentes do ciclo da alfabetização também são articulados a partir das relações que esses sujeitos estabelecem com os outros seres humanos, isto é, os familiares dos estudantes, os próprios estudantes e seus colegas de trabalho. Cada uma dessas relações direciona a formação de concepções específicas em relação ao processo de trabalho docente, não obstante elas perpassem a constituição do próprio ser e fazer docente. Nesse caminho, como mencionado anteriormente, essas análises fazem parte do núcleo de significação que discute as relações entre os indivíduos.

Assim, nota-se em relação às famílias uma dinâmica de ausência de relações que pode indicar, por exemplo, a dificuldade da construção de parcerias que promovam o acompanhamento do aprendizado dos estudantes, inclusive para além do tempo-espaço escolar. Em relação às relações com os estudantes, verificamos a emergência de muitos conteúdos relativos a sentimentos, os quais são expressos em uma certa dualidade – “amor e ódio”. Quanto às relações entre trabalhadores, percebemos um movimento contraditório, o qual, ao mesmo tempo em que parece gerar anseios, perpetua e possibilita a manutenção do trabalho escolar.

Deste modo, mesmo diante de diferentes contradições, os sentidos das relações que os docentes constituem com os outros sujeitos que vivenciam direta ou indiretamente o contexto escolar revelam-se enquanto possibilidade de reconhecimento das suas existências e do seu trabalho. Como mencionado, a partir da PHC, a constituição humana não é um processo estritamente biológico e a-histórico, ao contrário, é nas e pelas relações sociais, sobretudo de trabalho, que são apropriados os elementos da realidade e, portanto, tornamo-nos humanos.

Assim, pensar o desenvolvimento humano, sobretudo como os sujeitos significam a realidade, requer também olharmos para as relações que estabelecemos com os nossos pares. Identificar e compreender as relações humanas é fundamental, inclusive, para implementarmos a superação de relações que direcionam a existência dos seres humanos, em geral, e dos docentes do ciclo da alfabetização, em particular, à alienação.

Ademais, na perspectiva da PST, ao desvelarmos os sentidos do trabalho produzidos pelos trabalhadores, neste caso os docentes do ciclo de alfabetização, temos a possibilidade de desvelar a forma e o conteúdo que estrutura o atual processo de significação humana forjado no bojo da alienação das relações capitalistas, dado que, conforme Martins (2015),

o estudo da atividade humana estabelece íntimas relações com as dimensões psicológicas do trabalho, isso porque, por meio do trabalho, não só se criam os produtos da atividade dos indivíduos, mas também se formam suas capacidades, constroem-se conhecimentos, desenvolvem-se hábitos, enfim, produzem-se processos afetivos e intelectuais de diferentes níveis

(p. 66).

Com isso, entendemos os desdobramentos na formação da consciência e, portanto, na leitura e na atuação no mundo dos docentes do ciclo de alfabetização quando eles produzem e reproduzem significados sociais e sentidos pessoais tais como “amor ao trabalho”, “somos exemplos aos estudantes”, “o estudo possibilita a ascensão social”. Esse conjunto de significações expressos pelos docentes não são um produto dos seus cérebros, ao contrário, são forjados nas suas trajetórias laborais e educativas, no cotidiano escolar, isto é, na sua atividade, que é particular, é histórica, e atualmente é capitalista.

Portanto, com base na PHC, desvelar os sentidos do trabalho produzidos pelos trabalhadores torna-se uma tarefa fundamental da PST na atualidade. Isso porque essa perspectiva não almeja apenas contemplar esses sentidos e/ou problematizá-los, mas sim promover a construção de mediações, em práticas educativas ou psicológicas, que possibilitem a superação das condições de alienação e fragmentação da constituição humana, isto é, a compreensão para a transformação.

Considerações finais

Este artigo objetivou apresentar e discutir os sentidos do trabalho produzidos por docentes do ciclo da alfabetização. Inicialmente, delimitou-se a perspectiva teórico-metodológica da psicologia histórico-cultural (PHC) enquanto abordagem psicológica que possibilita a compreensão histórico e social da constituição humana e, portanto, dos processos de subjetivação, isto é, dos significados sociais e dos sentidos pessoais.

Verificamos a importância de reconhecer o trabalho docente, mesmo diante de suas especificidades, enquanto processo que também se configura e reconfigura nas atuais engrenagens das relações de produção de capitalista. Nesse sentido, o trabalhador docente também deve ser compreendido enquanto sujeito passível de vivenciar e reproduzir, por exemplo, o processo de alienação. Essa dinâmica ganha forma e conteúdo tanto na sua atividade docente quanto na sua constituição singular, visto que esses processos não são/estão apartados.

Como aponta a PHC, o psiquismo humano é constituído na e pela atividade humana, por isso o processo de significação, mais precisamente os significados sociais e os sentidos pessoais, instituem-se a partir da atividade desenvolvida pelos sujeitos (Leontiev, 2004/1975). Nessa perspectiva, identificar os sentidos do trabalho produzidos pelos docentes do ciclo de alfabetização requer olharmos para o desenvolvimento do seu fazer docente, isto é, de sua atividade pedagógica. É no cotidiano escolar e nas relações com os outros sujeitos escolares, sobretudo familiares, estudantes e outros docentes, que os professores constituem sentido ao seu processo de trabalho.

Articulado com isso, o desenvolvimento deste estudo possibilitou entender o quanto os sentidos do trabalho também adquirem conteúdo a partir das vivências laborais e educativas experienciadas pelos docentes ao longo de suas vidas. Dito de outro modo, os conteúdos dos sentidos do trabalho também são permeados pelas lembranças das suas atividades de estudo e trabalho constituídas em períodos anteriores ao seu desenvolvimento. Com isso, conhecer os sentidos que os sujeitos atribuem ao processo de trabalho requer desvelar a dinâmica das diferentes atividades que compõem as suas trajetórias de vida.

Ademais, identificamos que os conteúdos dos sentidos do trabalho também são produtos da relação singular, particular e universal. Isso fica evidente, por exemplo, quando observamos a emergência de sentidos do trabalho que estão alinhados com a produção e reprodução da atual ordem social vigente. Compreender essa dinâmica não significa negar a importância do processo de significação à formação humana, mas identificar os limites que estão impostos a esse processo na atual particularidade capitalista.

No caso dos docentes do ciclo de alfabetização que fizeram parte deste estudo, ficou evidente o quanto as suas compreensões sobre si, suas atuações e relações para com seus pares perpetuam a produção e a reprodução da lógica do exemplo e do esforço individual – meritocracia. Esses conteúdos que articulam os sentidos do trabalho produzidos pelos respectivos sujeitos, direta e indiretamente, mantêm e perpetuam a atual particularidade capitalista. Nesse contexto, o fazer docente – a atividade – ao produzir tais sentidos do trabalho também articula o ser docente, isto é, a sua constituição, mais precisamente o modo como esses trabalhadores se percebem enquanto sujeitos no e do mundo.

Diante disso, defendemos como uma das tarefas fundamentais da psicologia social do trabalho constatar esse movimento e também desvelar o quanto e como a nossa constituição, sobretudo a consciência, é formada nos limites do modo de produção de capitalista, bem como atuar na perspectiva de romper com essa lógica. Para tanto, coloca-se a necessidade de se desenvolver novos estudos que visem investigar, por exemplo, tanto os sentidos do trabalho quanto a articulação das trajetórias laborais e educativas com as possibilidades e os limites ao desenvolvimento humano.

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3Sobre o conceito de atividade principal, especialmente relevante à psicologia histórico-cultural, indicamos consultar as contribuições de Leontiev (2021/1975).

Recebido: 07 de Agosto de 2023; Aceito: 08 de Julho de 2024; Revisado: 07 de Julho de 2024

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